A Vida de Maomé.
A Vida de Maomé.
COLEÇÃO “O MUNDO DO GRAAL”
MAOMÉ
(MOHAMMED)
NARRATIVA FIEL DA VIDA TERRENA DO PROFETA ÁRABE,
LIVRE DE TODOS OS CONCEITOS ERRÔNEOS.
RECEBIDO POR INSPIRAÇÃO ESPECIAL
MAOMÉ
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UMA lamparina colorida iluminava o aposento e fazia luzir os adornos de
ouro que se encontravam entre os abundantes tapetes colocados nas paredes.
Aqui pendia um cordão com pérolas e acolá cintilavam pedras preciosas. Em
cima de uma mesinha, formada de peças artisticamente entalhadas e embutidas,
havia uma brilhante taça de vidro, cheia de um óleo aromático.
Todo o recinto, embora não fosse grande, parecia ser perfeitamente adaptado
àquela bela mulher que descansava despreocupadamente sobre um macio divã.
Longas tranças de cabelos pretos, envoltos numa rede de fi os dourados, pendiam-
lhe para um lado. Sobre um vestido largo de seda vermelha usava um casaquinho
curto, ricamente enfeitado com bordados, que combinava com as sandálias
que abrigavam seus pequeninos pés. Uma calça de seda azul, fofa, até os tornozelos,
completava o vestuário.
Suas delicadas mãos, nas quais não se via nenhuma jóia, deixavam escorregar,
por entre os dedos, as pérolas de um rosário. Mas ela o fazia distraidamente, pois seus
pensamentos pareciam estar longe de uma devoção ou prece.
Ouviram-se ruídos de passos que vinham de fora. A mulher ocultou rapidamente
a corrente de pérolas no seu vestuário e recostou-se ainda mais confortavelmente
nos travesseiros.
Um velho serviçal entrou no aposento.
Era um dos criados de confi ança da casa, pois do contrário, não poderia ter entrado
sem se fazer anunciar. Arrastando os pés, um pouco inclinado para frente e com as
mãos juntas, ele aproximou-se do sofá e aguardou que a bela mulher começasse a falar.
Com os olhos semicerrados ela olhava-o. Que esperasse um pouco, pensava,
pois não estava disposta a receber seu recado. De modo algum poderia signifi car algo de
bom. Finalmente a curiosidade a venceu:
- o que trazes, Mustafá? Inquiriu num tom de indiferença. - O nosso amo Abd ai
Muttalib deseja falar com Amina por causa do menino. Amina recebê-lo-á aqui ou irá
procurá-lo nos seus aposentos?
- Mustafá, sabes o que o velho quer com o menino? Essa pergunta soava agora
bem diferente das anteriores.
Preocupação e cuidado de mãe vibravam nela e faziam com que ela se esquecesse
de todas as diferenças de classe.
- O nosso amo não o disse, respondeu pensativo o criado, mas eu posso imaginar
do que se trata. Há dias vem falando que chegou o tempo de mandar Maomé à
escola.
- É o que pensei! Exclamou Amina indignada. Eu ainda o acho delicado
demais. Mas para isso o avô não tem compreensão. Quanto antes tornarmos a discutir,
tanto melhor será. Dize a Abd ai Muttalib que eu estarei pronta para recebê-lo
daqui a uma... não, daqui a duas horas.
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O serviçal virou-se e começou a sair arrastando os pés, quando um chamado
de Amina fê-lo parar.
- Mustafá, sabes onde está Maomé?
- Onde estará ele? Perguntou o criado em resposta. Com certeza está no
pavilhão ajudando o empregado a conferir as mercadorias. Nada lhe agrada tanto
como o esplendor das cores dos tapetes e das pedras preciosas. Com isso ele esquece
até de beber e comer.
- Dize que o mandem o quanto antes a mim, solicitou Amina afavelmente.
Ela sabia que não podia dar ordens a Mustafá, pois não era sua patroa. Mas a um
pedido, ele era sempre acessível. Também agora iria procurar o menino e mandá-lo
a sua mãe. Amina tornou a fi car a sós.
Suspirou profundamente. Tinha medo da palestra com o dono da casa, o
seu sogro, sob cujo domínio se achava desde a morte de seu marido. Isso já há seis
longos anos!
Pouco antes do nascimento de Maomé, aconteceu que numa viagem de negócios
Abdallah foi assaltado por bandidos e ferido mortalmente. Ainda o levaram
agonizante até Meca, mas não alcançou com vida a casa paterna, onde morava com
a sua jovem esposa. No funeral Amina desmaiara.
Longo tempo teve de permanecer na cama, doente. Durante essa grave enfermidade
deu à luz um menino, quase sem ter consciência disso.
A debilidade do menino, que apesar dos cuidadosos tratamentos de que era
alvo, não crescia como devia, os médicos atribuíram-na ao trauma e ao pranto sofrido
por Amina. Seu pai era um homem belo, de fi gura imponente. Maomé, contudo,
um menino pálido, fraquinho e sem alegria, dando a impressão de que preferia
escolher seus próprios caminhos.
Sem pressa e sem demonstrar qualquer sorriso na sua face, entrou no aposento
da mãe. Quase contrariado, aproximou-se do sofá e perguntou:
- Mandaste chamar-me, mãe. O que tens a dizer-me é realmente tão urgente?
Sem repreender o tom desrespeitoso com que foram pronunciadas essas palavras,
Amina disse amavelmente:
- Senta-te, meu fi lho, e escuta: teu avô chegará aqui para falar comigo a teu
respeito. Eu sei que ele pretende mandar-te a uma escola. É verdade que tu ainda te
sentes sempre indisposto e cansado?
- Cansado estou sempre, mãe, mas isto não importa. Deixa-me ir à escola,
peço-te!
Sobressaltada, Amina revidou:
- O que pensas, Maomé? O barulho e as maldades de tantos rapazes poderiam
prejudicar-te. Eles zombariam de ti, por teres tão poucas forças e por causa
da tua palidez. Eles. . .
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Indignado, o menino interrompeu-a:
- Se eu continuar em casa, nunca me tornarei um homem! No meio dos outros
as minhas forças manifestar-se-ão. Quero aprender, devo aprender. Quero fi car
um homem sábio! Direi ao vovô que irei de muito bom grado à escola. Então podes
dizer-lhe o que quiseres; ele me dará ouvidos.
Sardonicamente, o menino torcia os seus membros franzinos, e o seu belo
rosto fazia caretas.
- Para que necessitarás de tanta erudição, Maomé? Inquiriu a mãe, que estava
prestes a chorar.
Durante quase um ano ela havia feito tudo para adiar o momento tão temido
da separação do seu idolatrado fi lho, e agora ele mesmo por si desejava freqüentar
a escola.
- Por que eu desejo aprender, mãe? Perguntou Maomé, estendendo-se em
cima de um dos tapetes no chão. Eu quero tornar-me um comerciante, mas não
dos pequenos. Quero tornar-me o maior comerciante de toda a Síria, Arábia e suas
adjacências. Todas as pedras preciosas devem passar pelas minhas mãos e todos os
tecidos fi nos eu quero tocar. Para isso preciso saber ler e escrever e, antes de tudo,
fazer contas. Ninguém deve lograr-me, mãe!
As ricas cortinas da porta estavam sendo empurradas cuidadosamente, e
uma mulher corpulenta em trajes de serviçal entrou. Mãe e fi lho volveram suas
cabeças em sua direção.
Enquanto Amina se deitava outra vez em sua cômoda posição, como estivera,
Maomé levantou-se rapidamente num pulo muito ágil e pendurou-se no
pescoço da mulher que entrou, a qual fi cou sem fôlego com o embate.
- Sara, Sara! Exultava com a voz completamente modifi cada. Será realidade;
eu poderei aprender! Agora a mãe se queixou de que vovô tenciona mandar-me à
escola. Ela outra vez não me compreende.
Sem consideração jorravam as suas palavras, sem notar como ofendia com
elas a sua mãe, para a qual ele era a única alegria.
Sara, a velha ama, nesse ínterim afastou os braços magros do seu favorito, e
deixou-o escorregar cuidadosamente ao chão. Aproximou-se com a familiaridade
peculiar às velhas criadas.
- A senhora não quer pôr trajes melhores, em consideração ao dono da casa,
que a espera? Sugeriu ela lisonjeiramente.
Amina sacudiu a pequena cabeça com as pesadas tranças. - Para ele tanto faz
como estou vestida, replicou.
- Assim a patroa é injusta, censurou a criada. Abd aI Muttalib nunca falta
com suas atenções. As melhores pedras preciosas, as mais cintilantes pérolas e os
mais fi nos tecidos da galeria, ele manda para a viúva de seu fi lho!
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Isso em nada impressionou aquela mulher tão mimada. - Eu fi co como estou,
disse ela. Além do mais, o tempo até a sua chegada é curto. Ainda temos muito
a falar. Senta-te aqui conosco, Sara.
A criada obedeceu sem objeção; ela parecia estar acostumada a tais conversações
íntimas.
- Eu não sabia que Maomé quer ir de bom grado à escola, começou Amina.
Eu mesma sou contra, porque ele ainda está muito franzino para isso; também
queria tê-lo comigo por mais um ano.
- O que te adianta, se eu fi car contigo, mãe! Exclamou o menino com teimosia.
Poucas alegrias te proporciono. Tu mesma o confessas, às vezes. E eu quero
aprender, aprender, aprender!
- Terás que te conformar, patroa, com o fato de que o menino está saindo da
infância. Se é para ele tornar-se homem, então deve sair dos aposentos das mulheres
e passar para as mãos dos homens.
- Está bem, já que ele mesmo o deseja, que assim seja feito, suspirou a mãe.
Mas, Sara, vejo um grande perigo para ele na escolha da escola. Abd aI Muttalib
quererá mandá-lo para a escola municipal, onde são ensinados os rapazes da seita
dos adoradores de fetiches. Maomé ainda não está fi rmemente instruído na nossa
crença. Ele abandoná-la-á como um velho vestuário.
- E a culpa de quem é, patroa? Perguntou Sara com indelicada intimidade.
- Tu, atrevida, achas por acaso que eu faltei com minha obrigação de lhe
ministrar os ensinamentos necessários? Replicou Amina, irritada.
- Tu ensinaste o menino, mas, em vivência, não lhe deste exemplos. Quando pôde
ele alguma vez ver que a tua crença oferece apoio, consolo ou estímulo para o bem?
Maomé, que aparentemente não escutava, dirigiu-se para o lado onde Sara
estava sentada.
- Tens razão, Sara, disse ele carinhosamente. Da mãe eu não pude aprender
tudo isso, mas sim de ti, bondosa como és, pelos teus exemplos.
Novamente a cortante dor do ciúme feriu o coração da mãe.
- Como podes julgar tão impiedosamente, meu fi lho? Disse em tom repreensivo.
Quem rezou contigo desde que tens a idade sufi ciente para dizer sozinho
uma oração? Quem te contou de Jesus, o crucifi cado?
- Isso tu fi zeste, mãe, foi a rápida resposta de Maomé. Mas enquanto tu apenas
me fi zeste imaginar o assassinato do portador da Verdade, Sara ensinou-me a amar
o luminoso Filho de Deus, que, por amor aos homens, nasceu como criança numa
manjedoura. Enquanto me ensinaste a dizer orações numa língua que nós dois não
conhecemos, Sara conduziu-me aos pés do menino, para fazer minha prece.
Essa resposta soou de maneira pouco infantil, mas provinha do coração do
menino; perceberam-no as duas mulheres, cujos olhos se umedeceram.
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Após curto silêncio, Amina tomou a palavra:
- Seja como for, o principal é que crês. Se amas Jesus, já estou feliz. Mas dizeme,
meu fi lho, esse amor resistirá ao escárnio e à infl uência dos colegas?
- Isso veremos, mãe. Hoje ainda não posso sabê-lo. Se a fé em Jesus é a Verdade,
como vós dizeis, então ela vencerá sobre tudo o mais. Se assim não for, então perecerá.
Para Maomé essa conversa séria já se prolongara muito. Outra vez ele levantou-
se, deu um salto com inesperada agilidade e correu dali.
As duas mulheres olharam-se mutuamente. Ambas amavam essa criança malcriada,
mais do que tudo o que existia no mundo. Mas enquanto a mãe ignorava
cegamente os defeitos do fi lho, Sara procurava corrigi-los com todas as suas forças.
Com amargura percebeu Amina que toda a ternura da alma do menino se
dirigia à velha ama, pela qual muitas vezes ele chegou a esquecer completamente a
mãe. Sempre que o ciúme lhe ardia no coração, ela pensava em afastar Sara. Porém,
não podia imaginar a vida sem a ama que a criou.
Ainda jovem, Sara chegou à casa dos nobres Haschi, onde Amina acabara
de nascer, como a mais nova das seis fi lhas. Sara tratou e cuidou da criança com
incansável fi delidade, conduziu os seus primeiros passos e cercou-a de cuidados até
desabrochar numa linda moça.
Então chegou o dia em que Amina devia acompanhar o seu esposo ao lar.
Abdallah, o comerciante de jóias, que a escolhera para esposa, era rico.
Descendia, como Amina, de uma estirpe nobre, do tronco dos Koretschi. Contrariando
os costumes da família, ele tornara-se comerciante. Era judeu, o que fez
com que o pai dela, antes de tudo, retardasse repetidas vezes seu consentimento. . .
Alguns dos seus antepassados haviam se convertido a essa estranha crença, à
qual os netos se apegaram obstinadamente. Todos os membros da família de Amina,
porém, adoravam os fetiches e sentiam-se protegidos e felizes. As leis rígidas dos
judeus infundiam-lhes assombro.
Porém, no dia em que o pai quis dar o seu não defi nitivo, Amina confessou
com lágrimas nos olhos que há muito já havia abjurado a crença de seus pais e se
tornado cristã.
Seu pai e seu pretendente fi caram estupefatos naquele instante! Mas quando o
pai quis expulsar a sua fi lha apóstata, Abdallah manteve de pé sua pretensão e levou a
cristã para a sua casa, como esposa. Assim, também, ninguém precisava saber da deserção
da fé da nobre moça. Aliviado, o pai olhava o futuro.
Em companhia de Amina, Sara abandonou o palácio dos Haschi, para contrair
matrimônio no mesmo dia. Chorando, Amina confessara que fora Sara que a introduzira
na nova doutrina.
A criada foi expulsa da casa e podia seguir o homem que há muito já era seu pretendente.
Seu primeiro fi lho faleceu ao nascer, e assim pôde encarregar-se dos cuidados
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do pequeno Maomé, ao qual dedicou todo o amor e fi delidade, como uma mãe.
Com lisonjas ela conseguiu que Amina se levantasse e que vestisse trajes melhores
em consideração ao visitante. Mal se havia aprontado, já Mustafá anunciava
o seu senhor.
Amina sentou-se no divã, enquanto Sara colocava na mesa o café preparado
às pressas, retirando-se em seguida para os fundos do aposento. Pois seria falta de
decoro, se Amina tivesse recebido sozinha o visitante.
Com dignidade Abd aI Muttalib entrou. Apesar de seu físico avantajado, viase
nele a linhagem da nobreza. Seus passos eram vagarosos e pausados, denotando
consciência de si. Cabelos e barba de um branco-neve circundavam o rosto amarelo-
bronzeado, de onde os olhos castanhos lançavam um olhar perscrutador.
Uma seda ricamente bordada, com tonalidades amarela e marrom, cobria o
seu corpo robusto. A espada curva pendia da cinta, e correntes de pérolas adornavam-
na. No indicador direito ele usava um anel com uma pedra excepcionalmente
grande, de cor amarelo-marrom, que lhe servia de talismã e que nunca tirava.
Calçava sapatos de couro com enfeites, forrados com seda, os quais usava
somente dentro de casa.
Suas saudações eram adequadas ao seu porte digno, mas com bastante frieza.
Ele havia se escudado com paciência e fi rmeza para enfrentar acertadamente
todas as eventuais queixas da nora.
Após ter sentado e tomado silenciosamente a primeira xícara daquela bebida
marrom, fi xou o olhar em Amina. Será que ela sabia o motivo de sua vinda?
Parecia que uma máscara ocultava seu rosto; nenhum traço demonstrava qualquer
comoção interna.
Pausadamente ele começou a falar, contando a cada instante com uma das
costumeiras e rápidas objeções da nora. Mas ele pôde expor com toda a calma
todos os seus pontos de vista. Amina não falou nenhuma palavra.
Quando disse tudo o que tinha a declarar, exclamou:
- Vês, portanto, viúva de meu fi lho, que está no tempo de mandar Maomé
à escola.
Ela perguntou num tom indiferente:
- Em qual escola o matriculaste, pai de meu marido? Perplexo ao extremo,
ele encarou a bela mulher. Tal reação ele não esperava e não achou de
pronto uma resposta.
- Nós aqui temos apenas duas escolas, disse ele, aparentando impassibilidade.
Uma é freqüentada pelos fi dalgos, mas os professores pertencem à seita dos
fetiches e não sabem nada; a outra pertence ao nosso templo, e o rabino Ben Marsoch
é um homem fundamentalmente erudito. Como Maomé nasceu numa família
judaica, ele também deve crescer nesta crença.
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- Maomé é cristão, porquanto eu, mãe dele, pertenço a esta religião! Interrompeu-
o, agora, Amina, impetuosamente. Sua respiração ofegava, seus olhos faiscavam.
Calmo e sorridente, contemplava Abd aI Muttalib a jovem mulher.
- Até agora te deixei proceder com ele como te aprouvesse, porquanto eu sabia
que os anos em que o menino crescia nos aposentos das mulheres eram poucos.
Agora ele os abandonará e a sua educação passará para as minhas mãos. Eu, porém,
sou judeu.
Severas e altivas soaram essas últimas palavras. Novamente Amina tentou
replicar:
- Maomé ama a sua religião. Ele não a abandonará. Levarás inquietação à
alma do menino.
- Um garoto de seis anos ainda não possui convicção própria. Com prazer
adotará a crença do seu pai como se fosse a sua própria. Não falaremos mais sobre
isso. Inicialmente eu havia planejado encaminhar o menino somente no começo do
próximo mês para a escola, mas vejo que será melhor desabituar-vos, a ambos, de
pensamentos errôneos. Assim, ele vai hoje mesmo comigo. A partir de hoje morará
junto comigo nos aposentos que o seu pai ocupou antes. Uma vez por mês ele pode
visitar-te, enquanto essas visitas não vierem a contrariar a educação.
O dono da casa falou. Não restava outra coisa senão obedecer.
Sim, se Amina tivesse certeza de que Maomé se oporia a freqüentar a escola,
ela teria lutado por ele como uma pantera.
Esforçava-se para ocultar as lágrimas que sempre de novo lhe escorriam dos
olhos e esperava o que Abd aI Muttalib ainda tinha a dizer.
No mesmo tom reservado como até o momento, ele indagou se a viúva
do seu filho não tinha falta de alguma coisa e se todos os seus desejos estavam
sendo atendidos.
Ela respondeu afi rmativamente.
Outra vez ele a mirou com um olhar inquiridor, como se ponderasse se era
oportuno continuar a falar sobre aquilo que para ele era motivo de preocupação.
Então esvaziou apressadamente duas dessas xícaras pequenas e disse:
- Tu ainda és nova e bela, Amina. Não é justo que continues levando uma
vida solitária, estendida no divã. Deus tirou-te o marido, mas pela nossa lei é permitido
casar-se novamente.
Abu Talib, meu fi lho mais novo, oferece-te por meu intermédio a sua mão.
Ele quer manter-te como herança do seu irmão. Serás rica e respeitada. Outra vez
estarás rodeada de alegrias como no começo do teu matrimônio.
Calou-se e encarou-a cheio de esperança, mas Amina não respondeu. Bem
ela sabia do costume, segundo o qual os irmãos mais novos pedem a viúva do mais
velho em casamento, porém esperava escapar disso.
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Abdallah tinha sido um homem bonito, mas Abu Talib era corcunda e mancava.
Ela arrepiava-se ao lembrar um casamento com aquela fi gura disforme. Porém,
disso não podia dar demonstração. Refl etindo rapidamente, disse em voz baixa:
- Pai do meu marido, agradeço-vos pela vossa benevolência, a ti e a Abu
Talib. Eu jurei que, antes de passarem sete anos após a morte de Abdallah, não me
casaria de novo. Essa promessa sustentarei. Assim lhe dou provas de todo o amor e
devotamento que a ele devo.
O ancião olhava para ela um pouco mais amável do que até então.
- Essa promessa te honra, Amina. Geralmente as viúvas novas não podem esperar
o tempo para um novo matrimônio. Direi ao meu fi lho que ele tenha paciência por mais
doze meses. Então prepararemos o casamento. Em pompa e brilho nada há de faltar.
Nesse momento, levantou-se. Julgou ter conseguido suas intenções. Podia voltar
aos seus negócios. Antes de tudo, porém, devia procurar Maomé e levá-lo consigo.
Devia ser evitado que sua mãe transmitisse quaisquer pensamentos ao menino.
Nada havia a temer, pois em Amina os planos de casamento com Abu Talib
apagaram todos os demais sentimentos. Horrível! Amina chamou Sara e desabafou
todas as suas mágoas com a fi el criada.
- Patroa, consolava esta, Abu Talib é um homem bom que também ama
Maomé como se fosse seu próprio fi lho. Muitas vezes vi os dois juntos na melhor
intimidade.
Isso Sara não devia ter dito. Outra vez se infl amou o ciúme no coração tão
facilmente impressionável da mulher.
- Ele quer desviar-me o fi lho, para que mais depressa eu atenda aos seus
desejos. Mas isso não acontecerá. Um ano de liberdade ganhei. Em um ano ainda
pode acontecer muita coisa.
Todas as tentativas por parte de Sara, no sentido de persuadi-la, eram inúteis.
A criada resolveu calar-se e deixar tudo entregue ao tempo.
Mas, “em um ano pode acontecer muita coisa”, havia dito Amina. Não chegou
a passar a metade e a bela mulher achava-se deitada num esquife. Uma das doenças
epidêmicas que de vez em quando surgia, atacou-a traiçoeiramente e causou
o fi m de sua vida terrena.
Sara havia tratado dela com fi delidade. Quando notou que a alma ia deixar o
corpo, ela trouxe um crucifi xo de marfi m, para servir de consolo e apoio à agonizante.
Muito tempo Amina olhou para a cruz e logo depois fechou os olhos.
- Conta-me da criança em Belém, Sara, rogava com voz fraca. Tenho medo
da morte e a cruz só conta disso.
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E Sara falou do amor misericordioso de Deus, daquele amor inapreensível, que
mandou o próprio Filho para salvar a humanidade corrupta. Ela contou da vida do
Filho de Deus e da majestosa entrada em Jerusalém.
Mas isso não trouxe paz para a agonizante. Inquieta, virava a bela cabeça em
cima do travesseiro, de um lado para o outro.
Despercebido pelas mulheres, entrou no aposento o velho Abd aI Muttalib, não
obstante saber que corria perigo de contágio.
- Dize-me uma palavra que me tome mais fácil a morte, Sara, implorava a
agonizante.
A criada meditava. Nesse momento soou uma voz maravilhosa e cheia de
paz, pelo aposento:
“E ainda que eu esteja peregrinando no vale sombrio, não temerei nenhum
infortúnio, porque Tu estás comigo!”
Abd aI Muttalib pronunciou devagar e solenemente, com a mão direita estendida
sobre a cama da viúva do seu fi lho, de sorte que a pedra amarelo-marrom reluzia.
- Pai, sussurrava Amina, concordo que Maomé se torne judeu.
Nunca ela o havia chamado de pai. Nessa hora em que ele trouxe consolação
para a sua alma hesitante, esse nome lhe passou pelos lábios como coisa natural.
E ele continuava a rezar salmos do rei, um após outro, até que se extinguiu a
respiração dela e sua alma começou a desprender-se do corpo.
Sara caiu em pranto, ao pé do leito. Amina, que ela amava como irmã, estava
morta. Mas não era por isso que ela chorava. Suas lágrimas signifi cavam o fracasso que
devia trazer tão graves conseqüências.
Nesse único momento em que Sara podia ter dado provas ao ancião de quanto
mais consoladora e quantas mil vezes mais elevada é a fé cristã, acima de todas as outras
crenças, nenhuma palavra lhe veio à mente.
O corpo inanimado tinha de ser retirado o quanto antes possível da casa. Abd aI
Muttalib cuidava de tudo que se tornava necessário para resguardar os demais da casa
de possíveis perigos de contágio.
Somente depois que os despojos tinham sido sepultados na cripta duma
rocha, ao lado do pai, é que Maomé recebeu a notícia do falecimento de sua mãe.
Ele pranteou aquela que somente lhe demonstrou amor, mas o seu luto não
perdurou muito. Nos seus passeios mensais logo se acostumou a, em lugar da mãe,
procurar Sara, que abandonara a casa de Abd aI Muttalib e morava agora na cidade,
junto com o seu marido, em uma casinha agradável.
Nessas ocasiões a velha serviçal esforçava-se para reparar o erro que julgava ter
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cometido, enquanto contava do menino Jesus, ao que Maomé escutava atentamente.
Ele sabia que no leito de morte a mãe anuiu em que ele fi casse judeu, mas isso
não o atingia. Com afi nco ele procurou aprender tudo o que lhe foi dado na escola.
Quando os professores falavam do prometido Messias, então delineava-se
um sorriso prematuro na sua fi sionomia. Ele sabia que o Messias já havia chegado
e que fora assassinado pelo povo. Com energia, sempre usava a expressão “assassinado”,
também perante Sara.
Nesse momento, ela advertia-o e procurava provar-lhe que a morte na cruz era
algo determinado pela vontade de Deus. Assim, certo dia, ele disse veementemente:
- Se isto for assim, Sara, então tu me tiras a fé em Deus. Qual o pai que deixa
voluntariamente assassinar o seu fi lho? E Deus, assim como eu escuto falarem Dele,
é o melhor de todos os pais do mundo. Mas tu queres rebaixá-Lo!
Apavorada, Sara encarou o menino, que ousava ter sua própria opinião, diferente
em tudo das outras.
- Maomé, segura-te fi rmemente em Deus, peço-te, implorava. Eu sou culpada
por não te tornares cristão; assim sendo, torna-te pelo menos um judeu verdadeiro.
- Isto ainda não sei, Sara, disse Maomé categoricamente. Não posso tornarme
judeu por amor à mãe morta, se nada em mim se manifesta a favor disso. Tampouco
por ti, a quem mais estimo neste mundo, não poderei tornar-me cristão. Sim,
se desse para fazer uma fusão entre as duas religiões, então, isso me agradaria.
Sara inquietou-se devido à precocidade do menino. O que haveria de ser dele?
Fisicamente ele se fortalecia, debaixo do regime masculino. A escola do templo
em Meca cuidava não somente do intelecto dos seus educados, como também
não se descuidava do robustecimento dos corpos.
Ao lado do rabino Ben Marsoch, um jovem grego ensinava os rapazes e instruía-
os em diversas artes, principalmente em jogos e exercícios físicos.
Por essa razão, muitos pais conceituados, que não pertenciam à religião judaica,
preferiam mandar seus fi lhos à escola do templo.
Nas aulas, porém, isso provocou certa divergência. Não podia dar certo instruir
os adeptos dos fetiches juntamente com os judeus, na doutrina de Deus, embora
sem embargo pudessem compartilhar as demais matérias.
Assim os alunos de crença ferrenha formaram um círculo interno, o qual
gozava de especial proteção do rabino Ben Marsoch.
Após freqüentar um ano a escola, Maomé declarou não mais querer pertencer
a esse círculo. Não obstante, ele foi forçado com severidade inabalável a freqüentar
as aulas com esse grupo. Toda resistência e teimosia de nada lhe adiantaram.
Mais ou menos por um ano prolongou-se essa rebelião contra professor e
instrução, sem que o avô chegasse a ter conhecimento.
Então, sem qualquer motivo aparente, Maomé conformou-se. Da mesma
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maneira inesperada como há um ano, ele declarara a sua saída do círculo, agora
pedia que lhe perdoassem a sua arbitrariedade e que o considerassem novamente
como aluno ativo. Os professores regozijaram-se ante a incompreensível mudança
no seu modo de pensar.
Foi Sara que conseguiu fazer o menino compreender que ele prejudicava
mais a si mesmo, enquanto se rebelasse contra a autoridade.
- Aprende aquilo que te oferecem, Maomé! Ela havia dito inúmeras vezes. Tudo
será útil, se o aprenderes direito. Mas se tu te recusas a escutar o que o rabino tem a dizer,
como então quererás reconhecer o que é certo e errado nas suas oratórias?
Essa foi a maneira certa de convencê-lo. Ele conformou-se e tornou-se um
aluno esforçado.
Depois de ter atingido mais de oito anos de idade, Maomé perdeu seu avô.
Este faleceu suavemente, sem doença prévia, durante uma noite tranqüila. Atingiu
pouco mais de cem anos de idade; seu corpo repentinamente deixou de viver,
enquanto seu espírito ainda mantinha vivacidade.
Maomé nunca foi muito chegado ao avô. Foi a única pessoa que ele temeu.
Agora, seu tio Abu Talib encarregou-se da sua educação. Isso tornou o menino
feliz. Apesar do seu natural gosto pela beleza, não reparava nos defeitos físicos
do tio, pois sentia intuitivamente apenas a infantil e pura alma do homem.
Com grande amor Abu Talib veio ao seu encontro e fez tudo a fi m de
complementar, por meio da infl uência que exercia sobre sua alma, a educação na
escola do templo, que era fundamentada exclusivamente em bases intelectuais.
Maomé sempre o encontrava, quando nas suas horas de folga ia procurá-lo na
casa paterna, da qual ele fi cou afastado durante dois anos.
O que Abu Talib lhe outorgou em valores interiores, ele o recebeu numa
sensação de contínua felicidade, sem fi car consciente disso. A sua índole distraída
e autoritária abrandou-se; nos seus olhos e na sua boca estampava-se um alegre
sorriso em lugar do sarcasmo que tantas vezes deslizava sobre os mesmos.
Com grande contentamento Abu Talib notou o desabrochar de Maomé.
Ele pressentiu ricos tesouros na alma do rapaz e consagrou todos os seus esforços
no sentido de trazê-los à tona.
Foi por essa época que o rapaz foi atacado repentinamente por crises convulsivas
inexplicáveis. Com um grito angustioso ele caiu no chão e ali fi cou deitado,
debatendo os membros.
Assustados ao extremo, os colegas afastaram-se dele. Enquanto isso, o rabino
Ben Marsoch, que o julgou possesso, rezava diante dele sem obter resultado. Ninguém
ousava tocá-lo nesse estado, e ele debatia-se cada vez com mais violência.
Finalmente chegou um médico. Dispunha de tudo para o tratamento e
disse que as convulsões eram conseqüência do seu físico muito delicado. Não
MAOMÉ
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devia ser esquecido que o rapaz ainda não esquecera a morte de seu avô.
Não devia ser forçado excessivamente com estudos. O rabino Ben Marsoch
não quis compreender. Pois, como Maomé havia se tornado um excelente aluno,
não lhe aprazia excluí-lo das aulas.
Então o médico falou com o assustado Abu Talib. No seu amor encontrou
uma saída.
- Projetei uma longa viagem para a Síria, disse ele. Levarei o rapaz junto. O
clima diferente e a contemplação de tantas novidades lhe farão bem. Depois que
voltarmos, poderemos tomar nova decisão.
O médico concordou e pouco tempo depois iniciaram a viagem. Abu Talib
não era comerciante como seu pai e seu irmão Abdallah, e Maomé não sabia ainda
qual era a sua ocupação, embora quisesse muito saber.
Ele perguntou ao tio o motivo pelo qual ia empreender a viagem, mas este,
que sempre respondera a todas as perguntas com a maior amabilidade, disse apenas
sucintamente:
- Tenho negócios na Síria.
O rapaz tão ávido em saber, não podendo receber explicação, preocupouse
somente com os preparativos da viagem. Um considerável número de acompanhantes
formava o séquito; para cada qual foi preparado um camelo magnifi camente
arreado.
Admirado, Maomé corria de um camelo para outro. Ele viu que todos os xaréus
traziam igual insígnia, cada um no mesmo canto: uma espada curva, encimada
por um pássaro multicor.
- Que é isso? E o que signifi ca? Queria saber. Mustafá explicou-lhe:
- Esse é o brasão de tua família, dos Koretschi, rapaz.
Com orgulho poderás também, um dia, usá-lo.
- Mas tem de ter uma signifi cação! insistiu Maomé, passando os dedos por
cima da insígnia.
- Sem dúvida, tem uma signifi cação: como pássaro deveis elevar-vos, superando
a todos os outros, e com a agudeza da espada deveis saber combater. Nota
bem, Maomé! Não te tornes comerciante como o teu pai, mas segue o exemplo de
Abu Talib, e terás honra perante os homens e bênçãos em teus caminhos.
- Qual a profi ssão que o meu tio exerce? Perguntou Maomé, ligeiramente
alegre por encontrar uma oportunidade para a solução dessa tão importante questão
para ele.
- Profi ssão? Disse o serviçal, nenhuma.
Nisso virou-se para o camelo, sobre cujo lombo tratava de prender uma
magnífi ca sela.
Irritado, Maomé pisoteava o chão. Assim um empregado não podia res
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ponder-lhe! Devia queixar-se a Abu Talib, porém, se o fi zesse, seria descoberta sua
curiosidade. Portanto, devia calar-se e aceitar a evasiva.
Apressadamente correu para um dos outros serviçais e perguntou:
- Qual é o camelo que irei montar?
- Não sei, soou a resposta insatisfatória. O jovem senhor deve perguntar a
Abu Talib pessoalmente.
Finalmente chegou a manhã que deu início à viagem. O sol ainda não nascera
no horizonte, e os camelos dos cavaleiros já esperavam no espaçoso pátio que
circundava o palácio dos Koretschi. Uma enorme fi leira de animais de carga esperava
fora, com seus tratadores que haviam sido contratados para essa viagem.
Então Abu Talib saiu de casa e, servindo-se de uma escada, subiu na sua montaria.
Todos os outros homens subiram, enquanto o camelo se agachava até o chão;
somente ele, devido ao seu defeito físico, tinha de escolher essa outra modalidade.
Mas, para Maomé, o que em outros homens talvez parecesse desprezível ou
ridículo, isso, em Abu Talib, deu aos seus olhos um brilho fora do comum. Tudo o
tio fazia diferente dos outros homens!
E agora esse tio o chamava para servir-se igualmente da escada e subir para
junto dele. Fê-lo apressado e tomou orgulhoso seu lugar na sela especialmente colocada,
sobre a qual devia fazer o percurso da viagem.
Era magnífi co que ele não tivesse que fi car só em cima de um camelo. Se assim
fosse, durante horas não teria com quem conversar. E ele tinha tanta coisa a perguntar.
Lentamente a caravana se pôs em movimento. Como um animal caminhava
atrás do outro, formou-se uma longa fi leira. Assim que deixaram Meca atrás de si, fi -
zeram os animais acelerarem os passos. Tomaram o rumo monte abaixo, num declive
amenizado em direção a noroeste, e a marcha dos camelos tornava-se cada vez mais
animada. De início Maomé teve bastante oportunidade para apreciar, mas antes do
pôr-do-sol, o seu interesse já arrefecera. A região tornou-se deserta e despovoada.
Seguiam o rumo, à beira de um deserto. Quando começou a soprar um vento
fresco, o mesmo levantava nuvens de areia que vinham ao encontro deles. Viajaram
sem interrupção na primeira noite. o rapaz dormiu na sela. Somente na noite
seguinte foram levantadas barracas.
Com olhos atentos, Maomé acompanhava os afazeres do pessoal no acampamento.
Viu como colocaram uma imagem horrenda, de pedra, ossos e farrapos,
representando o fetiche; observou como eles dançavam em redor e como se alegravam
em descansar debaixo de sua proteção.
- Quem fez aquele objeto? Perguntou Maomé ao seu tio, junto ao qual voltou,
preenchido de tudo o que havia presenciado.
- Provavelmente um fetichista. Nós diríamos sacerdote, se é que um ateu
como esse merece tal nome.
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- Então essa imagem não pode representar nenhum deus, nem tampouco
proteger as criaturas humanas, uma vez que é feita pela mão do próprio homem,
falou rapidamente Maomé, revoltado por ver tanta tolice. Como podem ser tão
tolos os seres humanos e crerem em semelhante coisa!
- Eles nada sabem de melhor. Ninguém lhes contou da existência de Deus,
acalmava-o Abu Talib.
- Por que ninguém lhes conta Dele? Indignou-se o rapaz.
- Eles não compreenderiam, respondeu o tio calmamente.
O pensamento de que existiam homens ao lado dele que seguiam caminhos
falsos, unicamente porque ninguém se esforçava em indicar-lhes os certos, não mais
abandonou Maomé. Ele, que nunca pensou nos outros, sentiu dor ao lembrar-se
dos adoradores de fetiches, que até então não lhe fora dado observar.
Os rapazes na escola nunca falaram dos seus deuses. Ele julgou que fetiche
era um outro nome de Deus. Também notou que os rapazes da nobreza não se incomodavam
com assuntos de crenças. Isso lhe parecia menos antinatural do que esse
comovente apego daqueles simples homens a esses costumes tradicionais.
Esses novos pensamentos não o deixaram ter sossego. Durante a noite, levantou-
se da cama e saiu da barraca, procurando refrescar-se ao ar livre.
Ali se estendia sobre ele o céu estrelado na sua aparente infi nidade. Cintilantes
e vibrantes, essas luzes do fi rmamento davam testemunho da grandeza Daquele
que as criou.
Todos os pensamentos confusos e estranhos se afastaram do rapaz, o qual pela
primeira vez sentiu na calada da noite as vozes do cosmo falarem a sua alma. Involuntariamente
os seus braços se levantaram ao encontro desse esplendor e inconscientemente
afl oravam aos seus lábios as palavras que ele aprendeu na escola:
“Senhor, como são grandes e imensas as Tuas obras; tudo ordenaste sabiamente!”
O que até então havia sido para ele matéria morta para aprender de cor, agora,
nele tornou-se vívido. Sentiu a sua alma tomada por forças, às quais teve de curvar-se.
Após ter passado o primeiro estremecimento, ele deixou-se cair na areia que
ainda estava quente, colocou as mãos embaixo da cabeça e começou a meditar sobre a
causa pela qual ele se sentira até oprimido dentro da barraca.
Então novamente se lembrou dos pobres adeptos de fetiches. Como poderia ser
possível que esses homens, noite após noite, vissem essas coisas e cressem nessas fi guras
de palha e farrapos!
Devia vir alguém que lhes mostrasse algo melhor.
O tio havia dito que eles não compreenderiam outra coisa! Será que alguém
já empreendera uma tentativa? Devia ser possível convencer essa gente.
Era um dever natural daqueles que sabiam melhor dar esclarecimentos aos
outros. Durante horas ele fi cou deitado quieto, meditando. Então, brotou-lhe do
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íntimo o resultado das suas refl exões:
“Senhor, Deus de Israel, se ninguém o quer empreender, então eu o quero,
assim que tenha idade sufi ciente para isso! Ajuda-me a fazê-lo.”
Era a primeira prece independente que jorrou da alma do rapaz, e essa prece,
sentida profundamente por amor a outros homens, achou seu caminho para o trono
do Todo-poderoso. Suave paz invadiu o rapaz, como nunca sentira antes; uma
esperança tranqüilizante e uma alegria sobre o porvir afl uíram-lhe.
Essa noite ele passou ao ar livre, e na manhã seguinte apareceu com os olhos
tão radiantes diante de Abu Talib, que este não pôde compreender o milagre.
Os dias transcorriam monótonos, mas Maomé, que tão depressa se enfadava
de todas as coisas, entreteve-se com seus próprios pensamentos e conservou um
alegre equilíbrio.
Um dia surgiu uma agitação na caravana. O condutor aproximou-se de Abu Ta