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Richard Bach Fernão Capelo gaivota.

Richard Bach Fernão Capelo gaivota.

Fernão Capelo Gaivota

Richard Bach

Ao verdadeiro Fernão Capelo Gaivota

que vive em todos nós.

Primeira Parte

Era de manhã

e o novo Sol cintilava nas rugas de um mar calmo.

A dois quilômetros da costa, um barco de pesca acariciava a água. Subitamente, os

gritos do Bando da Alimentação relampejaram no ar e despertaram um bando de mil

gaivotas, que se lançou precipitadamente na luta pelos pedacinhos de comida. Amanhecia

um novo dia de trabalho.

Mas lá ao fundo, sozinho, longe do barco e da costa, Fernão Capelo Gaivota

treinava. A trinta metros da superfície azul brilhante, baixou os seus pés com membranas,

levantou o bico e tentou a todo custo manter suas asas numa dolorosa curva. A curva fazia

com que voasse devagar, e então sua velocidade diminuiu até que o vento não fosse mais

que um ligeiro sopro, e o oceano com que tivesse parado, abaixo dele. Cerrou os olhos

para se concentrar melhor, susteve a respiração e forçou... só... mais... um... centímetro...

de... curva... Mas as penas levantaram-se em turbilhão, atrapalhou-se e caiu.

Como se sabe, as gaivotas nunca se atrapalham, nunca caem. Atrapalhar-se no ar é

para elas desgraça e desonra.

Mas Fernão Capelo Gaivota — sem se envergonhar, abrindo outra vez as asas

naquela trêmula e difícil curva, parando, parando... e atrapalhando-se outra vez! — não

era um pássaro vulgar.

A maior parte das gaivotas não se preocupa em aprender mais do que os simples

fatos do vôo — como ir da costa à comida e voltar. Para a maioria, o importante não é

voar, mas comer. Para esta gaivota, contudo, o importante não era comer, mas voar. Antes

de tudo o mais, Fernão Capelo Gaivota adorava voar.

Esta maneira de pensar não o popularizava entre os outros pássaros, como veio a

 

 

descobrir. Até os próprios pais se sentiam desanimados ao vê-lo passar dias inteiros

fazendo centenas de vôos rasantes, sozinho.

Ele não sabia por que, por exemplo, quando voava sobre a água a uma altitude

menor que a metade do comprimento das suas asas aberta, podia manter-se no ar mais

tempo, com menos esforço. Esses vôos rasantes não terminavam com a habitual

amaragem de pés hirtos que feriam a água. Ele amarava de mansinho, os pés apertados

contra o corpo, deixando apenas um rasto borbulhante. Quando começou a treinar as

aterragens deslizantes na praia, e a contar em passos o comprimento do rasto na areia, os

pais começaram a ficar deveras desanimados.

— Por quê, Fernão, POR QUÊ? — perguntava-lhe a mãe. — Por que é que lhe

custa tanto ser como o resto do bando? Por que você não deixa os vôos baixos para os

pelicanos, para o albatroz? Por que não come? Filho, você está que é só pena e osso!

— Não me importo de estar só pena e osso, mãe. Eu só quero saber o que posso

fazer no ar e o que não posso, é tudo. Só quero saber isso.

— Escute, Fernão — disse-lhe o pai com bondade. — O inverno não está longe.

Haverá poucos barcos e o peixe da superfície irá para zonas mais profundas. Se você tem

necessidade de estudar, então estude o alimento e como consegui-lo. Esta história dos

vôos está muito certa, mas você tem de pensar que não pode comer um vôo rasante. Não

esqueça que a razão por que você voa é comer.

Fernão baixou a cabeça, obediente. Nos dias seguintes tentou comportar-se como

as outras gaivotas; tentou de fato, gritando e lutando como o resto do bando, em volta dos

pontões e dos barcos de pesca, mergulhando sobre restos de peixe e de pão. Mas não

conseguiu.

"Não faz sentido", pensava ele largando deliberadamente uma anchova suculenta,

que lhe custara bastante a ganhar, aos pés de uma velha gaivota esfomeada que o

acossava. "Não faz sentido... Eu podia ganhar todo este tempo aprendendo a voar. Há

tanto que aprender!"

* * *

Não tardou muito que Fernão Gaivota voltasse a pairar no céu, sozinho, longínquo,

esfomeado, feliz, aprendendo.

O tema era a velocidade. Ao cabo de uma semana de prática, conseguira aprender

mais sobre velocidade do que a gaivota viva mais rápida.

A trezentos metros de altura, batendo as asas com toda a força de que era capaz,

lançou-se numa vertiginosa picada direta às ondas e aprendeu por que razão as gaivotas

não fazem vertiginosos mergulhos picados. Em escassos seis segundos passou a mover-se

a cento e vinte quilômetros por hora, velocidade que desequilibra a asa no arranque para a

subida.

Vez após vez sucedeu o mesmo. Por mais cuidadoso que fosse, trabalhando até o

limite da sua capacidade, perdia o controle em alta velocidade.

Subir a trezentos metros, dando primeiro tudo em frente; depois, dobrar o corpo e

cair em mergulho vertical. Mas, sempre que tentava subir outra vez, a asa esquerda

atrapalhava-se e fazia-o rolar violentamente para a esquerda. Ao tentar recuperar, era a

asa direita que se atrapalhava, e então tremeleava como as chamas, num selvático

movimento desordenado de parafuso, girando para a direita.

Não conseguir ser suficientemente cuidadoso naquele arranque. Dez vezes tentou e

dez vezes alcançou os cento e vinte quilômetros por hora, acabando sempre numa agitada

massa de penas descontroladas que ia esmagar-se na água.

 

 

"A chave", pensou por fim, "deve estar em manter as asas paradas nas grandes

velocidades — batê-las até chegar aos cento e vinte e depois pará-las."

Tentou outra vez a seiscentos metros, lançando-se no mergulho com o bico

espetado, as asas bem abertas e firmes a partir do momento em que ultrapassou os cento e

vinte quilômetros por hora. Precisou de uma força tremenda, mas deu resultado. Em dez

segundos transformou-se numa mancha no céu, a cento e trinta quilômetros pro hora.

Fernão acabava de estabelecer um recorde mundial de velocidade para gaivota!

Mas a vitória durou pouco. No instante em que tentou a horizontal, no instante em

que modificou o ângulo das asas, projetou-se outra vez naquele terrível desastre

descontrolado, e, a cento e trinta quilômetros, foi como se tivesse sido atingido por

dinamite. Fernão Gaivota explodiu a meia altura e esmagou-se num mar duro como tijolo.

* * *

Quando voltou a si, a noite já era velha. Flutuava à superfície negra do oceano,

encharcado em luar. As asas eram enormes e esfarrapadas barras de chumbo, mas o

fracasso pesava-lhe ainda mais nas costas. Desfalecido, desejou que o peso fosse bastante

para o arrastar docemente até o fundo, e acabar com tudo.

Ao afundar-se na água, uma estranha voz cavernosa soou dentro dele. "Não há

nada a fazer. Sou uma gaivota. A minha natureza limita-me. Se estivesse destinado a

aprender tanto acerca do vôo, teria mapas em vez de miolos. Se estivesse destinado a voar

a altas velocidade, teria asas curtas como o falcão e viveria de ratos em vez de Peixes. O

meu pai tem razão. Devo esquecer esta loucura. Devo regressar ao seio do bando e

contentar-me com o que sou, uma pobre e limitada gaivota."

A sumiu-se e Fernão acordou. Uma gaivota passa a noite em terra... A partir desse

momento, jurou tornar-se uma gaivota normal. Seriam todos felizes.

Morto de cansaço, arrancou-se da água densa e voou para terra, grato pelo que

aprendera: a forma de poupar trabalho voando a baixa altitude.

"Mas não!", pensou. "O que eu era acabou-se; acabou-se tudo o que aprendi. Sou

uma gaivota como outra qualquer e voarei como uma delas." Assim, subiu dolorosamente

a trinta metros e bateu as asas com mais força, apressando-se a chegar a terra.

Sentiu-se melhor depois da decisão de ser apenas mais um dos do bando. Daí em

diante não haveria mais laços a prendê-lo à força que o levara a aprender, não haveria

mais desafios nem mais fracassos. E era bom deixar de pensar, e voar no escuro em

direção às luzes da praia.

"ESCURO!" A voz irreal estalou em alarma. "AS GAIVOTAS NUNCA VOAM

NO ESCURO!"

Mas Fernão não prestava atenção e não a ouvia. "É bom", pensava. "A Lua e as

luzes brincando na água, atirando à pequenos lampejos, e tudo tão calmo, tão parado..."

"Desça! As gaivotas nunca voam no escuro! Se estivesse destinado a voar no

escuro teria olhos de coruja! Teria mapas em vez de miolos! Teria as asas curtas do

falcão!"

Envolto na noite, a trinta metros no ar, Fernão Capelo Gaivota... pestanejou. A dor

e as resoluções desvaneceram-se.

Asas curtas. AS ASAS CURTAS DO FALCÃO!

"É isso! Como fui louco! Tudo o que preciso é de uma asinha curta, tudo o que

preciso é fechar as asas o mais que puder e voar só com as pontas! ASAS CURTAS!"

Subiu a seiscentos metros acima do negro mar e, sem pensar um momento no

fracasso ou na morte, apertou as asas de encontro ao corpo, deixou que apenas as pontas

 

 

das asas cortassem o vento como lâminas de punhal e mergulhou na vertical.

O vento era rugido de um monstro na sua cabeça. Cem quilômetros por hora, cento

e trinta, cento e oitenta, e ainda mais depressa. A tensão nas asas, agora que se deslocava

à velocidade de duzentos quilômetros por hora, não chegava a ser tão forte como antes, a

cento e trinta, e bastou-lhe mover só um bocadinho a ponta das asas para sair da queda

sem dificuldade e disparar por cima das ondas como uma bala cinzenta de canhão

apontada à lua.

Semicerrou os olhos para se proteger do vento e regozijou-se. Duzentos

quilômetros por hora! E controlados! Se mergulhasse de mil e quinhentos metros, em vez

de seiscentos, que velocidade...

As promessas de momentos antes estavam esquecidas, varridas por aquele enorme

vento rápido. E, contudo, não sentia remorso por não cumprir as promessas que fizera a si

próprio. "Essas promessas são só para as gaivotas que aceitam o vulgar. Quem conseguiu

chegar à excelência da sua aprendizagem não tem necessidade desse topo de promessa."

Quando o sol começou a romper, Fernão Gaivota treinava outra vez. Vistos de mil

e quinhentos metros, os barcos de pesca eram pontinhos escuros no azul liso da água, e o

Bando da Alimentação uma apagada nuvem de átomos de poeira, movendo-se em círculo.

Ele estava vivo, ligeiramente trêmulo de prazer, orgulhoso de que o seu medo

estivesse dominado. Então, sem cerimônias, cingiu-se com as asas anteriores, estendeu as

curtas, colocando as pontas em ângulo, e mergulhou diretamente em direção ao mar.

Quando passou os mil e duzentos metros, deslocava-se à velocidade máxima e o vento era

um sólido muro de som contra o qual não podia mover-se mais depressa. Voava agora em

pleno mergulho, à velocidade de trezentos e vinte quilômetros por hora. Engolia em seco,

sabendo que se as asas se abrissem àquela velocidade ficaria reduzido a um milhão de

pequenos fragmentos de gaivota. Mas a velocidade era poder, e era alegria e beleza pura.

Começou o desvio a trezentos metros. As pontas das asas vibravam e ressoavam

contra o vento gigante. O barco e a multidão de gaivotas cresciam à velocidade de um

meteoro e lançavam-se diretamente no seu caminho.

Não podia parar; e ainda nem sabia como iria virar àquela velocidade.

A colisão seria morte instantânea.

Era melhor fechar os olhos.

Aconteceu então nessa manhã, logo a seguir ao nascer do sol, que Fernão Gaivota

atravessou o Bando da Alimentação como uma bala, riscando o céu a trezentos

quilômetros por hora, de olhos fechados, num tremendo rugido de vento e penas. A

Gaivota da Fortuna sorriu-lhe desta vez e ninguém foi ferido.

Na altura em que espetou o bico para o céu, ainda frechava o ar a duzentos e

quarenta quilômetros por hora. Quando por fim diminuiu para trinta e voltou a abrir as

asas, o barco era apenas uma migalha no mar, mil e duzentos metros abaixo.

Na sua mente latejava o triunfo. Velocidade máxima! Uma gaivota a

TREZENTOS E VINTE QUILÔMETROS POR HORA! Era uma vitória, o maior

momento da historia do bando; e, nesse mesmo momento, nasceu uma nova era na vida de

Fernão Gaivota. Voando para a sua solitária zona de treino, encolhendo as asas para um

mergulho de dois mil e quatrocentos metros, dispôs-se imediatamente a descobrir como

virar.

O movimento de um centímetro numa única pena da ponta da asa produzira uma

curva larga e suave, a tremenda velocidade, descobriu ele. Contudo, antes de descobrir

isto, verificou que, se movesse mais de uma pena àquela velocidade, era disparado em

movimento giratório como uma bala de espingarda... E Fernão fez as primeiras acrobacias

aéreas de uma gaivota viva.

 

 

Nesse dia não perdeu tempo conversando com as outras gaivotas e voou até depois

do pôr-do-sol. Descobriu o "loop" (Este termo e os que o seguem designam movimentos

de acrobacia aerodinâmica — N. do T.), o "slow roll", o "point roll", o "inverted spin", o

"gull bunt", o "pinwheel".

Quando Fernão Gaivota se juntou ao bando na praia era já noite cerrada. Esta tonto

e tremendamente cansado. Apesar disso, não resistiu ao prazer de voar num "loop" para

terra e de fazer um "snap roll" antes de aterrar. "Quando souberem do triunfo", pensava,

"ficarão loucos de alegria. Como vale a pena agora viver! Em vez da monótona labuta de

procurar peixe junto dos barcos de pesca, temos uma razão para estar vivos! Podemos

subtrair-nos à ignorância, podemos encontrar-nos como criaturas excelentes, inteligentes

e hábeis. Podemos ser livres! PODEMOS APRENDER A VOAR!"

Os anos vindouros brilhavam e trauteavam promessas.

As gaivotas estavam reunidas em conselho quando ele aterrou, e, segundo parecia,

já estavam em reunião havia algum tempo. Na realidade, estavam à espera dele.

— Fernão Capelo Gaivota! É chamado ao centro! — As palavras do Mais Velho

foram pronunciadas no tom mais solene. Ser chamado ao centro só podia significar

grande vergonha ou grande honra. Ser chamado ao centro por honra era a maneira como

eram designados os principais chefes das gaivotas. "Claro", pensou, "o Bando da

Alimentação esta manhã viu o triunfo! Mas eu não quero honras. Não me interessa ser

chefe. Só quero partilhar o que descobri, mostrar a todos esses horizontes que estão à

nossa frente." Avançou um passo.

— Fernão Gaivota — disse o Mais Velho — é chamado ao centro por vergonha

aos olhos das gaivotas suas semelhantes!

Foi como se lhe batessem com uma tábua. Os joelhos enfraqueceram-lhe, um

enorme rugido ensurdeceu-o. "Ser chamado ao centro por vergonha? Impossível! O

triunfo! Eles não podem compreender! Estão errados, estão errados!"

— ... pela sua desastrada irresponsabilidade — entoava a voz solene —, por violar

a dignidade e a tradição da família das gaivotas...

ser chamado ao centro por vergonha significava que seria banido da sociedade das

gaivotas, desterrado para uma vida solitária nos Penhascos Longínquos.

— ... um dia Fernão Capelo Gaivota aprenderá que a irresponsabilidade não

compensa. A vida é o desconhecido e o desconhecível, mas não podemos esquecer que

estamos neste mundo para comer e para nos mantermos vivos tanto quanto pudermos.

Uma gaivota nunca contesta o conselho do bando, mas a voz de Fernão ergueu-se

gritando:

— Irresponsabilidade? Meus irmãos! Quem é mais responsável do que uma

gaivota que descobre e desenvolve um significado, um propósito mais elevado na vida?

Passamos mil anos lutando por cabeças de peixe, mas agora temos uma razão para viver,

para aprender, para descobrir, para sermos livres! Dêem-se uma oportunidade, deixem-me

mostrar-lhes o que descobri...

O bando mostrou-se impenetrável como a pedra.

— Quebrou-se a irmandade — entoaram em conjunto todas as gaivotas, e, em

perfeito acordo, taparam solenemente os ouvidos e viraram-lhe as costas.

* * *

Fernão Gaivota passou o resto dos seus dias sozinho, mas voou muito além dos

Penhascos Longínquos. A solidão não o entristecia. Entristecia-o que as outras gaivotas se

tivessem recusado a acreditar na gloria do vôo que as esperava. Recusaram-se a abrir os

 

 

olhos e ver.

Aprendia cada vez mais. Aprendeu que um eficiente mergulho a grande velocidade

lhe dava o peixe raro e saboroso que vivia três metros abaixo da superfície do mar. Já não

precisava de barcos de pesca nem de pão duro para viver. Aprendeu a dormir no ar,

estabelecendo um percurso noturno pelo vento do largo, cobrindo cento e cinqüenta

quilômetros desde o ocaso até a aurora. Utilizando o mesmo controle interior, voou

através de nevoeiros cerrados e subiu acima deles para céus estonteantes de claridade...

enquanto qualquer outra gaivota ficava em terra, conhecendo apenas neblina e chuva.

Aprendeu a dominar os altos ventos do continente e a jantar ali os delicados insetos.

O que outrora desejara para o bando tinha-o agora só para si. Aprendera a voar e

não lamentava o preço que pagara por isso. Fernão Gaivota descobriu que o tédio, o medo

e a ira são as razões por que a vida de uma gaivota é tão curta, e, sem isso a perturbar-lhe

o pensamento, viveu de fato uma vida longa e feliz.

* * *

Vieram à noite, e encontraram Fernão deslizando tranqüilamente e sozinho pelo

seu querido céu. As duas gaivotas que surgiram junto às suas asas eram puras como a luz

das estrelas e o brilho que delas se desprendia era leve e afável no éter noturno. Mas o

mais encantador era a perícia com que voavam, as pontas das asas movendo-se a um

centímetro exato e constante das suas.

Sem uma palavra, Fernão submeteu-as ao teste, ao teste a que nenhuma gaivota

fora ainda submetida. Torceu as asas, diminuiu a velocidade para um quilômetro e meio

por hora e deslizou lentamente, quase parando no ar. Os dois pássaros, irradiantes,

deslizaram com ele, suavemente, mantendo-se em posição. Sabiam voar devagar.

Dobrou as asas, e caiu num mergulho de duzentos e oitenta quilômetros por hora.

Mergulharam com ele, riscando a noite em formação impecável.

Por fim, transformou diretamente essa velocidade numa longa rotação ascendente,

lenta e vertical. Giraram com ele, sorrindo. Regressou ao vôo planado e esperou algum

tempo, antes de falar.

— Muito bem. Quem são vocês?

— Nós somos do seu bando, Fernão. Somos suas irmãs. — As palavras eram fortes

e calmas. — Viemos para levar você para mais alto, para levá-lo para casa.

— Eu não tenho casa. Nem tenho bando. Fui banido. E estamos agora sobrevoando

o pico da Grande Montanha do Vento. Já não posso elevar este velho corpo além dumas

centenas de metros.

— Você pode, sim, Fernão. Porque aprendeu. Acabou-se uma escola e chegou a

hora de começar outra.

O entendimento raiou nesse momento para Fernão Gaivota, tal como o iluminara

sempre em toda a sua vida. Tinham razão. Ele PODIA voar mais alto e ERA tempo de ir

para casa.

Lançou um último longo olhar pelo céu, por aquela magnífica terra prateada onde

aprendera tanto.

— Estou pronto — disse por fim.

E Fernão Capelo Gaivota elevou-se com as duas gaivotas brilhantes como estrelas

para desaparecer num céu perfeitamente escuro.

* * *

 

 

Segunda Parte

"Então o paraíso é isto",

pensou, e teve de sorrir de si próprio. Não era muito respeitoso analisar o paraíso

precisamente quando se estava voando para entrar nele.

Enquanto se afastava da terra e ultrapassava as nuvens, em formação com as duas

gaivotas brilhantes, notou que o seu próprio corpo se tornava tão brilhante como os dela.

Em realidade, era o mesmo Fernão Capelo Gaivota que sempre vivera por detrás dos

olhos dourados. Só a forma exterior se modificara.

Era como o corpo de uma gaivota, mas voava muito melhor do que o antigo jamais

voara. "É maravilhoso", pensava ele. "Com metade do esforço consigo o dobro da

velocidade, o dobro da eficiência dos meus melhores dias na terra!"

As penas luziam agora num branco radiante e as asas eram lisas e perfeitas como

folhas de prata polida. Deliciado, começou a aprender a conhecê-las, a incutir potência a

essas novas asas.

A trezentos e setenta quilômetros por hora, sentiu que se aproximava da velocidade

máxima que atingira antes em vôo planado. A quatrocentos e nove quilômetros pensou

que voava tão depressa quanto podia voar e, apesar disso, sentiu-se ligeiramente

desapontado. Havia um limite para tudo o que o novo corpo podia fazer, e, embora fosse

muito mais rápido do que o seu antigo recorde em vôo planado, era ainda um limite. Para

o vencer, iria ser necessário um grande esforço. "No paraíso", pensou, "não devia haver

limites."A

s nuvens romperam-se, a escolta gritou-lhe "Feliz aterragem, Fernão", e

evaporou-se no ar fino.

Voava sobre um mar em direção a uma linha áspera da costa. Muitos poucas

gaivotas treinavam os "updrafts" nos penhascos. Bastante desviado para o norte, na linha

do horizonte, voava outro pequeno grupo. Novas paragens, novos pensamentos, novas

perguntas. "Por que tão poucas gaivotas? O paraíso devia estar repleto de gaivotas! E por

que é que, de repente, fiquei tão cansado? As gaivotas no paraíso nunca devem cansar-se,

nem dormir."

Onde é que ouvira isso? A lembrança da sua vida na terra sumia-se. A terra fora

um lugar onde aprendera muito, é certo, mas os pormenores estavam esmaecidos —

qualquer coisa como lutar por comida e ser banido.

A dúzia de gaivotas que treinava junto à costa veio ao seu encontro, sem

pronunciar uma palavra. Sentiu apenas que era bem-vindo e que esta era a sua casa. Tinha

sido um grande dia para ele, um dia cuja aurora já não recordava.

Dispôs-se a aterrar na praia batendo as asas de modo a ficar suspenso a dois

centímetros do chão e deixando-se cair levemente na areia. As outras gaivotas também

aterraram, mas nenhuma delas moveu uma única pena. Esvoaçaram no vento com as asas

brilhantes bem abertas e, modificando depois a curva das penas, pararam exatamente na

mesma altura em que os pés tocaram no chão. Era um controle magnífico, mas, nesse

momento, Fernão estava demasiado cansado para experimentar. Adormeceu ali mesmo na

praia, sem que se tivesse pronunciado uma palavra.

Nos dias que se seguiram, Fernão verificou que neste lugar havia tanto para

aprender acerca do vôo como houvera na vida que deixara para trás. Mas como uma

 

 

diferença. Aqui havia gaivotas que pensavam como ele. Para cada uma delas o mais

importante na vida era olhar em frente e alcançar a perfeição naquilo que mais gostavam

de fazer: voar. Todas elas eram aves magníficas e passavam hora após hora praticando

vôo, fazendo experimentos de aeronáutica avançada.

Durante muito tempo Fernão esqueceu-se do mundo de onde viera, daquele lugar

onde o bando vivia com os olhos completamente cerrados à felicidade de voar, usando as

asas apenas como um meio de encontrar alimento e lutar por ele. Mas, uma vez ou outra,

só por um momento, lembrava-se.

Lembrou-se uma manhã, quando estava a sós com o instrutor, enquanto

descansavam na praia depois de uma sessão de "snap rolls" de asa dobrada.

— Onde estão os outros, Henrique? — perguntou em silêncio, já familiarizado

com a telepatia fácil, que estas gaivotas usavam em vez dos gritos e guinchos. — Por que

somos tão poucos aqui? No lugar de onde eu vim havia...

— ... milhares e milhares de gaivotas. Eu sei. — Henrique abanou a cabeça. — A

única resposta que encontro, Fernão, é que você é um daqueles pássaros que se encontram

num milhão. Quase todos nós percorremos um longo caminho. Fomos de um mundo para

outro, que era praticamente igual ao primeiro, esquecendo logo de onde viéramos, não

nos preocupando para onde íamos, vivendo o momento presente. Tem alguma idéia de

por quantas vidas tivemos de passar até chegarmos a ter a primeira intuição de que há na

vida algo mais do que comer, ou lutar, ou ter uma posição importante dentro do bando?

Mil vidas, Fernão, dez mil! E depois mais cem vidas até começarmos a aprender que há

uma coisa chamada perfeição, e ainda outras cem para nos convencermos de que o nosso

objetivo na vida é encontrar essa perfeição e levá-la ao extremo. A mesma regra mantémse

para os que aqui estão agora, é claro: escolheremos o nosso próximo mundo através

daquilo que aprendermos neste. Não aprender nada significa que o próximo mundo será

igual a este, com as mesmas limitações e pesos de chumbo a vencer.

Abriu as asas e, voltando-se de frente para o vento, continuou:

— Mas você, Fernão, aprendeu tanto de uma só vez que não teve de passar por mil

vidas para chegar a esta.

Um instante depois estavam de novo no ar, treinando. A formação "point roll" era

difícil, pois na posição invertida Fernão tinha de pensar de cabeça para baixo, virando a

curva da asa ao contrário, mas virando-a em perfeita harmonia com a do seu instrutor.

— Vamos tentar outra vez — repetia Henrique, incansável. — Vamos tentar outra

vez. — E, finalmente: — Está bom.

E começaram a praticar "loops" exteriores.

Uma noite, as gaivotas que não praticavam o vôo noturno juntaram-se na praia,

para pensar. Fernão reuniu toda a sua coragem e dirigiu-se à gaivota mais velha, que,

segundo diziam, devia passar em breve para outro mundo.

— Chiang... — começou ele, um pouco nervoso.

A velha gaivota olhou-o com bondade.

— Diga, meu filho.

Em vez de enfraquecer, a idade dera força ao Mais Velho. Em vôo batia qualquer

gaivota do bando, e aprendera perícias de que os outros só muito lenta e gradualmente

começavam agora a aperceber-se.

— Chiang, este mundo não é o paraíso, é?

O Mais Velho sorriu ao luar:

— Você está aprendendo outra vez, Fernão Gaivota.

— Bem, e o que é que acontece depois disso? Para onde vamos? Não há um lugar

chamado paraíso?

 

 

— Não, Fernão, não há tal lugar. O paraíso não é um lugar nem um tempo. O

paraíso é ser perfeito. — Ficou em silêncio durante um momento. — Você voa com muita

velocidade, não voa?

— Eu... Eu gosto da velocidade — respondeu Fernão, surpreendido mas orgulhoso

de que o Mais Velho o tivesse notado.

— Você começará a se aproximar do paraíso no momento em que alcançar a

velocidade perfeita. E isso não é voar a mil e quinhentos quilômetros por hora, nem a um

milhão e quinhentos mil, nem voar à velocidade da luz. Porque nenhum número é um

limite, e a perfeição não tem limites. A velocidade perfeita, meu filho, é estar ali.

Sem avisar, Chiang evaporou-se e apareceu à borda da água, à distância de quinze

metros, numa centelha de instante. Depois evaporou-se outra vez e surgiu ao lado de

Fernão, no mesmo milésimo de segundo.

— É divertido — comentou.

Fernão ficou atordoado. Esqueceu-se de fazer perguntas acerca do paraíso.

— Como é que se faz isso? O que é que se sente? A que distância se pode ir?

— Desde que você o deseje, pode ir a qualquer lugar e a qualquer momento —

disse-lhe o Mais Velho. — Que me lembre, já fui a todos os lugares e a todos os

momentos. — Olhou o mar, pensativo. — É estranho... As gaivotas que desprezam a

perfeição por amor ao movimento não chegam a parte alguma, devagar. As que ignoram o

movimento por amor à perfeição chegam a toda parte, instantaneamente. Lembre-se,

Fernão, o paraíso não é um lugar nem um tempo, porque lugar e tempo não significam

nada. O paraíso é...

— Pode ensinar-me a voar assim?

Fernão Gaivota tremia de ansiedade por conquistar outro desconhecido.

— Claro, se você deseja aprender.

— Desejo, sim! Quando podemos começar?

— Se quiser, podemos começar já.

— Eu quero aprender a voar assim — disse Fernão, um brilho estranho a iluminarlhe

os olhos. — Diga-me o que devo fazer.

Chiang falou devagar, observando cuidadosamente a gaivota mais nova.

— Para voar à velocidade do pensamento, para onde quer que seja, você deve

começar por saber que já chegou...

Segundo Chiang, o truque estava em Fernão deixar de se ver aprisionado dentro de

um corpo limitado cujas asas abertas abrangiam a distância de um metro e cuja eficiência

podia ser traçada num mapa.

O truque estava em saber que a sua verdadeira natureza vivia tão perfeita como um

número não escrito, em toda parte e ao mesmo tempo, através do espaço e do tempo.

Fernão, empenhou-se em conseguir isso, dia após dia, desde antes da aurora até

depois da meia-noite. Mas, por mais que se esforçasse, não conseguia afastar-se um

milímetro do seu lugar.

— Esqueça a fé — dizia-lhe Chiang repetidamente. — Você não precisa de fé para

voar; precisou, sim, compreender o que era voar. Isto é a mesma coisa. Tente outra vez...

Mas um dia em que Fernão estava na praia, de olhos fechados, concentrando-se,

compreendeu num relâmpago o que Chiang tentava dizer-lhe.

— Mas é verdade! Eu SOU uma gaivota perfeita, ilimitada!

Sentiu um grande choque de alegria.

— Bom! — exclamou Chiang, com a voz vibrando de triunfo.

Fernão abriu os olhos. Estava sozinho com o Mais Velho numa praia

completamente diferente — havia árvores até a beira da água, e dois sóis amarelos,

 

 

girando sobre as cabeças de ambos.

— Por fim você conseguiu perceber a idéia — disse Chiang. — Mas ainda precisa

trabalhar o seu controle...

Fernão estava atordoado.

— Onde estamos?

Obviamente não impressionado elo estranho ambiente, o Mais Velho desprezou a

pergunta.

— Estamos num planeta qualquer, evidentemente, com um céu verde e uma estrela

dupla por sol.

Fernão soltou um grito de alegria, o primeiro som que emitia desde que deixara a

terra.

— DEU CERTO!

— Mas claro que deu certo, Fernão — disse Chiang. — Dá certo sempre, quando

se sabe o que se está fazendo. Agora, acerca do seu controle...

* * *

Quando regressaram já estava escuro. As outras gaivotas olhavam Fernão com o

assombro nos olhos dourados. Tinham-no visto desaparecer do lugar onde há tanto criara

raízes.

Suportou as felicitações por menos de um minuto.

— Eu sou o mais novo aqui! Estou apenas começando! Sou eu quem tem de

aprender com vocês.

— Tenho as minhas dúvidas, Fernão — disse Henrique, ali próximo. — Você tem

menos medo de aprender do que qualquer outra gaivota que conheci em dez mil anos.

O bando ficou em silêncio e Fernão moveu-se embaraçado.

— Se você quiser, podemos começar a trabalhar, com tempo — disse-lhe Chiang

—, até você poder voar no passado e no futuro. E então estará preparado para começar o

mais difícil, o mais poderoso e o mais divertido de tudo. Estará preparado para voar no

além e conhecer o significado das palavras "bondade" e "amor".

Passou-se um mês, ou algo que se pareceu com um mês, e Fernão aprendeu num

ritmo tremendo. Aprendera sempre depressa, com a experiência vulgar, e agora, como

aluno especial do próprio Mais Velho, fixou novas idéias, como um aerodinâmico

computador de penas.

Mas chegou o dia em que Chiang se evaporou. Falara calmamente a todos,

exortando-os a nunca deixarem de aprender, de treinar e de lutar por compreenderem cada

vez melhor o perfeito e invisível principio de toda a vida. Então, enquanto falava, suas

penas foram-se tornando cada vez mais brilhantes, e acabaram por ficar tão brilhantes que

nenhuma gaivota o conseguia olhar.

As suas últimas palavras foram para Fernão:

— Continue trabalhando no amor, Fernão.

Quando puderam olhar outra vez, Chiang havia desaparecido.

À medida que os dias se passavam, Fernão surpreendia-se pensando no tempo e na

terra de onde viera. Se ele tivesse sabido que havia só um décimo, só um centésimo do

que aprendera aqui, como a vida teria sido mais válida! Ficou na areia, pensando se

haveria alguma gaivota lá atrás lutando por quebrar os seus limites, compreendendo o que

realmente significava voar: não um simples meio de locomoção para arrancar uma

migalha de pão a um barco a remos. Talvez até houvesse uma que tivesse sido banida por

lançar a verdade à cara do bando. E quanto mais Fernão treinava os seus exercícios de

 

 

bondade, quanto mais trabalhava para compreender a natureza do amor, mais desejava

regressar à terra. Porque, apesar do seu passado solitário, Fernão Gaivota nascera para ser

instrutor, e a sua maneira de demonstrar o amor era dar um pouco da verdade que ele

próprio descobrira a uma gaivota que apenas pedisse uma oportunidade para vislumbrar

essa verdade.

Henrique, agora adepto do vôo velocidade pensamento, ao mesmo tempo que

ajudava os outros a aprender, tinha dúvidas.

— Fernão, você foi banido uma vez. O que é que o leva a pensar que alguma das

gaivotas do seu tempo o ouviria agora? Você conhece o provérbio, que é bem verdade:

"Vê mais longe a gaivota que voa mais alto". As gaivotas que você deixou estão no solo,

gritando e lutando umas com as outras. Estão a mil e quinhentos quilômetros do paraíso, e

você diz que lhes quer mostrar o paraíso, de onde estão! Fernão, elas nem vêem a própria

ponta das asas! Fique aqui. Fique aqui ajudando as novas gaivotas, essas que estão

suficientemente cultivadas para compreenderem o que você lhes tem a dizer. — Calou-se

um momento, e depois disse: — Que teria acontecido se Chiang tivesse regressado aos

velhos mundos dele? Onde estaria você hoje?

A última frase era significativa, e Henrique tinha razão. "Vê mais longe a gaivota

que voa mais alto."

Fernão ficou trabalhando com os novos pássaros que chegaram e que se mostraram

muito inteligentes e rápidos na aprendizagem das suas lições. Mas o velho sentimento

voltou e ele não podia impedir-se de pensar que talvez houvesse uma ou duas gaivotas na

terra que também pudessem aprender. Quanto mais não saberia ele agora se Chiang

tivesse ido ao seu encontro no dia em que fora banido!

— Henrique, tenho de regressar! — acabou por dizer. — Os seus alunos vão bem.

Podem ajudar você a ensinar os que chegarem.

Henrique suspirou, mas não discutiu.

— Acho que vou sentir a sua falta, Fernão — foi tudo o que disse.

— Henrique, que vergonha! — exclamou Fernão, reprovador. — Não seja tolo!

Afinal, o que é que estamos treinando todos os dias? Se a nossa amizade depende de

coisas como o espaço e o tempo, então, quando finalmente ultrapassarmos o espaço e o

tempo, teremos destruído a nossa fraternidade! Mas, ultrapassado o espaço, tudo o que

nos resta é Aqui. Ultrapassado o tempo, tudo o que nos resta é Agora. E entre Aqui e

Agora você não crê que poderemos ver-nos uma ou duas vezes?

Henrique Gaivota riu sem vontade e disse-lhe brandamente:

— Você é um louco. Se alguém conseguir mostrar a um pássaro no chão como ver

a mil e quinhentos quilômetros, esse alguém tem de ser Fernão Capelo Gaivota. — Olhou

a areia. — Adeus, Fernão, meu amigo.

— Adeus, Henrique, voltaremos a encontrar-nos.

Dito isso, Fernão fixou no pensamento a imagem dos grandes bandos de gaivotas

das costas doutros tempos e, com a facilidade do treino, soube que não era só ossos e

penas, mas sim uma idéia perfeita de liberdade e vôo que nada conseguia limitar.

* * *

Francisco Coutinho Gaivota era bastante novo, mas já sabia que nunca um pássaro

fora tratado com tanta aspereza por nenhum bando ou com tanta injustiça.

"Não importa o que digam", pensava com violência, o olhar toldado, enquanto

voava em direção aos Penhascos Longínquos. "Voar tem muito mais valor do que

esvoaçar de um lado para o outro! Um... um... um mosquito faz isso! Um pequeno 'barrel

 

 

roll' à volta da gaivota mais velha, só por brincadeira, e eis-me banido! São cegos? Não

vêem? Não percebem a glória que será quando aprendermos a voar realmente?

"Não me importa o que pensem. Vou lhes mostrar o que é voar! Serei um puro

fora-da-lei, se é isso o que desejam. E vou fazê-los lamentar tanto..."

A voz surgiu dentro da sua cabeça e, embora fosse muito suave, sobressaltou-o de

tal maneira que vacilou e quase despencou.

"Não seja duro com eles, Francisco Gaivota. Ao expulsarem-no, as outras gaivotas

só fizeram mal a si próprias, e um dia vão sabê-lo, e um dia verão o que você vê. Perdoelhes

e ajude-as a compreender."

A um centímetro da sua asa direita voava a gaivota branca mais brilhante de todo o

mundo, deslizando suavemente e sem esforço, sem mover uma pena, quase à velocidade

máxima de Francisco.

Houve um momento de caos no jovem pássaro.

— Que se passa? Estou louco? Estou morto? O que é isso?

Baixa e calma, a voz prosseguia dentro dos seus pensamentos, exigindo resposta.

— Francisco Coutinho Gaivota, você quer voar?

— SIM, EU QUERO VOAR?

— Francisco Coutinho Gaivota, você quer voar tanto que perdoará o bando, e

aprenderá, e voltará um dia para ajudá-los a saber?

Era impossível mentir àquele magnífico e hábil ser, por muito que um pássaro

como Francisco Gaivota se sentisse cheio de orgulho e de mágoa.

— Quero — disse suavemente.

— Então, Chico — disse-lhe a brilhante criatura, com uma voz muito calma —,

vamos começar com o vôo planado...

* * *

Terceira Parte

Fernão voou em círculo,

devagar, sobre os Penhascos Longínquos, observando. Este duro jovem Francisco

Gaivota aproximava-se muito de um perfeito aluno de vôo. Era forte, leve e rápido no ar,

mas muito mais importante do que isso era o ritmo vertiginoso com que aprendia a voar.

Ali vinha ele agora, turva forma cinzenta troando à saída de um mergulho, a

duzentos quilômetros por hora, passando como um relâmpago à frente do seu instrutor.

Abruptamente, lançou-se noutra tentativa, um "slow roll" vertical de dezesseis pontos,

fazendo a contagem bem alto.

— ... oito... nove... dez... olha-Fernão-estou-saindo-da-velocidade-do-ar... onze...

eu-quero-boas-paradas-bruscas-como-as-suas... doze... mas-maldição-não-consigo...

treze... fazer-estes-últimos-três-pontos... sem... cator... aaahh!

A atrapalhação de Francisco no topo foi como uma chicotada, foi o pior que lhe

podia ter acontecido, e enfureceu-se por ter falhado. Caiu para trás, aos trambolhões,

 

 

desabou selvaticamente num "inverted spin" e acabou por se recuperar, ofegante, trinta

metros abaixo do nível do seu instrutor.

— Você perde o seu tempo comigo, Fernão! Sou tapado demais! Sou estúpido

demais! Tento e volto a tentar, mas nunca conseguirei!

Fernão Gaivota olhou para ele e concordou.

— Você nunca o conseguirá, é certo, se continuar a fazer o arranque com essa

brusquidão. Francisco, você perdeu sessenta quilômetros na entrada! TEM de ser suave!

Firme mas suave, compreende?

Desceu ao nível da gaivota mais nova.

— Agora vamos tentar juntos, em formação. E preste atenção ao arranque. É uma

entrada suave, fácil.

* * *

Ao cabo de três meses, Fernão tinha mais seis discípulos, todos banidos, mas ainda

curiosos acerca desta estranha e nova idéia de voar pelo prazer de voar.

Contudo, era-lhes mais fácil praticar altas execuções do que compreender a razão

que existia por detrás delas.

— Cada um de nós é, em realidade, uma idéia da Grande Gaivota, uma idéia

ilimitada de liberdade — costumava dizer-lhes Fernão à noite, quando se reuniam na

praia. — E o vôo de precisão é um passo à frente para expressarmos a nossa verdadeira

natureza. Temos de pôr de parte tudo o que nos limita. É por isso que todo este treino de

alta velocidade, baixa velocidade e acrobacia aérea...

E os seus alunos adormeciam, exaustos pelo vôo do dia. Gostavam dos treinos

porque eram rápidos e excitantes e porque saciavam uma fome de aprender que crescia de

lição para lição. Mas nenhum deles, nem mesmo Francisco Coutinho Gaivota, chegava a

crer que o vôo de idéias pudesse de fato ser tal real como o vôo de vento e penas.

— Todo o corpo de vocês , da ponta de uma asa à outra — dizia Fernão outras

vezes —, não é mais do que seus próprios pensamentos, numa forma que podem ver.

Quebrem as correntes dos seus pensamentos e conseguirão quebrar as correntes do

corpo...

Mas qualquer que fosse a maneira como o dissesse, soava sempre como ficção

agradável, e eles precisavam dormir.

Só um mês depois Fernão disse que era tempo de voltar ao bando.

— Mas não estamos prontos! — disse João Calvino Gaivota. — E não nos

desejam! Estamos banidos! Não podemos forçar-nos a ir aonde na somo s desejados, não

é?

— Nós somos livres para ir aonde nos aprouver e ser o que somos — replicou

Fernão, elevando-se da areia e voando para leste, para os domínios do bando.

A angústia reinou por momentos entre os seus alunos, pois, segundo a lei do

bando, nenhum banido regressa, e a lei não fora quebrada em dez mil anos. A lei dizia:

fiquem. Fernão dizia: vão. E nesta altura já ia a mais de um quilômetro de distância,

sobrevoando a água. Se esperasse muito mais, ele iria enfrentar sozinho o bando hostil.

— Bem, já que não fazemos parte do bando não temos que nos submeter à lei... —

disse Francisco timidamente. — Além disso, se houver luta, seremos muito mais úteis lá

do que aqui.

E assim, oito gaivotas voaram do oeste nessa manhã, em dupla formação de

diamante, as pontas das asas quase sobrepondo-se. Atravessaram a Praia do Conselho do

Bando a mais de duzentos quilômetros por hora, Fernão à frente, Francisco suavemente à

 

 

sua direita, João Calvino lutando com o vento, brincalhão, à sua esquerda. Então, toda a

formação rolou suavemente para a direita, como um único pássaro... planando...

invertendo... planando, o vento chicoteando-os todos por cima.

Os gritos e guinchos habituais à vida diária do bando cessaram de repente, como se

a formação fosse uma espada gigante, e oito mil olhos de gaivotas observaram, sem

pestanejar uma só vez. Um a um, ou oito pássaros lançaram-se abruptamente para cima,

fazendo um "loop" completo, descreveram uma curva perfeita e deixaram-se cair

lentamente até aterrarem na areia, de pé. Então, tal como se o acontecimento fosse uma

coisa de todos os dias, Fernão Gaivota iniciou a sua crítica do vôo.

— Para começar — disse com um sorriso zombeteiro —, demoraram um bocado a

juntar-se a mim...

Foi como se um relâmpago percorresse o bando. Aqueles pássaros eram banidos! E

tinham regressado! E isso... isso não podia acontecer! As predições de Francisco quanto a

haver luta fundiram-se na confusão do bando.

— Está bem, é certo que são banidos — disse uma das gaivotas mais novas —,

mas, caramba! onde eles aprenderam a voar desta maneira?

A palavra do Mais Velho levou quase uma hora a percorrer o bando: — Ignoremnos.

A gaivota que falar a um banido será banida. A gaivota que olhar para um banido

quebrará a lei do bando.

Costas de penas cinzentas viraram-se a Fernão a partir desse momento, mas ele não

deu a perceber tê-lo notado. Deu as sessões precisamente sobre a Praia do Conselho e,

pela primeira vez, começou a instigar os seus alunos até o limite de sua capacidade.

— Martinho Gaivota! — gritou através do céu. — Você diz que sabe voar a baixa

velocidade. Não sabe nada até provar! VOE!

Foi assim que o calado Martinho Gaivota, sobressaltado pelo fogo que o seu

instrutor lhe ateara, surpreendeu a si próprio tornando-se um especialista em baixas

velocidades. Conseguia curvar as suas penas de modo a elevar-se na mais leve brisa, sem

um único batimento da asa, da areia às nuvens e voltar das nuvens à areia.

Do mesmo modo, Rolando Gaivota sobrevoou o pico da Grande Montanha do

Vento, a sete mil e duzentos metros, desceu azul do ar frio e rareado, maravilhado e feliz,

decidido a ir ainda mais alto no dia seguinte.

Francisco Gaivota, que mais do que ninguém adorava a acrobacia aérea, conseguiu

o seu "slow roll" vertical de dezesseis pontos, ao qual, no dia seguinte, acrescentou um

triplo "cartwheel", as penas irradiando uma luz solar branca que ofuscou a praia onde

mais de um olho furtivo o observava.

A todo momento, lá estava Fernão ao lado de cada um dos seus discípulos,

demonstrando, sugerindo, instigando, conduzindo. Voou com eles através da noite, da

nuvem e da tempestade, por puro prazer, enquanto o bando se encolhia miseravelmente

no solo.

Depois dos treinos, os alunos descansavam na areia, e, com o tempo, começaram a

prestar mais atenção a Fernão. Embora este tivesse algumas idéias loucas que não

entendiam, tinha outras muito boas, que conseguiam aprender.

Gradualmente, à noite, começou a formar-se outro círculo à volta dos alunos —

um círculo de gaivotas curiosas que escutavam durante horas a fio, desejando não ver

nem ser vistas por outras e desvanecendo-se na meia-luz que antecede a aurora.

Foi um mês depois do Regresso que a primeira gaivota do bando venceu a barreira

e pediu para aprender a voar. Ao fazê-lo, Teseu Sousa Gaivota passou a ser um pássaro

condenado, portador de uma etiqueta que dizia: "Banido". E passou também a ser o oitavo

aluno de Fernão.

 

 

Na noite seguinte foi Virgilio Gaivota quem deixou o bando. Aproximou-se

cambaleante, arrastando a asa esquerda pela areia, e caiu aos pés de Fernão.

— Ajude-me — pediu-lhe baixinho, com a voz daqueles que estão morrendo. —

Mais do que tudo no mundo eu quero voar...

— Nesse caso, venha — disse Fernão. — Eleve-se comigo e comecemos.

— Você não compreende... A minha asa. Não consigo mexê-la.

— Virgilio Gaivota, você tem liberdade de ser você mesmo, de ser o seu próprio

eu, aqui e agora, e não há nada que possa interpor-se no seu caminho. Essa é a lei da

Grande Gaivota, a lei que É.

— Você quer dizer que eu posso voar?

— Eu quero dizer que você é livre.

Tão simples e rapidamente como fora dito, Virgilio Gaivota abriu as asas, sem

esforço, e rasgou o ar negro da noite. A cento e cinqüenta metros de altura, gritou o mais

alto que pôde e o seu grito arrancou o bando do sono que o entorpecia.

— Eu posso voar! Ouçam! EU POSSO VOAR!

Quando o sol surgiu no horizonte, havia quase mil pássaros em volta do círculo de

alunos, olhando curiosamente para Virgilio. Pouco lhes importava serem vistos ou não, e

escutavam, tentando compreender, Fernão Gaivota.

Falou de coisas muito simples — que as gaivotas têm o direito de voar, que a

liberdade é própria da sua natureza, que todo aquele que se oponha a essa liberdade deve

ser posto de parte, quer a oposição seja motivada por ritual, superstição ou limitação sob

qualquer forma.

— Pôr de parte? — gritou uma voz entre a multidão. — Mesmo se for a lei do

bando?

— Só a lei que conduz à liberdade é verdadeira — disse Fernão. — Não há outra.

— Como você pode esperar que voemos como você? — interrompeu outra voz. —

Você é especial, dotado e divino, muito acima dos outros pássaros.

— Olhem para Francisco! Teseu! Rolando! São também especiais, dotados e

divinos? Não mais do que vocês, não mais do que eu. A única diferença, a única, de fato,

é que eles começaram a compreender o que são realmente e decidiram pôr em prática esse

conhecimento.

Salvo Francisco, os alunos moveram-se pouco à vontade. Ainda não tinham

tomado consciência de que era isso realmente o que lhes acontecia.

A multidão crescia de dia para dia: vinham fazer perguntas, idolatrá-lo ou injuriálo.

* * *

— Dizem no bando que, se você não é o filho da própria Grande Gaivota, tem um

avanço de mil anos em relação ao nosso tempo — contou Francisco a Fernão uma manhã,

depois do treino de velocidade avançada.

Fernão suspirou. "O preço de ser incompreendido", pensou. "Ser classificado de

diabo ou de deus."

— E você, o que pensa, Chico? Estamos avançados em relação ao nosso tempo?

Houve um longo silêncio.

— Bem, esta maneira de voar sempre esteve ao alcance de quem a quisesse

descobrir. Não tem nada a ver com o tempo. Talvez estejamos avançados em relação à

moda. Avançados em relação à maneira como voa a maior parte das gaivotas.

— Isso já é qualquer coisa... — disse Fernão, virando o corpo de modo a deslizar

 

 

de costas por algum tempo. — É bem melhor do que estar avançado em relação ao nosso

tempo.

* * *

Aconteceu precisamente uma semana depois. Francisco estava demonstrando os

elementos do vôo a alta velocidade a uma classe de novos alunos. Acabava de sair de um

mergulho de dois mil metros, um longo rasto cinzento desviando-se do mergulho a alguns

centímetros da areia e voltando, quando uma gaivota que voava pela primeira vez entrou

diretamente no seu caminho, chamando pela mãe. Dispondo apenas de um décimo de

segundo para se desviar do novato, Francisco Coutinho Gaivota atirou-se violentamente

para a esquerda, a qualquer coisa parecida com trezentos quilômetros por hora, contra um

rochedo de sólido granito.

Para ele foi como se a rocha fosse uma porta dura e gigantesca para um outro

mundo. Sentiu-se invadido por uma onda de medo, de choque e de escuridão quando se

chocou. Depois, flutuou num céu estrelado, estranhíssimo, esquecendo, lembrando,

esquecendo; com medo, dor e tristeza, uma imensa tristeza.

A voz chegou-lhe como no primeiro dia em que encontrara Fernão Capelo

Gaivota.

— O truque, Chico, é que devemos tentar ultrapassar as nossas limitações

progressiva e pacientemente. Voar através de rochas já faz parte de um programa mais

avançado.

— Fernão!

— Também conhecido por filho da Grande Gaivota — comentou o seu instrutor

zombeteiramente.

— O que você faz aqui? A rocha! Eu não... não... morri?

— Oh! Vamos, Chico, pense. Se você está falando comigo neste momento é

porque, como é óbvio, não morreu, não acha? O que você conseguiu fazer foi modificar

seu nível de consciência de modo um pouco brusco. Agora você tem a liberdade de

escolher: ou ficar aqui e aprender neste nível, que, a propósito, é bem mais evoluído do

que o que você deixou, ou regressar e continuar trabalhando com o bando. Os mais velhos

estavam ansiosos por que se desse um desastre qualquer, mas estão fora de si pela

maneira como você conseguiu satisfaze-los.

— Quero voltar para o bando, é claro. Mal comecei a treinar o novo grupo!

— Muito bem, Francisco. Você se lembra do que dissemos acerca de o nosso

corpo não ser mais do que o próprio pensamento...?

* * *

Francisco abanou a cabeça, abriu as asas e descerrou os olhos, junto da base do

rochedo onde se juntara todo o bando. Da multidão ergueu-se um enorme clamor de gritos

e guinchos quando o viram mexer-se pela primeira vez.

— Está vivo! Estava morto e VIVE!

— Tocou-o com a ponta de uma asa! Trouxe-o à vida! É o filho da Grande

Gaivota!— Não, ele o nega! É o Demônio! O DEMÔNIO! Veio para semear a discórdia

entre o bando!

Havia quatro mil gaivotas na multidão, amedrontadas pelo que aconteceu, e o grito

 

 

DEMÔNIO! percorreu-as como o vento de uma tempestade marítima. De olhos vidrados

e bico afiado, avançaram unidas, prontas a destruir.

— Você se sentiria melhor se partíssemos, Francisco? — perguntou Fernão.

— Não poria muitas objeções se o fizéssemos...

Instantaneamente, fixaram-se ambos a oitocentos metros e os bicos vibrantes da

multidão fecharam-se no vazio.

— Por que será — interrogou-se Fernão — que a coisa mais difícil do mundo é

convencer um pássaro de que é livre e de que pode prová-lo a si próprio se se dedicar a

treinar um pouco? Por que será tão difícil?

Francisco ainda pestanejava devido à mudança de cenário.

— O que é que você fez? Como é que viemos parar aqui?

— Você não disse que queria sair do meio da multidão?

— Disse, mas como é que você...

— Como todo o resto, Francisco. Treino.

Quando a manhã surgiu, o bando já esquecera a sua loucura. Mas Francisco

recordava.

— Fernão, você se lembra do que disse, há muito tempo, acerca de amar o bando o

bastante para voltar a ele e ajudá-lo a aprender?

— Claro que me lembro!

— Não compreendo como você consegue amar um punhado de pássaros que

acabam de tentar matá-lo.

— Oh! Chico! Não é isso que você ama! Você não ama o ódio e o inferno, é claro.

Você tem de treinar até ver a verdadeira gaivota, o que há de bom em cada uma delas, e

ajudá-las a ver isso nelas próprias. Para mim, o amor é isso. Quando você conseguir

compreender e pôr isso em prática, até achará divertido.

"Lembro-me de um jovem pássaro impetuoso, por exemplo, chamado Francisco

Coutinho Gaivota. Acabava de ser banido; estava pronto a lutar com o bando até a morte

e começou por construir o seu próprio inferno amargo nos domínios dos Penhascos

Longínquos. E aqui está ele hoje, construindo o seu próprio paraíso em vez do inferno, e

guiando todo o bando nessa direção."

Francisco virou-se para o seu instrutor e houve um momento de medo no seu olhar.

— EU, guiando-os? Que você quer dizer com isso? Você é o instrutor. Não pode

ir-se embora.

— Acha que não? Você não julga que possa haver outros bandos, outras

Franciscos, que necessitem mais de um instrutor do que este que se encaminha para a luz?

— EU? Fernão, eu sou uma simples gaivota e você é...

— ... o próprio filho da Grande Gaivota, suponho? — Fernão suspirou e olhou o

mar. — Você já não precisa de mim. Precisa continuar descobrindo, pouco a pouco, todos

os dias, o verdadeiro e ilimitado Francisco Gaivota. É ele o seu melhor instrutor. Você

precisa compreendê-lo e treiná-lo.

Um momento depois, o corpo de Fernão começou a estremecer no ar, a ficar

brilhante e a tornar-se transparente.

— Não os deixe espalhar boatos a meu respeito ou fazerem de mim um deus. De

acordo, Chico? Eu sou uma gaivota que gosta de voar, talvez...

— FERNÃO!

— Pobre Chico! Não creia no que os seus olhos lhe dizem. Todo que mostram é

limitação. Olhe com o entendimento, descubra o que você já sabe e verá como voar.

O brilho extinguiu-se. Fernão Gaivota desapareceu no ar.

Passado um bocado, Francisco Gaivota arrastou-se para o céu e encontrou-se face

 

 

a face com um novo grupo de alunos, desejosos de ter a sua primeira lição.

— Para começar — disse Francisco pesadamente —, têm de compreender que uma

gaivota é uma ilimitada idéia de liberdade, uma imagem da Grande Gaivota, e todo o

corpo de vocês, da ponta de uma asa à ponta da outra, não é mais do que o próprio

pensamento de vocês.

As jovens gaivotas olharam-no interrogativamente. "Isso não parece uma regra do

'loop'!", pensaram.

Francisco suspirou e recomeçou.

— Hum... muito bem... Vamos começar com o vôo planado — disse-lhes,

observando-os com ar de crítica.

Mas, ao dizer isso, compreendeu de súbito que o seu amigo não fora mais divino

do que ele próprio.

"Não há limites, Fernão!?", pensou. "Bem, então não está longe o dia em que

aparecerei na sua praia e lhe mostrarei uma ou duas coisas acerca de vôo!"

E embora tentasse mostrar-se severo com os seus alunos, Francisco Gaivota viu-os

de repente como eram realmente, por um momento, e, mais do que gostou, amou o que

viu. "Não há limites, Fernão?", pensou, e sorriu. A sua corrida para a aprendizagem

acabava de começar.

FIM