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Akira yoshimura naufragios.

Akira yoshimura naufragios.

Akira Yoshimura

 

NAUFRÁGIOS

 

 

Capítulo 1

 

Velhos chapéus de junco em forma de cone se moviam na zona de arrebentação. Borrifos de água erguiam-se das on­das, desde a extremidade dos rochedos que contornavam a praia até a orla de areia, onde as ondas quebravam com força para depois retornar.

A superfície da água estava coberta de espuma branca, devido à chuva incessante. Uma mistura de gotas de chuva e borrifos das ondas escorria pelos buracos no chapéu de Isaku. Havia apenas uma estreita faixa de areia naquela parte da costa rochosa, e ali, também, pessoas com chapéus de junco encontravam-se ocupadas recolhendo pedaços de madeira trazidos pelo mar.

Isaku esperou que a onda recuasse, então entrou na água e pegou um pedaço de madeira preso entre duas pedras. A julgar pelo formato em arco e pelos orifícios de pregos, de­veria ser de um barco naufragado. A tábua estava firmemen­te presa às pedras, e seria difícil um menino de nove anos conseguir soltá-la com facilidade, mas quando Isaku apoiou o pé firmemente em uma das pedras e puxou, a madeira começou a se soltar.

Isaku correu de volta para a praia quando viu outra onda se aproximando, lançando gotículas de água no ar. Ouviu-a arrebentando às suas costas, e a água do mar jorrou rui­dosamente sobre seu chapéu. Quando a onda começou a recuar novamente em direção do mar, ele entrou na água espumante e agarrou o pedaço de madeira outra vez.

Depois de várias tentativas, ele conseguiu mover um pouco a grande peça de madeira mais para perto, e por fim uma onda a carregou até a praia. Isaku agarrou-se nela para impedir que fosse levada pela onda seguinte. Enfiando os dedos nas depressões da madeira, ele puxou-a na direção da trilha que levava à aldeia.

Debaixo da chuva, outras pessoas caminhavam pela tri­lha carregando pedaços de madeira nas costas. A peça que Isaku puxava era consideravelmente maior que as dos ou­tros, e era dura, de boa qualidade. Parecia-lhe um desper­dício usá-la para queimar um corpo quando podia ser usa­da para fazer fogo em casa.

Quando Isaku chegou à trilha, uma mulher com chapéu de junco saiu da casa da família enlutada e o ajudou a car­regar o pedaço de madeira. Juntos, puxaram-na para den­tro da casa e a deixaram perto de uma pilha desarrumada de madeira no piso de terra, na parte mais baixa da sala.

Isaku desamarrou o chapéu e sentou-se na pilha de le­nha, olhando ao redor. O falecido era um homem idoso, com mais de cinqüenta anos, chamado Kinzo. Seu corpo estava nu, exceto por uma tira de pano que cobria o baixo-ventre. Quando Kinzo ficara doente demais para andar, ele perde­ra o apetite, e nos últimos dias a família não lhe oferecia nada além de água. Ninguém dava comida a uma pessoa que se tinha certeza que ia morrer.

Os defuntos que eram enterrados sentados eram coloca­dos nessa posição, com as costas amarradas a uma tala fune­rária, as pernas dobradas nos joelhos e também amarradas com corda rústica de palha antes de o rigor mortis se instalar.

Os ossos de Kinzo estavam visíveis sob a pele; seu abdo­me estava esticado, rijo. A cabeça pendia ligeiramente para baixo e para a frente, revelando o ramo de cânhamo amar­rado a uma cruz colocada nos ralos cabelos grisalhos para afastar os espíritos maus.

A mãe de Isaku estava limpando o esquife no chão, ao lado do cadáver. Uma grande panela de cozido de legumes, fornecidos pelos habitantes da vila, borbulhava sobre o fogo, o odor bafejando para baixo até o chão de terra.

A chuva se intensificou, abafando o barulho das ondas. Isaku olhou para a mão da mulher que mexia o cozido com uma concha.

Na manhã seguinte a chuva parou e um dia claro, típico de outono, se abriu.

As pessoas saíram de suas casas e se reuniram na casa da família enlutada. Lá dentro, as mulheres idosas da vila en­toavam sutras com vozes sussurrantes.

Isaku deixou a casa de Kinzo levando nas costas uma carga de madeira recolhida do mar. Ele juntou-se aos ho­mens que também carregavam madeira nas costas pela tri­lha estreita que ia da vila até a montanha.

A face escarpada do morro, marcada por trechos de ro­cha aparente, erguia-se ameaçadoramente sobre a aldeia. As dezessete casinhas pareciam agarrar-se à faixa estreita da orla para não serem empurradas para o mar. Talvez em conseqüência da constante exposição à brisa salgada do oceano, as paredes de madeira das casas eram brancas, como que salpicadas por algum tipo de pó. Os telhados de sapé eram mantidos no lugar por pedras igualmente em­branquecidas. Ao redor das casas, nas áreas onde o solo era menos inclinado, havia campos de plantação em terra­ços. Mesmo com adubo, o solo rochoso oferecia uma co­lheita escassa, apenas algumas variedades simples de mi­lho miúdo.

Isaku seguiu os homens, saindo da trilha e entrando na floresta. O solo estava úmido por causa da chuva e havia aqui e ali uma poça de lama; às vezes era difícil manter-se em pé. Por fim, a vegetação foi se tornando menos densa e eles saíram para uma clareira onde havia uma fileira de lápi­des de pedra e de madeira. Os homens empilharam a lenha e os galhos secos ao lado do crematório, que consistia em um nicho de três paredes de pedra, a um canto da clareira.

Isaku sentou-se em uma pedra, perto dos homens. O suor lhe escorria da testa e pela nuca, mas a brisa do mar produ­zia um efeito refrescante. Ele olhou para sua pilha de lenha.

O longo e estreito cortejo fúnebre se afastava da casa de Kinzo pela trilha que acompanhava a orla. Na frente, uma bandeira branca desfraldava-se no alto de um bambu; logo atrás vinha o caixão, suspenso sobre uma vara grossa. Um grupo de crianças formava o final do cortejo.

— Eu não quero morrer como ele — sussurrou um dos homens.

Kinzo havia ficado em casa desde o verão. Certo dia ele escorregara e batera as costas numa pedra quando pescava polvos com uma lança, nos recifes. Incapacitado para o tra­balho, ele se tornara um fardo para a família. Em uma al­deia que lutava contra a fome, um inválido era considera­do morto.

As pessoas lamentariam durante algum tempo, mas como acreditavam em reencarnação, aceitariam rapidamente a perda. A vida era dada às pessoas pelos deuses e, com a morte, o espírito partia para um lugar distante nos mares mas depois de algum tempo retornava à aldeia, para abri­gar-se no útero de uma mulher e reencarnar numa criança. A morte era apenas um período de sono profundo antes do retorno do espírito; lamentações excessivas perturbavam o repouso da pessoa morta. As lápides dos túmulos ficavam de frente para o mar para guiar os espíritos na direção cer­ta, quando chegasse o momento de regressar.

O cortejo começou a avançar com mais lentidão ao alcan­çar a trilha na encosta do morro. Enquanto observava a procissão, Isaku pensou no pai. Naquela primavera, seu pai tinha vendido a si mesmo como servo por três anos para um agente de transporte em um porto do sul que acolhia embarcações que faziam o roteiro leste-oeste. Seu pai parti­ra com disposição, e sem dúvida agora estava trabalhando nos barcos. Aparentemente, ele tomara a decisão de tornar-se servo no fim do ano anterior, quando mais uma menina nascera. Isaku era o mais velho, a seguir vinham Isokichi e a menina Kane.

Isaku ouvira dizer que havia lugares onde se matavam os recém-nascidos, mas na sua aldeia não faziam isso. Uma gestação significava que o espírito de alguém que morrera havia retornado à aldeia, e o infanticídio era algo inadmis­sível, mesmo que a família estivesse a ponto de morrer de fome.

Em várias ocasiões, Isaku havia visto o corpo do pai mover-se de forma ritmada em cima da mãe, à noite, na semi-escuridão da casa deles, as pernas dela abertas e do­bradas nos joelhos, os quais de súbito se esticavam para o alto. Ele sabia que estavam convidando os espíritos dos an­cestrais para retornarem, mas sabia também que a chegada de outra criança tornaria a família ainda mais pobre.

Ao sul da aldeia ficavam os penhascos de um cabo que se projetava abruptamente mar adentro. O único caminho para o mundo exterior era a trilha que atravessava a mon­tanha rumo ao norte. A trilha era íngreme e rochosa, beira­va duas ravinas profundas e depois subia por uma encosta íngreme, cortando um bosque de árvores e vinhas. A aldeia devia o seu isolamento ao solo árido. Os habitantes percorriam essa trilha para chegar a outros vilarejos a fim de tro­car frutos do mar por produtos agrícolas e outros alimen­tos. Mas isso não era suficiente para satisfazer a fome da população.

Uma maneira simples de evitar que a família morresse de fome era a servidão por contrato. No primeiro povoado do outro lado da montanha, havia um mercador de sal que também trabalhava como intermediário. Ele pagava uma boa quantia por um contrato. A família usava o dinheiro para comprar grãos, que levavam para casa.

Muitas das filhas eram vendidas, mas às vezes o pai da família vendia a si mesmo. Uma garota de catorze anos chamada Tatsu deixara a vila na mesma ocasião que o pai de Isaku, com um contrato de dez anos de servidão em tro­ca de sessenta momme de prata, porém seu pai recebera o mesmo valor por um contrato de três anos, o que era sem dúvida um negócio muito bom. Seu pai era conhecido na aldeia por ser um homem muito forte, além de um timonei­ro experiente.

— Vou voltar daqui a três anos. Não deixe as crianças morrer de fome enquanto eu estiver fora.

O pai de Isaku havia olhado demoradamente para ele e para a mãe, parados diante da porta do escritório do inter­mediário.

Sua mãe comprara uma quantidade de grãos com parte do dinheiro, e os dois retornaram para a aldeia pela trilha montanhosa, carregando a carga nas costas. Isaku ficara impressionado com o feito do pai, de ter conseguido tanto dinheiro, e desejava ter um corpo admirável como o dele.

Todos os homens que tinham parado para descansar no cemitério haviam vendido filhos e filhas para ser servos. No outono anterior, o h