howard fast espartaco;
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Howard Fast
Espártaco
Howard Fast
Espártaco
Tradução de Tati de Morais
Digitalização:
Argonauta, 'o anarquista 1'
Este livro é para minha filha Rachel e para meu filho Jonathan. É uma história de homens e mulheres indô-mitos que viveram há muito tempo, mas cujos nomes jamais foram esquecidos. Os heróis desta história ama-vam a liberdade e a dignidade e viveram nobre e hon-radamente. Possam os que a lerem dela tirar forças para o nosso futuro conturbado e, também, lutar contra a o-pressão e o mal, a fim de que o sonho de Espártaco se realize em nosso tempo.
Esta história começa no ano 71 a.C.
PRIMEIRA PARTE
De como Caio Crasso
Fez uma Jornada pela Estrada
De Roma a Cápua, no Mês de Maio.
I
É dos anais que, desde meados do mês de março, a estrada de Roma, Cidade Eterna, para a menor porém não menos bela ci-dade de Cápua, novamente se abriu ao público; mas não quer is-to dizer que o tráfego nessa estrada voltasse imediatamente ao normal. O fato é que, durante os últimos quatro anos, nenhuma estrada da República tivera mais o próspero e pacífico fluxo de comércio e gente que se deveria esperar de uma estrada romana. Os distúrbios, em maior ou menor medida, haviam ocorrido por toda parte, e não teria sido incorreto dizer que a estrada entre Roma e Cápua se tornara um símbolo dessa agitação. Costuma-va-se dizer que as estradas eram a imagem de Roma; se nelas havia paz e prosperidade, o mesmo acontecia na cidade.
Apregoava-se que qualquer cidadão livre, com negócios em Cápua, podia viajar para realizar ali suas transações, mas os pas-seios não eram ainda aconselhados àquela bela cidade. Entretan-to, com o passar do tempo, e com o chegar da suave e aprazível primavera sobre as terras de Itália, cessaram essas restrições, e, mais uma vez, a famosa arquitetura e as esplêndidas paisagens de Cápua, atraíram os romanos.
Além das belezas naturais da zona de Campânia, os que apre-ciavam perfumes finos, mas que se rebelavam contra os seus preços, em Cápua aliavam o prazer ao lucro. Ali ficavam situa-das as grandes fábricas de perfume, as melhores do mundo intei-ro, e para Cápua eram exportados essências e óleos raros de to-das as partes da terra, aromas exóticos, óleo de rosas egípcio, a essência dos lírios de Sabat, as papoulas da Galiléia, o óleo de âmbar gris e a casca de limões e laranjas, a folha da hortelã e da salva, pau-rosa e sândalo, e assim por diante. Em Cápua o per-fume podia ser comprado por menos da metade do preço que se cobrava em Roma e quando se considera a crescente populari-dade das essências naquela época, tanto para homens como para mulheres — e também a necessidade que delas sentiam — po-de-se compreender que só por esta razão valia a pena empreen-der uma viagem a Cápua.
II
A estrada foi aberta em março e, dois meses depois, em mea-dos de maio, Caio Crasso, sua irmã Helena e sua amiga Cláudia Mário se dispuseram a passar uma semana com parentes em Cá-pua. Saíram de Roma na manhã de um dia luminoso e fresco, um dia perfeito para a viagem, e sendo todos eles jovens, brilha-vam-lhes os olhos, alegres e encantados com a viagem e as a-venturas que por certo lhes adviriam. Caio Crasso, um rapaz de 25 anos, cujos cabelos negros caíam em anéis abundantes e ma-cios e cujas feições regulares lhe tinham valido a reputação de belo, além de bem nascido, montava um garboso cavalo árabe branco, presente de aniversário que lhe dera o pai no ano anteri-or, e as duas moças viajavam em liteiras abertas. Cada liteira era carregada por escravos treinados em estradas e que podiam fazer dez milhas de marcha uniforme, sem descanso. Seu plano era passar cinco dias em viagem, hospedando-se cada noite na casa de campo de algum amigo ou parente, e, desta forma, por etapas fáceis e agradáveis, chegar a Cápua. Antes de encetar a viagem, sabiam que a estrada estava pontilhada de símbolos de castigo mas não consideravam que isso pudesse vir a perturbá-los. Na verdade, a curiosidade das moças estava excitada pelas descri-ções que tinham ouvido, e Caio tinha sempre uma reação agra-dável, um tanto terna com relação a tais coisas, e também orgu-lhava-se de seu estômago e do fato de que tais espetáculos em geral não o perturbavam.
— Afinal de contas — argumentava ele para as moças — é melhor olhar para um crucifixo do que estar nele.
— Olharemos só para a frente — disse Helena.
Era mais bonita do que Cláudia, que era loura mas negligente, tez pálida e olhos desbotados e um ar de fadiga que cultivava.
Tinha um corpo roliço e atraente, mas Caio a julgava bastante tola e não compreendia o que poderia sua irmã nela encontrar — um problema que decidira resolver nessa viagem. Várias vezes, em ocasiões anteriores, se propusera a seduzir a amiga de sua irmã, mas sempre esta decisão se desfazia diante de seu desinte-resse negligente, atitude não somente em relação a ele, mas ge-neralizada. Era entediada, e Caio tinha a certeza que só esse té-dio a impedia de ser totalmente insuportável. Sua irmã era dife-rente. Excitava-o de forma perturbadora; era alta como ele e- com ele muito se parecia, e considerada bonita pelos homens que não se deixavam intimidar pela sua firmeza e energia. A ir-mã excitava-o, e tinha consciência de que, ao planejar essa via-gem a Cápua, tivera também a intenção de resolver de alguma forma esse interesse. Sua irmã e Cláudia formavam uma combi-nação estranha porém satisfatória, e Caio esperava acontecimen-tos compensadores durante a jornada.
A poucas milhas de Roma, começaram os símbolos de casti-go. Havia um local onde a estrada cruzava um terreno baldio de pedras e areia, numa extensão de alguns acres, e a pessoa encar-regada da exibição, procurando causar efeito, escolhera o sítio para o primeiro crucifixo. A cruz, cortada em pinho novo e resi-noso, e colocada no alto de uma pequena elevação, destacava-se hirta e solitária, formando ângulo contra o céu da manhã, tão grande e impressionante — propositadamente maior, por ser a primeira — que mal se notava o corpo nu do homem a ela preso. Estava ligeiramente inclinada, como acontece algumas vezes com os crucifixos mais pesados, e isto salientava a sua qualida-de bizarra, semí-humana. Caio deteve seu cavalo e logo o enca-minhou para o crucifixo; e, com um pequeno gesto da mão, He-lena ordenou aos escravos da liteira que o seguissem.
— Podemos descansar, ó senhora, ó senhora? — murmurou o marcador de passo da liteira de Helena, quando pa^aram^em frente ao crucifixo. Era espanhol, e falava um latim errado e he-sitante.
— Naturalmente — disse Helena. Tinha apenas 23 anos, mas já manifestava firmeza de caráter, como todas as mulheres de sua família, e desprezava a crueldade inútil para com os ani-mais, fossem escravos ou bestas. Os escravos então baixaram suavemente as liteiras e sentaram-se de cócoras, agradecidos, junto a elas.
A poucos metros do crucifixo, numa cadeira de palha prote-gida por um toldo remendado, estava sentada um homem gordo e amável, denotando distinção e pobreza. Sua distinção estava manifesta na múltipla papada e na dignidade do imenso ventre, e sua pobreza, em que havia muito de indolência, era evidente nas roupas pobres e rasgadas, nas unhas sujas e na barba por fazer. Sua amabilídade era a máscara fácil do político profissional; e logo no primeiro relance podia-se ver que, durante anos, fre-qüentara o Fórum, o Senado, e também as prisões. Ali estava, agora, a um passo da mendicância com apenas uma manta num portal romano; no entanto, a voz lhe saía da garganta com a ro-busta charlatanice de um vendedor de feira. Assim eram os aza-res da guerra, explicou aos viajantes. Alguns escolhiam o lado certo com incrível facilidade. Ele sempre escolhera o lado erra-do, e inútil dizer que ambos eram essencialmente a mesma coisa. Por isso ali estava, agora, mas homens melhores do que ele ti-nham tido ainda menos sorte.
— Perdoai-me por não me levantar, meu nobre senhor e mi-nhas nobres damas, mas o coração... o coração. — E colocou a mão sobre o imenso ventre, na área adequada. — Vejo que via-jais cedo, e cedo é o que convém por ser a melhor hora para as jornadas. Cápua?
— Cápua — disse Caio.
— Cápua, é claro. Linda cidade, bela cidade, encantadora ci-dade, uma verdadeira jóia de cidade. Sem dúvida, para visitar parentes?
— Sem dúvida — respondeu Caio. As moças sorriam. O homem gordo era um grande palhaço- Logo sua dignidade se desfez. Convinha-lhe mais ser palhaço para aqueles jovens. Caio compreendeu que se tratava de uma questão de dinheiro, mas não se importou. Como nunca lhe tivesse faltado dinheiro para todas as suas necessidades e caprichos e, por outro lado, como desejava impressionar as moças com a sua generosidade, não poderia desejar melhor oportunidade que a que lhe aparecia ago-ra, na pessoa daquele palhaço gordo.
— Agora vedes em mim um guia, um contador de histórias, um pequeno executor de castigos e justiça. Mas não é o que faz um juiz? A posição é diferente; entretanto, não será melhor acei-tar com pejo um denarius do que mendigar?...
As moças não podiam tirar os olhos do homem morto, pendu-rado na cruz. Seu corpo nu, enegrecido pelo sol, picado por a-ves, estava agora diretamente sobre elas. Corvos esvoaçavam em seu redor. Moscas passeavam-lhe pela pele. O corpo penden-te da cruz parecia estar sempre caindo, sempre em movimento, um grotesco movimento da morte. A cabeça pendia para a frente e os longos cabelos ruivos encobriam o horror que teriam ex-primido suas feições.
Caio deu uma moeda ao homem gordo; o agradecimento não foi maior do que o correspondente. Os liteireiros continuavam acocorados em silêncio, os olhos no chão, sem um olhar sequer para o crucifixo; treinados eles eram e habituados a estradas.
— Este, por assim dizer, é simbólico — disse o homem gor-do. — Senhora minha, não o fiteis como se fosse humano ou horrível. Roma dá e Roma toma, e mais ou menos, a punição es-tá de acordo com o crime. Este aqui, isolado, atrai vossa atenção para o que se seguirá. Entre Roma e Cápua, sabeis quantos?
Sabiam, mas esperaram que ele lhes dissesse. Havia naquele homem gordo e jovial uma precisão que descrevia o indescrití-vel. Ele era a prova de que aquilo não era indescritível, mas sim comum e natural. Iria dar-lhes uma cifra exata. Podia não ser certa, mas seria precisa.
— Seis mil quatrocentos e setenta e dois — disse.
Alguns dos liteireiros estremeceram. Não repousavam, esta-vam rígidos. Se alguém os tivesse observado, notaria isto. Mas ninguém os observava.
— Seis mil quatrocentos e setenta e dois — repetiu o gordo.
— Quanta lenha — foi a observação adequada de Caio. He-lena sabia que era uma impostura, mas o homem gordo abanou a cabeça, concordando. Agora estavam entendidos. Tirando das dobras de sua túnica um bastão, o homem apontou para o cruci-fixo.
— Este... apenas um símbolo. O símbolo de um símbolo, por assim dizer.
Cláudia teve um risinho nervoso.
— Não obstante, de interesse e importância. É com razão que está isolado. A razão é Roma e Roma é razoável. — Ele gostava das máximas.
— É Espártaco? — perguntou Cláudia tolamente. Mas o homem gordo foi paciente em sua resposta. A maneira pela qual passou a língua nos lábios, provava que sua atitude paternal es-condia uma certa emoção, o que levou Caio a pensar: "Velho lúbrico!"
— Não poderia ser Espártaco, minha cara.
— O corpo de Espártaco nunca foi encontrado — disse Caio impaciente.
— Trucidado — disse o gordo pomposamente. — Feito em pedaços, minha cara jovem. Uma idéia horrível para um espírito tão delicado, mas esta é a verdade. . .
Cláudia estremeceu, mas com delícia, e Caio viu-lhe nos o-lhos uma luz que nunca antes notara. "Cuidado com os julga-mentos superficiais", recomendara-lhe certa vez seu pai e, ainda que tivesse em mente questões mais importantes do que as mu-lheres, a advertência se aplicava também ao caso. Cláudia nunca o fitara como fitava agora o homem gordo, que continuou:
— ... a pura verdade. E agora dizem que Espártaco nunca existiu. Ah! existo eu? Existis vós? Existem ou não existem seis mil quatrocentos e setenta e dois cadáveres pendurados em crucifixos daqui a Cápua, ao longo da Via Ápia? Existem ou não existem? Se existem! E permiti que lhes faça outra pergun-ta, meus jovens senhores: por que tantos? Um símbolo de puni-ção é um símbolo de punição. Mas, por que seis mil quatrocen-tos e setenta e dois?
— Os cães o mereciam — respondeu Helena calmamente.
— Mereciam mesmo? — o gordo teve um trejeito sofisticado de sobrancelhas. Era um homem da sociedade, queria deixar isto bem claro, e se eles estavam em posição mais elevada eram bas-tante jovens para se deixar impressionar. — Talvez merecessem, mas por que abater tanta carne quando não se vai comê-la? Eu vos digo: é porque mantém os preços altos, estabiliza as coisas. E, acima de tudo, resolve algumas questões delicadas de propri-edade. Aí tendes a resposta num breve resumo. Quanto a este — apontou com o bastão — olhai-o bem. Fairtrax, o gaulês, muito importante, muito importante. Muito chegado a Espártaco, e eu o vi morrer. Sentado aqui mesmo, eu o vi morrer. Foram neces-sários quatro dias. Forte como um touro. Uma resistência ina-creditável. Esta cadeira me foi emprestada por Sexto, da Tercei-ra Prisão. Vós o conheceis? Um cavalheiro, um grande cavalhei-ro, e que me tem em muita estima. Ficaríeis surpresos em saber quanta gente veio vê-lo morrer, e valia mesmo a pena olhar. Não que eu lhes pudesse cobrar uma entrada... mas as pessoas dão, quando recebem alguma coisa de volta. O justo se paga com o justo. Eu me dei ao trabalho de me informar. É surpreendente a profunda ignorância das gentes com relação às guerras de Espár-taco. Agora, por exemplo, esta jovem me pergunta se o crucifi-cado é Espártaco. Uma pergunta natural. Mas seria extremamen-te pouco natural que fosse Espártaco. Vós, nobres, viveis uma vida protegida, muito protegida, do contrário esta jovem saberia que Espártaco foi trucidado de tal maneira que nunca dele se pôde encontrar um só fio de cabelo. Com este o caso é muito di-ferente... foi apanhado. É verdade que o retalharam um pouco... observai...
Com o bastão assinalou uma longa cicatriz num lado do cor-po na cruz.
— Alguns ferimentos, e muito interessantes... Só no lado e na frente. Nenhum nas costas. Não se deve apontar tais detalhes à ralé, mas posso dizer-vos que na verdade...
Os liteireiros agora o observavam e ouviam, os olhos luzindo sob os longos cabelos trançados.
— . . .esses eram os melhores soldados que jamais pisaram o solo italiano. Dá que pensar, realmente. Voltando ao nosso ami-go aqui acima, levou quatro dias para morrer e teria levado mui-to mais se não lhe tivessem aberto uma veia para sangrá-lo um pouco. Muita gente não sabe disso, mas é o que se deve fazer quando se crucifica alguém. Se não for sangrado, incha como uma bexiga. Mas se é sangrado direito, seca bem e pode ficar pendurado durante quase um mês com muito pouco cheiro. É o mesmo que charquear um pedaço de carne, e precisa-se de bas-tante sol' para ajudar. Este aqui era um destemido, insolente, or-gulhoso, mas.saiu perdendo. No primeiro dia ficou aí pendura-do, insultando todos os cidadãos decentes que se aproximavam para observá-lo. Uma linguagem horrível, inteiramente impró-pria aos ouvidos de uma dama. É o resultado da falta de educa-ção, um escravo é um escravo, mas não lhe guardo rancor. Aqui estava eu e ali estava ele, e de vez em quando eu lhe dizia: "Tua desgraça é minha fortuna e ainda que a tua maneira de morrer não seja das mais confortáveis, a minha maneira de ganhar a vi-da também nada tem de confortável. E ganharei ainda menos se continuares a usar esta linguagem". Isto não pareceu comovê-lo muito, mas, ao cair da noite do segundo dia, ele se calou. Sabe qual foi a última coisa que disse?
— O quê? — perguntou Cláudia baixinho.
— Voltarei e serei milhões. Só isto. Engraçado, não é?
— Que queria ele dizer? — perguntou Caio curioso. Contra sua própria vontade, o gordo o fascinava.
— Que queria ele dizer, meu jovem senhor? Sei tanto quanto vós, e ele nunca mais disse nada. Toquei-lhe o corpo um pouco, no dia seguinte, mas não disse uma só palavra, apenas me olhou com aqueles seus olhos injetados, como se me quisesse matar, mas não podia matar mais nada. Como vedes, minha cara jovem — voltava-se novamente para Cláudia — não era Espártaco, mas um seu lugar-tenente, um homem duro. Quase como Espár-taco, mas não tão duro. Espártaco, sim, é que era duro mesmo. Não gostaríeis de o encontrar um dia nesta estrada, mas não há nada mais a temer, pois está morto. E que mais quereis saber agora?
— Creio que já sabemos o bastante — disse Caio, lamentan-do agora o denário dado. — Vamos embora.
III
Naqueles dias, Roma era como um coração que, por meio de suas estradas, irrigava de sangue todos os cantos do mundo. Ou-tra nação qualquer teria vivido mil anos e construído talvez uma estrada inferior para ligar suas cidades principais. Com Roma era diferente. "Queremos uma estrada!", dizia o Senado. E ti-nham a capacidade de construí-la. Os engenheiros traçavam-na; os contratos eram distribuídos e os construtores reuniam suas equipes de trabalhadores que abriam a estrada como uma flecha, para onde quer que fosse sua direção. Se uma montanha surgia no meio do caminho, era varrida; se havia um vale profundo, uma ponte era lançada através dele; ou se um rio aparecesse pela frente, transpunham-no com uma ponte. Nada detinha Roma e nada detinha a estrada romana.
A estrada pela qual viajavam aqueles três jovens displicentes, do sul de Roma para Cápua, era chamada Via Ápia. Era uma es-trada larga e bem construída, com camadas alternadas de cinza vulcânica e cascalho e recoberta com pedras. Fora feita para du-rar. Quando os romanos construíam uma estrada, construíam-na não para um ou dois anos mas para séculos. Foi assim que se construiu a Via Ápia. Era um símbolo do progresso da humani-dade, da produtividade de Roma e da duradoura capacidade de organização do povo romano. Provava claramente que o sistema romano era o melhor até então planejado pelos homens, um sis-tema de ordem, justiça e inteligência. A evidência de inteligên-cia e ordem estava em toda parte, e a gente que viajava pela es-trada estava de tal forma habituada a este conceito que quase não mais se deixava impressionar.
Por exemplo, as distâncias não eram calculadas, mas especi-ficadas. Cada milha era assinalada por um marco. Cada marco dava a informação apropriada de que necessitava o viajante. Em cada ponto sabia-se precisamente a que distância se achava Ro-ma de Fórmia ou de Cápua. De cinco em cinco milhas havia uma estalagem e estrebarias, onde se podia encontrar cavalos, alimento, e, se necessário, pousada para a noite. Muitas dessas estalagens eram luxuosas, com amplas varandas onde se serviam bebidas e refeições. Outras dispunham de banheiros, onde os vi-ajantes esgotados podiam se refrescar e, ainda outras, de confor-táveis dormitórios. As estalagens mais novas eram edificadas no estilo dos templos gregos e aumentavam a beleza natural da pai-sagem.
Onde havia pântano ou depressão de terreno, a estrada era a-terrada, erguendo-se a três ou cinco metros acima do nível. On-de o terreno era acidentado, a estrada ou cortava o caminho a-través dele ou atravessava as gargantas sobre arcos de pedra.
A estrada proclamava a estabilidade romana e, por sua super-fície, trafegavam todos os elementos que a caracterizavam. Marchando por elas, soldados podiam fazer 30 milhas num só dia e repetir o feito dia após dia. Comboios de carga percorriam as estradas, transportando as mercadorias da República — trigo e cevada, minério de ferro, lenha, linho, lã, azeite, frutos, queijo e carne defumada. Pela estrada passavam cidadãos empenhados em negócios legítimos, nobres indo e vindo de suas casas de campo, viajantes comerciais e turistas, caravanas de escravos indo e vindo do mercado, gente de todas as terras e de todas as nações, todos eles provando a firmeza e a organização do domí-nio romano.
E nessa ocasião, ao longo da estrada, uma cruz se erguia de tantos em tantos metros e de cada uma pendia o cadáver de um homem.
IV
A manhã mostrou-se mais quente do que