Richard Bach Ilusões, As Aventuras de um missias i
Richard Bach Ilusões, As Aventuras de um missias i
Ilusões
As Aventuras de um Messias
Indeciso
Richard Bach
Autor de Fernão Capelo Gaivota
Desenho e foto da capa
JOAN STOLIAR
Tradução
LUZIA MACHADO DA COSTA
Digitalização
ARLINDO_SAN
Título original
ILLUSIONS
U ma pergunta que me foi feita mais de uma vez, depois de
ser publicado Fernão Capelo Gaivota: “O que você vai
escrever agora, Richard? Depois de Fernão Capelo... o
quê?”
Respondia então que não era obrigado a escrever mais nada, nem
uma palavra; todos os meus livros juntos diziam tudo quanto eu
gostaria de dizer. Depois de ter passado fome por algum tempo, ter
vendido o carro e esse tipo de coisas, era divertido não ter de
trabalhar até a meia-noite.
Não obstante, todos os verões eu ia em meu antigo bimotor para
os mares das campinas verdejantes do Meio-Oeste dos Estados
Unidos, levava passageiros para passeios de três dólares e começava a
sentir de novo uma velha tensão - ainda havia alguma coisa a dizer.
Não gosto nada de escrever. Se conseguir dar as costas a uma
idéia, deixando-a miando lá fora no escuro, sem lhe abrir a porta,
então nem pego no lápis.
Mas de vez em quando, em vez do miado, ouço uma grande
explosão, como de dinamite, de cacos de vidro e tijolos na parede da
frente; então, alguém passa por sobre os escombros e me agarra pelo
pescoço, dizendo calmamente: “Não o largarei até que me ponha no
papel, em palavras.” Foi assim que vim a conhecer Ilusões.
No Meio Oeste, eu ficava deitado de costas, treinando o método
mental de fazer as nuvens desaparecerem, e não conseguia parar de
pensar na história...
E se aparecesse alguém que fosse realmente bom nesse negócio,
que me pudesse ensinar como o meu mundo funciona e como controlálo?
E se pudesse conhecer um ser superadiantado... e se um Sidarta ou
um Jesus chegasse aos nossos dias, com poder sobre as ilusões do
mundo porque conhecia a realidade por trás delas? E se pudesse
conhecê-lo pessoalmente, se ele estivesse pilotando um bimotor e
pousasse na mesma campina em que eu estivesse? O que ele diria,
como seria ele?
Talvez não se parecesse com o Messias nas páginas manchadas
de óleo e com cheiro de capim de meu diário; talvez não dissesse nada
do que aparece neste livro. Mas, por outro lado, as coisas que me
contou: que magnetizamos para nossas vidas tudo o que encerrarmos
em nosso pensamento, por exemplo - se isso é verdade, então, de algum
modo, consegui chegar a este momento por algum motivo, e você
também. Talvez não seja coincidência o fato de você estar com este
livro na mão; pode ser que haja nessas aventuras alguma coisa que o
fez vir até aqui. Prefiro pensar assim. E prefiro pensar que o meu
Messias está postado lá fora em alguma outra dimensão, nada
ficcional, olhando para nós dois, e rindo-se por estar acontecendo
exatamente o que planejáramos que acontecesse.
(Trecho manuscrito – N. do digitalizador)
1. Houve um Mestre que
veio à Terra, nascido na
terra santa de Indiana,
criado nos montes místicos
depois de Fort Wayne.
2. O Mestre aprendeu sobre
este mundo nas escolas
públicas de Indiana e,
ao crescer, em seu ofício
de mecânico de automóveis.
3. Mas o Mestre conhecia
outras terras e outras
escolas, de outras vidas
que tinha vivido.
Lembrava-se disso, e,
lembrando-se, tornou-se
sábio e forte, de modo
que outros viram a sua
força e o procuraram,
em busca de conselhos.
4. O Mestre acreditava que
tinha o poder de ajudar
a si mesmo e a toda a
humanidade, e, acreditando,
assim era para ele, de
modo que outros viram
o seu poder e o procuraram
para se curar de seus
problemas e suas doenças.
5. O Mestre acreditava que
todo homem deve
considerar-se filho de
Deus, e, acreditando,
assim era, e as oficinas
e garagens em que
trabalhava se apinhavam
com aqueles que procuravam
a sua sabedoria e o
contato com ele, e as ruas
de fora ficavam cheias
daqueles que desejavam
apenas que a sombra de
sua passagem pudesse
cair sobre eles, modificando
suas vidas.
6. Aconteceu, por causa da
multidão, que os vários
contraMestres e chefes
de oficina pediram ao
Mestre que largasse as
ferramentas e seguisse
o seu caminho, pois havia
tanta gente em volta dele
que nem ele nem os outros
mecânicos conseguiam
trabalhar nos automóveis.
7. E assim foi que ele seguiu
para os campos, e os que
iam com ele começaram a
¬hama-lo de o Messias, o
que operava milagres, e,
como eles acreditavam,
assim era.
8. Se sobreviesse uma
tempestade, enquanto ele
falava, nem uma gota
tocava a cabeça de seus
ouvintes, o último da
multidão ouvia suas
palavras tão claramente
quanto o primeiro, mesmo
que houvesse raios ou
trovões no céu. E sempre
lhes falava em parábolas.
9. E lhes disse: “Dentro de
nós está o poder de nosso
consentimento para a
saúde e a doença, a
riqueza e a pobreza, a
liberdade e a escravidão.
Somos nós que controlamos
isso, e não os outros.”
10. Um moleiro disse: “Essas
palavras são fáceis em
tua boca, Mestre, pois és
guiado como não somos
nós, e não precisas
trabalhar como trabalhamos.
O homem tem de trabalhar
Para ganhar a vida
Neste mundo.”
11. O Mestre respondeu:
“Uma vez havia uma aldeia
de criaturas no fundo do
leito de um grande rio
cristalino.
12. “A corrente do rio passava
silenciosamente por cima
de todos eles, jovens e
velhos, ricos e pobres,
bons e maus, a corrente
seguindo o seu caminho,
só conhecendo o seu próprio
ser cristalino.
13. “Cada criatura, a seu modo,
se agarrava fortemente às
plantas e pedras do leito
do rio, pois agarrar-se era
o seu modo de vida, e
resistir à corrente era o
que cada um tinha
aprendido desde que nascera.
14. “Mas uma das criaturas
disse, por fim: ‘Estou
farto de me agarrar.
Embora não possa ver
com meus próprios olhos,
espero que a corrente
saiba para onde está indo.
Vou soltar-me e deixar
que ela me leve para onde
quiser. Se me agarrar,
morrerei de tédio.’
15. “As outras criaturas riram-se
e disseram: ‘Louco! Se
você se soltar, essa corrente
que você adora o lançará
despedaçado sobre as
pedras e sua morte será
mais rápida do que a
causada pelo tédio!’
16. Mas aquele não lhes deu
ouvidos e, respirando
fundo, soltou-se, e
imediatamente foi lançado
e despedaçado pela
corrente sobre as pedras!
17. “Mas com o tempo, como
ele se recusasse a tornar
a se agarrar, a corrente o
levantou, livrando-o do
fundo, e ele não se machucou
nem se magoou mais.
18. “E as criaturas mais
abaixo no rio, para quem
ele era um estranho,
exclamaram: ‘Vejam, um
milagre! Uma criatura
como nós, e no entanto
voa! Vejam, é o Messias
que chegou para nos
salvar!’
19. “E aquele que foi carregado
pela corrente disse: ‘Não
sou mais Messias do que
vocês. O rio tem prazer
em nos erguer à liberdade,
se ousarmos nos soltar. O nosso
verdadeiro trabalho é essa
viagem, essa aventura.’
20. “No entanto, cada vez
exclamavam mais
‘Salvador!’, enquanto se
agarravam às pedras;
quando tornaram a olhar,
ele se fora, e eles ficaram
sozinhos, inventando
lendas sobre um Salvador.”
21. E quando viu que a
multidão cada vez o
seguia mais de perto,
mais terrível do
que nunca, quando viu
que insistiam para que
ele os curasse sem
descanso, e sempre os
alimentasse com seus
milagres, e aprendesse
por eles e vivesse suas
vidas, foi sozinho para o
topo de um morro e rezou.
22. E disse em seu íntimo,
Ser Infinito Radioso,
Se for a tua vontade,
deixa que esta taça
passe de minhas mãos,
deixa-me pôr de lado
esta tarefa impossível.
Não posso viver a vida
de uma outra alma, no
entanto dez mil me
imploram a vida. Sinto
ter permitido que tudo
isso acontecesse. Se for
a tua vontade, deixa-me
voltar aos motores e às
ferramentas e viver como
os outros homens.
23. E uma voz lhe falou no
topo do morro, uma vez
que não era de homem
nem de mulher, nem
forte nem fraca, uma
voz infinitamente
bondosa, que lhe disse:
“Não a minha vontade,
mas a tua seja feita.
Pois o que for a tua
vontade será a minha
vontade para ti. Segue
o teu caminho e sê feliz
na terra.”
24. E ao ouvir aquilo o
Mestre alegrou-se, deu
graças e desceu de cima
do morro cantarolando
uma cançãozinha de
mecânico. E quando a
turba o atormentava com
seus males, implorando que
os curasse, aprendesse por
eles, os alimentasse
constantemente com sua
compreensão e os
divertisse sempre com suas
maravilhas, ele sorriu para
a multidão e disse
amavelmente: “Eu desisto.”
25. Por um momento a
multidão ficou muda de
espanto.
26. E ele lhes falou: “Se um
homem dissesse a Deus
que o que queria mais
que tudo era auxiliar o
mundo sofredor, fosse
qual fosse o preço para
si, e Deus lhe respondesse
o que devia fazer, o homem
deveria fazer o que lhe
era ordenado?”
27. “Pois claro, Mestre!”
exclamaram. “Devia ser
para ele um prazer
sofrer as torturas do próprio
inferno se Deus lha
pedisse!”
28. “Não importa quais fossem
essas torturas, nem a
dificuldade da tarefa?”
29. “Seria uma honra ser
enforcado, uma glória ser
pregado a uma árvore e
queimado, se fosse isso
que Deus pedisse”,
disseram eles.
30. “E o que fariam vocês,
perguntou o Mestre à
multidão, se Deus lhes
falasse diretamente, em
pessoa, e dissesse:
‘ORDENO QUE SEJAS
FELIZ NO MUNDO,
ENQUANTO VIVERES.’
O que fariam então?”
31. E a multidão calou-se
e nem uma voz ou som
foi ouvido sobre os
morros e pelos vales.
32. E o Mestre disse: “No
caminho de nossa felicidade
encontraremos o conhecimento
para o qual escolhemos
esta vida. É assim que
aprendi hoje e prefiro
deixa-los agora para
seguirem o seu caminho.”
33. E seguiu o seu caminho
no meio da multidão e
voltou ao mundo dos
homens e dos motores.
(Fim do trecho manuscrito – N. do Digitalizador)
F oi nos meados do verão que conheci Donald Shimoda. Em quatro
anos de vôos, nunca encontrara outro piloto no mesmo tipo de serviço
que faço: voando conforme o vento, de cidade em cidade, cobrando
três dólares por dez minutos de passeio num velho biplano.
Mas um dia, bem ao norte de Ferris, Illinois, olhei da cabina de meu Fleet e
lá estava um velho Travel Air 4.000, dourado e branco, pousado calmamente no
capim esmeralda e limão.
Levo uma vida livre, mas às vezes me sinto meio solitário. Vi o biplano ali,
pensei a respeito alguns segundos e resolvi que não faria mal algum dar um pulo
até lá. Passei para a marcha lenta, numa glissada com todo o leme, e o Fleet e eu
fomos caindo de lado para o solo. O vento na fiação, aquele som suave e
agradável, o poque-poque lento do velho motor rodando a hélice com preguiça.
Óculos colocados sobre a cabeça, para não impedirem uma perfeita visão da
aterrissagem. Os pés de milho como uma floresta de folhagem verde passando
embaixo, o piscar de uma cerca e depois o feno recém-cortado, até onde a vista
alcançava. Manche e leme endireitando a glissada, uma boa aproximação sobre o
solo, o feno roçando os pneus e depois o conhecido e calmo ronco da terra dura
sob as rodas, mais devagar, mais devagar e depois um surto repentino de barulho
e força para taxiar para junto do outro avião e parar. Manete em posição de
marcha lenta, desligando, o claque-claque baixinho da hélice parando no sossego
total de julho.
O piloto do Travel Air estava sentado no feno, encostado na roda esquerda
do seu avião, e ficou me olhando.
Durante meio minuto também olhei-o, observando o mistério da sua calma.
Não teria ficado tão calmo ao ver outro avião pousar no campo em que eu estava,
parando a apenas dez metros de mim. Meneei a cabeça, gostando dele sem saber
por quê.
- Você parece solitário - disse eu, através da distância que nos separava.
- E você também.
- Não quero importuná-lo. Se sou demais, vou embora.
- Não. Estava à sua espera. Sorri, ao ouvir aquilo.
- Desculpe o atraso.
- Não tem importância.
Tirei o capacete e os óculos, saltei da cabina. É uma sensação confortante,
depois que a gente passa algumas horas no Fleet.
- Espero que não se importe de comer presunto com queijo - disse ele. -
Presunto com queijo e talvez uma formiga.
Não houve aperto de mãos, nem apresentação de espécie alguma.
Não era um homem grande. Cabelos até os ombros, mais negros do que a
borracha do pneu em que estava encostado. Olhos escuros como os de uma águia,
do tipo que aprecio num amigo, e que em outras pessoas me deixam muito
intranqüilo. Pensei que aquele camarada poderia ser um mestre de caratê, a
caminho de uma nova demonstração em algum lugar.
Aceitei o sanduíche e uma caneca de água de uma garrafa térmica.
- Quem é você, afinal? - perguntei. - Há anos que venho fazendo esses vôos
de passageiros e nunca vi outro piloto desses nos campos.
- Não sobra muita coisa que eu saiba fazer - disse ele, bastante contente. Um
pouco de mecânica, trabalho de soldador, dirigir tratores; se ficar muito
tempo num lugar, arranjo problemas. De modo que adotei o avião e agora estou
no negócio de piloto ambulante.
- Que tipo de trator?
Sou louco por tratores diesel desde criança.
-D-Oito, D-Nove. Só por pouco tempo, em Ohio.
-D-Nove! Grandes como uma casa! Mudanças duplas. É verdade que
podem mover montanhas?- Há meios melhores de mover montanhas - disse ele,
com um sorriso que durou talvez um décimo de segundo.
Encostei-me um instante contra a asa inferior do avião do homem e fitei-o.
Uma ilusão de ótica... era difícil olhar de perto para ele. Como se houvesse uma
luz em volta da sua cabeça, esmaecendo num prateado suave, suave.
- Há alguma coisa? - perguntou.
- Que tipo de problemas você tinha?
- Ah, nada demais. É só que gosto de ficar me mexendo, assim como você.
Peguei o sanduíche e caminhei em volta do seu avião. Era um motor de
1928 ou 1929 e completamente sem um arranhão. As fábricas não fabricam
aviões novos como aquele, parado ali no feno. Vinte camadas de verniz de
butirato aplicado a mão. pelo menos, a tinta como um espelho, ajustada na
armação de madeira do aparelho. A palavra Don, folheada a ouro antigo, inglês,
sob a borda da cabina; o certificado no estojo de mapas dizia D. W. Shimoda. Os
instrumentos de vôo, retirados da embalagem, eram de 1928. O manche e a barra
do leme eram de carvalho envernizado; manete, mistura e avanço de centelha à
esquerda. Hoje não se vê mais avanço de centelha nem nas antiguidades mais
bem restauradas. Nenhum arranhão em lugar algum, nenhum remendo na tela,
nem uma única mancha de óleo da capota. Não se via uma só haste de palha no
chão da cabina, como se o aparelho não tivesse voado realmente, e se tivesse
materializado naquele lugar por alguma aberração do tempo de meio século.
Senti um frio de arrepiar na nuca.- Há quanto tempo está carregando passageiros?
- perguntei-lhe do outro lado do avião.
- Há mais ou menos um mês, cinco semanas...
Estava mentindo. Depois de cinco semanas nos campos, seja você quem for,
obrigatoriamente terá sujeira e óleo no avião e palha no chão da cabina. Mas
aquele aparelho... sem óleo no pára-brisa, sem manchas de feno nas bordas da
frente das asas e da cauda, ou insetos esmagados na hélice. Isso não é possível
para um avião que voe pelo Illinois no verão. Examinei o Travel Air por mais
uns cinco minutos, voltei e me sentei no feno, debaixo da asa, defronte do piloto.
Não estava com medo, continuava a gostar do sujeito, mas havia alguma coisa
errada.
- Por que não me conta a verdade?
- Eu lhe disse a verdade, Richard - falou.
Meu nome também estava pintado no meu avião.
- Pode uma pessoa transportar passageiros durante um mês num Travel Air
sem que o avião fique com um pouco de óleo e poeira, meu amigo? Um remendo
na tela? E, pelo amor de Deus, palha no chão?
Sorriu calmamente.
- Há certas coisas que você não sabe.
Naquele momento ele era uma estranha pessoa de outro planeta. Acreditava
no que ele dizia, mas não conseguia explicar o seu avião perfeito parado ali no
campo no verão.
- Isso é verdade. Mas algum dia hei de saber de tudo. E então você poderá
ficar com o meu avião, Donald, pois não precisarei dele para voar.
Ele me olhou, interessado, e ergueu as sobrancelhas pretas.
- Ah, é? Conte-me.
Fiquei encantado. Alguém queria ouvir a minha teoria!
- Durante muito tempo as pessoas não podiam voar, creio, porque achavam
que isto não era possível; assim, naturalmente, não aprenderam nem os
rudimentos da aerodinâmica. Quero crer que existe algum outro princípio em
algum outro lugar: não precisamos de aviões para voar, para atravessar paredes,
ou para ir a outros planetas. Podemos aprender a fazer isso sem máquinas em
qualquer lugar. Se o quisermos.
Ele deu um meio sorriso, sério, e moveu a cabeça.
- E acha que aprenderá o que deseja carregando passageiros por três
dólares.
- Os únicos conhecimentos que me interessam são os que aprendi por mim,
fazendo o que quero fazer. Sei que não existe, mas se existisse na terra uma
criatura que me pudesse ensinar o que quero saber mais que meu avião e o céu,
iria já procurá-la.
Os olhos escuros me olharam sérios.
- Você não acha que está sendo orientado, se quer mesmo aprender isso?
- Sim, sendo orientado. Mas todos não o são? Sempre tive a impressão de
que havia alguma coisa me vigiando.
- E você acha que será levado a um mestre que poderá lhe ajudar.
- Se o mestre por acaso não for eu, sim.
- Talvez seja assim que aconteça - disse ele.
Um furgão moderno e novo veio vindo pela estrada para junto de nós.
levantando uma névoa marrom de poeira, e parou junto ao campo. A porta abriu-
se e saltaram um homem e uma garota com cerca de dez anos. A poeira
continuava no ar e tudo estava parado.
- Você faz passeios? - perguntou o homem.
O campo fora descoberto por Donald Shimoda, fiquei calado.
- Sim, senhor - disse ele, animado. - Está com vontade de voar, hoje?
- Se estivesse, você faria acrobacias, daria cambalhotas comigo lá em cima?
Os olhos do homem brilhavam, querendo ver se nós o conhecíamos por trás
de sua conversa de caipira.
- Faço se você quiser, não faço se não quiser.
- E imagino que cobre uma fortuna.
- Três dólares em dinheiro por dez minutos de vôo, senhor. São mais ou
menos 33 centavos por minuto. E vale isso, é o que me diz a maior parte das
pessoas.
Era uma sensação estranha, de espectador, ficar ali sentado à toa, ouvindo
aquele camarada fazer negócio. Gostei de sua maneira de falar com calma. Já
estava tão acostumado ao meu jeito de arranjar passageiros (“Garanto que é dez
graus mais fresco lá em cima, pessoal! Vamos subir para onde só voam os
passarinhos e os anjos! Tudo isso apenas por três dólares, uma dúzia de moedas
de sua bolsa ou bolso...”), que tinha esquecido que podia haver outras maneiras.
Há uma tensão quando a gente voa e vende os vôos sozinho. Estava
acostumado com aquilo, mas se não transportasse os passageiros, não comia.
Então, já que podia ficar sentado sem depender do resultado para o meu jantar,
descansei, uma vez na vida, e fiquei olhando.
A pequena também ficou olhando. Loura, de olhos castanhos, cara solene,
estava ali porque o avô estava. Não queria voar.
Na maioria das vezes é o contrário, os garotos ansiosos e os velhos
cautelosos, mas a gente acaba encontrando um sentido nisso, quando se trata do
ganha-pão; sabia que aquela pequena não ia voar conosco, nem que esperássemos
o verão inteiro.
- Qual dos senhores...? - perguntou o homem. Shimoda serviu-se de uma
caneca de água.
- Richard os levará. Ainda estou na minha hora de almoço. A não ser que
prefiram esperar.
- Não, senhor. Estou pronto para ir. Podemos voar por cima de minha
fazenda?
- Claro - disse eu. - Basta o senhor mostrar para onde quer ir.
Tirei o meu colchonete, a sacola de ferramentas e as panelas do assento da
frente da cabina do Fleet, ajudei o homem a sentar-se no lugar dos passageiros e
apertei seu cinto de segurança. Depois fui para a cabina de trás e apertei o meu
cinto.
- Dê um impulso, sim, Don?
-Tá.
Trazendo a caneca consigo ele ficou ali junto às hélices.
- O que é que você quer? - perguntou.
- Esquentar e freios. Impulsione devagar. Ela se soltará de sua mão assim
que começar a girar.
Toda vez que alguém tenta dar impulso à hélice do Fleet, o faz rápido
demais, e por motivos complexos o motor não pega. Mas aquele homem a
impulsionou bem devagar, como se tivesse feito aquilo a vida toda. A mola de
impulso estalou, ás fagulhas acenderam-se nos cilindros e o velho motor
começou a funcionar com toda a facilidade. Ele voltou para o seu avião, sentou-
se e começou a conversar com a pequena.
Com um estouro de força bruta de HP e palhas esvoaçantes, o Fleet estava
no ar, subindo 30m (se o motor enguiçar agora, pousamos no meio do milho),
150m (agora, podemos virar e pousar no meio do feno... agora, o pasto de gado a
oeste), 240m; nivelamos, acompanhando o dedo que o homem apontava pelo
vento, a sudoeste.
Depois de três minutos no ar, passamos por um sítio, com cocheiras da cor
de brasas e uma casa de marfim num mar de grama. Uma horta nos fundos, para
a comida: milho verde, alface e tomates plantados.
O homem na cabina da frente olhou para baixo enquanto circundávamos a
casa enquadrada entre as asas e os cabos do Fleet.
Apareceu uma mulher na varanda, com um avental branco por cima do
vestido azul, que acenou. O homem lhe respondeu. Mais tarde comentariam que
se viram tão bem através do céu.
Por fim ele me olhou, meneando a cabeça, como para dizer que bastava,
obrigado, e que agora podíamos voltar.
Dei uma volta larga em volta de Ferris, para o pessoal saber que havia os
vôos, e desci em espiral pelo campo de feno, para mostrar bem onde era o
negócio. Quando dei a volta para pousar, inclinando-me fortemente sobre o
milho, o Travel Air decolou e virou logo para a fazenda que tínhamos acabado de
deixar.
Uma vez voei com um grupo de exibição de cinco aparelhos, e por um
momento tive aquela sensação de atividade... um avião largando vôo com
passageiros, enquanto outro pousa. Tocamos a terra com um ronco suave e
rolamos até a extremidade do feno, junto à estrada.
O motor parou, o homem soltou seu cinto de segurança e eu o ajudei a
saltar. Pegou uma carteira do macacão e contou as notas de dólar, sacudindo a
cabeça.
- Foi um passeio e tanto, filho..
- Achamos que sim. Estamos vendendo um bom produto.
- É o seu amigo que está fazendo as vendas!
- Ah, é?
- Se é! O seu amigo conseguiria vender cinzas ao diabo, posso apostar. Não
poderia?
- Por que diz isso?
- A garota, claro. Um passeio de avião para a minha neta Sarah!
Enquanto falava, olhava para o Travel Air, como um inseto prateado
distante dando a volta à casa da fazenda. Falava como o homem calmo que nota
que o galho seco no quintal acaba de dar brotos e maçãs maduras.
- Desde que nasceu, tem pavor de lugares altos. Grita. Apavorada. Era mais
fácil Sarah mexer com marimbondos com as mãos nuas do que trepar numa
árvore. Tem medo de subir a escada para o sótão, não subiria lá nem que
houvesse um dilúvio no quintal. A pequena é uma maravilha com máquinas, não
é má com os animais, mas as alturas lhe causam horror! E lá está ela, no ar.
Continuou falando sobre aquilo e outras ocasiões especiais: lembrava-se de
quando os pilotos ambulantes iam a Galesburg, anos antes, e a Monmouth,
voando em biplanos como nós, mas fazendo tudo quanto era acrobacia maluca
com eles.
Fiquei olhando o Travel Air distante crescer, espiralar sobre o campo numa
inclinação maior do que eu jamais faria com uma pequena que tivesse fobia das
alturas, passar por cima do milho e da cerca e tocar o feno num pouso de três
pontos que era um assombro. Donald Shimoda devia voar havia muito tempo,
para conseguir pousar com um Travel Air daquele jeito.
O avião rolou e parou ao nosso lado, sem precisar de mais força; a hélice foi
parando aos poucos, suavemente. Olhei bem de perto. Não havia insetos na
hélice. Não havia uma única mosca morta naquela lâmina de dois metros e meio.
Apressei-me a ajudar, soltei o cinto de segurança da menina, abri a
portinhola da cabina da frente e lhe mostrei onde devia pisar para que seu pé não
rompesse a tela da asa.
- Então, que tal, gostou? - perguntei.
Ela nem me ouviu falar.
- Vovô, não tenho medo! Não fiquei com medo, palavra! A casa parecia um
brinquedinho e mamãe me acenou e Don disse que, só porque uma vez eu caí e
morri, isso não é motivo para ter medo agora! Vou ser piloto, vovô. Vou ter um
avião, trabalhar no motor e voar para toda parte e levar passageiros! Posso fazer
isso?
Shimoda sorriu para o homem e deu de ombros.
- Ele lhe disse que você ia ser piloto, foi, Sarah?
- Não, mas vou. Já sou boa com os motores, você sabe disso!
- Bem, você pode conversar a respeito com sua mãe. Está na hora de ir para
casa.
Os dois nos agradeceram e foram, um caminhando e a outra correndo para o
furgão, ambos modificados pelo que acontecera no campo e no céu.
Chegaram dois carros, e depois mais outro, e tivemos um movimento
grande no meio do dia, de gente que queria ver Ferris lá de cima. Fizemos uns 12
ou 13 vôos, o mais rápido que podíamos, e depois disso fui até o posto de
gasolina da cidade para arranjar combustível para o Fleet. Depois, alguns
passageiros, mais alguns, e já era de tarde; voamos sem parar até o pôr-do-sol.
Uma placa comunicava: População 200 habitantes, e quando escureceu eu
achava que os tínhamos levado todos para passear, bem como alguns de fora da
cidade.
Naquela atividade esqueci de perguntar a respeito de Sarah e o que Don lhe
havia dito, se ele tinha inventado a história ou se achava que fosse verdade, sobre
morrer. E de vez em quando ficava examinando o seu avião atentamente,
enquanto os passageiros se revezavam. Não havia uma só marca, uma gota de
óleo em lugar algum: era como se voasse fugindo dos insetos que eu tinha de
limpar de meu pára-brisa a cada duas horas.
Só restava um pouquinho de luz no céu quando paramos. Quando pus as
espigas de milho em meu for-ninho de metal, cobrindo-as com carvão, e acendi o
fogo, já estava bem escuro, o fogo fazendo refletir as cores dos aviões e da palha
dourada em volta de nós.
Espiei na caixa de mantimentos.
- Pode ser sopa, cozido ou espaguete - disse eu - Ou pêras ou pêssegos.
Quer uns pêssegos quentes?
- Não faz diferença - disse ele, com calma. - Qualquer coisa, ou nada.
- Homem, não está com fome? Foi um dia movimentado!
- Você não me deu muita vontade de comer, a não ser que o cozido seja
bom.
Abri a lata de cozido com a minha Faca de Fuga e Salvamento de
funcionário da Swissair, fiz o mesmo com o espaguete, e coloquei as latas sobre
o fogo.
Meus bolsos estavam cheios de dinheiro... era uma das horas mais
agradáveis do dia, para mim. Tirei as notas e contei, sem me preocupar em
dobrá-las direito. Eram 147 dólares e fiz a conta de cabeça, o que para mim não é
fácil.
- Isso... isso... vamos ver... quatro e vão dois... 49 vôos hoje! Um dia de
mais de cem dólares, Don, só eu e o Fleet! Você deve ter feito 200, fácil... Voa
em geral com dois passageiros?
- Em geral - disse ele.
- Quanto a esse professor que você anda procurando - disse ele.
- Não estou procurando professor algum - disse eu. - Estou contando
dinheiro! Posso viver uma semana disso, pode chover sem parar uma semana
inteira, sem eu voar!
Ele olhou para mim e sorriu.
- Depois que você acabar de nadar em seu dinheiro - disse - pode me passar
o cozido?
3
Amontoados, massas, multidões de pessoas, torrentes de humanidade
se despejando sobre um homem no meio de todos. Depois o povo se
transformou em um oceano capaz de afogar o homem; no entanto,
ele caminhou sobre o oceano, assobiando, e desapareceu. O oceano de águas se
metamorfoseou em um oceano de capim. Um Travel Air 4.000, branco e
dourado, pousou no capim; o piloto saltou da cabina e pendurou um cartaz de
pano: VÔO - $3 -VÔO.
Eram três horas da madrugada quando acordei do sonho, lembrando de tudo
e, por algum motivo, contente com aquilo. Abri os olhos para ver, ao luar, o
grande Travel Air parado ao lado do Fleet, Shimoda estava sentado sobre seu
colchonete como da primeira vez que o vi, encostado à roda esquerda de seu
aeroplano. Não o via claramente, mas sabia que estava ali.
- Olá, Richard - disse ele, quieto, no escuro. - Isso lhe conta o que se passa?
- O que me conta? - perguntei, confuso.
Eu ainda estava recordando e não pensei me surpreender ao ver que ele
estaria acordado.
- O seu sonho. O camarada, o povo e o aeroplano - disse ele, com paciência.
- Estava curioso a meu respeito, de modo que agora já sabe, OK?. Havia os
noticiários: Donald Shimoda, que começava a ser chamado de o Messias
Mecânico, a Encarnação Americana, e que um dia desapareceu diante de 25 mil
testemunhas oculares.
Lembrei-me daquilo, geralmente; tinha lido a notícia numa banca de jornais
de uma cidadezinha do Ohio, pois estava na primeira página.
- Donald Shimoda?
- Às suas ordens - disse ele. - Agora já sabe, portanto não precisa mais se
intrigar comigo. Vá dormir de novo.
Pensei naquilo por muito tempo, antes de dormir.
- Permitem que você... eu não achava... você com um trabalho desses, o
Messias, supõe-se que você vá salvar o mundo, não é? Não sabia que o Messias
podia desistir assim tão simplesmente.
Sentei-me na capota do Fleet e fiquei olhando para o meu estranho amigo.
- Jogue uma chave de 9/16, por favor, Don.
Ele procurou no saco de ferramentas e me atirou a chave. Como acontecera
com as outras ferramentas naquela manhã, esta também diminuiu de velocidade e
parou, flutuando no ar, a meio metro de mim. Mas no momento em que a toquei,
ficou pesada em minha mão; uma chave de avião, comum, de cromo e vanádio.
Bem, nem tão comum. Desde que uma 7/8 barata quebrou em minha mão, tenho
comprado as melhores ferramentas que o homem pode ter... Aquela por acaso era
uma Snap-On, que, como sabe qualquer mecânico, não é uma chave comum.
Parece até que é feita de ouro, pelo preço que custa, mas é uma alegria para as
mãos e não quebra nunca, por mais que você a use.
- Claro que você pode desistir! Pode largar tudo o que quiser. Pode deixar
de respirar, se desejar.
Ele fez flutuar uma chave de fenda Phillips, para divertir-se.
- Assim, desistir de ser o Messias, parecer um tanto na defensiva, talvez seja
porque ainda estou um pouco na defensiva. Melhor isso do que continuar com o
trabalho e detestá-lo. Um bom Messias não odeia nada e é livre para seguir
qualquer caminho que deseje trilhar. Bem, isso se aplica a todo mundo, claro.
Somos todos filhos de Deus, ou filhos do Ser, ou idéias da Mente, ou seja como
for que você queira chamar a isso.
Trabalhei para apertar as porcas de base dos cilindros do motor Kinner.
Uma boa máquina, o velho B-5, mas essas porcas tendem a soltar-se depois de
umas cem horas de vôo, mais ou menos, e é conveniente a gente estar sempre
prevenido. E, com efeito, a primeira a que apliquei a chave girou um quarto de
volta, e fiquei contente por ter tido a previdência de verificá-las todas naquela
manhã, antes de levar mais passageiros.
- Bem, sim, Don, mas parece que ser Messias deveria ser diferente de outros
trabalhos, sabe? Jesus voltando a martelar os pregos, para ganhar a vida? Talvez
apenas pareça estranho.
Ele pensou naquilo, querendo entender o meu ponto de vista.
- Não concordo com o que você diz. O estranho nisso tudo é ele não ter
desistido quando começaram a chamá-lo de Salvador. Em vez de se retirar diante
dessa má notícia, ele tentou usar a lógica: “OK, sou o filho de Deus, mas não
somos todos filhos de Deus? Sou o Salvador, mas vocês também são! As coisas
que faço, vocês podem fazer! Qualquer pessoa de bom senso compreende isso.”
Estava quente ali na capota, mas me sentia como se não estivesse
trabalhando. Quanto mais quero fazer uma coisa, menos chamo a isso de
trabalho. Era bom saber que estava impedindo que os cilindros voassem do
motor.
- Diga que você quer outra chave - disse ele.
-Não quero outra chave. E acontece que estou tão adiantado,
espiritualmente, que considero esses seus truques como simples brincadeiras de
salão, Shimoda, de uma alma moderadamente evoluída. Ou talvez um
hipnotizador principiante.
- Um hipnotizador! Rapaz, você está ficando quente! Mas é melhor ser
hipnotizador do que Messias. Que trabalho cacete! Por que é que eu não sabia
que ia ser um trabalho cacete?
- Você sabia, sim - disse eu, astutamente. Ele apenas riu-se.
Você já pensou, Don, que pode não ser assim tão fácil desistir, afinal! Que
você pode não se ambientar à vida de um ser humano normal?
Não se riu desta vez.
- Você tem razão - disse ele, e passou os dedos pelos cabelos pretos. - Se eu
passasse mais de um ou dois dias em algum lugar, as pessoas saberiam que eu era
algo de estranho. Encoste-se na minha manga, você se cura de um câncer fatal, e
no fim de uma semana lá estou eu de volta no meio de uma multidão. Este
aeroplano me mantém em movimento, e ninguém sabe para onde vou em
seguida, o que me agrada.
- Você vai ter mais dificuldades do que pensa, Don.
- Ah, é?
- É, todo o movimento dos nossos tempos é do material para o espiritual...
embora seja lento, ainda assim é um movimento bem grande. Não creio que o
mundo vá deixá-lo em paz.
- Não sou eu que eles querem, são os milagres! E isso posso ensinar a outro;
ele que seja o Messias. Não lhe direi que é um trabalho cacete. E, além disso,
“não existe nenhum problema que seja tão grande que não se possa fugir dele’’.
Desci da capota e comecei a apertar as porcas dos cilindros três e quatro.
Algumas estavam soltas.
- Você está citando os livros de quadrinhos, me parece:
- Citarei a verdade onde a encontrar, obrigado.
- Você não pode fugir, Don! E se eu começar a adorá-lo neste minuto? E se
eu me cansar de trabalhar no motor e começar a lhe implorar que o conserte para
mim? Olhe, eu lhe darei todos os centavos que ganhar desde agora até o pôr-dosol
se me ensinar a flutuar no ar! Se você não fizer isso, então saberei que tenho
de começar a rezar para você, o Santo Enviado para Aliviar o meu Fardo.
Limitou-se a sorrir. Acho que ainda não compreendera que não poderia
fugir. Como eu podia saber disso, se ele não o sabia?
- Você teve o programa completo, como a gente vê nos filmes na índia? As
multidões nas ruas, bilhões de mãos o tocando, flores e incenso, plataformas
douradas com tapeçarias prateadas para você pisar enquanto falava?
- Não. Antes mesmo de pedir esse trabalho, sabia que não suportaria isso.
Por isso escolhi os Estados Unidos, e só tive as multidões.
Era doloroso para ele recordar, e me arrependi de ter tocado no assunto.
Ficou sentado no feno, falando, olhando através de mim.
- Eu queria dizer: “Se vocês tanto desejam a liberdade e a alegria, não
podem ver que não se encontra em nenhum lugar fora de vocês? Digam que as
têm e assim será! Ajam como se fossem suas, e serão!” Richard, o que há de tão
difícil nisso? Mas a maioria nem ouviu. Milagres. Assim como iam às corridas de
automóveis para ver as batidas, iam ver os milagres. De início, é frustrante;
depois de algum tempo, fica cacete. Não tenho idéia de como os outros Messias
podiam suportá-lo.
- Quando você fala essas coisas, parece que perde parte do encanto - disse
eu.
Apertei a última porca e guardei as ferramentas.
- Para onde vamos hoje?
Ele foi até a minha cabina e,em vez de limpar os insetos do meu pára-brisa,
passou a mão sobre as criaturinhas esmagadas, e elas tornaram a viver e voaram
para longe. É certo que o seu pára-brisa nunca precisaria de limpeza, assim como
o seu motor, eu sabia agora, nunca precisaria de manutenção.
- Não sei - disse ele. - Não sei para onde vamos.
- O que quer dizer? Você conhece o passado e o futuro de todas as coisas.
Sabe exatamente para onde vamos!
Ele deu um suspiro.
- É. Mas procuro não pensar nisso.
Durante algum tempo, enquanto trabalhava com os cilindros, pensei: “Puxa,
basta-me ficar com esse camarada e não terei mais problemas, nada de mau vai
acontecer e tudo vai dar certo.” Mas o modo como ele disse “procuro não pensar
nisso” me fez recordar o que acontecera com os outros Messias mandados a este
mundo. O bom senso me gritava que eu devia rumar para o sul e me afastar o
mais possível desse camarada. Mas, como já disse, é um pouco monótono voar
assim sozinho, e estava contente por tê-lo encontrado, pelo simples prazer de ter
alguém com quem conversar, alguém que conhecesse a diferença entre um
aileron e um estabilizador vertical.
Devia ter virado para o sul, mas, depois de levantar vôo, segui com ele para
o norte e leste, para aquele futuro sobre o qual ele procurava não pensar.
ONDE você aprende tudo isso, Don? Você sabe tanta coisa, ou talvez
eu é que pense isso. Você sabe mesmo um bocado, É tudo prática?
Não há um treinamento especial para ser Mestre?
- Dão-nos um livro para ler.
Pendurei nos cabos do avião um lenço de seda que acabava de lavar e fiquei
olhando para eles.
- Um livro?
-O Manual do Salvador. É uma espécie de bíblia para os mestres. Tenho
um exemplar aqui, se você estiver interessado.
- Sim! Sim! Quer dizer, um livro de verdade, que diz como...?
Procurou por trás do porta-bagagem do Travel Air e encontrou um livrinho
aparentemente encadernado em camurça.
Manual do Messias,
impresso em letras pretas.
Lembretes para Alma
Avançada
- Por que diz Manual do Salvador? Está escrito aqui Manual do Messias.
- É algo assim.
Começou a apanhar as coisas em volta do avião, como se estivesse na hora
de partir.
Folheei o livro, uma coleção de máximas e parágrafos curtos.
Perspectiva –
Use-A ou perca-A.
Se virou para esta página,
esqueceu-se de que aquilo que se passa
em volta de você não é realidade.
Pense nisso.
Lembre-se de onde veio,
para onde vai, e por que você criou
a confusão em que se meteu para começar.
Você terá uma morte horrível, lembre-se.
Tudo é um bom treino, e você gostará
mais se conservar os fatos
em mente.
Mas leve a sua morte a sério.
Rir a caminho de sua execução
não é normalmente compreendido por formas
de vida menos avançadas, e
o chamarão de doido.
- Você já leu isso, sobre perder a sua perspectiva, Don?
-Não.
- Diz que você terá uma morte horrível.
- Não necessariamente. Depende das circunstâncias e de como você se sente
quanto a organizar as coisas.
- Você vai ter uma morte horrível?
- Não sei. Não interessa muito, não acha, agora que já larguei o emprego?
Uma ascensãozinha sossegada deve bastar. Vou resolver dentro de algumas
semanas, depois que terminar de fazer o que vim fazer.
Achei que estava brincando, como fazia de vez em quando, e então eu não
sabia que estava falando sério quanto a algumas semanas.
Continuei a ler o livro. Era o tipo de conhecimentos que um Mestre
necessitaria, com efeito.
Aprender
é descobrir
aquilo que você já sabe.
Fazer é demonstrar que
você o sabe.
Ensinar é lembrar aos outros
que eles sabem tanto quanto você.
Vocês são todos aprendizes,
fazedores, professores.
A sua única
obrigação em qualquer vida
é ser sincero consigo mesmo,
Ser sincero com outra pessoa ou
outra coisa não só
é impossível, como ainda é a
marca de um falso
messias.
As
perguntas mais simples
são as mais profundas.
Onde você nasceu ? Onde é o seu lar?
Para onde vai?
O que está fazendo?
Pense sobre
isso de vez em quando, e
observe as suas respostas
se modificarem.
Você
ensina melhor
o que mais precisa
aprender.
- Você está muito quieto aí, Richard - disse Shimoda, como se quisesse
conversar comigo.
- É - disse eu, e continuei a ler.
Se aquele era um livro só para Mestres, eu não o queria largar.
Viva
de modo a nunca
se arrepender se algo que você faça
ou diga for publicado
pelo mundo afora –
mesmo que
o que for publicado
não seja verdade.
Os seus amigos
o conhecerão melhor
no primeiro minuto em que se conhecerem
do que
os seus conhecidos
o conhecerão em
mil
anos.
O
melhor meio
de fugir à responsabilidade
é dizer: “Tenho
responsabilidades.”
Notei uma coisa estranha no livro.
- As páginas não têm números, Don.
- Não - disse ele. - É só abri-lo, e o que você mais precisar estará ali.
- Um livro mágico!
- Não. Você pode fazer isso com qualquer livro. Pode fazê-lo com um
jornal velho, se ler com cuidado. Você nunca fez isso, estar com um problema na
cabeça e depois abrir qualquer livro à mão e ver o que ele lhe diz?
-Não.
- Bem, experimente um dia.
Experimentei. Fechei os olhos e pensei no que me aconteceria se eu ficasse
muito tempo mais com essa pessoa estranha. Era divertido ficar com ele, mas não
podia me livrar da idéia de que alguma coisa nada divertida ia acontecer dentro
de pouco tempo, e não queria estar por perto nesta ocasião. Pensando nisso, abri
o livro e li.
Você é levado
em sua vida
pela criatura viva interior,
o ser espiritual brincalhão
que é o seu ser verdadeiro.
Não dê as costas
a possíveis futuros
antes de ter certeza de que não tem
nada a aprender com eles.
Você está sempre livre
para mudar de idéia e
escolher um futuro, ou
um passado
diferentes.
Escolher um passado diferente? Literalmente, figuradamente, ou como é
que seria?
- Acho que a minha cabeça está confusa, Don. Não sei como poderia
aprender esse negócio.
- Com a prática. Um pouco de teoria e muita prática - disse ele. - Você deve
levar uma semana e meia.
- Uma semana e meia.
- É. Acredite que sabe todas as respostas, e as saberá realmente. Acredite
que é um mestre, e assim será.
- Eu nunca disse que queria ser mestre.
- Isso mesmo - disse ele. - Você não disse.
Fiquei com o manual, e ele nunca o pediu de volta.
Os lavradores do centro-oeste necessitam de uma terra boa para que o
seu trabalho prospere. Os aviadores ciganos também. Têm de estar
perto de seus fregueses. Precisam encontrar, a um quarteirão da
cidade, campos plantados de capim, feno, aveia ou trigo cortado rente; sem gado
por perto, que coma a tela de seus aviões; próximo a uma estrada, para
possibilitar o acesso de carros; com uma porteira na cerca, para as pessoas
passarem; os campos dispostos de modo que o avião não tenha de voar baixo por
cima de uma casa sequer; bastante lisos, para que seus aparelhos não sejam
despedaçados, ao rolar a 80 km/h pelo solo; bastante compridos para a
decolagem e a aterrissagem nos dias quentes e calmos do verão; e permissão do
proprietário para voar ali por um dia.
Pensei nisso, enquanto voávamos para o norte, naquela manhã de sábado, o
Messias e eu, o verde e ouro da terra passando suavemente sob nós, a uma
distância de 300 metros. O Travel Air de Donald Shimoda flutuava ruidosamente
junto à minha asa direita, refletindo a luz do Sol em todas as direções. Um belo
avião, pensei, mas grande demais para as épocas realmente más daquele negócio.
É verdade que transporta dois passageiros de cada vez, porém pesa duas vezes
mais do que o Fleet, e, portanto, precisa de um campo muito maior para decolar e
pousar. Já tive um Travel Air, mas no fim troquei-o pelo Fleet, que pode
aterrissar em campos pequenos, muito mais fáceis de se encontrar perto das
cidades do interior. Podia usar um campo de 150 metros com o Fleet, enquanto
que o Travel Air precisava no mínimo de 300 a 310 metros. Se você se prende a
esse camarada, pensei, estará se prendendo aos limites do avião dele.
E, com efeito, no momento em que pensei aquilo, avistei um bom
pastozinho de gado junto à cidade sobre a qual voávamos. Era um pasto de
fazenda padrão, de 400 metros, cortado ao meio, a outra metade tendo sido
vendida à cidade para um campo de beisebol.
Sabendo que o avião de Shimoda não podia pousar ali, reclinei a minha
maquininha voadora sobre a asa esquerda, levantei o nariz, passei firme para a
marcha lenta e deixei o aparelho cair como uma pedra em direção ao campo de
beisebol. Tocamos a grama logo depois da cerca do campo esquerdo e rolamos
até parar, com espaço de sobra. Queria me exibir um, pouco, mostrar a ele o que
pode fazer um Fleet, quando pilotado com perícia.
Uma aceleração rápida me fez girar para tornar a decolar, mas, quando me
virei, lá estava o Travel Air, preparando-se para a aproximação final do pouso.
Cauda para baixo, asa direita para cima, parecia um condor magnífico e gracioso
se preparando para pousar numa palha de vassoura.
Vinha baixo e devagar, e meus cabelos se encaram. Ia presenciar um
desastre. Para aterrissar com um Travel Air, é preciso estar voando a pelo menos
l00 km/h. Com menos que isso, sendo um avião que enguiça aos 80, acaba
enroscando. Mas o que vi foi aquele biplano branco e dourado para o ar. Bem,
não quero dizer propriamente parar, mas não estava voando a mais de 50km/h um
avião que enguiça aos 80, pensem bem, parar no ar, parecer suspirar e descer
direto, nas três rodas, no capim. Ele usou a metade, talvez três quartos do espaço
que eu usaria para pousar com o Fleet.
Fiquei ali sentado na cabina, olhando, enquanto ele taxiava até chegar a
meu lado e parar. Quando desliguei o motor, ainda olhando, estonteado, o que
acontecia, ele disse:
- Bom campo que você encontrou! Bem perto da cidade, hein?
Os nossos primeiros fregueses, dois garotos numa moto Honda, já estavam
entrando para ver o que se passava.
- O que quer dizer “perto da cidade”? - gritei, por cima do barulho dos
motores que ainda ressoava em meus ouvidos.
- Bem, fica a meio quarteirão daqui!
- Não, não é isso! COMO FOI AQUELE POUSO? No Travel Air? Como
foi que você aterrissou aqui?
Ele piscou para mim.
- Mágica!
- Não, Don... estou falando sério! Vi como você pousou!
Ele percebeu que eu estava chocado e muito assustado.
- Richard, quer saber como se faz as chaves flutuarem no ar, como se cura
todas as doenças, se transforma a água em vinho, se anda sobre as ondas e se
pousa um Travel Air em 30 metros de capim? Quer saber a solução de todos
esses milagres?
Senti-me como se ele acabasse de dirigir um raio laser para cima de mim.
- Quero saber, como você pousou aqui...
- Escute! - disse ele, atravessando o abismo entre nós. - Este mundo? E tudo
o que há nele? Ilusões, Richard! Tudo ilusões! Entende isso?
Não piscava nem sorria, como se de repente estivesse furioso comigo por
não saber disso há muito tempo.
A motocicleta parou junto à cauda do seu avião; os rapazes pareciam loucos
para voar.
- É - foi só o que pude dizer. - Entendido quanto às ilusões.
Neste momento, os moços já o estavam assediando para levá-los para um
vôo e coube a mim a tarefa de encontrar logo o dono do pasto e pedir licença
para usar a sua propriedade.
O único meio de descrever as decolagens e pousos que o Travel Air fez
naquele dia é lhes dizer que parecia um Travel Air de mentira. Era como se o
avião fosse, na verdade, um Cub E-2, ou um helicóptero fantasiado de Travel
Air. Por algum motivo, era muito mais fácil para mim aceitar que uma chave de
9/16 flutuasse sem peso do que ficar calmo vendo aquele avião decolar com
passageiros a bordo a 50km/h. Uma coisa é acreditar na levitação quando vemos
o fenômeno, outra coisa é acreditar em milagres.
Fiquei pensando no que ele dissera com tanta convicção. Ilusões. Alguém já
afirmara isso antes... quando eu era criança, aprendendo mágicas - os mágicos
diziam aquilo! Eles falavam, cuidadosamente: “Vejam, isso não é milagre; não é
mágica de verdade. O que há é um efeito, a ilusão da mágica.” Depois tiravam
um lustre de uma noz ou transformavam um elefante numa raquete de tênis.
Num acesso de percepção, puxei o Manual do Messias do bolso, abrindo-o.
Havia só duas frases na página.
Não existe
um problema que
não ofereça uma dádiva
para você.
Você procura os problemas
porque precisa das dádivas
por eles oferecidas.
Não sei bem por que, mas, ao ler aquilo, a minha confusão se aliviou. Reli
aquilo até sabê-lo de olhos fechados.
O nome da cidade era Troy, e o pasto ali prometia ser tão bom quanto fora o
campo de feno em Ferris. Mas em Ferris sentira uma certa calma, e aqui havia no
ar uma tensão que não estava me agradando nada.
Os vôos, que para os nossos passageiros eram uma aventura única, para
mim eram a rotina, nublada por aquela estranha inquietação. A minha aventura
era o personagem com quem eu estava voando... o modo impossível pelo qual
pilotava seu avião e as coisas estranhas que dissera para explicá-lo.
As pessoas de Troy não se impressionaram com o milagre do Travel Air
mais do que eu me impressionaria se ouvisse tocar ao meio-dia um sino que não
tocasse há 60 anos... Não sabiam ser impossível acontecer o que estavam
presenciando.
- Obrigado pelo passeio! - diziam eles, e - É só isso que vocês fazem, para
ganhar a vida... não trabalham em algum lugar? - e - Por que foram escolher um
lugarzinho pequenino como Troy? - e - Jerry, a sua fazenda não é maior do que
uma caixa de sapato!
Tivemos uma tarde movimentada. Havia muita gente querendo voar e
íamos ganhar muito dinheiro. Ainda assim, uma parte de meu ser começou a
dizer “saia, saia, afaste-se deste lugar”. Já tenho ignorado isso antes e sempre me
arrependo.
Por volta das três horas desliguei o aparelho por causa da gasolina, fiz o
percurso de ida e volta do posto Skelly com duas latas de cinco galões de
gasolina de automóvel, e então reparei que não tinha visto o Travel Air
reabastecer-se uma única vez. Shimoda não punha gasolina no seu avião desde
antes de chegar a Ferris, e eu vira aquele aparelho voar por mais de sete horas,
quase oito, sem nem mais uma gota de gasolina ou óleo. E embora soubesse que
ele era um homem bom e não me fosse fazer mal, fiquei outra vez assustado.
Economizando-se bastante, puxando o manete para revoluções mínimas e usando
uma mistura perfeitamente pobre em vôos de cruzeiros, o Travel Air funciona
por cinco horas, no máximo. Mas não oito horas, com decolagens e pousos.
Ele continuava a voar firme, vôos e mais vôos, enquanto eu punha a
gasolina comum no meu tanque central e um litro de óleo no motor. Havia uma
fila de gente aguardando e parecia que ele não queria desapontá-los.
Consegui me aproximar dele quando estava ajudando um casal a entrar na
cabina da frente do avião. Procurei parecer o mais calmo e displicente possível.
- Don, como vai de combustível? Precisa de gasolina?
Fiquei parado junto à ponta da asa, com uma lata vazia de cinco galões na
mão.
Olhou-me profundamente nos olhos e franziu a testa, intrigado, como se eu
tivesse perguntado se precisava de ar para respirar.
- Não - disse ele, e senti-me como um menino atrasado de primeiro ano
primário, nos fundos da sala de aula. - Não, Richard, não preciso de gasolina.
Aquilo me aborreceu. Conheço alguma coisa a respeito de motores de avião
e combustível.
- Bem, então - disse-lhe, zangado - que tal um pouco de urânio?
Ele riu e me desarmou logo.
- Não, obrigado. Eu o enchi no ano passado. Em seguida, estava na sua
cabina e se foi com seus passageiros, naquela decolagem sobrenatural, em
câmara lenta.
Primeiro desejei que as pessoas fossem embora; depois, que saíssemos dali
depressa, com ou sem gente; e, depois, que eu tivesse o juízo de sair dali sozinho,
imediatamente. Só queria decolar e encontrar um campo grande e vazio, longe de
qualquer cidade, e ficar sentado, pensando e escrevendo o que estava
acontecendo em meu diário, tentando dar um sentido a tudo aquilo.
Fiquei do lado de fora do Fleet, descansado até que Shimoda tornou a
pousar. Fui até a sua cabina, sentindo a força do vento provocado pelo seu forte
motor.
- Acho que já voei bastante, Don. Vou andando, pousar fora das cidades e
trabalhar um pouco menos, por algum tempo. Foi divertido voar com você. Nós
nos veremos por aí, um dia desses, OK?
Ele nem piscou.
- Mais um vôo e estarei com você. Esse camarada está esperando.
- Está bem.
O camarada esperava numa velha cadeira de rodas que tinha sido
empurrada até o campo. Parecia estar amassado e torcido no assento, como que
por alguma força de gravidade exagerada, mas queria voar. Havia 40 ou 50
pessoas ali, umas de carro, outras a pé, querendo ver, curiosas, como Don levaria
o homem da cadeira para o avião.
Ele nem pensou no caso.
- Quer voar?
O homem deu um sorriso torto e meneou a cabeça, meio de lado.
- Então,vamos, vamos voar! - disse Don calmamente, como se falasse com
alguém que estivesse esperando, de fora, havia muito tempo, e como se tivesse
chegado a vez dele tornar a entrar no jogo. Se houve alguma coisa estranha
naquele momento, em retrospecto, foi a intensidade com que ele falou. Foi com
naturalidade, sim, mas foi também uma ordem, no sentido do homem se levantar
e entrar no avião, sem pretextos. Naquele momento, teve-se a impressão de que o
homem estivera representando, até então, o papel de aleijado e inválido, e sua
última cena terminara. A gravidade liberou-o como se nunca tivesse existido; ele
saltou da cadeira, num passo acelerado, assombrado consigo mesmo, em direção
ao Travel Air.
Eu estava perto e o ouvi dizer:
- O que você fez? - perguntou ele. - O que você me fez ?
- Vai voar ou não? - disse Don. - O preço é três dólares. Pague antes da
decolagem, por favor.
- Vou voar! - disse ele.
Shimoda não o ajudou a subir para a cabina da frente, como geralmente
fazia com seus passageiros.
As pessoas saltaram dos carros. Houve um murmúrio rápido de parte dos
espectadores e depois um silêncio espantado. Aquele homem não andava desde
que seu caminhão caíra de uma ponte, havia onze anos.
Como um garoto pondo asas feitas de lençóis, ele pulou para dentro da
cabina e deslizou para o assento, agitando muito os braços, como se acabassem
de lhe dar braços com que brincar.
Antes que alguém pudesse falar, Don apertou o manete e o Travel Air se
elevou no ar, dando voltas fechadas em torno das árvores e subindo
furiosamente.
O mesmo momento pode ser feliz e apavorante?
Seguiram-se muitos momentos assim. Ficava o assombro diante do que
seria a cura milagrosa de um homem que parecia merecê-la, e, ao mesmo tempo,
de algo nada bom que aconteceria quando aqueles dois tornassem a descer. O
pessoal, esperando, formava um nó apertado, uma turba, o que não era nada bom.
Os minutos se passavam, os olhos estavam fixos naquele biplanozinho voando
tão displicentemente ao Sol, e algo go de violento estava para acontecer.
O Travel Air descreveu alguns oitos íngremes e preguiçosos, uma espiral
fechada e depois estava flutuando por cima da cerca, como um disco voador lento
e barulhento, prestes a pousar. Se ele tivesse juízo, largaria o passageiro na outra
extremidade do campo, decolaria rapidamente e desapareceria. Estava chegando
mais gente; mais uma cadeira de rodas, empurrada por uma senhora correndo.
Ele taxiou, girou o avião para ficar com a hélice afastada do povo e
desligou o motor. O pessoal correu para a cabina e por um momento achei que
iam arrancar a tela da fuselagem, para alcançar os dois.
Seria covardia? Não sei. Caminhei até meu avião, bombeei o manete e o
afogador, e puxei a hélice para dar a partida. Entrei na cabina, virei o Fleet de
frente para o vento e decolei. A última coisa que vi foi que Donald Shimoda
estava sentado na borda de sua cabina, rodeado pelo povo.
Virei para leste e depois sudeste; após algum tempo, no primeiro campo
grande que encontrei, com árvores para me dar sombra e um riacho onde beber,
pousei para passar a noite. Ficava bem longe de qualquer cidade.
Até hoje, não sei dizer o que é que me deu. Foi uma sensação de
destino que me expulsou para longe do sujeito estranho e curioso
que era Donald Shimoda. Se tiver de confraternizar com o destino,
nem mesmo o próprio Messias tem o poder de me fazer ficar.
Estava sossegado no campo, uma campina enorme e quieta, aberta para o
céu... O único ruído era o de um riachinho que tinha de me esforçar para ouvir.
Só, de novo. A gente se habitua a ficar sozinho, mas se interromper o hábito, nem
que seja por um dia, tem de se acostumar de novo.
- OK, então foi divertido, durante algum tempo - disse eu em voz alta para a
campina. - Foi divertido e talvez eu tivesse muito o que aprender com o
camarada. Mas já estou farto das multidões, mesmo quando estão felizes... se
ficam com medo, ou querem crucificar alguém, ou adorá-lo. Sinto muito, mas é
demais!
Quando disse aquilo, parei de repente. Aquelas palavras podiam ter sido
ditas por Shimoda em pessoa. Por que ficara ali? Tive o bom senso de partir e
não era nenhum Messias.
Ilusões. O que ele queria dizer com “ilusões”? Aquilo era mais importante
do que tudo o que dissera ou fizera - feroz, é o que ele estava, ao dizer: “É tudo
ilusão!”, como se pudesse martelar a idéia em minha cabeça à força. Era um
problema, mesmo, e eu estava precisado daquela dádiva, mas continuava sem
saber o que significava.
Depois de algum tempo fiz uma fogueira, cozinhei uma espécie de gulache
de pedacinhos de carne de soja, macarrão seco e dois cachorros-quentes de dois
dias antes, que deviam ficar bons, depois de fervidos. O saco de ferramentas
estava ao lado da caixa de mantimentos e, sem motivo especial, tirei a chave
9/16, limpei-a e mexi o gulache com ela.
Estava sozinho, notem bem, não havia ninguém me espiando, de modo que,
de farra, tentei fazê-la flutuar no ar. Se eu a jogasse bem para cima e piscasse os
olhos quando começasse a descer, teria, por meio segundo, a sensação de que
estava flutuando. Mas logo ela caía na grama ou no meu joelho com um baque e
o efeito se anulava. Mas aquela mesma chave... Como ele fazia aquilo?
Se isso é só ilusão, Sr. Shimoda, então o que é real? E se esta vida é uma
ilusão, então por que a vivemos? Por fim, joguei a chave mais algumas vezes e
desisti. E de repente fiquei feliz de estar onde estava e saber o que sabia, embora
não fosse a solução de toda a vida, ou mesmo de algumas ilusões.
Quando estou sozinho, às vezes canto. “Ah, eu e a velha TINTA!...” , cantei,
acariciando a asa do Fleet, com muito amor pela coisa (lembrem-se, não havia
ninguém ouvindo). “Vamos vagar pelo céu... Saltando pelos campos até um de
nós dar o prego...” Vou compondo a música e a letra ao cantar. “E não vou ser
eu que vou dar o prego, Tinta... A não ser que você quebre uma LONGARINA...
e aí eu a prendo com um BARBANTE... e continuamos a voar... CONTINUAMOS
A VOAR...”
Os versos não têm fim, quando me embalo e me sinto feliz, pois as rimas
não são assim tão essenciais. Deixara de lado os problemas do Messias; não
havia como saber quem ele era ou o que queria dizer, de modo que parei de
pensar e creio que isso me deixou feliz.
Lá por volta das dez horas o fogo apagou e a minha cantoria também.
- Onde quer que você esteja, Donald Shimoda - disse eu, desenrolando a
manta embaixo da asa - lhe desejo bons vôos e poucas multidões. Se é isso que
você quer. Não, retiro isso. Desejo, meu caro e solitário Messias, que você
encontre tudo o que deseja encontrar.
O manual caiu de meu bolso, quando tirei a camisa, e li no lugar em que se
abriu.
O laço
que une a sua família verdadeira
não é de sangue, mas
de respeito e alegria pela
vida um do outro.
Raramente os membros
de uma família se criam
sob o mesmo
teto.
Não via de que modo aquilo poderia se aplicar a mim, e obriguei-me a
pensar que nunca deveria permitir que um livro substituísse o meu próprio
raciocínio. Acomodei-me sob a manta e depois apaguei, como uma lâmpada que
é desligada, quente e sem sonhos, debaixo do céu e de vários, milhares de
estrelas que eram ilusões, talvez, mas ilusões muito bonitas, por certo.
Quando voltei a mim, o Sol estava nascendo, luz rosada e sombras
douradas. Acordei não por causa da luz, mas porque alguma coisa estava tocando
a minha cabeça, bem de leve. Pensei que fosse uma haste de capim, flutuando por
ali. Depois achei que era um mosquito, bati com força e quase quebrei a mão...
Uma chave de boca de 9/16 é um pedaço duro de ferro para se bater à toda, e
acordei depressa. A chave bateu na dobradiça do aileron, cravou-se por um
momento no capim e depois flutuou com imponência, tornando a pairar no ar.
Então, enquanto eu olhava, já completamente desperto, ela foi caindo aos poucos
ao chão. Quando me resolvi a apanhá-la, era a mesma chave que conhecia e
amava, com o mesmo peso e a mesma vontade de pegar todos aqueles pinos e
porcas.
- Bem, que diabo!
Nunca digo diabo nem coisas assim - restos da minha infância no ego. Mas
estava realmente intrigado e não havia mais o que dizer. O que se passava com a
minha chave? Donald Shimoda estava a pelo menos 90 quilômetros, acima de
algum horizonte. Peguei, examinei e equilibrei a chave, sentindo-me como um
macaco pré-histórico que não consegue compreender que uma roda está girando
diante de seus próprios olhos. Tinha de haver algum motivo simples...
Desisti, afinal, aborrecido, guardei-a no saco de ferramentas e acendi o fogo
para o meu pão de panela. Não estava com pressa para ir a lugar algum. Podia
bem passar o dia todo ali, se quisesse.
O pão crescera bastante na panela e estava quase no ponto para ser virado
quando ouvi um barulho no oeste.
Não havia possibilidade do barulho ser do avião de Shimoda, nem de que
alguém pudesse me ter descoberto naquele determinado campo, entre milhões de
campos do centro-oeste, mas eu sabia que era ele e comecei a assobiar... olhando
para o pão e o céu, procurando pensar em alguma coisa muito calma para dizer
quando ele aterrissasse.
Era o Travel Air mesmo; voou baixo por cima do Fleet, subiu direto numa
volta de exibição, deslizou pelo ar e pousou a 90 km/h, a velocidade em que um
avião deste tipo deve pousar. Parou ao lado do meu aparelho e desligou o motor.
Eu não disse nada. Acenei, mas não disse nada. Parei de assobiar.
Ele saltou da cabina e foi até a fogueira.
- Olá, Richard.
- Você está atrasado - disse eu. - Quase queimei o pão de panela.
- Desculpe.
Passei-lhe uma caneca de água do riacho e um prato de folha de estanho
com meio pão e um pedaço de margarina.
- Como foi? - perguntei.
- OK - disse ele, com um meio sorriso momentâneo. - Escapei com vida.
- Tinha minhas dúvidas a respeito. Comeu o pão calado.
- Sabe - disse ele, por fim, olhando para a comida - isso é mesmo uma coisa
horrível.
- Ninguém mandou você comer o meu pão de panela - disse eu, zangado. Por
que será que ninguém gosta do meu pão de panela? NINGUÉM GOSTA DOMEU PÃO DE PANELA! Por que, ó Mestre Elevado?
- Bem - disse ele, sorrindo - e agora estou falando como Deus - eu diria que
você acredita que ele seja bom, e que por isso lhe pareça bom. Experimente-o
sem acreditar profundamente o que você acredita e parecerá uma espécie de...
incêndio... depois de uma inundação... num moinho, não acha? A grama você pôs
de propósito, imagino.
- Desculpe. Caiu da minha manga, não sei como. Mas não acha que o pão
básico em si - não o capim nem o queimadinho, ali - o pão de panela básico, não
acha...?
- Horrível - disse ele, devolvendo-me tudo, menos uma mordida do que eu
lhe dera. - Prefiro passar fome. Ainda tem aqueles pêssegos?
- Na caixa.
Como me encontrara? Uma envergadura de oito metros em 16 mil
quilômetros de prados de lavoura não é um alvo fácil, especialmente quando se
está contra o Sol. Mas jurei que não havia de perguntar. Se quisesse me contar, o
faria.
- Como foi que me descobriu? - perguntei. - Eu podia ter pousado em
qualquer lugar.
Abrira a lata de pêssegos e estava comendo as frutas com uma faca... o que
não é muito fácil.
- Os semelhantes se atraem - murmurou ele, errando uma fatia de pêssego.
- Ah, é?
- Uma lei cósmica.
- Ah.
Acabei o meu pão e depois areei a panela com areia do riacho. Esse pão é
bom mesmo.
- Pode explicar? Como é que sou semelhante ao seu estimado ser? Ou será
que por “semelhante” queria dizer que os aviões são parecidos?
- Nós, os fazedores de milagres, temos de nos manter unidos - disse ele.
A frase era ao mesmo tempo bondosa e apavorante, do jeito que foi dita.
- Ah... Don? Quanto a este seu último comentário? Talvez não se importe
de me dizer o que quer dizer: nós, os fazedores de milagres?
- Pela posição da chave de 9/16 na sacola, eu diria que você andou
realizando o truque de levitação com a chave de boca, hoje de manhã. Diga se
estou enganado.
- Não estava fazendo coisa alguma! Acordei... o negócio me acordou,
sozinho!
- Ah. Sozinho. Estava rindo de mim.
- SOZINHO, SIM! - gritei.
- A sua compreensão de sua capacidade de fazer milagres, Richard.é tão
completa quanto a sua compreensão de fazer pães.
Não lhe respondi; escorreguei pelas cobertas e fiquei o mais quieto possível.
Se tivesse alguma coisa a dizer, podia fazê-lo quando bem entendesse.
- Alguns de nós começamos a aprender essas coisas pelo subconsciente. A
nossa mente desperta não as aceita, de modo que fazemos os nossos milagres
enquanto dormimos.
Olhou, no céu, as primeiras nuvenzinhas do dia.
- Não seja impaciente, Richard. Estamos todos sempre aprendendo mais.
Você agora vai aprender bem depressa, e será um mestre espiritual sábio e velho
sem o sentir.
- O que quer dizer, sem o sentir? Não quero senti-lo! Não quero saber de
nada!
- Você não quer saber de nada.
- Bem, quero saber por que o mundo existe, o que ele é, por que vivo aqui e
para onde vou depois... Quero saber isso. E voar sem avião, quando desejar.
- Desculpe.
-Desculpe o quê?
- Não é assim que funciona. Se você aprende o que é este mundo e como
funciona, automaticamente começa a fazer milagres, ou o que chamarão de
milagres. Mas, naturalmente, nada é milagroso. Se aprender o que o mágico sabe,
aquilo deixa de ser mágica.
Afastou os olhos do céu.
- Você é como todo mundo. Já conhece isso. Apenas ainda não tem
consciência de que já conhece.
- Não me lembro - disse eu - não me lembro que você me tenha perguntado
se quero aprender isso, seja o que for, que lhe trouxe multidões e tristezas a vida
toda. Parece que me esqueci disso.
Tão logo falei aquilo, senti que ele ia dizer que mais tarde eu me lembraria,
e estaria certo.
Ele se esticou no capim, tendo como travesseiro o resto da farinha no saco.
- Olhe, não se preocupe com as multidões. Elas não o podem tocar, a não
ser que você o queira. Você é mágico, lembre-se: FUF!... fica invisível e passa
através das portas.
- A multidão o pegou em Troy, não foi?
- Eu disse que não o queria? Aquilo eu permiti. Gostei. Em todos nós há um
pouco de canastrão, do contrário nunca conseguiríamos ser mestres.
- Mas você não desistiu? Eu não li...?
- Do jeito que as coisas iam, eu estava me tornando o Único Messias de
Tempo Integral, e esse trabalho larguei de vez. Mas não posso desaprender uma
coisa que passei várias vidas aprendendo, posso?.
Fechei os olhos e mastiguei uma haste de capim.
- Olhe, Donald, o que está querendo me dizer? Por que não fala logo o que
está acontecendo?
Fez-se um silêncio comprido e então ele disse:- Talvez você é que deva me
contar. Conte-me o que estou querendo dizer, e eu o corrijo se estiver errado.
Pensei naquilo um pouco e resolvi surpreendê-lo.
-OK, vou lhe contar.
Fiz uma pausa, para ver quanto tempo ele poderia esperar se o que eu
dissesse não saísse muito fluente. O Sol agora estava bem alto para nos aquecer,
e ao longe, num campo escondido, um fazendeiro trabalhava com um trator
diesel, cultivando o milho no domingo.
- OK, vou lhe dizer. Antes de tudo, não foi por coincidência que você
pousou no campo em Ferris, certo?
Ele estava calado como o capim crescendo.
- E, depois, temos uma espécie de acordo místico, que parece que eu
esqueci e você não.
Só um vento suave soprando, e o ruído distante do trator indo e vindo com
ele.
Parte de mim estava escutando e não achava que o que eu dizia fosse ficção.
Estava inventando uma história verdadeira.
- Vou dizer que nos encontramos há uns três ou quatro mil anos, mais ou
menos. Gostamos do mesmo tipo de aventuras, provavelmente odiamos o mesmo
tipo de destruidores, aprendemos nos divertindo mais ou menos igualmente e
com a mesma rapidez. Você tem uma memória melhor. O nosso reencontro é o
que você quer dizer com a expressão “os semelhantes se atraem”.
Peguei uma outra haste de capim.
- Que tal, até agora?
- Já estava achando que ia ser uma conversa longa - disse ele. - E vai ser,
mas acho que há uma leve possibilidade de que dessa vez você o consiga.
Continue a falar.
- Depois, não é preciso continuar a falar, pois você já sabe que coisas uma
pessoa conhece. Mas, se não dissesse isso, você não saberia o que é que penso
que sei, e sem isso não posso aprender nada do que quero aprender. - Larguei a
minha haste de capim. - O que é que você ganha com isso, Don? Para que se
incomodar com gente como eu? Quando uma pessoa está adiantada como você,
tem todos esses poderes milagrosos como subprodutos. Você não precisa de
mim, não precisa de nada deste mundo.
Virei a cabeça e olhei-o. Estava de olhos fechados.
- Como a gasolina do Travel Air? - perguntou ele.
- Certo - disse eu. - Portanto, no mundo só resta o tédio... Não existem
aventuras quando você sabe que não pode ser perturbado por nada neste mundo.
O seu único problema é que você não tem problemas!
Isso, pensei, era uma fala e tanto.
- Você se enganou, aí - disse ele. - Diga-me por que larguei o meu
trabalho... Sabe por que larguei o trabalho de Messias?
- As multidões, você disse. Todo mundo querendo que você fizesse os
milagres por eles.
- Olha, o horror às multidões é a sua cruz, não a minha. Não são as
multidões que me cansam, mas sim o tipo de multidão que não liga a mínima às
coisas que vim dizer. Você pode andar de Nova York a Londres sobre o oceano,
pode passar a vida toda fazendo aparecer moedas de ouro, e ainda assim não
conseguir interessá-los, sabe disso?
Naquele momento, pareceu mais solitário do que jamais vira um homem
vivo parecer. Não precisava de alimentos, de abrigo, de dinheiro, ou de fama.
Estava morrendo devido à sua necessidade de dizer o que sabia, e ninguém se
interessava em saber.
Franzi o rosto, para não chorar.
- Bem, a culpa é sua - disse eu. - Se a sua felicidade depende do que fazem
os outros, acho que tem um problema, sim.
Levantou a cabeça de repente e seus olhos faiscaram como se eu lhe tivesse
batido de repente com a chave. Pensei que não seria prudente fazer com que
aquele sujeito se zangasse comigo. Uma pessoa queima, logo que é atingida por
um raio.
Depois ele deu aquele sorriso de meio segundo.
- Sabe de uma coisa, Richard? - disse, devagar. - Você... tem... razão!
Ficou calado de novo, quase num transe, devido ao que eu tinha dito. Sem
reparar, continuei falando durante horas, todas aquelas idéias passando por minha
cabeça como cometas matutinos e meteoros diurnos. Ficou deitado na grama,
quieto, sem se mexer, sem dar uma palavra. Ao meio-dia eu terminara a minha
versão do Universo e de todas as coisas que nele existem.
-... E parece que ainda nem comecei, Don, há tanta coisa a dizer. Como é
que sei de tudo isso? Como pode ser?
Não respondeu.
- Se você espera que eu responda à minha pergunta, confesso que não sei.
Como posso dizer todas essas coisas agora, quando antes nem sequer tentara? O
que me aconteceu?
Nada de resposta.
- Don? Pode falar agora, por favor.
Não deu uma palavra. Eu lhe explicara o panorama da vida, e o meu
Messias, como se tivesse ouvido tudo o que precisasse ouvir naquela palavra
casual sobre sua felicidade, adormecera profundamente.
7
Manhã de quarta-feira, seis horas, não estou acordado e - BUUM! -
aquele barulho tremendo, repentino e violento como uma sinfonia
altamente explosiva; coros de mil vozes instantâneos, palavras em
latim, violinos, tímpanos e trompas de arrebentar os vidros. A terra estremeceu, o
Fleet balançou em suas rodas e saí de sob a asa como um gato que levou um
choque de 400 volts, o pêlo eriçado como pontos de exclamação.
O céu era um nascer do Sol ainda morno, as nuvens vivas em tinta louca,
mas tudo confuso no crescendo de dinamite.
- PARE! PARE! PARE COM A MUSICA, PARE.
Shimoda berrou tão alto e furioso que consegui escutá-lo acima da
barulhada; o som parou imediatamente, os ecos rolando para longe, mais e mais
longe. Depois veio uma melodia suave e sagrada, tranqüila como a brisa,
Beethoven num sonho.
Ele não se impressionou.
- EU DISSE: PARE COM ISSO!
A música parou.
- Ufa! - disse ele.
Fiquei olhando-o.
- Há uma hora para tudo, certo? - disse ele.
- Bem, uma hora, bem...
- Um pouco de música celestial é muito bom, na intimidade de seu espírito,
e talvez em ocasiões especiais, mas logo de manhã cedinho, e assim tão alto? O
que está fazendo?
- O que eu estou fazendo? Don, estava no mais profundo dos sonos... O que
quer dizer: o que eu estou fazendo?
Sacudiu a cabeça, deu de ombros, desanimado, fungou e voltou para o seu
saco de dormir debaixo da asa.
O manual estava no capim, onde caíra. Virei-o com cuidado e li.
Valorize
suas limitações,
e, por certo,
não se livrará
delas.
Havia muita coisa que eu não entendia, em matéria de Messias.
8
T erminamos o dia em Hammond, Wisconsin, transportando alguns
passageiros de segunda-feira. Depois fomos até a cidade a pé para
jantar e voltamos.
- Don, concordo que esta vida pode ser interessante ou cacete ou o que quer
que desejamos que seja. Mas mesmo em meus momentos mais brilhantes nunca
consegui descobrir por que estamos aqui, para começar. Fale-me algo sobre isso.
Passamos pela loja de ferragens (fechada) e pelo cinema (aberto: Butch
Cassidy and the Sundance Kid) e, em vez de responder, ele parou e virou na
calçada.
- Você tem algum dinheiro, não?
- Muito. Mas o que é que há?
- Vamos ver o filme - disse ele. - Você paga?
- Não sei, Don. Vá você. Vou voltar para os aviões. Não gosto de deixá-los
sozinhos por tanto tempo.
O que havia de tão importante, de repente, num filme?
- Os aviões estão bem. Vamos ao cinema.
- Já começou a sessão.
- Então entramos atrasados.
Ele já estava comprando sua entrada. Acompanhei-o à sala de projeção e
nos sentamos na última fila. Devia haver umas 50 pessoas em volta de nós, no
escuro.
Depois de algum tempo, esqueci-me do motivo pelo qual estávamos ali e
me interessei pelo filme, que sempre considerei um clássico, de qualquer forma;
aquela era a terceira vez que via Sundance. O tempo que passamos no cinema se
espiralou e se espichou, como acontece com um bom filme, e, durante algum
tempo, fiquei observando os detalhes técnicos... como cada cena era projetada e
adaptada à seguinte, por que uma cena naquele momento e não mais tarde. Tentei
olhar desse modo, mas me envolvi na história e esqueci. No pedaço em que
Butch e Sundance são cercados por todo o exército boliviano, quase no final,
Shimoda tocou no meu ombro. Inclinei-me para ele, olhando o filme, querendo
que deixasse para depois o que tinha para dizer.
- Richard?
- Sim.
- Por que você está aqui?
- É um bom filme, Shimoda. Pssiu.
Butch e Sundance, cobertos de sangue, estavam dizendo por que deviam ir
para a Austrália.
- Por que é bom? - perguntou ele.
- Ê divertido. Pssiu. Depois eu conto.
- Pare com isso. Acorde. É tudo ilusão.
Fiquei irritado.
- Donald, só mais alguns minutos e depois podemos conversar quanto você
quiser. Mas me deixe ver o filme, OK ?
Ele sussurrou intensamente, dramaticamente:
- Richard, por que você está aqui?
- Escute, estou aqui porque você pediu para virmos aqui!
Virei-me e tentei assistir ao final.
- Você não precisava vir, podia ter dito: não, obrigado.
-GOSTO DO FILME...
Um homem na minha frente virou-se para me olhar por um instante.
- Gosto do filme, Don; há alguma coisa de errado nisso?
- Nada, em absoluto - falou ele.
E não disse mais uma palavra até o filme acabar e passarmos pelo lote de
tratores usados, nos dirigindo para o escuro, para o campo e os aviões. Estava
ameaçando chuva.
Pensei sobre o seu estranho comportamento no cinema.
- Você faz tudo por algum motivo, Don?
- Às vezes.
- Por que o filme? Por que de repente você quis ver Sundance.
- Você fez uma pergunta.
- Sim. E você tem uma resposta?
- É essa a minha resposta. Fomos ao cinema porque você fez uma pergunta.
O filme foi a resposta à sua pergunta.
Estava rindo de mim, eu sabia.
- Qual foi a minha pergunta?
Seguiu-se um silêncio prolongado e magoado.
- A sua pergunta, Richard, foi por que mesmo em seus momentos mais
brilhantes você nunca conseguiu descobrir por que estamos aqui.
Lembrei-me.
- E o filme foi a minha resposta.
- Foi:
- Você não compreende - disse ele.
-Não.
- O filme foi bom - continuou - mas o melhor filme do mundo ainda assim é
uma ilusão, não é mesmo? As fotos nem sequer estão se movendo: apenas
parecem estar se movendo. Luzes variáveis que parecem mover-se por uma tela
plana montada no escuro?
- Bem, sim.
Eu estava começando a compreender.
- As outras pessoas, quaisquer pessoas, em qualquer lugar, que vão assistir a
qualquer filme, por que estão lá, quando é tudo ilusão?
- Bem, é um divertimento - disse eu.
- Divertimento. Certo. Um.
- Pode ser educativo.
- Bom. Sempre é isso. Aprender. Dois.
- Fantasia, fuga.
- Isso também é divertimento. Um.
- Motivos técnicos. Ver como se faz um filme.
- Aprender. Dois.
- Fuga do tédio...
- Fuga. Você já disse isso.
- Social. Para estar com os amigos - disse eu.
- Motivo para ir, mas não para ver o filme. Isso é divertimento, de qualquer
forma. Um.
Tudo o que eu inventava se adaptava aos dois dedos dele; as pessoas vêem
os filmes por divertimento, para aprender ou ambos.
- E um filme é como uma vida, Don, certo?
- Sim.
- Então, por que alguém vai escolher uma vida má, um filme de terror?
- Não somente vão assistir a um filme de terror para se divertirem, como
sabiam que ia ser um filme de terror quando entraram - disse ele.
- Mas por que...?
- Você gosta de filmes de terror?
-Não.
- Nunca os vê?
-Não.
- Mas não há gente que gasta muito tempo e dinheiro para ver o terror, ou
problemas novelescos que para outras pessoas são monótonos e cacetes...?
Ele deixou que eu respondesse à pergunta.
- Sim.
- Você não é obrigado a ver os filmes deles e eles não são obrigados a ver
os seus. É o que se chama de “liberdade”.
- Mas por que é que alguém havia de querer ficar apavorado? Ou
caceteado?
- Porque acham que o merecem por apavorar outras pessoas, ou gostam da
emoção do pavor, ou então acham que os filmes devem ser cacetes. Você pode
acreditar que muitas pessoas, por motivos justos para elas, gostam de crer que
são desamparadas em seus próprios filmes? Não, não pode.
- Não posso, não - disse eu.- Até você compreender isso, vai ficar
imaginando por que algumas pessoas são infelizes. Elas são infelizes porque
resolveram ser infelizes, e, Richard, isso está certo!
-Hummm.
- Somos criaturas que brincam, que se divertem, somos as lontras do
Universo. Não podemos morrer, não nos podemos ferir mais do que se podem
ferir as ilusões na tela. Mas podemos acreditar que estamos feridos, com todos os
detalhes agonizantes que quisermos. Podemos acreditar que somos vítimas,
mortas e matando, envolvidas pela boa e pela má sorte.
- Muitas vidas? - perguntei.
- Quantos filmes você já viu?
- Ah.
- Filmes sobre viver neste planeta, ou em outros planetas; qualquer coisa
que tiver espaço e tempo é filme e ilusão - disse ele. - Mas por algum tempo
podemos aprender muita coisa e nos divertir muito com nossas ilusões, não é?
- Até onde você leva esse negócio de filme, Don?
- Até onde você quer? Hoje viu o filme em parte porque eu o queria ver.
Muitos escolhem determinadas vidas porque gostam de fazer coisas juntos. Os
atores do filme de hoje já representaram juntos em outros filmes... antes ou
depois, depende de qual filme você viu primeiro, e você os pode ver ao mesmo
tempo em telas diferentes. Nós compramos entradas para esses filmes, pagando a
admissão, concordando em acreditar naquelas realidades do espaço e do tempo...
Nenhuma das duas é a verdade, mas quem não quiser pagar esse preço não pode
aparecer neste planeta, nem em qualquer sistema de espaço-tempo.
- Existem pessoas que não têm vidas no espaço-tempo?
- Existem pessoas que nunca vão ao cinema?
- Sei. Aprendem de modos diferentes?
- Certo - disse ele, satisfeito comigo. - O espaço-tempo é uma escola
bastante primitiva. Mas muita gente fica com a ilusão, mesmo que seja cacete, e
não quer que as luzes se acendam muito cedo.
- Quem escreve esses filmes, Don?
- Não é estranho ver o quanto sabemos, se nos fizermos as perguntas, em
vez de perguntar aos outros? Quem escreve esses filmes, Richard?
- Somos nós - disse eu.
- Quem os representa?
- Nós.
- Quem é o cinegrafista, o projetor, o gerente do teatro, o bilheteiro, o
distribuidor, e quem assiste ao •trabalho de todos? Quem tem a liberdade de sair
no meio, a qualquer momento, mudar o enredo, quem é livre para ver o mesmo
filme várias vezes?
- Deixe-me adivinhar - disse eu. - Quem o quiser?
- Isso basta como liberdade para você? - perguntou ele.
- E é por isso que os filmes são tão populares? Instintivamente sabemos que
são um paralelo de nossas próprias vidas?
- Talvez sim... talvez não. Isto não importa muito, certo? O que é o
projetor?
- A mente - disse eu. - Não. A imaginação. É a nossa imaginação, diga você
o que quiser.
- O que é o filme? - perguntou.
- Aí você me enrascou.- Tudo o que permitimos que entre em nossa
imaginação?
- Talvez, Don.
- Você pode segurar nas mãos um rolo de filme -disse ele - que esteja
completo; princípio, meio e fim estão todos ali, naquele mesmo segundo,
milionésimo de segundo. O filme existe além do tempo que ele registra, e se você
souber qual é o filme, sabe de antemão o que vai acontecer, em linhas gerais:
haverá batalhas e agitação, vencedores e perdedores, romance e desastre; você
sabe que tudo isso estará ali. Mas a fim de ser envolvido e empolgado por aquilo,
a fim de apreciá-lo ao máximo, você tem de colocá-lo num projetor e deixar que
passe pela lente de minuto em minuto... Qualquer ilusão exige espaço e tempo
para ser experimentada. Portanto, você paga o seu níquel, compra a entrada, se
instala, se esquece do que está se passando fora do teatro e o filme começa para
você.
- E ninguém se machuca de verdade? O sangue é só molho de tomate?
- Não. É sangue mesmo - respondeu. - Mas bem que poderia ser molho de
tomate, pelo efeito que tem em nossa vida real...
- E a realidade?
- A realidade é divinamente indiferente, Richard. Uma mãe não se importa
com o papel que o filho representa em suas brincadeiras; um dia o vilão, no
outro, o mocinho. O Ser nada sabe a respeito de nossas ilusões e brincadeiras. Só
conhece a Si, e a nós, à sua semelhança, perfeitos e acabados.
- Não sei bem se quero ser perfeito e acabado. Fale sobre o tédio...
- Olhe para o céu - disse ele.Foi uma mudança de assunto tão rápida que
olhei para o céu. Havia uns cirros fragmentados, bem no alto, os primeiros raios
de Lua prateando as bordas.
- Céu bonito - disse eu.
- É um céu perfeito?
- Bem, é sempre um céu perfeito, Don.
- Você quer dizer que, embora mude a todo instante, o céu é sempre um céu
perfeito?
- Puxa, como sou esperto. Sim!
- E o mar é sempre um mar perfeito, e está sempre mudando, também -
disse ele. - Se a perfeição for a estagnação, então o céu é um pântano! E o Ser
não é propriamente um fruto do pântano.
- Perfeito, e mudando o tempo todo. Sim, aceito isso.
- Você já aceitou há muito tempo, se insiste no tempo.
Virei-me para ele, enquanto caminhávamos.
- Você não se chateia, Don, de ficar sempre apenas nesta dimensão?
- Ah. Estou ficando apenas nesta dimensão? - perguntou. - E você?
- Por que é que tudo o que digo é errado?
- Tudo o que você diz é errado?
- Acho que estou no negócio errado.
- Você acha que talvez o negócio imobiliário...? - perguntou ele.
- Imobiliário ou seguros.
- Há futuro no imobiliário, se é isso que você quer.
- OK. Desculpe - disse eu. - Não quero um futuro. Nem um passado. Prefiro
me tornar um bom Mestre do Mundo da Ilusão. Está parecendo que será dentro
de mais uma semana?
- Bem, Richard, espero que não demore tanto assim!
Olhei-o com cuidado, mas ele não estava sorrindo.
9
Os dias fundiam-se uns nos outros. Voávamos como sempre, mas
parei de contar o verão pelos nomes das cidades ou pelo dinheiro
que ganhávamos com os passageiros. Comecei a contá-lo pelas
coisas que aprendi, as conversas que tínhamos depois dos vôos, e os milagres que
aconteciam de vez em quando, até o dia em que afinal percebi que não são
milagres realmente.
Imagine
o universo belo,
justo e
perfeito,
Disse-me o manual um dia.
Então tenha certeza de uma coisa:
O
Ser o imaginou
bastante melhor
do que
você.
10
Atarde estava tranqüila... um passageiro de vez em quando. Nos
intervalos, eu treinava o método mental de fazer as nuvens
desaparecerem.
Já fui instrutor de vôo e sei que os alunos sempre dificultam as coisas
fáceis; sei disso tudo, e no entanto lá estava eu de novo como aluno, de cara
amarrada para os meus alvos de cúmulos. Uma vez na vida, precisava mais de
ensinamentos do que de prática. Shimoda estava estirado debaixo de minha asa,
fingindo que dormia. Chutei o seu braço, de leve, e ele abriu os olhos.
- Não consigo - disse eu.
- Consegue, sim - disse, e tornou a fechar os olhos.
- Don, já tentei! Quando penso que alguma coisa está acontecendo, a nuvem
volta e começa a inchar mais que nunca.
Deu um suspiro e se sentou.
- Escolha uma nuvem. Uma fácil, por favor.
Escolhi a nuvem maior e pior do céu, de mil metros de altura, arrebentando
de fumaça branca dos infernos.
- Aquela por cima do silo, lá longe - disse eu. - Aquela que está ficando
preta, agora.
Ele me olhou calado.
- Por que você me odeia?
- É porque gosto de você, Don, que peço essas coisas. - Sorri. - Você
precisa de um desafio. Se prefere que escolha alguma coisa menor...
Suspirou e virou-se de novo para o céu.
- Vou tentar. Qual é mesmo?
Olhei, e a nuvem, o monstro com um milhão de toneladas de água,
desaparecera; só havia um buraco feio no céu azul no lugar em que ela estivera.
- Diabo - disse eu, quieto.
- O que vale a pena fazer... - citou ele. - Não, por mais que eu queira aceitar
os elogios que você me faz, devo lhe dizer com toda a honestidade o seguinte: é
fácil.
Apontou para um tufinho de nuvem acima de nós.
- Pronto. É a sua vez. Pronto? Já.
Olhei para aquele fiapo de coisa, e ele olhou para mim. Pensei que tinha
desaparecido, imaginei um espaço vazio onde ele estava, lancei-lhe montes de
raios térmicos, pedi-lhe que reaparecesse em outro lugar, e lentamente, em um
minuto, cinco, sete, a nuvem afinal desapareceu. Outras nuvens cresceram, a
minha se foi.
- Você não é muito ligeiro, hem? - perguntou ele.
- Foi a minha primeira vez! Estou começando! Contra o impossível... bem,
o improvável, e você fica aí dizendo que não sou muito ligeiro. Foi brilhante, e
você sabe disso!
- Extraordinário. Você estava tão ligado a ela, e, no entanto, ela desapareceu
para você.
- Ligado! Eu estava bombardeando aquela nuvem com tudo o que tinha!
Balas de fogo, raios laser, aspirador de pó do tamanho de um quarteirão...
- Ligações negativas, Richard. Se você quiser mesmo tirar uma nuvem de
sua vida, não faça uma cena disso, apenas se descontraia e tire-a de seu
pensamento. É só isso.
Uma nuvem não sabe
por que se move em tal
direção e em tal
velocidade,
Era o que o manual tinha a dizer
Sente um impulso... é para
este lugar que devo ir agora. Mas o céu sabe
os motivos e desenhos
por trás de todas as nuvens,
e você também saberá, quando
se erguer o suficiente
para ver além dos
horizontes.
11
Nunca lhe dão
um desejo sem também
lhe darem
o poder de realizá-lo.
Você pode
ter de trabalhar por ele,
porém.
T ínhamos pousado num pasto imenso junto de um açude de mais de
um hectare, longe de cidades, em algum lugar da fronteira entre
Illinois e Indiana. Não havia passageiros; era o nosso dia de folga,
pensei.
- Escute - disse ele. - Não escute. Fique aqui quieto e olhe. O que você vai
ver não é milagre algum. Leia o seu livro de física atômica... até uma criança
pode andar sobre a água.
Após falar aquilo, como se não percebesse que a água estava ali, virou-se e
caminhou sobre a superfície do açude. Parecia que este era uma miragem do
calor do verão sobre um lago de pedra. Ele estava firme na superfície, e nem uma
onda passou por cima de suas botas de aviador.
- Venha - disse ele. - Venha fazer isso.
Vi aquilo com os meus olhos. Era possível, obviamente, de modo que fui
para junto dele. Parecia que estava caminhando sobre um linóleo azul límpido, e
ri.
- Donald, o que é que você está me fazendo?
- Estou apenas lhe mostrando o que todos aprendem, mais cedo ou mais
tarde - disse ele - e você está à mão, agora.
-Mas estou...
- Olhe. A água pode ser sólida.
Bateu o pé e o som era o de couro sobre uma pedra.
-Ou não.
Tornou a bater e a água espadanou sobre nós dois.
- Pegou o jeito disso? Experimente.
Como nos acostumamos depressa com esses milagres! Em menos de um
minuto comecei a achar que andar sobre a água é possível, é natural, é... bom, e
daí?
- Mas se a água é sólida agora, como podemos bebê-la?
- Do mesmo jeito que andamos sobre ela, Richard. Não é sólida e não é
líquida. Você e eu resolvemos o que será para nós. Se quiser que seja líquida,
então pense que assim é, aja como se fosse líquida, beba-a. Se quiser que seja ar,
aja como se fosse ar, respire-a. Experimente.
Talvez isto aconteça na presença de uma alma adiantada, pensei, ou dentro
de um raio de 15 metros de onde um deles está...
Ajoelhei na superfície e mergulhei minha mão no açude. Líquido. Depois
me deitei, pus o rosto dentro daquele azul, e respirei, confiante. Parecia que
respirava um oxigênio quente e líquido, sem me sufocar ou engasgar. Sentei-me
e olhei para ele, indagador, esperando que soubesse o que se passava em minha
cabeça.
- Fale - disse ele.
- Por que tenho de falar? Você pode precisar melhor o que sente em
palavras.
-Fale.
- Se podemos andar sobre a água, respirá-la e bebê-la, por que não podemos
fazer o mesmo com a terra?
- Sim. Bom, você notará...
Caminhou até a margem com a mesma facilidade com que andaria sobre um
lago pintado. Mas, quando seus pés tocaram a terra, a areia e o capim na margem,
começou a afundar, até que, com alguns passos vagarosos, estava mergulhado até
os ombros na terra e no capim. Era como se o açude, de repente, se tivesse
tornado uma ilha e a terra em volta se tornado um mar. Nadou um pouco no
pasto, salpicando gotas escuras de lodo por todos os lados, depois flutuou sobre
ele, ergueu-se e caminhou. Em um momento, era milagroso ver um homem
andar sobre a terra.
Fiquei de pé no açude, aplaudindo a sua execução. Ele se curvou e me
aplaudiu.
Caminhei até a margem do açude, pensei que a terra era líquida e toquei-a
com o dedo do pé. Ondas se espalharam em círculos, no capim.
Qual a profundidade do solo? Quase fiz a pergunta em voz alta. O solo será
da profundidade que eu pensar que seja. Sessenta centímetros, pensei, terá 60
centímetros de profundidade e vou tocar o fundo.
Pisei na margem, confiante, e afundei, cabeça e tudo, caindo
instantaneamente. Estava escuro lá embaixo, assustador, e lutei para voltar à
tona, prendendo a respiração, agitando os braços para encontrar um pouco de
água sólida onde pudesse me agarrar.
Ele ficou sentado na grama, rindo de mim.
- Você é um discípulo notável, sabia disso?
- Não sou discípulo coisa nenhuma! Tire-me daqui!
-Saia sozinho.
Parei de me debater. Imaginando a terra líquida novamente sólida, posso
sair direto. Assim fiz... e saí, coberto de uma crosta de poeira preta.
- Rapaz, a gente se suja mesmo fazendo isso! A sua camisa azul e seu jeans
estavam sem manchas e sem uma poeirinha sequer.
- Aaaa! - Sacudi a poeira do meu cabelo, bati na cabeça para tirá-la dos
ouvidos. Por fim larguei a carteira na grama, fui até a água líquida e me limpei da
maneira tradicional.
- Sei que existe um meio melhor de me limpar do que este.
- Há um meio mais rápido, sim.
- Não me conte, claro. Fique aí rindo de mim, deixando que eu imagine
tudo sozinho.
-OK.
Por fim tive de voltar ao Fleet, pingando água, e trocar de roupa,
pendurando as roupas molhadas nos cabos do avião, para secarem.
- Richard, não se esqueça do que fez hoje. É fácil esquecer os nossos
momentos de conhecimento, pensar que foram sonhos ou velhos milagres, um
dia. Nada de bom é milagre, nada de lindo é um sonho.
- O mundo é um sonho, diz você, e é lindo, às vezes. O pôr-do-sol. Nuvens.
Céu.
- Não. A imagem é um sonho. A beleza é real. Pode ver a diferença?
Assenti com a cabeça, quase compreendendo. Mais tarde olhei
disfarçadamente o manual.
O mundo
é o seu caderno, as páginas
em que você faz suas somas.
Não é a realidade,
embora você possa exprimir a realidade
ali, se quiser.
Você também
tem liberdade de escrever tolices,
ou mentiras, ou rasgar
as páginas.
12
o
pecado original é
limitar o Ser.
Não o faça.
Você sabe atravessar paredes, não sabe, Don?
-Não.
- Quando responde “não” a alguma coisa que sei que é “sim”, isso
quer dizer que não gostou da minha maneira de formular a pergunta.
- Somos muito observadores, não é? - disse ele.
- O problema é com atravessar ou com paredes?
- Sim, e pior ainda. A sua pergunta supõe que existo em um lugar-tempo
limitado e passo a outro lugar-tempo. Hoje não estou disposto a aceitar suas
suposições a meu respeito.
Fechei a cara. Ele sabia o que eu estava perguntando. Por que não me dava
uma resposta direta e me deixava tentar descobrir como fazia essas coisas?
- É a minha maneira de ajudá-lo a ser preciso em seu raciocínio - disse ele,
com brandura.
- OK. Você pode criar a ilusão de que é capaz de atravessar paredes, se
quiser? A pergunta assim está melhor?
- Sim. Melhor. Mas se deseja ser preciso...
- Não me diga. Sei como dizer o que quero dizer. Eis a minha pergunta:
como é que você pode mover a ilusão de um senso limitado de identidade,
expressa nessa crença de um espaço-tempo contínuo como o seu “corpo”, através
da ilusão de restrição material que se chama “parede”?
- Bem feito! - disse ele: - Quando você formula a pergunta direito, ela já
encerra a sua própria resposta, não?
- Não, a resposta não se respondeu por si. Como é que você atravessa as
paredes?
- RICHARD! Você estava quase acertando e estragou tudo! Não sei
atravessar paredes... Ao dizer isso, você está supondo coisas que não suponho, e
se as suponho, a resposta é: “Não sei”.
- Mas é difícil dizer tudo com tanta precisão, Don. Não sabe o que quero
dizer?
- Então, só porque alguma coisa é difícil, você desiste de fazê-la? Andar a
princípio era difícil, mas você praticou e agora faz com que pareça algo fácil.
Dei um suspiro.
- É. OK. Esqueça a pergunta.
- Vou esquecer. O que pergunto é: você esquecerá?
Ele me olhou como se não tivesse nenhuma preocupação na vida.
- Você está dizendo que o corpo e a parede são ilusões, mas a identidade é
real e isso não pode ser restringido pelas ilusões - disse eu.
- Não estou dizendo isso. Você é que o está fazendo.
- Mas é verdade.
- Naturalmente - disse ele.
- Como é que você faz?
- Richard, você não faz nada. Você já vê a coisa feita; ela existe.
- Puxa, isso parece fácil.
- É a mesma coisa que caminhar. Não imagina como foi difícil para você
aprender.
- Don, atravessar paredes para mim agora não é difícil, é impossível.
- Você acha que se disser impossível várias vezes, mil vezes, de repente as
coisas difíceis se tornarão fáceis?
- Desculpe.É possível, e farei isso quando for a hora certa.
- Ele anda sobre a água, pessoal, e está desanimado porque não atravessa
paredes.
- Mas aquilo foi fácil e isso...
- Valorize suas limitações e terá de conservá-las - entoou ele. - Há uma
semana, você não nadou dentro da própria terra?
-Isso eu fiz.
- E a parede não é apenas uma terra vertical? Importa-lhe tanto assim a
direção em que segue a ilusão? As ilusões horizontais são conquistáveis, mas as
verticais não o são?
- Acho que estou começando a entendê-lo, Don.
Olhou-me e sorriu.- Quando começo a me fazer entender, está na hora de
deixá-lo sozinho por uns momentos.
O último prédio da cidade era um armazém de rações e cereais, um lugar
grande, feito de tijolos cor de laranja. Era como se ele tivesse resolvido tomar um
caminho diferente de volta aos aviões, usando algum beco secreto como atalho.
Esse atalho era através da parede de tijolos. Virou abruptamente para a direita,
para dentro da parede, e desapareceu. Hoje penso que, se tivesse virado
imediatamente com ele, também poderia ter atravessado. Mas parei na calçada e
fiquei olhando para o lugar em que ele estivera. Quando estendi a mão e toquei a
parede, era de tijolos, tijolos sólidos.
- Um dia, Donald - disse eu. - Um dia... Segui sozinho o resto do caminho
de volta aos aviões.
- Donald - disse, ao chegar ao campo - cheguei à conclusão de que você não
vive neste mundo.
Ele me olhou, sobressaltado, de cima da asa, onde estava aprendendo a pôr
gasolina no tanque.
- Claro que não. Pode apontar uma pessoa que viva?
- O que quer dizer, se posso apontar uma pessoa que viva? EU! Eu vivo
neste mundo!
- Excelente - disse ele, como se, por um estudo independente, eu tivesse
descoberto um mistério oculto.- Lembre-me para convidá-lo para almoçar hoje...
Fico maravilhado porque você nunca pára de aprender.
Fiquei intrigado com aquilo. Ele não estava sendo sarcástico nem irônico;
falava sério.
- O que quer dizer? Claro que vivo neste mundo. Eu e mais uns quatro
bilhões de outras pessoas. Você é que...
- Ah, Deus, Richard! Você está falando sério! Cancele o almoço. Nem
hambúrguer, nem refresco, nada! E eu que estava pensando que você tivesse
atingido esse conhecimento importante...
Interrompeu-se e me olhou com uma compaixão zangada.
- Você tem certeza disso. Vive no mesmo mundo, não é, que um... corretor
de valores, digamos? A sua vida foi toda desmantelada, imagino, pela nova
política monetária - revisão, obrigatória nos ministérios, com um prejuízo para o
investimento dos acionistas de mais de 50%? Você vive no mesmo mundo que
um jogador de xadrez de campeonatos? Com o Campeonato Aberto de Nova
York sendo realizado esta semana, com Petrosian, Fischer e Browne em
Manhattan por um prêmio de meio milhão de dólares, o que você está fazendo
num pasto em Maitland, Ohio? Você, com o seu biplano Fleet 1929 pousado num
campo de uma fazenda, tendo como prioridades essenciais de vida a permissão
do fazendeiro, as pessoas que querem passear de avião por dez minutos, a
manutenção de motor de aviões Kinner e um medo mortal de tempestades de
granizo... quantas pessoas acha que vivem em seu mundo? Você diz que quatro
bilhões de pessoas vivem em seu mundo? Você está aí na minha frente me
dizendo que quatro bilhões de pessoas não vivem em quatro bilhões de mundos
diferentes, quer me explicar isso?
Ele estava ofegante com aquele discurso rápido demais.
- Já estava quase sentindo o gosto daquele hambúrguer, com o queijo se
derretendo... - disse eu.
- Desculpe. Eu teria tido muito prazer em comprá-lo. Mas, ah, isso passou, é
melhor esquecer.
Embora tenha sido esta a última vez em que o acusei de não viver neste
mundo, levei muito tempo para compreender as palavras do manual:
Se
você treinar
para ser uma ficção
por algum tempo, compreenderá
que os personagens de ficção às
vezes são mais reais do que
pessoas de carne e osso
e corações pulsando.
13
A sua
consciência é
a medida da
honestidade de seu egoísmo.
Escute-a com
cuidado.
Somos todos livres para fazer o que quisermos fazer - disse ele,
naquela noite. - Isso não é simples, limpo e claro? Não é uma bela
maneira de se dirigir o Universo?
- Quase. Você se esqueceu de uma parte bem importante - disse eu.
- Ah, é?
- Somos todos livres para fazer o que quisermos, contanto que não
prejudiquemos os outros - ralhei. - Sei que você quer dizer isso, mas deve dizer o
que quer dizer.
Ouvimos um ruído de arrastar de pés no escuro, e olhei depressa para ele.
-Ouviu isso?
- Ouvi. Parece que é alguém... Levantou-se e foi andando pelo escuro. De
repente riu, e disse um nome que não entendi.
- Está certo - eu o ouvi dizer. - Não, teremos prazer em sua companhia...
não precisa ficar aí de pé... venha, seja bem-vindo, mesmo...
A voz tinha um sotaque forte, não era propriamente russo, nem tcheco,
parecia mais da Transilvânia.
- Obrigado. Não quero importuná-los com minha presença...
O homem que trouxe consigo para junto do fogo era, bem, era uma figura
invulgar para se encontrar no Meio-Oeste, de noite. Um sujeitinho pequeno,
magro, com cara de lobo, de aspecto assustador, vestido a rigor, uma capa preta
forrada de cetim vermelho, que estava incomodando com a luz.
- Estava passando - disse ele. - O campo é um atalho, para a minha casa...
- É mesmo?
Shimoda não estava acreditando no homem, sabia que ele estava mentindo,
e ao mesmo tempo se esforçava ao máximo para não dar uma gargalhada. Eu
esperava poder compreender dentro em pouco.
- Esteja à vontade - disse eu. - Podemos ajudá-lo em alguma coisa?
Não me sentia assim com tanta vontade de ajudá-lo, mas era tão tímido, que
queria pô-lo à vontade, se conseguisse.
Olhou-me com um sorriso desesperador, que me fez gelar.
- Sim, pode me ajudar. Preciso muito disso, caso contrário não pediria.
Posso beber o seu sangue? Só um Pouco? É o meu alimento, preciso de sangue
humano.Talvez fosse o sotaque, mas não entendi suas palavras; pus-me de pé o
mais depressa possível, o capim voando para dentro do fogo, com a minha
rapidez.
O homem recuou. Em geral, sou inofensivo, mas não sou pequeno, e posso
ter parecido ameaçador. Ele virou a cabeça para o outro lado.
- Senhor, sinto muito! Desculpe. Por favor, esqueça o que disse sobre o
sangue! Mas sabe...
- O que está dizendo? - Eu estava ainda mais feroz por estar amedrontado. -
Que diabo está dizendo, homem? Não sei o que você é, mas é alguma espécie de
VAM...?
Shimoda me interrompeu antes que pudesse completar a palavra.
- Richard, o nosso convidado estava falando e você o interrompeu. Por
favor continue, senhor; o meu amigo é um pouco apressado.
- Donald, este camarada...
- Fique quieto!
Aquilo me surpreendeu tanto que fiquei quieto, e olhei com uma espécie de
indagação apavorada para o homem, que agora se parecia bastante, de fato, com
um vampiro humano, atraído do escuro pelo nosso fogo.
- Por favor, compreendam. Não fui eu que escolhi nascer vampiro. É
infelicidade. Não tenho muitos amigos. Mas tenho de ter certa quantidade de
sangue fresco toda noite, senão me contorço com dores terríveis. Se passar mais
tempo sem ele, morro! Por favor, ficarei muito mal, morrerei, se não me permitir
sugar o seu sangue... uma pequena quantidade, preciso apenas de meio litro.
Deu um passo em minha direção, lambendo os lábios, achando que de
algum modo Shimoda me controlava e faria com que eu me submetesse.
- Mais um passo e haverá sangue, sim. Moço, se me tocar, morrerá...
Não o teria matado, mas queria pelo menos detê-lo até termos conversado
mais.
Deve ter acreditado em mim, pois parou e suspirou. Virou-se para Shimoda.
- Já conseguiu o que queria?
- Acho que sim. Obrigado.
O vampiro me olhou e sorriu, completamente à vontade, divertindo-se
imensamente, como um ator num palco após a peça.
- Não beberei o seu sangue, Richard - disse então, num inglês perfeito e
com simpatia, sem qualquer sotaque. Enquanto olhava para ele, foi sumindo,
como se estivesse apagando sua própria luz... em cinco segundos desapareceu.
Shimoda tornou a sentar-se junto ao fogo.
- Como estou contente que você não fale a sério!
Ainda estava tremendo, da adrenalina, pronto para a minha luta contra o
monstro.
- Don, não sei bem se fui feito para isto. Talvez seja bom você me contar o
que está acontecendo. Como, por exemplo, o que... era aquilo?
- Dot era um vampiro da Transilvânia - disse ele, em tom mais estranho do
que o do vampiro. - Ou, para ser mais preciso, Dot era a. forma de pensamento de
um vampiro da Transilvânia. Se algum dia você quiser explicar alguma coisa, e
achar que a pessoa não está escutando, arranje uma forminha de pensamento para
demonstrar o que quer dizer. Acha que exagerei, com a capa, os dentes e aquele
sotaque? Estava muito apavorante para você?
- A capa foi de primeira, Don. Mas foi o mais estereotipado, bárbaro... não
fiquei nada apavorado.
Ele suspirou.
- Ah, bem. Pelo menos você entendeu o que eu queria dizer, e é isso que
interessa.
-O que era?
- Richard, ao demonstrar-se tão feroz contra o meu vampiro, você estava
fazendo o que queria fazer, mesmo sabendo que iria prejudicar outra pessoa. Ele
chegou a lhe dizer que passaria mal se...
- Queria sugar o meu sangue!
- É isso que fazemos com qualquer pessoa quando dizemos que passaremos
mal se não viverem do nosso jeito!
Fiquei calado muito tempo, pensando. Sempre achara que somos livres para
fazer o que quisermos desde que não nos façamos mal mutuamente, e isso não
condizia com o que acontecera. Faltava alguma coisa.
- O que o intriga - disse ele - é uma frase feita que, na verdade, é
impraticável. A questão é fazer mal aos outros. Nós mesmos escolhemos se
vamos ser feridos ou não, aconteça o que acontecer. Somos nós que resolvemos,
e mais ninguém. O meu vampiro lhe disse que passaria mal se você não
aceitasse? Isso foi a sua decisão de ser ferido, foi a sua escolha. O que você faz a
respeito é a sua decisão, a sua escolha: dá-lhe o sangue; não faz caso dele;
amarra-o; enfia um galho de azevinho no coração. Se ele não quiser o galho de
azevinho, tem liberdade de resistir, do jeito que desejar. E isso continua
indefinidamente, escolhas e mais escolhas.
- Pensando assim...
-Escute - disse ele - é importante. Somos todos livres para fazer o que
quisermos fazer.
14
Cada pessoa,
todos os jatos de sua vida
ali estão porque
você os pôs ali.
O que jazer
com eles cabe a você
resolver.
Você nunca se sente só, Don? - Foi no café em Ryerson, Ohio, que
lembrei de perguntar.
- Espanta-me que...
- Psiu - disse eu. - Ainda não acabei com as perguntas. Você nunca se sente
nem um pouco só?
- O que você considera...
- Espere. Toda essa gente, só a vemos por alguns minutos. De vez em
quando vejo um rosto no meio do povo, alguma mulher linda, brilhante como
uma estrela, e me dá vontade de ficar e falar com ela, ficar ali parado, sem me
mexer e conversar um pouco. Mas ela voa comigo durante dez minutos, ou não
voa, e vai embora e no dia seguinte parto para Shelbyville e nunca mais a vejo.
Isso é solidão, Mas imagino que eu não possa ter amigos duradouros, quando eu
mesmo não sou duradouro.
Ele ficou calado.
- Ou será que posso?
- Posso falar agora?
- Creio que sim. - Os hamburgers naquele café vinham embrulhados pela
metade em papel encerado fino, e quando eram desembrulhados as sementes de
gergelim se espalhavam por toda parte - coisinhas inúteis, mas os hamburgers
eram bons.
Ele comeu calado e eu também, imaginando o que ele diria.
- Bem, Richard, somos ímãs, não somos? Imãs, não. Somos ferro,
envolvido em fio de cobre, e sempre que queremos magnetizar-nos podemos
fazê-lo. Se despejarmos a nossa voltagem interna pelo fio, podemos atrair tudo
que quisermos atrair. Um ímã não se preocupa com o modo como funciona. Ele é
ele mesmo, e por sua natureza atrai certas coisas, deixando outras intocadas.
Comi uma batata frita e franzi a testa, olhando para ele.
- Você omitiu uma coisa. Como é que faço isso?
- Você não faz coisa alguma. A lei cósmica, lembra-se? Os semelhantes se
atraem. Basta você ser o que é, calmo e límpido e brilhante. Automaticamente,
enquanto brilhamos como somos, perguntando-nos a cada instante se é isso o que
realmente queremos fazer, só o fazendo quando a resposta for positiva, isso
automaticamente repele aqueles que nada têm a aprender com quem somos nós, e
atrai aqueles que têm, e cornos quais podemos aprender, também.
- Mas isso exige muita fé, e enquanto isso a gente fica muito só.
Ele olhou para mim estranhamente, por cima do hambúrguer que comia.
- A fé é uma mistificação. Não precisa de fé nenhuma. Precisa mas é de
imaginação. - Ele limpou a mesa entre nós, empurrando para o lado o sal e as
batatas fritas, o ketchup, garfos e facas, e fiquei pensando o que iria acontecer, o
que se materializaria diante dos meus olhos.
- Se você tiver a imaginação como um grão de gergelim - disse ele,
empurrando uma semente como exemplo para o meio da clareira -todas as coisas
lhe serão possíveis.
Olhei para a semente de gergelim, e depois para ele.
- Eu gostaria que vocês Messias se juntassem e se pusessem de acordo.
Pensei que o negócio fosse ter fé, quando o mundo se vira contra mim.
- Não. Eu quis corrigir isso, quando trabalhava, mas a luta foi árdua e longa.
Há dois mil anos, há cinco mil anos, não existia uma palavra para imaginação, e a
fé foi o melhor que conseguiram arranjar para um bando solene de adeptos. Além
disso, não tinham sementes de gergelim.
Eu sabia que tinham sementes de gergelim, sim, mas deixei passar aquela
inverdade.
- Então devo imaginar essa magnetização? Imagino alguma linda dama,
sábia e mística, aparecendo no meio do povo de um campo de feno em Tarragon,
no Illinois? Posso fazer isso, mas é só isso, é apenas a minha imaginação.
Ele olhou para o céu com um ar de desespero, céu que no momento era
representado pelo teto de chapa de metal e luz fria do Café Em e Edna.
- Apenas a sua imaginação? Claro que é a sua imaginação! Este mundo é a
sua imaginação, já se esqueceu disso? Onde está o seu pensamento, aí está a sua
experiência; Conforme o homem pensar, assim será ele; Aquilo que receei
aconteceu-me; Pense e enriqueça: Visualização criativa para o divertimento e
lucro; Como encontrar amigos sendo quem você é. A sua imaginação não muda o
Ser em nada, não afeta a realidade em absoluto. Mas estamos falando sobre
mundos da Warner Brothers, vidas da MGM, e cada segundo dessas vidas são
ilusões e imaginações. Todos sonhos como símbolos que nós, sonhadores
despertos, conjuramos para nós. Ele alinhou seu garfo e faca, como se estivesse
construindo uma ponte do lugar dele até ao meu.
- Você quer saber o que dizem os seus sonhos? É o mesmo que olhar para
as coisas de sua vida desperto e perguntar-lhes o que representam. Você, com os
aviões em sua vida, cada vez que se vira.
- Bem, Don, sim. - Eu preferia que ele fosse mais devagar, e não me
empilhasse isso tudo de uma vez; um quilômetro e meio por minuto é depressa
demais para idéias novas.
- Se você sonhasse com aviões, o que é que isso significaria para você?
- Bom, a liberdade. Sonhos com aviões são uma fuga e eu me libertando.
- E ainda quer maior clareza? O sonho desperto é o mesmo: a sua vontade
de livrar-se de todas as coisas que o prendem... a rotina, a autoridade, a
caceteação, a gravidade. O que você ainda não entendeu é que já está livre, e
sempre esteve. Se você tivesse a metade das sementes de gergelim disso... você
já é o senhor supremo da sua vida de mágico. Apenas a imaginação! O que é que
você está dizendo?
A garçonete olhava para ele com estranheza, de vez em quando, enxugando
a louça, escutando, matutando quem seria aquele homem.- Então você nunca se
sente só, Don? - perguntei.
- A não ser que sinta vontade disso. Tenho amigos em outras dimensões que
se encontram em volta de mim, de vez em quando. E você também.
- Não. Estou falando desta dimensão, esse mundo imaginário. Mostre-me o
que você quer dizer, dê-me um milagrezinho do ímã... Quero mesmo aprender
isso.
- É você quem vai mostrar-me - disse ele. - para pôr alguma coisa em sua
vida, imagine que ela já está aí.
- Como o quê? Como a minha linda dama?
- Qualquer coisa. Não a sua dama. Uma coisa pequena, a princípio.
- Devo praticar agora?
- Sim.
- OK... Uma pena azul.
Ele olhou para mim francamente..
- Richard? Uma pena azul?
- Você disse qualquer coisa.
Ele deu de ombros.
- OK. Uma pena azul. Imagine a pena. Visualize-a claramente, de modo a
poder ver todas as suas linhas e bordas, a ponta, o cálamo. Só por um minuto.
Depois pare.
Fechei os olhos, por um minuto e vi com nitidez, em minha mente, uma
imagem de uns 12 centímetros de comprimento, de um azul iridescente,
prateando-se nas bordas. Uma pena brilhante e nítida flutuando no escuro.Envolva-
a numa luz dourada, se quiser. Essa é uma técnica que ajuda a tornar a
coisa real, mas também funciona no magnetismo.
Envolvi a pena num brilho dourado.
-OK.
- Pronto. Pode abrir os olhos agora.
Abri os olhos.
- Onde está a minha pena?
- Se estava nítida em seu pensamento, nesse instante mesmo ela o estará
atropelando como um caminhão.
- Minha pena? Como um caminhão?
- Em sentido figurado, Richard.
Durante toda a tarde esperei que a pena aparecesse e nada aconteceu. Foi de
tardinha, na hora do jantar, comendo um hambúrguer, que eu a vi. Numa
figurinha no invólucro do leite. Embalada para a Leiteria Scott pelas Fazendas da
Pena Azul, Bryan, Ohio.
- Don! A minha pena! Ele olhou e deu de ombros.
- Pensei que quisesse a pena de verdade.
- Bem, qualquer pena serve, para começar, não acha?
- Você viu a pena sozinha, ou a estava segurando na mão?
- Sozinha.
- Então está explicado. Se você quiser estar com aquilo que está
magnetizando, tem de se colocar na cena, também. Desculpe-me por não ter
esclarecido esse ponto.
Uma sensação estranha, bizarra. Funcionava! Tinha conscientemente
magnetizado a minha primeira coisa.
- Hoje uma pena - disse eu - amanhã o mundo!
- Cuidado, Richard - disse ele, me provocando - ou se arrependerá...
15
A
verdade que você
fala não tem passado
nem futuro.
É,
e é tudo que
precisa ser.
E u estava deitado de costas debaixo do Fleet, limpando o óleo da parte
inferior da fuselagem. Não sei como, o motor estava espirrando
menos óleo do que antes. Shimoda levou um passageiro num vôo e
depois veio sentar-se na grama perto de mim enquanto eu trabalhava.
- Richard, como é que você pode ter esperanças de impressionar o mundo
quando todas as outras pessoas trabalham para viver e você vive de modo
irresponsável, dia a dia, no seu biplano maluco, vendendo passeios? -Estava metestando de novo. - É uma pergunta que lhe vão fazer mais de uma vez.
- Bem, Donald. Primeira Parte: Não existo para impressionar o mundo.
Existo para viver a minha vida de um modo que me faça feliz.
-OK. Segunda Parte?
- Segunda Parte: Todo mundo é livre para fazer o que quiser para ganhar a
vida. Terceira Parte: O Responsável é Capaz de Responder, capaz de responder
pelo jeito de viver que escolhemos. Só há uma pessoa a quem temos de dar
satisfações, claro, o que é...?
-... Nós mesmos - disse Don, respondendo em nome da multidão imaginária
de pesquisadores sentados em volta de nós.
- Não temos nem de responder a nós mesmos, se não o quisermos... Não há
nada de mau em ser irresponsável. Mas a maioria de nós acha mais interessante
saber como agimos do jeito que agimos, por que escolhemos certas coisas... quer
seja olhar para um passarinho, pisar numa formiga ou trabalhar por dinheiro em
alguma coisa que preferíamos não fazer. - Fiz uma careta. - Será uma resposta
muito comprida?
Ele concordou.
- Muito comprida.
- OK... Como é que você espera impressionar o mundo... - Saí de sob o
avião e descansei um momento na sombra das asas. - Que tal permitir que o
mundo viva como quiser e me permitir viver como eu quiser.
Lançou-me um sorriso feliz e orgulhoso.
- Falou como um verdadeiro Messias! Simples, direto, e isto não responde à
pergunta, a não ser que alguém se dê ao trabalho de pensar bem a respeito.
- Experimente mais comigo.
Era uma delícia ver a minha própria mente funcionar, quando fazíamos isso.
- “Mestre” - disse ele. - “Quero ser amado, sou bondoso, faço aos outros o
que quero que me façam, mas apesar de tudo não tenho amigos e estou sozinho.”
Como vai responder a isso?
- Sei lá - disse eu. - Não tenho a menor idéia do que vou dizer.
-O QUÊ?
- É só uma piadinha, Don, para animar a noite. Piadinha para variar.
- Acho bom ter muito cuidado com essa história de animar a noite, Richard.
Os problemas não são brincadeiras e jogos para as pessoas que o procuram, a não
ser que estejam mesmo muito adiantadas, e esse tipo é sempre o seu próprio
Messias. Está recebendo as respostas, portanto apresente-as. Experimente esse
negócio de “sei lá” e verá com que rapidez a multidão pode queimar um sujeito
na fogueira.
Eu me aprumei, orgulhoso.
- Ó vós que buscais, vinde a mim procurando uma resposta e a vós
responderei: O Mandamento de Ouro não funciona. Gostaríeis de encontrar um
masoquista que fizesse aos outros o que desejaria que lhe fizessem? Ou um
adorador do Deus Crocodilo, que anseia pela honra de ser lançado vivo ao poço?
Até mesmo o Samaritano, que começou tudo isso... O que o levou a pensar que o
homem que encontrou deitado à margem da estrada queria que lhe pusessem
ungüento nas feridas? E se o homem estivesse aproveitando aqueles momentos
de sossego para se curar espiritualmente, apreciando aquele desafio? - Aquilo me
pareceu convincente .
“Mesmo que o Mandamento fosse mudado para Fazei aos outros o que
querem que lhes façam, não podemos saber ao certo o que os outros desejam que
lhes façam. O que o Mandamento significa e o modo de aplicá-lo com
honestidade é o seguinte: Fazei aos outros o que realmente quereis fazer aos
outros. Se vos defrontardes com um masoquista com esse mandamento, não
tereis de açoitá-lo com seu chicote simplesmente porque seria isso que ele
desejaria que lhe fizésseis. Tampouco tereis de lançar o adorador aos crocodilos.
- Olhei para ele. - Muito prolixo?
- Como sempre. Richard, você vai perder 90% de seu público se não
aprender a ser breve!
- Bem, e que mal há em perder 90% de meu público? - Retruquei. - Que mal
há em perder TODO o meu público? Sei o que sei e digo o que digo! E se estiver
errado, então sinto muito. Os vôos de avião são três dólares, dinheiro sonante!
- Sabe de uma coisa? - disse ele.
Shimoda levantou-se, espanando o capim de seus blue jeans.
- O quê? - perguntei, petulante.
- Você acabou de se diplomar. Que tal ser Mestre?
- Muito frustrante.
Olhou-me com um sorriso infinitesimal.
- A gente se acostuma - disse ele.
Eis aqui
um teste para verificar
se a sua missão na terra está
cumprida:
Se você está vivo,
não está.
16
As lojas de ferragens são sempre compridas, com prateleiras que se
estendem eternamente.
Fui à Loja de Ferragens de Hayward, pois precisava de porcas,
pinos e arruelas de segurança para o deslizador da cauda do Fleet. Shimoda
olhava as coisas, com paciência, enquanto eu procurava, pois ele, naturalmente,
não precisava de nada de uma loja de ferragens. A economia entraria em colapso,
pensei, se todos fossem como ele, fabricando o que quisessem de formas de
pensamento e do ar, consertando as coisas sem peças nem mão-de-obra.
Afinal encontrei a meia dúzia de porcas de que precisava e levei-as ao
balcão, onde o dono da loja tocava uma música suave. Greensleeves, uma
melodia que me acompanha alegremente desde menino, era tocada agora numa
flauta em um sistema de som escondido... Estranho encontrar aquilo numa cidade
de 400 habitantes.
Quando acabou, era estranho para Hayward, também, pois não havia
sistema de som algum. O proprietário estava sentado inclinado para trás em seu
banquinho de madeira, escutando Shimoda tocar as notas num violão barato, de
seis cordas, da prateleira dos saldos. Era um som lindo e fiquei ali quieto,
pagando os 73 centavos e novamente encantado com a melodia. Talvez fosse o
tom metálico do instrumento, mas ainda parecia longínquo e nublado, como se da
Inglaterra do outro século.
- Donald, que beleza! Não sabia que toca violão.
- Não sabia? Você acha então que alguém podia chegar perto de Jesus
Cristo, dar-lhe um violão e ouvi-lo dizer: “Não sei tocar esse negócio.” Ele teria
dito isso?
Shimoda recolocou o instrumento no lugar e saiu comigo.
- Se aparecesse alguém falando russo ou persa, você acha que algum mestre
que mereça a sua aura não saberia o que estava sendo dito? Se ele quisesse dirigir
um trator D-10 ou pilotar um avião, não saberia fazê-lo?
- Então você realmente sabe todas as coisas, não é?
- E você também, naturalmente. Só que eu sei que sei todas as coisas.
- Eu poderia tocar violão assim?
- Não, você teria o seu estilo, diferente do meu.
- Como é que se faz?
Não pretendia correr de volta e comprar o violão, estava apenas curioso.
- É só largar todas as inibições e idéias de que não sabe tocar. Pegue naquilo
como se fizesse parte de sua vida, como de fato faz, em alguma vida alternada.
Saiba que o certo é você tocá-lo bem, e deixe que o seu ser não-consciente tome
conta de seus dedos e toque.
Lera alguma coisa a respeito disso, a aprendizagem hipnótica, em que se
dizia aos discípulos que eles eram mestres de arte, e assim tocavam, pintavam e
escreviam como artistas.
- É uma coisa difícil, Don, deixar de saber que não sei tocar violão.
- Então será difícil para você tocar violão. Levará anos de prática até
conseguir fazê-lo direito, até que a sua mente consciente lhe diga que você já
sofreu bastante e conquistou o direito de tocar bem.
- Por que não custei a aprender a pilotar? Dizem que é difícil, mas aprendi
rápido.
- Você queria voar?
- Nada me interessava mais! Mais que tudo! Olhava para as nuvens e para a
fumaça da chaminé de manhã, subindo reta e calma, e via... Ah, já sei. Você vai
dizer: “Nunca sentiu isso quanto aos violões, não é?”
- Nunca sentiu isso quanto aos violões, não é?
- E essa sensação de desânimo que estou sentindo agora mesmo, Don, me
diz que foi assim que você aprendeu a pilotar. Simplesmente entrou no Travel
Air, um dia, e o pilotou. Nunca tinha estado num avião antes.
-Não.
- Você não fez exame para tirar o seu breve? Não, espere. Você não tem
breve algum, tem? Um breve direito.
Ele me olhou de um modo estranho, com um sussurro de sorriso, como se
eu o estivesse desafiando a apresentar um brevê e ele soubesse que podia fazê-lo.
- Você quer dizer, aquele papel, Richard? Esse tipo de licença?
- Sim, o pedaço de papel.
Não pôs a mão no bolso, nem tirou a carteira. Apenas abriu a mão direita e
lá estava um breve de aviador, como se estivesse esperando que eu perguntasse
por ele. Não estava desbotado nem amassado, e achei que dez segundos antes
nem sequer existia.
Mas peguei-o. Era um certificado oficial de piloto, com o carimbo do
Departamento dos Transportes, Donald William Shimoda, com um endereço em
Indiana, piloto comercial licenciado para pilotar aviões terrestres, monomotores e
múltiplos, para vôo com instrumentos e planadores.
- Não tem licença para pilotar hidroaviões ou helicópteros?
- Terei, se precisar - disse ele, tão misteriosamente que arrebentei de rir
antes dele começar a rir.
O homem que varria a calçada olhou para nós e também sorriu.
- E eu? - perguntei. - Quero minha licença para avião comercial.
- Você vai ter de forjar suas próprias licenças - respondeu.
17
N o programa de entrevistas de rádio de Jeff Sykes, vi um Donald
Shimoda que nunca havia visto. O programa começou às nove horas
e foi até a meia-noite, numa sala não maior do que uma oficina de
relojoeiro, cheia de botões, painéis e prateleiras de rolos de anúncios.
Sykes começou perguntando se não havia algo de ilegal no fato de uma
pessoa andar pelo país voando num avião antigo, levando passageiros.
A resposta é não, não há nada de ilegal nisso, os aviões são inspecionados
com o mesmo cuidado que os jatos. São mais fortes e seguros do que a maioria
dos modernos aviões de placas metálicas; as únicas exigências são o brevê e a
permissão do fazendeiro. Mas Shimoda não disse nada disso.
- Ninguém nos pode impedir de fazer o que queremos fazer, Jeff - disse ele.
Ora, isso é bem verdade, mas não tem a diplomacia necessária quando se
está falando com um público radiofônico que quer saber o que está acontecendo
com esses aviões voando por aí. Um minuto depois, os telefones começaram a
piscar na mesa de Sykes.
- Temos um telefonema na linha 1 - disse Sykes. - Pode falar, senhora.
- Estou no ar?
- Sim, senhora, está no ar e o nosso convidado é o Sr. Donald Shimoda,
piloto de aviões. Pode falar, está no ar.
- Bem, quero dizer a esse camarada que nem todo mundo consegue fazer o
que quer e algumas pessoas têm de trabalhar para ganhar a vida e têm um pouco
mais de responsabilidade do que andar voando por aí!
- As pessoas que trabalham para ganhar a vida estão fazendo o que mais
gostam de fazer - disse Shimoda. - Tanto quanto as pessoas que brincam para
ganhar a vida...
- O evangelho diz: “Pelo suor do teu rosto ganharás o teu pão, e no pesar
comerás dele.”
- Estamos livres para fazer isso, também, se o quisermos.
- “Façam o que quiserem!” Estou farta de ouvir gente como você dizer isso!
O que quiserem! Deixem todos às soltas, e destruirão o mundo. Já estão
acabando com o mundo neste momento. Veja o que está acontecendo com as
plantas, os rios e os oceanos!
Ela lhe deu 50 possibilidades de resposta diferentes e ele ignorou todas.
- Não faz mal que o mundo seja destruído - disse ele. - Existem mais um
bilhão de outros mundos para nós criarmos e escolhermos. Enquanto as pessoas
quiserem planetas, haverá planetas onde poderão viver.
Isso não era propriamente uma coisa que acalmasse a pessoa no telefone e
olhei para Shimoda, espantado. Estava falando do seu ponto de vista de
perspectivas de muitas vidas, em que todas as coisas se equilibram. Quem
telefonava naturalmente estava supondo que a conversa tinha a ver com a
realidade deste mundo único, em que o nascimento é o início, e a morte, o fim.
Ele sabia disso... por que o ignorava?
- Está tudo bem, é? - disse a pessoa, no telefone. - Não existe o mal na terra,
nem pecado em volta de nós? Isso não o incomoda, não é?
- Nada nisso deve nos incomodar, senhora. Vemos apenas um pinguinho do
conjunto que é a vida, e esse pinguinho é falso. Tudo se equilibra e ninguém
sofre e morre sem o seu próprio consentimento. Ninguém faz o que não quer
fazer. Não existe o bem nem o mal, além do que nos torna felizes e do que nos
torna infelizes.
Nada acalmava a senhora no telefone. Mas, de repente, ela parou e disse,
com simplicidade:
- Como é que sabe tudo isso que diz? Como é que sabe que o que diz é
verdade?
- Não sei se é verdade - disse ele. - Acredito nisso porque é divertido
acreditar.
Apertei os olhos. Ele podia ter dito que tinha experimentado e que
funcionava... As curas, os milagres, a vida prática, que tornavam seus
pensamentos verdadeiros e funcionais. Mas não disse nada. Por quê?
Havia um motivo. Eu estava com os olhos semi-cerrados, a maior parte da
sala era cinza, só uma imagem turva de Shimoda se inclinando para falar no
microfone. Ele dizia tudo diretamente, sem fazer paralelos, sem qualquer esforço
para ajudar as pessoas a compreenderem.
- Todas as pessoas que já realizaram algo, todas as que já foram felizes,
todas as que já deram alguma dádiva ao mundo foram almas divinamente
egoístas, vivendo em seu próprio interesse. Sem exceção.
O seguinte era um homem, enquanto a noite voava.
- Egoístas! Cavalheiro, sabe o que é o Anticristo?
Por um segundo, Shimoda sorriu e se descontraiu na cadeira. Parecia que
conhecia a pessoa no telefone pessoalmente.
- Talvez o senhor me queira dizer - disse ele.
- Cristo falou que temos de viver para os nossos semelhantes. O Anticristo
disse para sermos egoístas, vivermos para nós e deixarmos os outros irem para o
inferno.
- Ou para o céu, ou para onde queiram ir.
- O senhor é perigoso, sabe disso, cavalheiro? E se todo mundo lhe desse
ouvidos e fizesse o que bem entendesse? O que acha que aconteceria então?
- Acho que este seria provavelmente o planeta mais feliz desta parte da
galáxia - disse ele.
- Cavalheiro, não sei bem se quero que meus filhos ouçam o que está
dizendo.
- O que é que seus filhos querem ouvir?
- Se somos todos livres para fazer o que quisermos, então tenho a liberdade
de ir para esse campo com a minha espingarda e dar um tiro nessa sua cabeça de
burro.
- Claro que tem liberdade para fazer isso. Ouviu-se um estalo forte na linha.
Em algum lugar naquela cidade havia pelo menos um homem zangado. Os
outros, bem como as mulheres zangadas, estavam no telefone; todos os botões da
máquina estavam acesos e piscando.
Não precisava ser assim; ele poderia ter dito as mesmas coisas de modo
diferente sem melindrar ninguém.
Caía sobre mim a mesma sensação que tivera em Troy, quando o povo
irrompeu e o cercou. Estava na hora, era evidente que estava na hora de irmos
andando.
O Manual não ajudou nada, ali no estúdio.
A fim de
viver livre e feliz,
você tem de sacrificar
o tédio.
Nem sempre o sacrifício
é fácil.
Jeff Sykes contara a todo mundo quem éramos, que os nossos aviões
estavam parados no campo de feno de John Thomas, e que dormíamos de noite
sob as asas.
Senti aquelas ondas de raiva, de gente assustada pela moral de seus filhos e
pelo futuro do modo de vida americano, e nada daquilo me deixou muito feliz.
Ainda havia uma meia hora de programa, e tudo estava ficando cada vez pior.
- Sabe, moço, acho que você é um impostor - disse um outro ao telefone.
- Claro que sou um impostor! Somos todos impostores neste mundo, todos
fingimos ser alguma coisa que não somos. Não somos corpos andando por aí, não
somos átomos nem moléculas, somos idéias imortais e indestrutíveis do Ser, por
mais que acreditemos em outras coisas...
Ele teria sido o primeiro a me lembrar que eu tinha a liberdade de partir, se
não gostasse do que estava dizendo, e teria rido de meus receios de multidões
pretendendo nos linchar, esperando com tochas junto aos aviões.
18
Não fique
triste nas despedidas.
Uma despedida é necessária antes
de vocês poderem se encontrar
outra vez.
E se encontrar de novo,
depois de momentos ou
de vidas, é certo para
os que são
amigos.
N o dia seguinte, ao meio-dia, antes das pessoas chegarem para voar,
ele parou junto à minha asa.
- Lembra-se do que você disse quando descobriu o meu problema,
que ninguém havia de escutar, por mais milagres que eu realizasse?
-Não.
- Lembra-se daquele tempo, Richard?
- Sim, me lembro. Você pareceu tão solitário, de repente. Não me lembro
do que eu disse.
- Você disse que se eu dependesse das pessoas se importarem com o que eu
digo estaria dependendo dos outros para a minha felicidade. Foi isso que vim
aprender aqui: não importa que eu me comunique ou não. Escolhi toda essa vida
para partilhar com qualquer pessoa o modo como o mundo é feito, e bem podia
tê-la escolhido para não dizer coisa alguma. O Ser não precisa de mim para dizer
às pessoas como funciona.
- Isso é óbvio, Don. Eu podia lhe ter dito isso.
- Muito obrigado. Descubro a única idéia que motivou essa minha vida,
concluo o trabalho de toda uma vida e ele diz: “Isso é óbvio, Don.”
Estava rindo, mas também estava triste, e na ocasião eu não sabia por quê.
19
A marca
de sua ignorância é a profundidade
da sua crença na injustiça
e na tragédia.
O que a lagarta
chama de fim do mundo,
o mestre chama de
borboleta.
As palavras do Manual na véspera foram o único aviso que tive. Num
segundo, havia o grupo normal de pessoas, esperando para voar, o
avião dele taxiando na chegada, parando num remoinho de vento da
hélice, uma cena natural e boa para mim, que olhava de cima da asa do Fleet,
enquanto punha gasolina no tanque. No segundo seguinte ouviu-se um barulho
como o de um pneu explodindo e o povo também explodiu e correu. O pneu do
Travel Air estava intacto, o motor girava em ponto morto como o fazia um
momento antes, mas havia um buraco de cerca de 30 centímetros na tela por
baixo da cabina do piloto. Shimoda estava jogado do outro lado, a cabeça caída,
sem se mexer.Gastei alguns milésimos de segundo para compreender que Donald
Shimoda levara um tiro, e outros para largar a lata de gasolina e saltar de cima da
asa, correndo. Parecia uma cena de um filme, uma peça representada por
amadores, um homem com uma espingarda fugindo com todos os outros, tão
perto de mim que o poderia ter cortado com um sabre. Lembro-me agora que ele
não me interessou. Não estava enraivecido, chocado ou mesmo horrorizado. A
única coisa que importava era chegar à cabina do Travel Air o mais depressa
possível e falar com o meu amigo.
Parecia que ele tinha sido atingido por uma bomba, a metade esquerda do
seu corpo era só couro, pano e carne despedaçados, e sangue, uma massa
ensopada e vermelha.
Sua cabeça estava abaixada junto ao botão impressor de combustível, no
canto direito inferior do painel de instrumentos, e de repente pensei que; se
estivesse com seu cinto de segurança, não teria sido impelido para a frente
daquele jeito.
- Don! Você está bem? - Palavras de tolo.
Abriu os olhos e sorriu. Seu próprio sangue estava espalhado por seu rosto.
- Richard, como é que está?
Senti um alívio enorme ao ouvi-lo falar. Se podia falar, se podia pensar,
estaria bem.
- Bem, se não soubesse, meu chapa, diria que você está com um problema e
tanto.
Ele não se mexeu, a não ser a cabeça, um pouquinho, e de repente fiquei
outra vez assustado, mais pela sua quietude do que pela sujeira e pelo sangue.
- Não pensei que tivesse inimigos.
- Não tenho. Esse foi... um amigo. É melhor não ter... alguém cheio de ódio
criar uma porção de problemas... na vida dele... me assassinando.
O assento e os painéis do lado da cabina estavam cheios de sangue - seria
um trabalho e tanto limpar o Travel Air de novo, embora o avião em si não
estivesse muito danificado.
- Isso tinha de acontecer, Don?
- Não... - disse ele, numa voz fraca, mal respirando. - Mas acho... gosto do
drama...
- Bem, vamos andando! Cure-se! Com o pessoal que vem chegando, vamos
ter que voar muito!
Mas enquanto brincava com ele, a despeito de toda a sua sabedoria e
compreensão da realidade, o meu amigo Donald Shimoda caiu em direção ao
botão da gasolina e morreu.
Ouvi um tumulto, o mundo tombou e escorreguei pelo lado da fuselagem
rasgada para o capim vermelho e molhado. Parecia-me que o peso do Manual no
meu bolso me inclinava para o lado, e quando bati em terra ele caiu, o vento
lentamente folheando as páginas.
Apanhei-o, sem forças. Será assim que termina, pensei, será que tudo o que
um Mestre diz não passa de um amontoado de palavras bonitas que não o podem
salvar do primeiro ataque de um cão danado?
Tive de ler três vezes antes de conseguir acreditar que fossem aquelas as
palavras na página.
Tudo
neste livro
pode estar
errado.
Epílogo
No outono, eu tinha ido para o sul, com o calor. Os campos bons eram
poucos, mas o povo aumentava cada vez mais. As pessoas sempre gostaram de
voar no biplano, e naqueles tempos mais e mais ficavam para conversar e tostar
os marshmallows na minha fogueira.
De vez em quando alguém que não estava realmente muito mal dizia que se
sentia melhor depois das conversas, e as pessoas no dia seguinte me olhavam
com estranheza e se aproximavam curiosas. Mais de uma vez parti cedo.
Não aconteciam milagres, embora o Fleet funcionasse melhor do que nunca,
e com menos gasolina. Tinha parado de vazar óleo e quase cessara de matar
insetos com a hélice e o pára-brisa. O ar mais frio, com certeza, ou então os
camaradinhas estavam ficando mais espertos e se desviavam.
Não obstante, o -tempo parará para mim naquele meio-dia de verão em que
Shimoda fora morto. Era um fim que não conseguia entender e no qual não
acreditava: rememorava aquilo mil vezes, esperando que, de algum modo,
pudesse mudar. Mas nunca mudou. O que eu deveria ter aprendido naquele dia?
Uma noite, em fins de outubro, depois de tomado pelo medo, largar uma
multidão em Mississippi, desci num lugarzinho vazio, justo o tamanho suficiente
para o Fleet pousar.
Mais uma vez, antes de adormecer, pensei naquele último momento - por
que ele morreu? Não havia motivo para isso. Se o que ele disse era verdade...
Agora não havia ninguém com quem conversar, com quem aprender,
ninguém para perseguir e atacar com minhas palavras, para afiar a minha mente
recém-aguçada. Eu? Sim, mas eu não era nem de longe tão divertido quanto o
fora Shimoda, que ensinava me mantendo sempre na defensiva com o meu caratê
espiritual.
Pensando nisso dormi, e, dormindo, sonhei.
Ele estava ajoelhado na grama de uma campina, de costas para mim,
remendando o buraco no lado do Travel Air, onde estivera o furo da rajada da
espingarda. Havia um rolo de tela de avião Tipo-A e uma lata de verniz de
butirato ao seu lado.
Sabia que estava sonhando e também que isso era real.
-DON!
Levantou-se devagar e virou-se, sorrindo diante de meu pesar e minha
alegria.
- Oi, cara - disse ele.
Eu mal enxergava, por causa das lágrimas. Não existe a morte, não existe
morte alguma e aquele homem era meu amigo.
- Donald!. Você está vivo! O que está tentando fazer? - Corri, abracei-o e
ele era real. Senti o couro do seu casaco de aviador, apertei seus braços dentro do
casaco.
- Oi - disse ele. - Você se importa? O que estou tentando fazer é remendar
esse buraco aqui.
Estava tão contente por vê-lo que nada era impossível.
- Com o verniz e a tela? - perguntei. - Com o verniz e a tela você está
tentando remendar...? Não é assim que se faz, a gente o vê perfeito, já pronto...
Ao dizer essas palavras passei minha mão sobre o buraco sangrento e
esfarrapado e, quando a tirei, o buraco sumira. Restava ali apenas um avião
intacto, pintado como um espelho, a tela sem costuras, do nariz à cauda.
- Então é assim que você o faz! - disse ele, os olhos escuros orgulhosos do
aprendiz vagaroso que afinal se saíra bem como mecânico espiritual.
Não achei estranho: no sonho, era aquela a maneira de fazer o serviço.
Havia uma frigideira sobre a fogueira ao lado da asa.
- Está cozinhando alguma coisa, Don! Sabe, nunca o vi cozinhar. O que é?
Pão de panela - disse ele, com displicência. - A última coisa que quero
fazer em sua vida é lhe mostrar como se faz isso.
Cortou dois pedaços com o canivete e me deu um deles. O gosto ainda está
comigo, enquanto escrevo... gosto de serragem e cola de livro velha, aquecida em
banha.
- Que tal? - perguntou ele.
- Don...
- A Vingança do Fantasma - riu-se ele. - Fiz isso com gesso.
Pôs o seu pedaço de volta na frigideira.
- Para lembrar-lhe que, se algum dia quiser fazer alguém aprender, faça-o
com a sua sabedoria, e não com o seu pão de panela, OK?
- NÃO! Se me ama, ama o meu pão de panela! É o esteio da vida, Don!
- Muito bem. Mas posso garantir: o seu primeiro jantar com qualquer
pessoa será o último, se lhe der esse negócio.
Nós nos rimos e nos calamos, e olhei para ele, no silêncio.
- Don, você está bem, não está?
- Espera que eu esteja morto? Ora vamos, Richard!
- E isso não é um sonho? Não me esquecerei de que o vi agora?
- Não. Isso é um sonho. É um espaço-tempo diferente e qualquer espaço-
tempo diferente é um sonho para um bom ajuizado, coisa que você ainda será por
algum tempo. Mas você se lembrará, e isso transformará o seu pensamento e a
sua vida.
- Eu o verei de novo? Você vai voltar?
- Não creio. Quero passar além dos tempos e espaços... Já estou lá, para
dizer a verdade. Mas há esse laço entre nós, entre mim e você e os outros de
nossa família. Você encontra um problema, fica com ele na cabeça, vai dormir e
nos encontramos aqui junto ao avião e conversamos a respeito, se você quiser.
- Don...
-O quê?
- Por que a espingarda? Por que aconteceu? Não vejo poder nem glória em
se ter o coração despedaçado e arrancado do corpo.
Sentou-se no capim junto da asa.
- Como eu não era um Messias iniciante, Richard. Não tinha de provar nada
a ninguém. E como você precisa ser treinado para não se perturbar com as
aparências, nem se entristecer com elas - acrescentou ele, pesadamente -você
pode aproveitar algumas aparências sangrentas no seu treinamento. E é divertido
para mim, também. Morrer é como mergulhar num lago profundo num dia
quente. Há o choque da mudança brusca e fria, a dor, por um segundo, e depois a
aceitação é o nadar na realidade. No entanto, depois de tantas vezes, até mesmo o
choque se atenua.
Depois de algum tempo se levantou.
- Só algumas pessoas se interessam pelo que você tem a dizer, mas não faz
mal. Não se julga a qualidade do Mestre pelo tamanho do seu público, lembre-se.
- Don, vou tentar, prometo. Mas fugirei para sempre assim que parar de me
divertir com esse trabalho.
Ninguém tocou no Travel Air, mas sua hélice girou, seu motor soltou uma
fumaça azul fria, e o ruído rico e límpido ressoou na campina.
- Promessa aceita, mas... - ele me olhou e sorriu, como se não me
compreendesse.
- Mas o quê? Fale. Palavras. Diga-me. O que há de errado?
- Você não gosta das multidões - disse ele.
- Não me puxando, não. Gosto de conversar e trocar idéias, mas aquele
negócio de adoração por que você passou, e a dependência... Espero que você
não me peça... Já fugi...
- Talvez eu seja apenas burro, Richard, e talvez não veja algo de óbvio que
você vê perfeitamente, e se não o vejo, quer fazer o favor de me dizer o que é?
Mas por que não escrevê-lo num papel? Existe uma regra segundo a qual um
Messias não pode escrever o que acredita ser verdade, as coisas que o divertiram,
que funcionam para ele? Se as pessoas não gostarem do que ele diz, quem sabe,
em vez de o matarem, poderão queimar suas palavras, bater nas cinzas com um
pau? E se gostarem, podem tornar a ler as palavras, ou escrevê-las na porta de
uma geladeira, ou brincar com as idéias que fazem sentido para elas. Há algum
mal em escrever? Mas talvez eu seja apenas um idiota.
- Num livro?
- Por que não?
- Você sabe o trabalho que dá...? Fiz um voto de não escrever mais uma
palavra em minha vida!
- Ah. Desculpe - disse ele. - Aí está. Não sabia disso.
Pisou na asa inferior do avião e depois entrou na cabina.
- Bem, até qualquer dia. Fique firme, e tudo o mais. Não deixe que as
multidões peguem você. Tem certeza de que não quer escrever?
- Nunca - disse eu. Nunca mais, nem uma palavra.
Deu de ombros, calçou as luvas, empurrou o manete para a frente e o ruído
do motor explodiu e girou em volta de mim até eu despertar sob a asa do Fleet
com os ecos do sonho ainda nos ouvidos.
Estava sozinho e o campo estava quieto como a neve verde do outono sobre
a madrugada e o mundo.
Então, só de brincadeira, ainda sem ter despertado completamente, peguei o
meu diário e comecei a escrever, um Messias num mundo de outros, sobre o meu
amigo:
1. Houve um Mestre que
veio à Terra, nascido na
terra santa de Indiana,
Fim do livro
OBRAS DO AUTOR
FERNÃO CAPELO GAIVOTA
ILUSÕES
O DOM DE VOAR
LONGE É UM LUGAR QUE NÃO EXISTE
O PARAÍSO É UMA QUESTÃO PESSOAL
(Crônicas selecionadas de O Dom de Voar)