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Khaled Hosseini O caçador de pipas.

Khaled Hosseini O caçador de pipas.

Khaled Hosseini

 

 

O caçador de pipas

 

 

Romance

 

TRADUÇÃO DE MARIA HELENA ROUANET

 

14° impressão

 

EDITORA

NOVA FRONTEIRA

 

 

 

 

Título original: THE KITE RUNNER Copyright © 2003 by Khaled Hosseini

 

Direitos de edição da obra em língua portuguesa no Brasil adquiridos pela EDITORA NOVA

FRONTEIRA S.A. Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta obra pode ser

apropriada e estocada em sistema de banco de dados ou processo similar, em qualquer

forma ou meio, seja eletrônico, de fotocópia, gravação etc., sem a permissão do detentor

do copirraite.

 

EDITORA NOVA FRONTEIRA S.A.

Rua Bambina, 25 - Botafogo - 22251-050

Rio de Janeiro - RJ - Brasil

Tel.: (21) 2131-1111 - Fax: (21) 2537-2659https://www.novafronteira.com.br

e-mail: sac@novafronteira.com.br

 

CIP-Brasil. Catalogação-na-fonte Sindicato Nacional dos Editores de Livros,

RJ.

 

H821c Hosseini, Khaled

O caçador de pipas / Khaled Hosseini; tradução Maria Helena Rouanet. -Rio deJaneiro : Nova Fronteira, 2005

 

Tradução de: The kite runner ISBN 85-209-1767-4

 

1. Amizade - Ficção. 2. Cabul (Afeganistão) - Ficção. 3. Romance afegão. I.

Rouanet, Maria Helena. II. Título.

CDD 891.593

CDU821.411.21(581)-3

 

 

 

Este livro é dedicado a Haris e Farab,

a noor dos meus olhos, e às crianças do Afeganistão.

 

d

AGRADECIMENTOS

 

 

Agradeço aos seguintes colegas por seus conselhos, sua ajuda ou seu apoio: dr. Alfred

Lerner, Dori Vakis, Robin Heck, dr. Todd Dray, dr. Robert Tull e dr. Sandy Chun.

Agradeço também a Lynette Parker, do East San José Community Law Center, por

seus esclarecimentos sobre os procedimentos da adoção, e ao sr. Daoud Wahab, por

compartilhar comigo suas experiências no Afeganistão. Toda minha gratidão ao meu

querido amigo Tamim Ansary, por suas sugestões e seu apoio, e à turma do San

Francisco Writers Workshop, por seu retorno e encorajamento. Gostaria de agradecer

a meu pai, a meu irmão mais velho e àquela que foi a inspiração para tudo o que há

de nobre no personagem de baba, minha mãe, que rezou por mim e fez nazr em cada

etapa da escrita deste livro; e a minha tia, que comprava livros para mim quando eu era

jovem. Agradeço também a Ali, Sandy, Daoud, Walid, Raya, Shalla, Zahra, Rob e

Kader, por lerem as minhas histórias. Quero ainda agradecer ao dr. e à sra. Kayoumy

 

— meus segundos pais —, por seu apoio caloroso e inabalável.

Preciso agradecer à minha agente e amiga, Elaine Koster, por sua sabedoria,

paciência e gentileza, bem como a Cindy Spiegel, minha editora de olhos argutos e

judiciosos, que me ajudou a abrir tantas portas nesta história. E gostaria de agradecer a

Susan Petersen Kennedy, que apostou neste livro, e a toda a incansável equipe da

Riverhead que trabalhou nele.

 

Por fim, não sei como agradecer à minha adorável esposa, Roya — em cujas

opiniões sou viciado —, por seu carinho e sua boa-vontade, e por ter lido, relido e me

ajudado a revisar cada versão deste romance. Pela sua paciência e pela sua

compreensão, vou amar você para sempre, Roya jan.

 

 

 

UM

 

 

Dezembro de 2001

 

Eu ME TORNEI o QUE sou HOJE aos doze anos, em um dia nublado e gélido do inverno de

1975. Lembro do momento exato em que isso aconteceu, quando estava agachado por

detrás de uma parede de barro parcialmente desmoronada, espiando o beco que ficava

perto do riacho congelado. Foi há muito tempo, mas descobri que não é verdade o que

dizem a respeito do passado, essa história de que podemos enterrá-lo. Porque, de um

jeito ou de outro, ele sempre consegue escapar. Olhando para trás, agora, percebo que

passei os últimos vinte e seis anos da minha vida espiando aquele beco deserto.

 

Um dia, no verão passado, meu amigo Rahim Khan me ligou do Paquistão. Pediu

que eu fosse vê-lo. Parado ali na cozinha, com o fone no ouvido, sabia muito bem que

não era só Rahim Khan que estava do outro lado daquela linha. Era o meu passado de

pecados não expiados. Depois que desliguei, fui passear pelo lago Spreckels, na orla

norte do parque da Golden Gate. O sol do início da tarde cintilava na água onde

navegavam dezenas de barquinhos em miniatura, impulsionados por um ventinho

ligeiro. Olhei então para cima e vi um par de pipas vermelhas planando no ar, com

rabiolas compridas e azuis. Dançavam lá no alto, bem acima das árvores da ponta

oeste do parque, por sobre os moinhos, voando lado a lado como um par de olhos

fitando San Francisco, a cidade que eu agora chamava de lar. E, de repente, a voz de

Hassan sussurrou nos meus ouvidos: "Por você, faria isso mil vezes!" Hassan, o menino

de lábio leporino que corria atrás das pipas como ninguém.

 

Sentei em um banco do parque, perto de um salgueiro. Pensei em uma coisa que

Rahim Khan disse um pouco antes de desligar, quase como algo que lhe houvesse

ocorrido no último minuto. "Há um jeito de ser bom de novo." Ergui os olhos para as

pipas gêmeas. Pensei em Hassan. Pensei em baba. Em Ali. Em Cabul. Pensei na vida

que eu levava até que aquele inverno de 1975 chegou para mudar tudo. E fez de mim

 

o que sou hoje.

 

 

DOIS

 

 

QUANDO ÉRAMOS CRIANÇAS, HASSAN e eu trepávamos nos choupos da entrada da casa de

meu pai e ficávamos chateando os vizinhos, usando um caco de espelho para mandar

reflexos de sol para as suas casas. Sentávamos um defronte do outro, nos galhos mais

altos, com os pés descalços pendurados no ar e os bolsos das calças cheios de amoras e

nozes secas. Ficávamos nos alternando com o espelho enquanto comíamos amoras,

jogando os frutos um no outro, entre risinhos e gargalhadas. Ainda posso ver Hassan

encarapitado naquela árvore, com o reflexo do sol faiscando por entre as folhas no seu

rosto quase perfeitamente redondo, um rosto de boneca chinesa talhado em madeira de

lei: o nariz grande e chato, os olhos puxados e oblíquos como folhas de bambu, uns

olhos que, dependendo da luz, pareciam dourados, verdes e até cor de safira. Ainda

posso ver as suas orelhas miúdas, dobradas feito conchas, e a protuberância do

queixo, um apêndice de carne que parecia ter sido acrescentado como simples

lembrança de última hora. E o lábio fendido, bem naquela linha do meio, em um ponto

em que a ferramenta escorregou, ou, quem sabe, foi apenas porque o artesão das

bonecas chinesas já estava cansado e se descuidou.

 

Às vezes, lá no alto daquelas árvores, dizia para Hassan pegar o estilingue e

atirar nozes no pastor alemão caolho do vizinho. Ele não queria, mas, se eu pedisse,

pedisse de verdade, ele não me diria não. Hassan nunca me negava nada. E era fera

com a atiradeira. Seu pai, Ali, sempre nos apanhava e ficava furioso, ou tão furioso

quanto possível, no caso de alguém gentil como Ali. Com o dedo em riste, mandava que

descêssemos da árvore. Pegava o espelho e repetia o que sua mãe lhe dizia: que o diabo

também faz os espelhos reluzirem, e faz isso para distrair os muçulmanos durante as

orações.

 

— E ri, depois que já conseguiu o que queria — acrescentava ele

invariavelmente, olhando para o filho com ar severo.

— Está bem, pai — murmurava Hassan, fitando os próprios pés. Mas ele nunca

me entregava. Nunca disse que tanto o espelho quanto as nozes atiradas no cachorro do

vizinho tinham sido idéia minha.

Os choupos margeavam o caminho de tijolos vermelhos que levava a um portão de

duas folhas, todo feito de ferro fundido. Por seu turno, este se abria para a rua que dava

 

 

 

acesso à propriedade de meu pai. A casa ficava à esquerda, e tinha um quintal nos

fundos.

 

Todos eram unânimes em dizer que meu pai, o meu baba, tinha construído a casa

mais bonita do distrito de Wazir Akbar Khan, um bairro novo e rico ao norte de

Cabul. Havia até quem dissesse que era a casa mais bonita de toda a cidade. Uma

ampla alameda ladeada por roseiras conduzia à casa espaçosa, com piso de mármore e

janelas enormes. Intrincados mosaicos de ladrilhos, que baba escolheu a dedo em

Isfahan, recobriam o chão dos quatro banheiros. Tapeçarias com fios dourados, que

baba comprou em Calcutá, revestiam as paredes. E um lustre de cristal pendia do teto

abobadado.

 

Meu quarto ficava no andar de cima, junto com o de meu pai e o seu escritório,

também conhecido como "sala de fumar", eternamente cheirando a tabaco e canela. Era

lá que baba e seus amigos se reclinavam nas poltronas de couro preto depois que Ali

tinha acabado de servir o jantar.

 

Todos enchiam os cachimbos — só que meu pai sempre dizia "engordar o

cachimbo" — e conversavam sobre os seus três assuntos favoritos: política, negócios,

futebol. Às vezes eu perguntava se podia ir sentar lá, junto com eles, mas baba ficava

parado na porta.

 

— Agora, vá — dizia ele. — Isso é coisa de gente grande. Por que não vai ler um

daqueles seus livros? — Fechava a porta e me deixava imaginando por que, com ele,

tudo era sempre coisa de gente grande. Sentava junto da porta, abraçando os joelhos

contra o peito. Algumas vezes ficava sentado ali uma hora, outras vezes, duas,

ouvindo as conversas e os risos deles.

A sala de estar, no andar térreo, tinha uma parede em arco, com estantes feitas

sob medida. Nelas ficavam os porta-retratos com as fotos de família: uma foto antiga e

desbotada de meu avô com o rei Nadir Shah, tirada em 1931, dois anos antes do

assassinato do rei; estavam parados junto de um veado morto, ambos usando botas de

cano alto e com rifles pendurados nos ombros. Tinha uma foto da festa do casamento

de meus pais: baba todo elegante em seu terno preto e minha mãe, uma princesinha

sorridente, vestida de branco. Ao lado, baba e seu sócio e melhor amigo, Rahim Khan,

parados diante da nossa casa. Nenhum dos dois está sorrindo. Nessa foto, sou um

bebê, no colo de meu pai, que tem um ar sério e cansado. Estou em seus braços, mas é

 

o mindinho de Rahim Khan que os meus dedos estão segurando.

Essa parede em arco dava para a sala de jantar em cujo centro havia uma mesa de

mogno com espaço de sobra para trinta convidados — e, considerando-se o gosto de

meu pai por festas extravagantes, era exatamente isto que acontecia quase toda semana.

Na outra ponta da sala, ficava uma grande lareira de mármore, sempre iluminada pelo

brilho alaranjado do fogo durante todo o inverno.

 

Uma grande porta de correr, envidraçada, se abria para uma varanda em

semicírculo que dava para os oito metros quadrados de terreno e as aléias de

cerejeiras. Baba e Ali tinham feito uma horta perto do muro que ficava do lado leste:

plantaram tomates, hortelã, pimenta e uma fileira de milho que nunca pegou de

verdade. Hassan e eu chamávamos aquele canto de "muro do milho doente".

 

Na parte sul do jardim, à sombra de um pé de nêspera, ficava a casa dos empregados,

uma casinha modesta onde Hassan morava com o pai.

Foi ali, naquele pequeno casebre, que Hassan nasceu no inverno de 1964, um ano

depois que minha mãe morreu durante o meu parto.

 

 

 

Nos dezoito anos que vivi em Cabul, só entrei na casa de Ali e Hassan umas

poucas vezes. Quando o sol começava a se pôr atrás das colinas, e tínhamos acabado

de brincar, nos separávamos. Eu passava pelas roseiras a caminho da mansão de

baba, Hassan ia para a casinha de pau-a~pique onde nasceu e morou por toda a vida.

Lembro que ela era minúscula, limpa e fracamente iluminada por dois ou três

lampiões de querosene. Havia dois colchões, em lados opostos da sala, um velho

tapete Herati, com uns rasgões no meio, um tamborete de três pernas e, em um canto,

uma mesa de madeira onde Hassan fazia os seus desenhos. As paredes eram nuas,

exceto por uma única tapeçaria bordada com contas que formavam as palavras Allah-

u-akbar. Um presente que baba trouxe para Ali de uma de suas viagens a Mashad.

 

Foi nesse casebre que Sanaubar deu à luz Hassan, em um dia frio do inverno de

1964. Enquanto minha mãe morreu de hemorragia durante o parto, Hassan perdeu a

sua menos de uma semana depois de nascer. E para um destino que a maioria dos

afegãos considera pior que a morte: ela fugiu com uma trupe de cantores e dançarinos

ambulantes.

 

Hassan nunca falou da mãe, como se ela jamais tivesse existido. Sempre me

perguntei se sonharia com ela, se tentaria saber que aparência tinha, por onde

andaria. Ficava imaginando se gostaria de conhecê-la. Teria saudade dela, como eu

tinha da mãe que não conheci? Certo dia, quando estávamos indo da casa de meu pai

ao cinema Zainab, ver um novo filme iraniano, cortamos caminho pelo acampamento

militar perto da escola secundária Istiqlal. Baba tinha nos proibido de passar por aquele

local, mas, nessa época, ele estava no Paquistão com Rahim Khan. Pulamos a cerca que

rodeava o acampamento, saltamos um pequeno regato e chegamos ao terreno enlameado

onde velhos tanques abandonados ficavam acumulando poeira. A sombra de um

desses tanques, havia um grupo de soldados fumando e jogando cartas. Um deles nos

viu, fez sinal ao companheiro que estava ao seu lado e chamou por Hassan.

 

— Ei! — exclamou ele. — Conheço você.

Nunca tínhamos visto aquele sujeito antes. Era um homem atarracado, de cabeça

raspada e barba por fazer. O seu jeito de nos olhar e o sorriso que deu me apavoraram.

 

— Continue andando — murmurei para Hassan.

— Ei, hazara! Olhe para mim. Estou falando com você! — berrou o soldado.

Entregou o cigarro ao sujeito que estava ao seu lado, e fez um círculo com o polegar e

o indicador de uma das mãos. Depois, meteu o dedo médio da outra mão naquele

círculo. E ficou enfiando e tirando o dedo. Enfiando e tirando.

— Sabia que conheci sua mãe? Conheci muito bem. Peguei ela por trás, perto

daquele riacho logo ali.

Os outros soldados riram. Um deles fez um barulho que parecia um guincho. Eu

disse a Hassan para continuar andando, continuar andando.

 

— Que bocetinha gostosa que ela tinha! — disse o soldado, apertando as mãos

dos outros, rindo.

Mais tarde, no escuro, depois que o filme já tinha começado, ouvi Hassan

fungando ao meu lado. As lágrimas lhe escorriam pelo rosto. Cheguei mais perto,

passei o braço por suas costas e o puxei para mim. Ele encostou a cabeça no meu

ombro.

 

— Aquele cara confundiu você com outra pessoa — sussurrei.— Confundiu,

sim.

 

 

Pelo que me disseram, ninguém se surpreendeu realmente quando Sanaubar fugiu.

Na verdade, o que deixou todo mundo espantadíssimo foi quando Ali, um homem que

sabia o Corão de cor, se casou com Sanaubar, uma mulher dezenove anos mais jovem,

linda, mas sabidamente sem escrúpulos, que vivia de sua reputação nada honrosa. Como

Ali, ela era uma muçulmana shi'a, da etnia hazara. Era também sua prima-irmã e,

portanto, seria natural que fosse escolhida para ser sua esposa. Mas, afora isso, Ali e

Sanaubar tinham muito pouco em comum, principalmente em termos de aparência.

Enquanto os olhos verdes brilhantes e o rosto malicioso de Sanaubar haviam, segundo

consta, atraído inúmeros homens para o pecado, Ali tinha uma paralisia congênita dos

músculos faciais inferiores, o que o tornava incapaz de sorrir e lhe dava um ar

constantemente carrancudo. Era muito estranho ver Ali feliz, ou triste, pois, no seu

rosto enrijecido, apenas os olhos castanhos e oblíquos brilhavam com um sorriso ou se

umedeciam com a tristeza. Dizem que os olhos são as janelas da alma. Isso nunca foi tão

verdadeiro como no caso de Ali, que só podia se revelar através deles.

 

Ouvi dizer que o andar sugestivo e o rebolado de Sanaubar faziam os homens

sonharem com infidelidade. Mas a pólio deixou Ali com a perna direita atrofiada e torta,

pura pele colada nos ossos, com apenas uma camada de músculos fina que nem papel.

Lembro de um dia, quando eu tinha oito anos, e Ali estava me levando ao bazaar para

comprar naan. Eu ia caminhando atrás dele, cantarolando e tentando imitar o seu

andar. Vi que balançava a perna descarnada, fazendo um movimento circular; vi que

todo o seu corpo despencava para a direita cada vez que ele punha esse pé no chão.

Parecia um verdadeiro milagre ele não cair a cada passo que dava. Quando tentei fazer

a mesma coisa, quase me estatelei na sarjeta. E comecei a rir. Ali se virou e me pegou

imitando o seu andar. Não disse nada. Nem na hora, nem nunca. Apenas continuou

andando.

 

A cara de Ali e o seu jeito de andar assustavam algumas das crianças menores da

vizinhança. Mas o maior problema era mesmo com os meninos mais velhos. Corriam

atrás dele na rua e debochavam quando passava cambaleando. Alguns deram para

chamá-lo Babalu, ou Bicho-Papão.

 

— Ei, Babalu, quem você comeu hoje? — gritavam eles em meio a um coro de

risadas. — Quem você comeu, seu Babalu de nariz achatado?

Falavam do nariz achatado porque tanto Ali quanto Hassan tinham os traços

mongolóides característicos dos hazaras. Durante anos, isso foi tudo o que soube a

respeito desse povo: que descendiam dos mongóis e eram parecidos com os chineses. Os

livros didáticos raramente os mencionavam e só se referiam às suas origens de passagem.

Até que um dia, quando estava bisbilhotando as coisas de baba no seu escritório,

encontrei um dos velhos livros de história de minha mãe. O autor era um iraniano

chamado Khorami. Soprei a poeira que o cobria, levei-o comigo para a cama naquela

noite e fiquei espantadíssimo ao ver um capítulo inteiro sobre a história dos hazaras.

Um capítulo inteiro dedicado ao povo de Hassan! Foi aí que fiquei sabendo que meu

povo, os pashtuns, tinha perseguido e oprimido os hazaras. Li que estes tentaram se

rebelar contra os pashtuns no século XIX, mas foram "dominados com violência

indescritível". O livro dizia ainda que meu povo matou os hazaras, expulsou-os das

suas terras, queimou as suas casas e vendeu as suas mulheres como escravas. Dizia

também que essa opressão de um povo pelo outro se deveu em parte ao fato de os

pashtuns serem muçulmanos sunni, ao passo que os hazaras são shi'a. O livro falava

de muitas coisas que eu não sabia, de coisas que os professores não mencionavam.

 

 

 

Coisas que baba também não mencionava. Por outro lado, falava de coisas que eu

sabia, como, por exemplo, que as pessoas chamavam os hazaras de "comedores de

camundongos", "nariz achatado", "burros de carga". Já tinha ouvido alguns meninos da

vizinhança gritarem essas palavras para Hassan.

 

Na semana seguinte, depois da aula, mostrei o tal livro ao meu professor e

indiquei o capítulo sobre os hazaras. Ele passou os olhos por algumas páginas, deu

uma risadinha e me devolveu o livro.

 

— É só isso que essa gente shi'a sabe fazer bem — comentou, juntando os

seus papéis —, posar de mártires. — Franziu o nariz quando pronunciou a palavra

shi'a, como se estivesse se referindo a uma espécie de doença.

Mas, apesar de ter a mesma herança étnica e o mesmo sangue de família,

Sanaubar fazia coro com as crianças da vizinhança que debochavam de Ali. Ouvi dizer

que não escondia de ninguém o desprezo que sentia pela aparência dele.

 

— Isso lá é homem que se apresente? — zombava. — Já vi burros velhos que

dariam maridos bem melhores.

Afinal de contas, quase todos desconfiavam que o casamento tinha sido uma

espécie de arranjo entre Ali e seu tio, o pai de Sanaubar. Dizia-se que Ali tinha se

casado com a prima para ajudar a salvar um pouco da honra do nome já manchado

do tio, muito embora Ali, órfão desde os cinco anos, não tivesse nenhum bem ou

herança em especial.

 

Ele nunca tentou se vingar de nenhum dos seus algozes. Em parte, suponho eu,

porque jamais conseguiria alcançá-los arrastando atrás de si aquela perna torta. Mas

principalmente porque era imune aos insultos dos seus agressores; tinha encontrado a

alegria, o antídoto para qualquer sofrimento no momento em que Sanaubar deu à luz

Hassan. Foi tudo muito simples. Sem obstetras, sem anestesistas, sem aqueles

extravagantes aparelhos de monitoramento. Apenas Sanaubar, deitada em um

colchão manchado e sem lençóis, tendo Ali e a parteira para ajudá-la. E não precisou

de muita ajuda, pois, já ao nascer, Hassan foi fiel à sua natureza: era incapaz de

machucar quem quer que fosse. Uns poucos grunhidos, um ou dois empurrões, e

Hassan saiu. Saiu sorrindo.

 

Segundo confidenciou a parteira tagarela ao criado do vizinho, que, por sua vez,

se encarregou de espalhar para quem quisesse ouvir, Sanaubar teria dado uma olhada no

bebê que Ali segurava no colo e, ao ver o lábio fendido, teria exclamado com um

risinho amargo:

 

— Pronto — teria dito ela. — Agora você tem esse seu filho idiota para ficar

sorrindo para você! — Não quis nem mesmo segurar Hassan e, cinco dias depois,

foi-se embora.

Baba contratou a mesma ama-de-leite que tinha me amamentado para cuidar de

Hassan. Ali nos disse que ela era uma hazara de olhos azuis, natural de Bamiyan, a

cidade das estátuas dos Budas gigantes.

 

— Que voz doce e melodiosa ela tinha... — era o que costumava nos dizer.

Hassan e eu sempre perguntávamos o que ela cantava, embora já estivéssemos

cansados de saber: ele nos contou essa história milhares de vezes. Só queríamos ouvir

Ali cantando.

 

Ele pigarreava e começava:

 

De pé, no topo da mais alta das montanhas,

 

Chamei por Ali, o Leão de Deus

 

O Ali, Leão de Deus, Rei dos Homens,

 

 

 

Traze alegria para os nossos corações

 

Que tanto sofrem.

 

Depois repetia que as pessoas que mamavam no mesmo peito eram como irmãs,

ligadas por uma espécie de parentesco que nem mesmo o tempo poderia desfazer.

 

Hassan e eu mamamos no mesmo peito. Demos os nossos primeiros passos na

mesma grama do mesmo quintal. E, sob o mesmo teto, dissemos nossas primeiras

palavras.

 

A minha foi baba.

 

A dele, Amir. O meu nome.

 

Olhando para trás, agora, fico pensando que os alicerces do que aconteceu no

inverno de 1975 — e de tudo o que veio depois — já estavam contidos nessas

primeiras palavras.

 

 

 

TRÊS

 

 

CONSTA QUE, CERTA VEZ, NO BALUQUISTÃO, meu pai enfrentou um urso negro com as

próprias mãos. Se essa história dissesse respeito a qualquer outra pessoa, teria sido

taxada de laaf, pois os afegãos têm uma certa tendência ao exagero. Lamentavelmente,

este é quase um mal nacional. Se alguém se vangloriar de ter um filho médico, é

possível que o rapaz tenha sido aprovado em um exame de biologia no segundo grau.

Mas ninguém jamais duvidaria da veracidade de uma história que se referisse a

baba. E se duvidassem, bem, baba tinha efetivamente aquelas três cicatrizes paralelas

que traçavam uma trilha dentada nas suas costas. Muitas vezes fiquei imaginando aquela

luta; cheguei mesmo a sonhar com ela. E, nesses sonhos, nunca fui capaz de distinguir

quem era quem entre meu pai e o urso.

 

Rahim Khan foi o primeiro a se referir a baba com a expressão que acabou se

tornando o seu célebre apelido, Toophan agha, ou "Sr. Furacão". Era um apelido que

lhe caía como uma luva. Meu pai era uma força da natureza, um gigantesco espécime

da etnia pashtun, com uma barba espessa, o cabelo castanho cortado bem rente, tão

rebelde quanto o próprio homem, umas mãos que pareciam capazes de arrancar um

salgueiro do chão, e uns olhos negros que poderiam "fazer o diabo cair de joelhos

implorando misericórdia", como dizia Rahim Khan. Nas festas, quando aquela massa

de quase dois metros de altura irrompia sala adentro, todas as atenções convergiam

para ele assim como os girassóis se viram na direção do sol.

 

Era impossível ignorar baba, mesmo quando estava dormindo. Eu enfiava

chumaços de algodão nos ouvidos, puxava o cobertor para cobrir a cabeça e, mesmo

assim, os seus roncos — que mais pareciam o motor de um caminhão — penetravam

pelas paredes. E olhe que o meu quarto ficava em frente ao dele, do outro lado do

corredor. Como minha mãe teria conseguido dormir no mesmo quarto que ele era um

mistério para mim. Este era um dos itens da longa lista de coisas que teria perguntado

se tivesse podido estar com ela.

 

Em fins da década de 1960, quando eu tinha uns cinco ou seis anos, baba

decidiu construir um orfanato. Foi Rahim Khan quem me contou essa história. Disse

que ele próprio fez a planta, apesar de não ter qualquer experiência em arquitetura. Os

mais céticos insistiram para que deixasse de ser louco e contratasse um arquiteto. Baba

recusou, é claro, e todos abanaram a cabeça, desanimados diante de sua teimosia. Mas

deu tudo certo e, então, todos acenaram com a cabeça, admirados com o seu sucesso.

Baba custeou, com dinheiro do seu próprio bolso, a construção do prédio de dois

 

 

 

andares, bem próximo da avenida Jadeh Maywand, ao sul do rio Cabul. Rahim Khan

me disse que baba financiou pessoalmente o projeto inteiro, pagando os engenheiros,

os eletricistas, os bombeiros e os operários, sem contar com os funcionários da

prefeitura cujos "bigodes estavam precisando de um pouco de óleo".

 

A construção do orfanato durou três anos. Eu estava então com oito anos.

Lembro que, na véspera da inauguração, meu pai me levou ao lago Ghargha, a uns

poucos quilômetros ao norte de Cabul. Disse-me que chamasse também Hassan, mas

menti dizendo que ele estava com dor de barriga. Queria baba só para mim. Além

disso, certa vez, no lago Ghargha, Hassan e eu estávamos atirando pedras na água e

ele conseguiu fazer com que a sua pulasse oito vezes. O máximo que consegui foram

cinco saltos. Baba estava vendo tudo e deu um tapinha nas costas de Hassan. Chegou

até a passar o braço em seus ombros.

 

Sentamos em uma mesa de piquenique na margem do lago, só baba e eu,

comendo ovos cozidos com sanduíches de kofta — bolos de carne e picles enrolados

em naan. A água estava azul-escura e o sol reluzia naquela superfície como em umespelho. Às sextas-feiras, o lago ficava repleto de famílias que saíam para aproveitar o

sol. Mas estávamos no meio da semana e, além de nós dois, só havia ali uma dupla de

turistas de barba e cabelos compridos — hippies, como ele os chamou. Os dois

estavam sentados no cais, com os pés dentro da água e varas de pescar na mão.

Perguntei por que eles deixavam o cabelo crescer, mas baba deu um grunhido e não

respondeu. Estava preparando o seu discurso para o dia seguinte, folheando um montão

de páginas escritas a mão, fazendo anotações aqui e ali com um lápis. Dei uma

dentada no ovo cozido e perguntei se era verdade o que um menino tinha me dito na

escola, que se a gente comesse um pedaço de casca de ovo, teria que pôr para fora no

 

xixi. Baba grunhiu outra vez.

Comi um pedaço do sanduíche. Um dos turistas de cabelo amarelo riu e deu um

tapa nas costas do seu companheiro. Ao longe, na outra margem do lago, um

caminhão vinha se arrastando para fazer a curva na colina. O sol cintilou batendo no

seu retrovisor.

 

— Acho que estou com saratan — disse eu. Câncer.

Baba ergueu os olhos da sua papelada, que esvoaçava com o vento. Disse que

eu mesmo podia ir pegar o refrigerante; que era só procurar na mala do carro.

No dia seguinte, as cadeiras do lado de fora do orfanato já tinham acabado. Muita

gente ia ter de ficar de pé para assistir à cerimônia de inauguração. Estava ventando e

sentei atrás de baba, no pequeno palanque armado bem diante da entrada principal do

prédio. Ele estava usando um terno verde e um barrete de astracã. Bem no meio de seu

discurso, o vento arrancou o seu gorro e todo mundo riu. Baba fez um sinal mandando

eu ir pegar o barrete e me senti o máximo, pois, assim, todos iam ficar sabendo que

ele era meu pai, meu baba. Ele se virou de volta para o microfone e disse que esperava

que o prédio fosse mais firme que o seu gorro, e todos riram novamente. Quando

baba acabou o discurso, as pessoas aplaudiram de pé. Bateram palmas por um bom

tempo. Depois, vieram cumprimentá-lo. Alguns passaram a mão pela minha cabeça e

também apertaram a minha mão. Fiquei tão orgulhoso de baba, de nós dois...

 

Mas, apesar de todos os seus sucessos, as pessoas estavam sempre duvidando de

baba. Disseram-lhe que gerir negócios era coisa que não estava no seu sangue e que

deveria estudar direito, como o pai. Então, ele provou que todos estavam errados, não

só administrando o seu próprio negócio, mas tornando-se um dos comerciantes mais

 

 

 

ricos de Cabul. Baba e Rahim Khan abriram uma firma de exportação de tapetes

tremendamente bem-sucedida, duas farmácias e um restaurante.

 

Quando disseram que nunca faria um bom casamento — afinal de contas, não era

de sangue nobre —, baba se casou com minha mãe, Sofia Akrami, uma moça

muitíssimo bem-educada, unanimemente considerada uma das criaturas mais

respeitadas, bonitas e virtuosas de Cabul. Não só lecionava literatura clássica farsi na

universidade como era também descendente da família real, detalhe que meu pai

esfregava divertido na cara de todos aqueles céticos chamando-a de "minha princesa".

 

Exceto por mim, é claro, baba moldou o mundo à sua volta do jeito que quis. O

único problema é que o mundo, para ele, era pão, pão, queijo, queijo. E precisava

decidir o que era pão e o que era queijo. Não se pode amar alguém assim sem ter medo

dele também. E talvez até um pouco de ódio.

 

Quando eu estava na quarta série, tinha um mula que nos dava aulas sobre o islã.

Chamava-se mula Fatiullah Khan. Era um homem baixinho e atarracado, com o rosto

todo marcado de acne e uma voz rouca. Ele nos falava das virtudes do zakat e dos

deveres do hadj; ensinava as complexidades da realização das cinco namaz diárias, e

nos fez aprender de cor versículos do Corão. Só que, embora nunca traduzisse as

palavras para nós, insistia, às vezes com a ajuda de uma vara feita de ramo de

salgueiro, para que pronunciássemos corretamente as palavras em árabe a fim de que

Deus pudesse nos ouvir melhor. Certo dia, ele disse que o islã considerava a bebida um

pecado terrível; aqueles que bebessem teriam de responder por esse pecado no dia do

Qiyamat, o Dia do Juízo. Naquela época, beber era coisa bastante comum em Cabul.

Ninguém seria chicoteado em praça pública por esse motivo, mas os afegãos que bebiam

não o faziam em público, por uma questão de respeito. As pessoas compravam uísque

dentro de saquinhos de papel pardo, como "remédio", em algumas "farmácias"

selecionadas. Deixavam o saco escondido e recebiam, às vezes, olhares furtivos de

desaprovação daqueles que sabiam que tais estabelecimentos tinham fama de fazer

esse tipo de transação.

 

Estávamos no escritório de baba, a tal "sala de fumar", quando eu lhe disse o

que o mula Fatiullah Khan tinha nos ensinado na aula. Baba estava se servindo de

uísque no bar que tinha mandado fazer no canto da sala. Ele me ouviu, assentiu com a

cabeça, tomou um gole da bebida. Depois sentou no sofá de couro, deixou o copo de

lado e me pôs no colo. Senti como se estivesse me sentando em um par de troncos de

árvore. Respirou fundo, exalou pelo nariz e o ar pareceu ficar assobiando em seu

bigode por uma eternidade. Eu não conseguia decidir se queria abraçá-lo ou pular fora

do seu colo, apavorado.

 

— Pelo que vejo, você está confundindo o que aprende na escola com a educação

de fato — disse ele com aquela sua voz grave.

— Mas se o que ele disse é verdade, você não é um pecador, baba?

— Humm. — Baba trincou um cubo de gelo com os dentes. — Quer saber o

que seu pai acha sobre essa história de pecado?

— Quero.

— Pois então vou lhe dizer, mas, primeiro, entenda bem isso, e entenda de uma

vez por todas, Amir: você nunca vai aprender nada que preste com esses idiotas

barbudos.

— Você quer dizer o mulá Fatiullah Khan?

 

 

Baba fez um gesto, com o copo na mão. O gelo tilintou.

 

— Eles todos. Estou cagando para as barbas de todos esses macacos hipócritas.

Comecei a rir. A imagem de baba cagando na barba de qualquer macaco,

hipócrita ou não, era demais...

 

— Tudo o que sabem fazer é ficar desfiando aquelas contas de oração e

recitando um livro escrito em uma língua que às vezes nem entendem — prosseguiu

ele, tomando mais um gole de uísque. — Que Deus nos proteja se algum dia o

Afeganistão cair nas mãos dessa gente.

— Mas o mulá Fatiullah Khan parece legal — consegui balbuciar tentando conter

o riso.

— Gengis Khan também — disse baba. — Mas chega desse assunto. Você

perguntou sobre pecado e quero lhe dizer o que penso a este respeito. Está me

ouvindo?

— Estou — disse eu apertando os lábios. Mas o riso escapou pelo meu nariz

fazendo um barulho que parecia um ronco. O que me fez recomeçar.

Os olhos duros de baba se fixaram nos meus e bastou isso para eu parar de rir.

 

— Estou tentando falar com você de homem para homem. Será que ao menos

uma vez na vida consegue dar conta disso?

— Consigo, baba jan — murmurei espantado, e não pela primeira vez, ao ver

como ele podia me atingir com tão poucas palavras. Por um instante, tínhamos tido

um momento maravilhoso. Não era sempre que meu pai conversava comigo, e menos

ainda me sentava em seu colo. E fui um idiota em estragar tudo.

— Ótimo — disse baba, mas os seus olhos não demonstravam lá muita convicção.

— Pouco importa o que diga esse mulá; existe apenas um pecado, um só. E esse pecado é

roubar. Qualquer outro é simples mente uma variação do roubo. Entende o que estou

dizendo?

— Não, baba jan — respondi querendo desesperadamente entender. Não gostaria

de desapontá-lo de novo.

Baba soltou um suspiro de impaciência. O que também me atingiu, pois ele não era

um homem impaciente. Lembrei de todas as noites em que chegou bem tarde, todas

aquelas noites em que tive de jantar sozinho. Perguntava a Ali onde baba estava, a

que horas ia voltar para casa, embora soubesse que ele estava na obra, inspecionando

isso, supervisionando aquilo. Não era algo que exigia paciência? Cheguei a odiar

todas as crianças para quem ele estava construindo o orfanato; por vezes desejei que

todas elas tivessem morrido junto com seus pais.

 

— Quando você mata um homem, está roubando uma vida — disse baba. — Está

roubando da esposa o direito de ter um marido, roubando dos filhos um pai. Quando

mente, está roubando de alguém o direito de saber a verdade. Quando trapaceia, está

roubando o direito à justiça. Entende?

Eu tinha entendido sim. Quando baba tinha seis anos, entrou um ladrão na

casa de meu avô, no meio da noite. Meu avô, um juiz conceituado, reagiu ao assalto,

mas o ladrão o esfaqueou na garganta, matando-o instantaneamente — e roubando de

baba o seu pai. Os moradores da cidade apanharam o assassino na manhã seguinte,

pouco antes do meio-dia; era um vagabundo da região de Kunduz. Enforcaram o

homem no galho de um carvalho quando ainda faltavam duas horas para as preces da

tarde. Foi Rahim Khan, e não baba, quem me contou essa história. Aliás, eu sempre

ficava sabendo das coisas sobre meu pai por outras pessoas.

 

 

 

— Não há ato mais infame do que roubar, Amir — prosseguiu ele. — Um

homem que se apropria do que não é seu, seja uma vida ou uma fatia de naan...

Cuspo nesse homem... E se alguma vez ele cruzar o meu caminho, que Deus o ajude.

Está entendendo?

Achei a idéia de meu pai espancando um ladrão engraçadíssima, mas, ao mesmo

tempo, assustadora.

 

— Estou, baba.

— Se existe mesmo um Deus, em algum lugar por aí, espero que ele tenha coisas

mais importantes para fazer do que se preocupar com o fato de eu beber uísque ou

comer carne de porco. Agora, desça daí. Toda essa conversa sobre pecado me deixou

com sede outra vez.

Fiquei olhando enquanto ele enchia o copo no bar e me perguntando quanto

tempo ia se passar até que tivéssemos outra conversa como essa. A verdade é que

sempre achei que baba me odiava um pouco. E por que não? Afinal, eu tinha matado a

esposa que ele tanto amava, a sua linda princesa, não tinha? O mínimo que poderia

ter feito era ter a decência de puxar um pouco mais a ele. Mas não puxei. Não mesmo.

 

NA ESCOLA, ERA COMUM JOGARMOS UM JOGO chamado sherjangi, a "Batalha de Poemas". O

professor de farsi funcionava como moderador e o jogo era mais ou menos assim: um

aluno recitava um verso de um poema e o adversário tinha sessenta segundos para

replicar, citando um verso que começasse com a mesma letra com que o primeiro

terminava. Todos na turma me queriam em suas equipes, pois, por volta dos meus

onze anos, era capaz de recitar dezenas de versos de Khayyam, Hafez ou dos

célebres Masnawi de Rumi. Certa feita, enfrentei a turma toda e ganhei. Mais tarde, na

mesma noite, contei isso para baba, mas ele se limitou a balançar a cabeça e

murmurar:

 

— Que ótimo.

Foi assim que escapei à indiferença de meu pai: refugiando-me nos livros de

minha mãe morta. E também na companhia de Hassan, é claro. Lia tudo. Rumi, Hafez,

Saadi, Victor Hugo, Júlio Verne, Mark Twain, Ian Fleming. Quando esgotei a biblioteca

de minha mãe — não aqueles chatos, de história, pois nunca fui muito chegado a esses,

mas os romances, as epopéias —, passei a gastar minha mesada em livros. Comprava um

por semana, na livraria perto do cinema Park, e, quando já não havia mais espaço nas

prateleiras, comecei a guardá-los em caixas de papelão.

 

E claro que casar com uma poeta era uma coisa, mas ter um filho que preferia

meter a cara em livros de poesia a ir caçar... bem, não era exatamente o que baba tinha

imaginado, suponho eu. Um homem de verdade não lê poesia, e Deus permita que nunca

venha a escrever versos! Homens de verdade — meninos de verdade — jogam futebol,

exatamente como meu pai fazia quando era jovem. Isso, sim, era algo digno de paixão.

Em 1970, baba fez uma pausa na supervisão da construção do orfanato para passar um

mês em Teerã e ver a Copa do Mundo pela TV, já que, naquela época, ainda não

existia televisão no Afeganistão. Ele me inscreveu em times de futebol, tentando

despertar em mim a mesma paixão. Mas eu era patético, um estorvo considerável para

 

o meu próprio time, sempre atrapalhando um passe oportuno ou bloqueando

involuntariamente um espaço livre de marcação. Ficava circulando pelo campo,

desajeitado com as minhas pernas finas, berrando por passes que não vinham nunca. E

quanto mais insistia, sacudindo os braços freneticamente acima da cabeça, e gritando

 

 

"Estou livre! Estou livre!", mais os outros me ignoravam. Baba porém não desistia.

Quando ficou mais do que evidente que eu não tinha herdado nem um pouquinho dos

seus talentos atléticos, ele tratou de me transformar em um torcedor apaixonado. Por

certo eu podia dar conta disso, não? Fingi interesse o máximo de tempo possível.

Comemorava com ele quando o time de Cabul ganhava do de Kandahar, e berrava

xingando o juiz quando este marcava um pênalti contra o nosso time. Mas baba

percebeu que o meu interesse não era autêntico e se rendeu àquela evidência

desanimadora: seu filho nunca ia ser nem jogador nem torcedor de futebol.

 

Lembro de uma vez que ele me levou ao torneio anual de buzkashi, realizado

no primeiro dia da primavera, o dia do Ano-Novo. O buzkashi era, e ainda é, a paixão

nacional do Afeganistão. Um chapandaz, um cavaleiro habilidosíssimo, geralmente

patrocinado por torcedores ricos, tem que apanhar um bode ou um bezerro morto no

meio de um monte de adversários. Depois, tem que arrastá-lo consigo por todo o

estádio a galope, e depositá-lo em um círculo enquanto uma equipe de chapandaz o

persegue e faz tudo o que pode — chuta, arranha, chicoteia, esmurra — para arrancar

dele o bicho morto. Naquele dia, a multidão começou a berrar excitada quando os

cavaleiros soltaram os seus gritos de guerra e se precipitaram sobre a carcaça do animal

em meio a uma nuvem de poeira. A terra tremia com o tropel dos cascos. Estávamos

assistindo a tudo da parte mais alta das arquibancadas e os cavaleiros passavam por

nós, correndo a todo galope, urrando e gritando, enquanto voava espuma da boca dos

seus cavalos.

 

Em certo momento, baba apontou para alguém.

 

— Está vendo aquele homem, Amir? Sentado ali, cercado de vários outros homens?

Estava.

— É Henry Kissinger.

— Ah! — disse eu. Não sabia quem era Henry Kissinger e devia ter perguntado.

Mas, naquele instante, olhava horrorizado para um dos chapandaz que tinha caído

do cavalo e estava sendo pisoteado por dezenas de cascos. O corpo dele foi derrubado

da montaria e arremessado em meio ao tropel de homens e cavalos, como um boneco

de pano, e acabou parando quando aquele bando se afastou. Então, teve um

estremecimento e, depois, ficou imóvel, com as pernas dobradas em ângulos fora do

normal e uma poça de sangue encharcando a areia ao seu redor.

Comecei a chorar.

 

Chorei durante todo o trajeto de volta para casa. Lembro como as mãos de baba

apertavam o volante. Apertavam e afrouxavam. Acima de tudo, nunca vou esquecer o

tremendo esforço que ele fez para disfarçar o ar de aborrecimento em seu rosto

enquanto dirigia em silêncio.

 

Mais tarde, estava passando pelo escritório de meu pai quando o ouvi conversar

com Rahim Khan. Colei o ouvido na porta fechada.

 

— ...agradecer por ele ter saúde — dizia Rahim Khan.

— Sei disso, sei disso. Mas ele está sempre enfiado naqueles livros ou rodando pela

casa como se estivesse perdido em algum sonho.

— E daí?

— Eu não era assim.

Baba parecia frustrado; quase zangado. Rahim Khan riu.

— As crianças não são cadernos de colorir. Você não tem de preenchê-lo com

suas cores favoritas.

 

 

— Estou lhe dizendo — prosseguiu baba. — Eu não era assim. Nem eu nem

qualquer das crianças com as quais cresci.

— Sabe, às vezes você é o homem mais autocentrado que já vi disse Rahim

Khan. Ele era a única pessoa capaz de dizer uma coisa dessas a meu pai sem problemas.

— O que é que uma coisa tem a ver com a outra? — retrucou baba.

— Ah, não tem não?

— Não.

— Então o que é que tem a ver com o quê?

Ouvi o ruído do couro rangendo quando baba mudou de posição na cadeira.

Fechei os olhos, colei o ouvido ainda mais à porta, querendo e não querendo ouvir o

que ele ia dizer.

 

Às vezes olho por essa janela e o vejo brincando na rua com os meninos da

vizinhança. Vejo como eles o maltratam, tiram os seus brinquedos, dão um empurrão

aqui, um esbarrão ali. E, imagine só, ele nunca revida. Nunca. Apenas... abaixa a

cabeça e...

 

— Ele não é violento — disse Rahim Khan.

— Não é isto que estou querendo dizer, Rahim, e você bem sabe — retrucou

baba. — Falta algo a esse menino.

— É verdade. Propensão para a maldade.

— Saber se defender não tem nada a ver com maldade. Sabe o que acontece sempre

que os vizinhos implicam com ele? Hassan intervém e põe todos para correr. Já vi isso

com meus próprios olhos. Quando os dois voltam para casa, pergunto "Por que é que

Hassan está com esse arranhão no rosto?" e Amir responde: "Ele caiu". Ouça o que

estou lhe dizendo, Rahim, falta algo a esse menino.

— Você só precisa deixar que ele encontre o seu próprio caminho — disse Rahim

Khan.

— E onde vai dar esse caminho? — perguntou baba. — Um me nino que não

sabe se defender vai se tornar um homem incapaz de enfrentar o que quer que seja.

— Como sempre, você está simplificando demais as coisas.

— Não concordo.

— Está zangado porque tem medo que ele jamais venha a assumir nossos negócios.

— Quem é que está simplificando demais, agora? — indagou baba. — Olhe,

sei que vocês dois se gostam muito, e fico feliz com isso. Tenho inveja, mas fico feliz.

É verdade. Ele precisa de alguém que... o compreenda, porque Deus sabe que eu não

consigo. Mas há algo em Amir que me perturba de um jeito que não sei explicar. E

como se...

Podia vê-lo procurando as palavras certas. Ele baixou a voz, mas deu para ouvir

assim mesmo.

 

— Se não tivesse visto o médico tirá-lo de minha mulher com meus próprios

olhos, não acreditaria que é meu filho.

No DIA SEGUINTE, ENQUANTO PREPARAVA o meu café da manhã, Hassan perguntou se eu

estava chateado. Gritei com ele, disse que não se metesse na minha vida.

 

Rahim Khan estava enganado sobre aquela história da propensão para a maldade.

 

 

 

QUATRO

 

 

EM 1933, ANO EM QUE BABA NASCEU e Zahir Shah iniciou seu reinado de quarenta anos no

Afeganistão, dois irmãos, rapazes de uma família conhecida e abastada de Cabul, se

meteram a dirigir o Ford Roaster de seus pais. Os dois, que tinham se enchido de haxixe

e estavam mast de muito vinho francês, acabaram atropelando e matando um casal

de hazaras na estrada de Paghman. A polícia trouxe os jovens com um jeitão contrito e

 

o órfão de cinco anos perante meu avô, que era um juiz muitíssimo conceituado e um

homem de reputação impecável. Depois de ouvir o relato dos irmãos e o pedido de clemência

de seu pai, meu avô determinou que os dois rapazes fossem imediatamente

para Kandahar e se alistassem no Exército por um ano — isto apesar de sua família

ter conseguido, sabe-se lá como, obter que eles fossem dispensados do serviço militar.

O pai dos jovens tentou discutir, mas não com tanta veemência, e, afinal, todos

acabaram concordando que a punição talvez fosse severa, mas era justa. Quanto ao

órfão, meu avô decidiu adotá-lo e levá-lo para sua própria casa. Mandou que os outros

empregados tomassem conta dele, mas que fossem gentis. Esse menino era Ali.

Baba e Ali cresceram juntos, como companheiros de brincadeiras — ao menos até

que a pólio o deixasse aleijado —, exatamente como Hassan e eu cresceríamos juntos

uma geração mais tarde. Baba sempre falava das travessuras que ambos aprontavam,

e Ali balançava a cabeça dizendo "Mas, agha sahib, diga a eles quem arquitetava as

travessuras e quem era o simples executor". Meu pai ria e passava o braço nos ombros

de Ali.

 

Em nenhuma dessas histórias, porém, baba se referia a Ali como amigo.

 

O curioso é que também nunca pensei em Hassan e eu como amigos. Pelo menos

não no sentido habitual. Pouco importa se um ensinou ao outro a andar de bicicleta sem

as mãos, ou a construir uma câmera caseira, feita com uma caixa de papelão, e que

funcionava bastante bem. Pouco importa se passamos invernos inteiros empinando

pipas e correndo para apanhar as que caíam. Pouco importa se, para mim, a cara do

Afeganistão é a cara de um menino de porte esguio, cabeça raspada e orelhas meio

dobradas; um menino com uma cara de boneca chinesa perpetuamente iluminada pelo

sorriso leporino.

 

 

 

Nada disso importa. Porque não é fácil superar a história. Tampouco a religião.

Afinal de contas, eu era pashtun, e ele, hazara; eu era sunita, e ele, xiita, e nada

conseguiria modificar isso. Nada.

 

Mas éramos duas crianças que tinham aprendido a engatinhar juntas, e não

havia história, etnia, sociedade ou religião que pudesse alterar isso. Passei a maior parte

de meus primeiros doze anos de vida brincando com Hassan. Às vezes, toda a minha

infância parece ter sido um longo dia preguiçoso de verão em companhia de Hassan,

um correndo atrás do outro por entre as árvores do quintal da casa de meu pai,

brincando de esconde-esconde, de polícia-e-ladrão, de índio e caubói, de torturar

insetos. Quanto a esta última brincadeira, o ponto alto foi, sem dúvida alguma,

aquela vez que arrancamos o ferrão de uma abelha e amarramos um barbante no pobre

inseto para puxá-lo de volta sempre que conseguisse levantar vôo.

 

Atormentávamos os kochi, os nômades que atravessavam Cabul caminho das

montanhas do norte. Ouvíamos as caravanas que se aproximavam de nosso bairro, os

balidos das ovelhas, os berros dos bodes o tilintar das sinetas no pescoço dos camelos.

Saíamos correndo de casa para ver a caravana passando por nossa rua, aqueles homens

com o rosto empoeirado e castigado pelo sol e as mulheres usando xales longos e

coloridos, contas e pulseiras de prata nos pulsos e nos tornozelos. Jogávamos pedrinhas

nos bodes. Esguichávamos água nas mulas. Eu mandava Hassan subir no "muro do

milho doente" e usar o estilingue para atirar pedras nos traseiros dos camelos.

 

Vimos nosso primeiro western juntos. Foi Rio Bravo, com John Wayne, no

cinema Park, em frente à minha livraria favorita. Lembro-me que implorei a baba que

nos levasse ao Ira para podermos ver John Wayne. Ele soltou uma daquelas suas

sonoras gargalhadas — um som não muito diferente do motor de um caminhão

acelerando — e, quando conseguiu recuperar a fala, nos explicou o que era dublagem.

Hassan e eu ficamos atônitos, atordoados. Na verdade, então, John Wayne não falava

farsi e não era iraniano! Era americano, exatamente como aqueles homens e mulheres

tão simpáticos, de cabelos compridos, que sempre víamos circulando por Cabul,

usando aquelas camisas esmolambadas e bem coloridas. Vimos Rio Bravo três vezes,

mas o nosso western favorito, Sete homens e um destino, nós vimos treze vezes. Em

todas elas, choramos no final, na cena em que as crianças mexicanas enterram Charles

Bronson que, como descobrimos depois, também não era iraniano.

 

Passeávamos pelos mercados com cheiro de mofo do bairro Shar-e-Nau, ou na

cidade nova, a oeste do distrito de Wazir Akbar Khan. Conversávamos sobre o filme

que tivéssemos acabado de ver e caminhávamos por entre a multidão de bazarris.

Íamos abrindo caminho em meio a mercadores e pedintes, perambulávamos pelas

estreitas ruelas apinhadas de fileiras e mais fileiras de minúsculas barracas

comprimidas umas às outras. Baba dava a cada um de nós dez afeganes por semana e

gastávamos tudo em Coca-Cola quente e sorvete de água-de-rosas com cobertura de

pistache torrado.

 

Durante o ano letivo, tínhamos uma rotina diária. Enquanto eu me levantava a

duras penas e ia me arrastando até o banheiro, Hassan já tinha se lavado, rezado as

namaz matinais junto com Ali e preparado meu café da manhã: chá preto quente, com

três torrões de açúcar, e uma fatia de naan torrado com minha geléia favorita, de cereja

ácida, tudo isso muito bem arrumado na mesa da sala de jantar. Enquanto eu comia e

reclamava do dever de casa, Hassan fazia minha cama, engraxava meus sapatos,

 

 

 

passava as roupas que eu ia usar naquele dia, arrumava meu material escolar. Eu o

ouvia cantando no saguão enquanto passava roupa, entoando velhas cantigas hazara

com sua voz nasalada. Então, baba e eu saíamos no seu Ford Mustang preto — um

carro que atraía olhares invejosos por onde quer que passasse, já que era o mesmo

modelo que Steve McQueen dirigia em Bullit, filme que ficou seis meses em cartaz em

um cinema de Cabul. Hassan ficava em casa e ajudava Ali nas tarefas diárias: lavar à

mão toda a roupa suja e estendê-la no quintal para secar, varrer a casa, ir ao bazaar

para comprar naan fresco, marinara carne para o jantar, regar o gramado.

 

Depois da aula, Hassan e eu passávamos a mão em um livro e corríamos para

uma colina arredondada que ficava bem ao norte da propriedade de meu pai em Wazir

Akbar Khan. Havia ali um velho cemitério abandonado, com várias fileiras de lápides

com as inscrições apagadas e muito mato impedindo a passagem pelas aléias. Anos e

anos de chuva e neve tinham enferrujado o portão de grade e deixado a mureta de

pedras claras em ruínas. Perto da entrada do cemitério havia um pé de romã. Em um

dia de verão, usei uma das facas de cozinha de Ali para gravar nossos nomes naquela

árvore: "Amir e Hassan, sultões de Cabul." Essas palavras serviram para oficializar o

fato: a árvore era nossa. Depois da aula, Hassan e eu trepávamos em seus galhos e

apanhávamos as romãs encarnadas. Depois de comer as frutas e limpar as mãos na

grama, eu lia para Hassan.

 

Sentado ali, com as pernas cruzadas e o jogo de sol e sombra da folhagem do pé

de romã no rosto, Hassan arrancava distraído pedacinhos de grama do chão enquanto

eu ia lendo as histórias que ele não podia ler sozinho. Pois Hassan cresceria analfabeto

como Ali e a maioria dos hazaras: isto já estava decidido desde o minuto em que

nasceu, talvez até mesmo desde o instante em que foi concebido no útero nada

receptivo de Sanaubar — afinal, para que um criado precisaria da palavra escrita? Mas,

apesar de ser analfabeto, ou quem sabe até por isso mesmo, Hassan era atraído pelo

mistério das palavras, seduzido por um mundo secreto cujo acesso lhe era vedado. Lia

para ele poemas e histórias, às vezes enigmas — embora sempre parasse de ler estes

últimos quando percebia que ele tinha muito mais facilidade que eu para decifrá-los. Lia

então coisas menos arriscadas, como as desventuras do vaidoso mulá Nasruddin e seu

burro. Passávamos horas sentados debaixo daquela árvore, até que o sol começasse a

se pôr, e, mesmo assim, Hassan insistia dizendo que ainda havia luz suficiente para eu

ler uma outra história, um outro capítulo.

 

O que eu mais gostava, nessas horas em que estava lendo para Hassan, era

quando esbarrávamos com uma palavra que ele não conhecia. Eu implicava com ele,

exibia a sua ignorância. Uma vez, quando estava lendo uma história do mulá

Nasruddin, ele me interrompeu.

 

— O que quer dizer essa palavra?

— Qual?

— Imbecil.

— Você não sabe o que significa? — indaguei eu com um sorriso largo.

— Não sei não, Amir agha.

— Mas é uma palavra tão comum!

— Mesmo assim, não conheço.

Se tinha percebido meu tom de deboche, seu rosto sorridente não deixavatransparecer nada.

 

 

 

— Ora, todo mundo na escola sabe o que é isso — disse eu. Deixa ver.

Imbecil quer dizer esperto, inteligente. Vou fazer uma frase com essa palavra para

você: "Quando o assunto é vocabulário, Hassan é um imbecil."

— Ah! — exclamou ele, fazendo que sim com a cabeça.

Depois de um episódio como esse, sempre me sentia meio culpado. Tentava então

compensar o que tinha feito dando-lhe uma das minhas camisas velhas ou um brinquedo

quebrado. Dizia a mim mesmo que era o bastante para reparar uma brincadeira

inofensiva.

O livro favorito de Hassan era o Shahnamah, a epopéia dos antigos heróis persas do

século X. Gostava de todos os capítulos, os shahs do passado, Feridoun, Zal e

Rudabeh. Sua história favorita, porém, e minha também, era "Rostam e Sohrab", um

conto sobre o grande guerreiro Rostam e seu cavalo velocíssimo, Rakhsh. Durante

uma batalha, Rostam fere mortalmente seu valente adversário, Sohrab, e acaba

descobrindo que o rapaz é, na verdade, o filho que tinha perdido há muito tempo.

Atormentado pela dor, Rostam ouve as últimas palavras do filho moribundo:

 

Se sois efetivamente meu pai, então manchastes vossa espada com o sangue de

vosso filho. E fizestes isto por vossa própria obstinação. Pois procurei convertê-lo ao

amor e implorei chamando o vosso nome, já que julguei encontrar em vós as

qualidades de que minha mãe tanto falava. Mas foi em vão que apelei para vosso

coração, e, agora, é tarde demais para qualquer aproximação...

 

— Leia outra vez, por favor, Amir agha — dizia Hassan. Às vezes, ficava com os

olhos cheios de lágrimas enquanto eu lia a passagem e, nessas horas, sempre me

perguntei por quem ele estaria chorando: seria pelo sofrimento de Rostam, que rasga as

próprias roupas e cobre a cabeça com cinzas, ou pelo moribundo Sohrab, que só

desejava o amor do pai? Eu, pessoalmente, não era capaz de perceber a tragédia

do destino de Rostam. Afinal de contas, todos os pais, no fundo de seu coração, não

abrigam o desejo de matar os filhos?

Um dia, em julho de 1973, aprontei outra sujeira com Hassan. Estava lendo para

ele quando, de repente, deixei de lado a história. Fingi que continuava lendo o livro,

virando as páginas regularmente, mas tinha abandonado completamente o texto,

assumido o comando da narrativa e estava inventando tudo por minha própria conta.

Hassan, é claro, não percebeu nada. Para ele, as palavras da página eram um

amontoado de códigos, algo indecifrável, misterioso. Eram portas secretas e eu é que

detinha todas as chaves. No final, estava pronto para perguntar se Hassan tinha

gostado da história, com o riso já se armando na minha garganta, quando ele começou

a bater palmas.

 

— O que está fazendo? — perguntei.

— Há muito tempo que você não me contava uma história tão boa — disse ele

ainda aplaudindo.

Comecei a rir.

 

— Sério?

— Sério.

— Fascinante! — murmurei. E também não estava brincando. Aquilo era...

absolutamente inesperado. — Tem certeza, Hassan?

Ele continuava a bater palmas.

 

— Foi o máximo, Amir agha. Lê mais amanhã?

 

 

— Fascinante — repeti meio sem fôlego, sentindo-me como um homem que

descobre um tesouro enterrado em seu próprio quintal. Enquanto descíamos a colina,

as idéias iam explodindo em minha cabeça como fogos de artifício em Chaman. "Há

muito tempo que você não me contava uma história tão boa" foi o que ele disse. E

olhe que eu tinha lido um monte de histórias para ele. Mas Hassan estava fazendo

uma pergunta qualquer.

— O quê? — indaguei eu.

— O que quer dizer "fascinante"

?

Comecei a rir. Dei-lhe um abraço bem apertado e um beijo na bochecha.

— Por que isso? — indagou ele assustado, corando.

Dei-lhe um empurrão de leve. Sorri.

— Você é um príncipe, Hassan. É um príncipe e adoro você.

Naquela mesma noite, escrevi minha primeira história. Levei trinta minutos

para fazê-lo. Era um pequeno conto meio soturno sobre um homem que encontra um

cálice mágico e fica sabendo que, se chorar dentro dele, suas lágrimas vão se

transformar em pérolas. Mas, embora tenha sido sempre muito pobre, ele era feliz e

raramente chorava. Tratou então de encontrar meios de ficar triste para que as suas

lágrimas pudessem fazer dele um homem rico. Quanto mais acumulava pérolas, mais

ambicioso ficava. A história terminava com o homem sentado em uma montanha de

pérolas, segurando uma faca na mão, chorando inconsolável dentro do cálice e tendo

nos braços o cadáver da esposa que tanto amava.

 

Subi as escadas e fui direto para a "sala de fumar" de meu pai, levando nas mãos

as duas folhas de papel onde tinha rascunhado a história. Quando cheguei, baba e

Rahim Khan estavam fumando cachimbo e tomando brandy

 

— O que foi, Amir? — perguntou baba recostando-se no sofá e cruzando as

mãos na nuca. O seu rosto estava envolto em fumaça azulada, e o seu olhar fez

minha garganta ficar seca. Pigarreei e disse que tinha escrito uma história.

Baba acenou com a cabeça e deu um leve sorriso que demonstrava pouco mais que

interesse fingido.

 

— Ora, isso é muito bom, não é? — disse ele.

E foi só. Apenas ficou me olhando através daquela nuvem de fumaça.

Devo ter ficado parado ali por menos de um minuto, mas foi um dos minutos

mais longos de toda a minha vida até aquele instante. Os segundos iam se arrastando,

separados uns dos outros por uma eternidade. O ar ficou pesado, abafado, quase

sólido. Eu estava respirando tijolos. Baba continuou olhando para mim e não pediu

para ler o que eu tinha escrito.

 

Como sempre, foi Rahim Khan que veio em meu socorro. Estendeu a mão e me

brindou com um sorriso que nada tinha de fingido.

 

— Posso ver, Amir jan? Adoraria lê-la.

Baba quase nunca usava o termo carinhoso, jan, quando falava comigo.

Ele deu de ombros e se levantou. Parecia aliviado, como se também tivesse sido

socorrido por Rahim Khan.

 

— Isso mesmo, mostre a kaka Rahim. Vou subir para me aprontar. — E, dizendo

isso, saiu do aposento.

 

 

A maior parte do tempo, eu adorava baba com uma intensidade quase religiosa.

Naquele instante, porém, tudo o que queria era poder abrir as minhas veias e deixar

que o seu maldito sangue saísse do meu corpo.

 

Uma hora mais tarde, quando o céu já estava escurecendo, os dois saíram no

carro de meu pai para ir a uma festa. Quando estavam de saída, Rahim Khan se

agachou diante de mim e me entregou minha história junto com um outro papel

dobrado. Deu um sorriso e piscou o olho.

 

— Tome. Leia isso mais tarde.

Fez uma pausa e acrescentou uma única palavra que foi mais eficaz no sentido

de me encorajar a continuar escrevendo do que qualquer outro elogio que algum

editor jamais tenha me feito. Essa palavra foi "bravo!".

 

Depois que eles saíram, sentei em minha cama querendo que Rahim Khan fosse

meu pai. Pensei então em baba com seu peito largo e em como era bom quando ele me

apertava junto a si; como cheirava a Brut pela manhã; e como a sua barba espetava o

meu rosto. De repente, senti uma culpa tão grande que disparei para o banheiro e

vomitei na privada.

 

Mais tarde, encolhido na cama, li e reli milhares de vezes o bilhete de Rahim Khan,

que dizia o seguinte:

 

Amir jan,

 

adorei a sua história. Mashallah, Deus lhe concedeu um talento especial. Cabe a

você, agora, aperfeiçoar esse talento, pois alguém que desperdiça os talentos que Deus lhe

deu é simplesmente burro. Você escreve corretamente do ponto de vista gramatical e

tem um estilo interessante. O mais impressionante, porém, é que a sua história temironia. Talvez você nem saiba o que essa palavra significa. Mas algum dia saberá. É

algo que alguns escritores passam a vida inteira procurando e nunca conseguem

atingir. E você conseguiu isso na primeira história que escreveu.

 

Minha porta está e sempre estará aberta para você, Amir jan. Estou pronto paraouvir qualquer história que tenha para contar. Bravo!

 

Seu amigo,

 

 Rahim

 

Animado com o bilhete de Rahim Khan, passei a mão na história e corri para o

saguão onde Ali e Hassan estavam dormindo, em colchões no chão. Era só nessas

circunstâncias que eles dormiam dentro de casa, quando baba saía e Ali tinha que

tomar conta de mim. Sacudi Hassan, para acordá-lo, e perguntei se queria ouvir uma

história.

 

Ele esfregou os olhos, sonolento, e se espreguiçou.

 

— Agora? Que horas são?

— Azar da hora! Essa é uma história especial. Fui eu mesmo que escrevi —

sussurrei, torcendo para não acordar Ali. O rosto de Hassan se iluminou.

 

— Então, tenho que ouvi-la — disse ele já empurrando o cobertor Para se levantar.

Li a história para ele na sala de visitas, perto da lareira de mármore. Desta vez,

nada de gozações com as palavras. O que estava em jogo era eu mesmo! E Hassan era

 

o público perfeito, em todos os sentidos: inteiramente absorto na narrativa, a expressão

de seu rosto se modificando de acordo com os tons que a história ia assumindo.

Quando li a última frase, ele fez com as mãos o gesto do aplauso sem som.

— Mashallah, Amir agha. Bravo! — disse ele radiante.

 

 

— Gostou? — indaguei eu, esperando sentir pela segunda vez o sabor, e como

era doce, de uma apreciação positiva.

— Algum dia, Inshallah, você vai ser um grande escritor — disse Hassan. — E

gente do mundo todo vai ler as suas histórias.

— Que exagero, Hassan! — exclamei, adorando-o por isso.

— Não é não. Você vai ser grande e famoso — insistiu ele.

Hesitou um pouco, então, como se estivesse prestes a acrescentar algo. Pesou

bem as palavras e pigarreou.

 

— Mas posso perguntar uma coisa sobre a história? — indagou envergonhado.

— Claro.

— Bem... — principiou ele, mas logo parou.

— Pode falar, Hassan — disse eu. E sorri, embora, de repente, o escritor

inseguro que havia em mim não soubesse muito bem se queria ou não ouvir o que

ele tinha a dizer.

— Bem... — recomeçou ele — o que eu queria perguntar é por que o homem

matou a esposa. Na verdade, por que ele precisava estar triste para derramar lágrimas?

Será que não podia simplesmente cheirar uma cebola?

Fiquei pasmo. Um detalhe como esse, tão óbvio que chegava a ser absolutamente

estúpido, não tinha me ocorrido. Movi os lábios sem emitir som algum. Parecia que na

mesma noite em que eu tinha aprendido qual era um dos objetivos da escrita, a ironia, ia

ser apresentado também a uma de suas armadilhas: os furos da trama. E, entre todas as

criaturas do mundo, Hassan é que foi me ensinar isso. Hassan que não sabia ler e nunca

tinha escrito uma única palavra em toda a sua vida. Uma voz, fria e escura, sussurrou

subitamente em meu ouvido, "Mas o que é que ele entende disso, esse hazara analfabeto?

Ele nunca vai passar de um cozinheiro. Como ousa criticar você?".

 

— Bem... — disse eu. Mas nunca consegui acabar aquela frase.

Porque, de repente, o Afeganistão mudou para sempre.

 

 

CINCO

 

 

HOUVE UM ESTRONDO QUE MAIS PARECIA um trovão. A terra estremeceu um pouco e

ouvimos o ra-ta-ta-ta-tá de uma arma de fogo.

 

— Pai! — gritou Hassan. Levantamos de um salto e saímos cor rendo da sala de

visitas. Fomos encontrar Ali atarantado, mancando freneticamente de um lado para o

outro no saguão.

— Pai! Que barulho foi esse? — gritou Hassan correndo para ele com os braços

estendidos. Ali o abraçou. Um clarão esbranquiçado iluminou o céu em tons de

prateado. Depois, um outro clarão, seguido do rápido staccato da artilharia.

— Estão caçando patos — respondeu Ali com a voz rouca. — Você sabe que é à

noite que se caçam patos. Não tenha medo.

Uma sirene passou à distância. Em algum lugar um vidro se estilhaçou e alguém

gritou. Ouvi barulho de gente na rua, provavelmente acordada em sobressalto e ainda de

pijamas, com os cabelos despenteados e os olhos inchados. Hassan estava chorando.

Ali o abraçou ainda mais, apertando-o com ternura. Mais tarde, diria a mim mesmo que

não fiquei com inveja de Hassan. De jeito nenhum.

 

Ficamos assim amontoados até as primeiras horas da manhã. O tiroteio e as

explosões não duraram nem uma hora, mas nos deixaram apavorados, porque nenhum

de nós jamais tinha ouvido tiros pelas ruas. Nessa época, aqueles ruídos eram estranhos

para nós. A geração de crianças afegãs cujos ouvidos só conheceram o som das bombas

e da artilharia ainda estava por nascer. Bem juntinhos, na sala de jantar, esperando o

dia clarear, nenhum dos três fazia a menor idéia de que um jeito de viver tinha

terminado. O nosso. Não de imediato, mas aquele instante tinha marcado o começo do

fim. O fim, o fim oficial chegaria primeiro em abril de 1978, com o golpe de Estado

comunista, e, depois, em dezembro de 1979, quando os tanques russos começaram a

circular por aquelas mesmas ruas onde Hassan e eu brincávamos, trazendo a morte do

Afeganistão que conheci e dando início a uma era sangrenta que perdura até hoje.

 

Um pouco antes do nascer do sol, o carro de baba embicou na entrada da casa.

Ouvimos a porta bater e os seus passos apressados ressoando nos degraus. Então, ele

surgiu na porta da frente e vi algo em seu rosto, algo que não consegui identificar

imediatamente, pois nunca tinha visto aquilo antes: medo.

 

 

 

— Amir! Hassan! — exclamou ele correndo na nossa direção, com os braços bem

abertos. — Bloquearam todas as estradas e o telefone não estava funcionando. Fiquei

tão preocupado!

Deixamos que nos apertasse em seus braços e, por um breve instante de loucura,

fiquei feliz pelo que quer que tivesse acontecido aquela noite.

 

NINGUÉM ESTAVA CAÇANDO PATOS, afinal. Como ficamos sabendo depois, eles não tinham

tido muito em que atirar naquela noite de 17 de julho de 1973. Quando Cabul

acordou na manhã seguinte, descobriu que a monarquia era coisa do passado. O rei,

Zahir Shah, estava na Itália. Aproveitando-se da sua ausência, seu primo Daoud Khan

pôs fim a um reinado de quarenta anos com um golpe sem derramamento de sangue.

 

Lembro que, naquela manhã, Hassan e eu ficamos agachados perto da porta do

escritório de meu pai enquanto baba e Rahim Khan tomavam chá preto e ouviam as

últimas notícias do golpe transmitidas pela rádio Cabul.

 

— Amir agha... — sussurrou Hassan.

— O quê?

— O que é uma "república"?

— Não sei — disse eu dando de ombros. No rádio de baba aquela palavra,

república, estava sendo repetida milhares de vezes.

— Amir agha...

— O quê?

— Será que "república" quer dizer que o pai e eu vamos ter de ir embora?

— Acho que não — respondi também sussurrando.

Hassan pensou um pouco.

— Amir agha...

— O quê?

— Não quero que eles nos mandem embora, o pai e eu.

Sorri para ele.

— Bas, seu burro. Ninguém está mandando vocês embora.

— Amir agha...

— O quê?

— Você quer subir na nossa árvore?

Meu sorriso se alargou. Isso era outra característica de Hassan. Sempre sabia

dizer a coisa certa na hora certa — as notícias do rádio já estavam ficando muito

chatas. Ele foi para casa se aprontar e eu fui pegar um livro. Depois, passei pela

cozinha, enchi os bolsos de pinhões e corri para o quintal ao encontro de Hassan, que

estava esperando por mim. Saímos em disparada pelo portão principal e tomamos o

rumo da colina.

 

Passamos pelas ruas residenciais e estávamos caminhando por um grande

terreno baldio que tínhamos de atravessar para chegar à colina quando, de repente,

uma pedra acertou Hassan pelas costas. Viramo-nos e meu coração quase parou. Assef

e dois de seus amigos, Wali e Kamal, estavam vindo em nossa direção.

 

Assef era filho de um amigo de meu pai, Mahmud, um piloto de avião. Moravam

a umas poucas ruas ao sul da nossa casa, em um condomínio elegante, com muros

altos e palmeiras. Se você fosse uma criança que morasse no bairro Wazir Akbar Khan,

em Cabul, já teria ouvido falar de Assef e do seu célebre soco-inglês de aço inoxidável,

se não tivesse tido o azar de experimentá-lo na própria pele. Filho de mãe alemã e pai

 

 

 

afegão, Assef era louro, de olhos azuis e bem mais alto que todos os outros garotos.

Sua merecida fama de atos de selvageria o precedia pelas ruas. Ladeado por seus

amigos obedientes, circulava pelas redondezas como um khan que passeasse pelas suas

terras cercado de seu séqüito obsequioso. Sua palavra era lei e se por acaso você

precisasse de alguma instrução legal, aquele soco-inglês metálico era o instrumento

ideal para ele lhe transmitir os seus ensinamentos. Uma vez vi Assef usar o soco-inglês

em um menino do bairro de Karteh-Char. Nunca vou esquecer como os seus olhos azuis

brilhavam com uma luz não inteiramente sã, e como ele sorria, sim, como sorria

enquanto esmurrava o pobre garoto inconsciente. Alguns meninos de Wazir Akbar Khan

 

o tinham apelidado Assef Goshkhor, ou Assef, o "Comedor de Orelhas". É claro que

ninguém ousava dizer isso na cara dele, a menos que quisesse ter o mesmo destino do

pobre garoto que tinha inspirado involuntariamente esse apelido quando brigou com

Assef por causa de uma pipa e acabou tendo que pescar a própria orelha direita dentro

de uma valeta enlameada. Anos mais tarde, aprendi uma palavra que define muito bem

uma criatura como Assef, uma palavra para a qual não existe um equivalente perfeito

em farsi: "sociopata."

De todos os meninos da vizinhança que torturavam Ali, Assef era de longe o mais

incansável. Na verdade, foi ele que inventou a tal história de "Babalu": "Ei, Babalu,

quem foi que você comeu hoje? Uh-uh! Como é, Babalu? Dê um sorriso para nós!" E,

quando estava particularmente inspirado, caprichava ainda mais no deboche: "Ei, seu

Babalu de nariz achatado, quem foi que você comeu hoje? Não vai dizer não, seu

burro de olhos puxados?"

 

Agora, lá estava ele, vindo na nossa direção, com as mãos nas cadeiras e os tênis

levantando nuvenzinhas de poeira do chão.

 

— Bom dia, kunis! — exclamou Assef, acenando com a mão. "Bichas": este era

mais um de seus insultos favoritos. Hassan se escondeu atrás de mim quando os três

garotos mais velhos chegaram bem perto.

Ficaram parados na nossa frente: aqueles três sujeitos altos, usando camiseta e

calça jeans. Pairando muito acima de nós, Assef cruzou os braços musculosos diante

do peito, com uma espécie de sorriso selvagem nos lábios. Não foi a primeira vez que

me passou pela cabeça que ele não era inteiramente normal. Também me passou pela

cabeça a sorte que eu tinha por ser filho de baba, o único motivo, creio eu, para que

Assef quase sempre evitasse me atormentar demais. Esticou o queixo, apontando para

Hassan.

 

— Ei, nariz achatado! — exclamou ele. — Como vai Babalu?

Hassan não disse nada e deu mais um passo para trás.

— Ouviram as notícias, meninos? — prosseguiu ele, ainda com aquele sorriso

nos lábios. — O rei já era. E já vai tarde! Vida longa para o presidente! Meu pai

conhece Daoud Khan, sabia, Amir?

— O meu também — disse eu. Para ser sincero, não tinha a menor idéia se aquilo

era verdade ou não.

— O meu também — repetiu Assef me imitando, com uma vozinha chorosa.

Kamal e Wali riram em uníssono. E eu desejei que baba estivesse ali.

— E, Daoud Khan jantou lá em casa no ano passado — acrescentou Assef. — O

que você acha disso, Amir?

Perguntei a mim mesmo se alguém nos ouviria gritar, aqui nesse terreno isolado.

A casa de baba ficava bem a um quilômetro de distância. Adoraria que não

tivéssemos saído...

 

 

 

— Sabe o que vou dizer a Daoud Khan da próxima vez que ele for jantar lá em

casa? — indagou Assef. — Vou ter uma conversinha com ele, de homem para homem,

mard para mard. E vou lhe dizer o que disse para minha mãe. Sobre Hitler. Aquilo,

sim, é que era um líder. Um grande líder. Um homem de visão. Vou dizer a Daoud

Khan que se tivessem deixado Hitler terminar o que começou, o mundo hoje

seria um lugar muito melhor.

— Baba diz que Hitler era louco, que mandou matar um monte de gente

inocente — me ouvi dizendo antes que tivesse tempo de tapar a boca com a mão.

Assef deu uma risadinha.

 

— Parece até minha mãe, e olhe que ela é alemã... Não devia cair nessa... Mas

acontece que eles querem que vocês acreditem nisso, não é? Não querem que saibam a

verdade.

Não fazia a mínima idéia de quem seriam esses "eles", ou que verdade era essa

que estariam escondendo, mas também não fazia a mínima questão de saber. Tudo o

que queria era não ter dito nada. E mais uma vez, desejei levantar os olhos e dar

com baba subindo a colina.

 

— Mas a gente tem que ler os livros que nos dão na escola prosseguiu ele.

— Eu li. E isso me abriu os olhos. Agora, tenho

uma posição, e vou dividi-la com nosso novo presidente. Sabe o que isso significa?

Fiz que não com a cabeça. De um jeito ou de outro, ele ia dizer mesmo. Assef

sempre respondia às perguntas que ele próprio fazia.

Seus olhos azuis se moveram rapidamente, voltando-se para Hassan.

 

— O Afeganistão é a terra dos pashtuns. Sempre foi e sempre será. Nós é que

somos os verdadeiros afegãos, os afegãos puros, e não esse "nariz achatado" aqui. Essa

gente polui a nossa terra, o nosso watan. Sujam o nosso sangue. — Fez um gesto bem

amplo com as mãos. — O Afeganistão para os pashtuns, é isso aí! Essa é a minha

posição.

Voltou a olhar para mim. Parecia alguém acordando de um sonho.

 

— Para Hitler, é tarde demais — disse ele. — Para nós, não. — Apanhou

alguma coisa no bolso de trás do jeans. — Vou dizer ao presidente para fazer o que o

rei não teve quwat de fazer. Livrar o Afeganistão de todos esses hazaras nojentos,

kasseef!

— Deixe a gente ir, Assef — disse eu, com ódio ao ver que minha voz tremia. —

Não estamos atrapalhando você...

 

— Mas claro que estão — retrucou ele.

E o meu coração quase parou quando vi o que ele tinha apanhado no bolso. É

lógico. O soco-inglês de aço inoxidável reluzia ao sol.

 

— Estão me atrapalhando muitíssimo. Na verdade, você me aborrece muito

mais que esse hazara aí. Como pode falar com ele, brincar com ele, deixar que ele

toque em você? — perguntou com a voz cheia de repulsa. Wali e Kamal assentiram

com a cabeça e com um grunhido. Assef apertou os olhos. Abanou a cabeça.

Quando voltou a falar, sua voz soou tão espantada quanto parecia o seu rosto.

— Como pode chamá-lo de "amigo"?

"Mas ele não é meu amigo!" foi o que quase deixei escapar. "É meu empregado!"

Será que tinha realmente pensado isso? Não. Claro que não. Sempre tratei Hassan

muito bem, como um amigo; talvez até melhor, como um irmão. Mas, então, por que

será que quando os amigos de baba vinham nos visitar com os filhos, eu nunca incluía

 

 

 

Hassan nas nossas brincadeiras? Por que só brincava com ele quando não tinha mais

ninguém por perto?

 

Assef enfiou o soco-inglês na mão. E me lançou um olhar glacial.

 

— Você é parte do problema, Amir. Hoje em dia, já estaríamos livres dessa

gente se idiotas como você e seu pai não os acolhessem. Todos teriam apodrecido em

Hazarajat, que é o lugar deles. Você é uma desgraça para o Afeganistão.

Olhei para os seus olhos enlouquecidos e vi que estava falando sério, que

realmente pretendia me atacar. Assef ergueu o punho e partiu para cima de mim.

 

Percebi um movimento rápido às minhas costas. Com o canto do olho, vi Hassan

se abaixar e voltar a se erguer bem depressa. Os olhos de Assef avistaram algo atrás de

mim e se arregalaram de espanto. Vi o mesmo olhar perplexo no rosto de Kamal e de

Wali quando também se deram conta do que estava acontecendo.

 

Virei e dei de cara com o estilingue de Hassan. A tira elástica estava toda

esticada para trás. Na lingüeta, uma pedra do tamanho de uma noz. Hassan estava

mirando bem no meio do rosto de Assef. Sua mão tremia com o esforço para manter a

tira retesada e gotas de suor banhavam a sua testa.

 

— Por favor, deixe-nos em paz, agha — disse ele com voz impassível. Chamou

Assef de "agha" e, por um segundo, me perguntei como deveria ser levar uma vida

assim, com uma noção tão entranhada de qual é o lugar que lhe cabe em uma

hierarquia.

Assef cerrou os dentes.

 

— Baixe isso, seu hazara sem mãe!

— Por favor, deixe a gente em paz, agha — insistiu Hassan.

Assef sorriu.

— Talvez você não tenha notado, mas somos três, e vocês, apenas dois.

Hassan deu de ombros. Para alguém que não o conhecesse, não parecia estar

com medo. Mas aquele rosto era a minha lembrança mais remota e eu conhecia cada

uma das suas nuanças mais sutis, cada contração ou estremecimento que porventura

se desenhasse ali. E vi que estava com medo. Com muito medo mesmo.

 

— Tem razão, agha. Mas talvez você não tenha notado que sou eu estou

segurando o estilingue. Se fizer o mínimo movimento, terá trocar o apelido de Assef, o

"Comedor de Orelhas", para Assef, o "Caolho", pois esta pedra está apontada para o

seu olho esquerdo.

Disse isto de um jeito tão tranqüilo que até eu tive de fazer um esforço para

perceber o medo que sabia estar escondido por baixo daquela calma.

 

A boca de Assef se retorceu. Wali e Kamal olhavam aquele confronto com uma

espécie de fascínio. Alguém tinha desafiado o seu deus. Ele estava sendo humilhado.

E, o que era pior, esse alguém era um hazara franzino. Assef olhava para a pedra e

para Hassan. Observava o rosto do menino atentamente. O que viu ali deve tê-lo

convencido da seriedade das suas intenções, pois baixou o punho.

 

— Tem uma coisa que você precisa saber a meu respeito, seu hazara — disse

ele num tom grave. — Sou um cara muito paciente. Isto não vai ficar assim, pode

acreditar no que estou dizendo. — E acrescentou, virando-se para mim. — Isso vale

para você também, Amir. Algum dia vou fazer você me enfrentar e vai ser só entre

nós dois.

Assef deu um passo atrás. Seus discípulos o seguiram.

 

 

 

— O seu hazara cometeu um grande erro hoje, Amir — disse ele. Os três viraram

então as costas e foram embora. Fiquei olhando enquanto desciam a colina, até que

desapareceram atrás de um muro.

Hassan estava tentando enfiar o estilingue na cintura com as mãos trêmulas. Sua

boca se contorceu fazendo algo que, supostamente, pretendia ser um sorriso

tranqüilizador. Só na terceira tentativa é que conseguiu prender o estilingue no

cordão da calça. Temerosos, nenhum de nós disse praticamente nada no caminho até em

casa, pois podíamos jurar que Assef e seus amigos estariam emboscados em cada

esquina. Mas não estavam, e deveríamos ter ficado um pouco mais tranqüilos. Mas

não ficamos. Não mesmo.

 

DURANTE OS PRIMEIROS ANOS QUE SE SEGUIRAM ao golpe, os termos "desenvolvimento

econômico" e "reforma" dançavam em várias bocas em Cabul. A monarquia

constitucional tinha sido abolida, substituída pela república, e o país era governado

por um presidente. Por um breve tempo, um certo ar de rejuvenescimento e

determinação circulou pelo Afeganistão. Falava-se em direitos das mulheres e moderna

tecnologia.

 

E, sob quase todos os aspectos — embora houvesse um novo líder no Arg, o

palácio real de Cabul —, a vida continuava exatamente como antes. As pessoas iam

trabalhar de sábado a quinta-feira e, na sexta, se reuniam para fazer piqueniques nos

parques, nas margens do lago Ghargha, nos jardins de Paghman. Ônibus e lotações

multi-coloridos, repletos de passageiros, circulavam pelas estreitas ruas da capital,

guiados pelos gritos incessantes dos ajudantes que se encarapitavam no pára-choque

traseiro dos veículos e iam indicando as direções ao motorista, aos berros, com o seu

forte sotaque kabuli. Na época do Eid, a celebração de três dias que marca o fim do

mês sagrado do Ramadan, os kabulis vestiam suas melhores roupas novas e iam visitar

os parentes. Todos se abraçavam, se beijavam e se cumprimentavam dizendo "Eid

Mubarak". Feliz Eid. As crianças abriam os seus presentes e brincavam com ovos

cozidos e tingidos.

 

Em princípios do inverno de 1974, Hassan e eu estávamos brincando no quintal,

fazendo uma fortaleza de neve, quando Ali veio chamá-lo.

 

— Hassan, agha sahib quer falar com você! — Estava parado na porta da frente,

vestido de branco, com as mãos enfiadas debaixo dos braços e vapor saindo da

boca quando falava.

Hassan e eu nos entreolhamos sorrindo. Tínhamos passado o dia inteiro

esperando por aquele chamado. Era o aniversário de Hassan.

 

— O que é, pai? Você sabe? Não vai nos dizer? — perguntou Hassan. E os

seus olhos estavam brilhando.

Ali deu de ombros.

 

— Agha sahib não falou nada comigo.

— Vamos, Ali, diga! — insisti eu. — É um livro de desenho? Talvez um

revólver novo?

Como o filho, Ali era incapaz de mentir. Todo ano, fingia ignorar o que baba

tinha comprado para Hassan ou para mim de presente de aniversário. E, todo ano, os

seus olhos o traíam e conseguíamos tirar dele todas as informações. Desta vez, porém,

parecia estar dizendo a verdade.

 

 

 

Baba nunca deixava o aniversário de Hassan passar em branco. Houve uma

época em que perguntava o que ele queria, mas desistiu de fazer isso porque Hassan era

sempre modesto demais para sugerir um presente de verdade. Assim, baba acabava

sempre escolhendo ele mesmo alguma coisa. Uma vez, comprou um caminhão de

brinquedo japonês; outra vez, um trem elétrico. No ano passado, surpreendeu Hassan

com um chapéu de cowboy, igualzinho ao que Clint Eastwood usava em O bom, o mau e

 

o feio — que tinha substituído Sete homens e um destino como nosso western favorito.

Passamos o inverno inteiro nos alternando para usar o chapéu e cantando em altos

brados a famosa música do filme quando trepávamos em montanhas de neve e

atirávamos um no outro de mentirinha.

Tiramos as luvas e as botas cheias de neve na porta da frente. Quando entramos

no saguão, vimos baba sentado perto do fogareiro de ferro fundido, tendo ao seu lado

um indiano baixo e um tanto calvo, vestido com um terno marrom e uma gravata

vermelha.

 

— Hassan — disse baba sorrindo meio sem jeito. — Venha conhecer o seu

presente de aniversário.

Hassan e eu nos entreolhamos espantadíssimos. Não havia sinal de embrulho de

presente. Nenhuma sacola. Nenhum brinquedo. Só Ali, parado atrás de nós, e meu pai

com aquele indiano baixinho que tinha um certo ar de professor de matemática.

 

O indiano de terno marrom sorriu e estendeu a mão para Hassan.

 

— Sou o dr. Kumar — disse ele. — Prazer em conhecê-lo.

Ele falava farsi com um leve e ondulante sotaque hindi.

— Salaam alaykum — disse Hassan meio hesitante. Fez um aceno com a cabeça,

mas os seus olhos procuravam o pai às suas costas. Ali chegou mais perto e pôs a mão

no ombro do filho.

Baba percebeu o olhar desconfiado — e desconcertado — de Hassan.

 

— Chamei até aqui o dr. Kumar, de Nova Delhi. Ele é um cirurgião plástico.

— Sabe o que é isso? — indagou o indiano, o tal dr. Kumar.

Hassan abanou a cabeça. Olhou para mim pedindo socorro, mas dei de

ombros. Tudo o que eu sabia é que procurávamos um cirurgião para tratar de nós

quando tínhamos apendicite. Sabia disso porque, um ano antes, um dos meus colegas

de turma tinha morrido e o professor nos explicou que demoraram muito para levá-lo

a um cirurgião. Ambos olhamos para Ali, mas, é claro, não adiantou nada. O seu rosto

estava impassível como sempre, embora houvesse um quê de seriedade nos seus

olhos.

 

— Bem — disse o dr. Kumar —, o meu trabalho é consertar coisas no corpo das

pessoas. Às vezes no rosto delas.

— Ah! — exclamou Hassan. Os seus olhos foram do dr. Kumar para baba e,

depois, para Ali. Levou a mão ao lábio superior. — Ah! — repetiu ele.

— Sei que é um presente meio estranho — disse baba. — E, provavelmente, não

era isso que você estava esperando. Mas este é um presente que vai ficar para sempre.

— Ah! — disse Hassan novamente. Passou a língua nos lábios. Pigarreou. —

Agha sahib, vai... vai...

 

— De jeito nenhum — interveio o dr. Kumar sorrindo gentilmente.

— Não vai doer nem um pouquinho. Na verdade, vou lhe dar um remédio e

você nem vai se lembrar de nada.

 

 

— Ah! — repetiu Hassan. E retribuiu o sorriso aliviado. Mas nem tanto... — Não

é que estivesse com medo, agha sahib — prosseguiu ele. — Só...

Hassan talvez tivesse acreditado naquela história, mas eu não. Sabia que quando

os médicos dizem que não vai doer você pode ter a certeza de que está em maus

lençóis. Apavorado, lembrei da minha circuncisão no ano anterior. O médico me disse

a mesma coisa, garantindo que não ia doer nada. Mas, quando passou o efeito do tal

remédio que entorpece, bem mais tarde naquela noite, parecia que alguém tinha

enfiado carvão em brasa nos meus rins. Por que baba tinha esperado eu fazer dez anos

para mandar me circuncidarem é uma coisa que nunca consegui entender, e que

nunca vou perdoar.

 

Adoraria ter também algum tipo de cicatriz que atraísse a simpatia de baba. Não

era justo. Hassan não tinha feito nada para conquistar a afeição de meu pai;

simplesmente tinha nascido com aquele estúpido lábio leporino...

 

A cirurgia foi um sucesso. Ficamos todos um pouco chocados da primeira vez

que removeram os curativos; no entanto, continuamos sorrindo, obedecendo às

instruções do dr. Kumar. Mas não foi fácil pois o lábio superior de Hassan era uma

coisa grotesca, todo inchado e em carne viva. Achei que ele ia gritar horrorizado

quando a enfermeira lhe deu o espelho. Ali segurou a sua mão e ele ficou um bom

tempo contemplando o próprio rosto. Depois, balbuciou algo que não entendi.

Cheguei o ouvido bem perto da sua boca. Ele sussurrou de novo.

 

— Tashakor. — Obrigado.

Então os seus lábios se contorceram e, desta vez, eu sabia exatamente o que ele

estava fazendo. Estava sorrindo. Assim como tinha feito quando saiu do útero de sua

mãe.

 

O inchaço foi diminuindo e, com o tempo, a ferida cicatrizou. Em alguns meses,

não passava de uma linha rosada atravessando o lábio superior. No inverno seguinte,

era apenas uma leve cicatriz. O que é bastante irônico. Porque foi justamente nesse

inverno que Hassan parou de sorrir.

 

 

 

SEIS

 

 

INVERNO.

Todo ano, no primeiro dia em que começa a nevar, faço a mesma coisa: saio de

casa bem cedo, pela manhã, ainda de pijama, apertando os braços contra o peito para

enfrentar o frio. Vejo a entrada, o carro de meu pai, o muro, as árvores, os telhados e as

colinas cobertos por mais de um palmo de neve. Sorrio. O céu está limpo e azul, e tudo

é tão branco que os meus olhos chegam a arder. Enfio um punhado de neve na boca,

fico ouvindo aquele silêncio abafado que só é rompido pelos grasnidos dos corvos.

Desço os degraus, descalço, e chamo Hassan para vir ver também.

O inverno era a estação favorita de todas as crianças de Cabul, pelo menos

daquelas cujos pais tinham condições de comprar um bom aquecedor de ferro. E o

motivo era simples: as escolas fechavam durante a estação gelada. Para mim, a chegada

do inverno significava não ter que fazer longas divisões nem dar o nome da capital da

Bulgária, e o princípio de um período de três meses jogando cartas com Hassan perto

da lareira, indo ver filmes russos no cinema Park na terça-feira de manhã, comer

qurma de nabo doce com arroz na hora do almoço, depois de uma manhã inteira

fazendo bonecos de neve.

E pipas, é claro. Soltar pipas. E correr para apanhá-las.

Para umas poucas crianças desafortunadas, o inverno não significava o fim do anoletivo. É que havia os chamados cursos voluntários de inverno. Nenhuma criança jamais

foi realmente voluntária para esses cursos; é óbvio que eram os seus pais que as

inscreviam. Por sorte, baba não era um deles. Lembro de um menino, Ahmad, que

morava do outro lado da rua. Seu pai era uma espécie de médico, acho eu. Ahmad

tinha epilepsia e usava sempre um casaco de lã e uns óculos com lentes de fundo de

garrafa e aro escuro — ele era uma das vítimas habituais de Assef. Toda manhã, pela

janela de meu quarto, via o criado hazara tirando a neve do chão defronte da casa

deles, limpando o caminho para a saída do Opel preto. Eu fazia questão de ver Ahmad

e o pai entrarem no carro, Ahmad vestindo o seu casaco negro e um sobretudo de

inverno, com a mala cheia de livros e de lápis. Ficava esperando até eles saírem,

dobrarem a esquina e, então, voltava para a cama com o meu pijama de flanela. Puxava

 

o cobertor até o queixo e ficava olhando as colinas cobertas de neve que se viam pela

janela. Ficava olhando para elas até pegar no sono outra vez.

 

 

Adorava o inverno em Cabul. Adorava por causa do suave tamborilar na minha

janela à noite, quando estava nevando; por causa do barulhinho da neve fresca

debaixo das minhas galochas pretas; do calor do fogareiro de ferro fundido enquanto

 

o vento assobiava pelos quintais e pelas ruas. Mas principalmente porque, quando as

arvores ficavam congeladas e a neve recobria as estradas, o gelo entre mim e baba

diminuía um pouco. E a razão disso eram as pipas. Baba e eu morávamos na mesma

casa, mas vivíamos em esferas de existência completamente diferentes. As pipas eram a

minúscula área de interseção que havia entre essas esferas.

TODOS OS BAIRROS DE CABUL SEMPRE organizavam campeonatos de pipas no inverno. E se

você fosse um menino de Cabul, o dia do torneio era incontestavelmente o ponto alto

da estação fria. Nunca conseguia dormir na véspera da competição. Rolava na cama,

fazia animais de sombra na parede, chegava até a ir sentar na varanda no escuro

enrolado em um cobertor. Eu me sentia como um soldado tentando dormir na

trincheira na véspera de uma batalha importante. E não era muito diferente, não. Em

Cabul, empinar pipas era um pouco como ir para a guerra.

 

Como em toda guerra, você precisa se preparar para uma batalha. Durante

algum tempo, Hassan e eu fizemos as nossas próprias pipas. Passávamos o outono

economizando dinheiro da mesada e guardávamos essas economias em um cavalinho de

porcelana que meu pai trouxe uma vez de uma viagem a Herat. Quando começavam a

soprar os ventos do inverno e a neve começava a cair em quantidade razoável, abríamos

 

o fecho que ficava debaixo da barriga do cavalo. Corríamos para o bazaar e

comprávamos bambu, cola, barbante e papel de seda. Passávamos horas a fio aparando

o bambu para a vareta central e as outras duas que se cruzavam para fazer a armação,

cortando o papel finíssimo, indispensável para a pipa debicar e voltar a subir com

facilidade. E, é claro, tínhamos que fazer também a nossa própria linha, ou tar. Se a pipa

era o revólver, o tar, o fio cortante recoberto de cerol, era a munição. íamos para o

quintal e enchíamos uns duzentos metros de barbante com aquela mistura de cola e

vidro moído. Depois, pendurávamos o barbante entre as árvores para secar. No dia

seguinte, enrolávamos a linha pronta para a guerra em um carretel de madeira.

Quando a neve derretia e começavam a cair as chuvas da primavera, todos os meninos

de Cabul ostentavam nos dedos talhos horizontais, traços reveladores de um inverno

inteiro passado nessas batalhas. Lembro de como os meus colegas e eu nos reuníamos

para comparar as cicatrizes de guerra no primeiro dia de aula. Os cortes eram

doloridos e levavam umas duas semanas para sarar, mas isso não tinha a menor

importância. Aquelas eram as marcas da estação que eu tanto amava e que, mais uma

vez, tinha acabado depressa demais. Então, o monitor da turma soava o apito e, em

fila, todos nos dirigíamos para a sala de aula, já sonhando com a volta do inverno e, no

entanto, indo ao encontro do espectro de mais um longo ano letivo.

Logo se viu, porém, que Hassan e eu éramos muito melhores empinando pipas

do que tentando fabricá-las. Uma falha ou outra o nosso projeto sempre acabava

determinando o seu destino. Baba começou então a nos levar à loja de Saifo para

comprar nossas pinas. Saifo era um homem quase cego, moochi de profissão — que

ganhava a vida consertando sapatos. Mas também era o fabricante de pipas mais

famoso da cidade, com a sua minúscula lojinha na Jadeh Maywand, a rua mais

movimentada ao sul das margens lamacentas do rio Cabul. Lembro que as pessoas

tinham de se agachar para entrar naquele cubículo do tamanho de uma cela de prisão,

e, depois, levantar a tampa de um alçapão para descer alguns degraus de madeira que

 

 

 

levavam ao porão úmido onde Saifo guardava as tão cobiçadas pipas. Baba comprava

para cada um de nós três pipas idênticas e carretéis de linha com cerol. Se eu mudasse de

idéia e resolvesse pedir uma pipa maior e mais extravagante, ele a compraria, mas

compraria a mesma também para Hassan. Às vezes gostaria que não agisse assim. Que

me deixasse ser o seu favorito.

 

O campeonato de pipas era uma velha tradição de inverno no Afeganistão. O

torneio começava de manhã cedo e só acabava quando a pipa vencedora fosse a única

ainda voando no céu — lembro de uma vez que a competição terminou quando já era

noite fechada. As pessoas se amontoavam pelas calçadas e pelos telhados, torcendo

pelos filhos. As ruas ficavam repletas de competidores dando sacudidelas e puxões nas

linhas, com os olhos fixos no céu, tentando se pôr em condições de cortar a pipa do

adversário. Todo pipeiro tinha um assistente — no meu caso, Hassan —, que ficava

segurando o carretel e controlando a linha.

 

Certa vez, um gurizinho indiano, cuja família tinha acabado de se mudar para o

nosso bairro, veio nos dizer que, lá na sua terra, havia regras estritas e toda uma

regulamentação para se soltar pipa.

 

— Temos que ficar em uma área cercada e é preciso se pôr em um ângulo

determinado com relação ao vento — disse ele todo prosa. — E se pode usar alumínio

para fazer sua própria linha com cerol.

Hassan e eu nos entreolhamos. E caímos na gargalhada. Aquele pirralho indiano

logo, logo aprenderia o que os britânicos aprenderam no começo do século, e os

russos viriam a descobrir em fins da década de 1980: que os afegãos são um povo

independente. Cultivam os costumes, mas abominam as regras. E com as pipas não

podia ser diferente. As regras eram simples: não havia regras. Empine a sua pipa.

Corte a dos adversários. E boa sorte.

 

Só que isso não era tudo. A brincadeira começava mesmo depois que uma pipa era

cortada. Era aí que entravam em cena os caçadores de pipas, aquelas crianças que

corriam atrás das pipas levadas pelo vento, até que elas começassem a rodopiar e

acabassem caindo no quintal de alguém, em uma árvore ou em cima de um telhado.

Essa perseguição podia se tornar bastante feroz; bandos de meninos saíam correndo

desabalados pelas ruas, uns empurrando os outros como aquela gente da Espanha

sobre quem li alguma coisa, aqueles que correm dos touros. Uma vez, um garoto da

vizinhança subiu em um pinheiro para apanhar uma pipa. O galho quebrou com o seu

peso e ele caiu de mais de dez metros de altura. Quebrou a espinha e nunca mais voltou

a andar. Mas caiu segurando a pipa. E quando um desses caçadores põe a mão em uma

pipa, ninguém pode tirá-la dele. Isso não é uma regra. É o costume.

 

Para eles, o prêmio mais cobiçado era a última pipa que caía em um campeonato

de inverno. Era como um troféu, algo a ser posto em um lugar de destaque e exibido

para as visitas. Quando o céu se esvaziava, e sobravam apenas as duas últimas pipas,

todos aqueles caçadores se preparavam para tentar conquistar aquele prêmio.

Procuravam se posicionar de jeito a estarem prontos para a largada. Músculos tensos,

prestes a disparar. Pescoços espichados. Olhos apertados. Surgiam as brigas. E,

quando a última pipa era cortada, era um deus-nos-acuda.

 

Ao longo dos anos, vi milhares de garotos correrem atrás de pipas. Mas Hassan foi

de longe o melhor que jamais vi. Era impressionante como ele percebia onde a pipa

poderia ir parar antes mesmo que ela começasse a cair, como se tivesse uma espécie de

bússola interior.

 

 

 

Lembro de um dia nublado de inverno, quando Hassan e eu estávamos tentando

apanhar uma pipa. Fui correndo atrás dele pelo bairro todo, pulando valetas, me

embrenhando por ruelas estreitas. Hassan era um ano mais moço, mas corria bem

mais depressa, e eu já estava ficando para trás.

 

— Hassan! Espere! — gritei quase sem fôlego.

Ele se virou e fez um gesto com a mão.

— Por aqui — disse, antes de desaparecer em uma outra esquina. Olhei para

cima e vi que estávamos correndo em uma direção, enquanto a pipa ia sendo levada

para o lado oposto.

— Vamos perder essa pipa! Estamos indo para o lado errado! — exclamei.

— Confie em mim! — gritou ele lá de longe.

Cheguei na esquina e vi Hassan, que continuava correndo, de cabeça baixa, sem

nem mesmo olhar para o céu, com as costas da camisa encharcadas de suor. Tropecei em

uma pedra e caí — eu não era só mais lento que Hassan, era mais desajeitado também;

sempre tive inveja de sua condição atlética natural. Quando me levantei, avistei Hassan

que desaparecia dobrando uma outra esquina. Saí mancando atrás dele, sentindo

fisgadas de dor nos joelhos esfolados.

 

Fomos dar em uma estradinha de terra toda esburacada, perto da escola

secundária Istiqlal. De um lado, havia um campo que, no verão, era uma plantação de

alfaces, e, do outro, um renque de cerejeiras. Vi Hassan sentado no chão, ao pé de uma

daquelas árvores, comendo um punhado de amoras secas.

 

— O que é que estamos fazendo aqui? — indaguei ofegante, com o estômago se

revirando de enjôo.

— Sente comigo, Amir agha — disse ele sorrindo.

Na verdade, me deixei cair ao seu lado e me estiquei em um pedacinho de chão

coberto de neve, quase sem fôlego.

 

— Estamos perdendo tempo. Não viu que a pipa está indo para o outro lado?

Hassan trincou uma amora.

— Está vindo para cá — respondeu.

Eu mal podia respirar, e ele nem parecia cansado.

— Como pode saber? — perguntei.

— Eu sei.

— Como?

Ele se virou para mim. Algumas gotinhas de suor escorriam de sua cabeça

raspada.

 

— Já menti para você, Amir agha? De repente, resolvi implicar com ele. — Sei lá

— respondi. — Já?

— Mil vezes comer cocô! — exclamou ele com ar indignado.

— De verdade? Você faria isso?

Ele me lançou um olhar desconcertado.

— Faria o quê?

— Comer cocô, se eu mandasse — respondi. Sabia que estava sendo cruel,

como naquelas vezes em que debochava dele quando não conhecia uma palavra

qualquer. Mas havia algo de fascinante, embora de um jeito doentio, em implicar com

Hassan. Era um pouco como brincar de torturar insetos. Só que, agora, ele era a

formiga e eu é que estava segurando a lupa.

 

 

Ele ficou me encarando por um bom momento. Estávamos sentados ali, dois

meninos debaixo de uma cerejeira, e, de repente, nos olhávamos, olhávamos de

verdade. Foi então que aconteceu de novo: o rosto de Hassan mudou. Talvez não tenha

mudado, não para valer, mas, de repente, tive a sensação de estar olhando para dois

rostos: um deles, o que eu conhecia, aquele que era a minha lembrança mais remota; o

outro, o segundo rosto, era o que estava escondido logo abaixo da superfície, já tinha

visto isso acontecer antes e aquilo sempre me deixava um pouco atordoado. Esse

outro rosto só aparecia por uma fração de segundo, mas isso era o bastante para me

deixar com a perturbadora sensação de que talvez já o tivesse visto em algum lugar.

Então, Hassan piscava e voltava a ser ele mesmo. Simplesmente Hassan.

 

— Se você mandasse, faria, sim — disse ele afinal, olhando bem para o meu

rosto. Baixei os olhos. Foi aí que descobri como é difícil olhar diretamente nos olhos

das pessoas como Hassan, essas pessoas que dizem sinceramente o que pensam. —

Mas fico imaginando... — acrescentou ele. — Será que algum dia você me mandaria

fazer uma coisa dessas, Amir agha?

E, com isso, Hassan me propôs um pequeno teste. Se eu ia provocá-lo, desafiando

a sua lealdade, ele ia fazer o mesmo, pondo à prova a minha integridade.

Adoraria não ter começado aquela conversa. Dei um sorriso forçado.

 

— Não seja idiota, Hassan. Você sabe muito bem que eu não faria isso!

Ele também sorriu. Só que o dele não parecia forçado.

— Eu sei — disse.

E esse é o problema das pessoas que são sinceras: acham que todo mundo também

é.

 

— Lá vem ela — exclamou ele apontando para o céu.

Levantou-se e deu uns poucos passos para a esquerda. Olhei para cima e vi a

pipa rodopiando na nossa direção. Ouvi correria, gritos, um monte de outros caçadores

que se aproximavam. Mas estavam perdendo seu tempo. Porque Hassan ficou parado

ali, de braços abertos, sorrindo, à espera da pipa. E que Deus — se é que Ele existe —

me cegue se não for verdade que a pipa caiu exatamente naqueles braços estendidos.

 

NO INVERNO DE 1975 VI HASSAN CORRER atrás de uma pipa pela última vez.

 

Normalmente, cada bairro tem a sua própria competição. Mas, aquele ano, o

campeonato ia ser realizado no meu, Wazir Akbar Khan, e vários outros — Karteh-

Char, Karteh-Parwan, Mekro-Rayan e Koteh-Sangi — tinham sido convidados. Não

se podia ir a lugar nenhum sem ouvir falar do torneio que se aproximava. Dizia-se que

aquela ia ser a maior competição dos últimos vinte e cinco anos.

 

Certa noite, naquele inverno, a apenas quatro dias do campeonato, meu pai e eu

estávamos sentados no escritório, nas cadeiras estofadas de couro, à luz da lareira.

Conversávamos, tomando chá. Ali tinha servido o jantar mais cedo — batatas e

couve-flor ao curry com arroz — e tinha ido se deitar juntamente com Hassan. Baba

estava engordando o cachimbo, como dizia, e eu lhe pedi que me contasse aquela

história sobre o inverno em que um bando de lobos desceu das montanhas de Herat,

obrigando as pessoas a ficarem trancadas em casa por uma semana. Ele riscou um

fósforo e disse, como quem não quer nada:

 

— Talvez você ganhe o campeonato este ano. O que acha?

 

 

Fiquei sem saber o que pensar. Ou o que dizer. Será que era o que eu estava

imaginando? Será que ele estava simplesmente me dando uma indireta? Eu era bom

empinando pipas. Na verdade, era muito bom Umas poucas vezes estive bem perto de

ganhar o campeonato de inverno — certa feita, fiquei entre os três finalistas. Mas chegar

quase lá não era a mesma coisa que vencer, não é? Baba não tinha chegado quase lá.

Ganhou porque os vencedores ganham e todos os demais vão embora para casa. Ele

estava acostumado a vencer, vencer em tudo o que resolvesse fazer. Será que não

tinha o direito de esperar o mesmo do próprio filho? E imagine só se eu ganhasse...

 

Baba ficou fumando seu cachimbo e falando. Fingi estar ouvindo. Na verdade,

porém, não conseguia ouvir nada, pois o ligeiro comentário casual que ele tinha feito

plantou uma semente em minha cabeça: a decisão de ganhar o torneio de inverno. Eu

ia ganhar. Não havia nenhuma outra opção viável. Ia ganhar e ia conseguir aquela

última pipa. Então, ia trazê-la para casa e mostrá-la a baba. Mostrar a ele, de uma vez

por todas, que o seu filho tinha valor. E, assim, quem sabe a minha vida de fantasma

naquela casa não acabaria afinal? Fiquei sonhando: imaginei conversas e risos

durante o jantar, em vez daquele silêncio só rompido pelo barulho dos talheres e

algum grunhido ocasional. Vi nós dois saindo de carro, na sexta-feira, rumo a Paghman,

com uma parada no lago Ghargha para comer truta frita com batatas. Iríamos ao

zoológico ver Marjan, o leão, e talvez baba não ficasse bocejando e olhando o relógio

 

o tempo todo. Talvez até lesse uma das minhas histórias. Seria capaz de escrever uma

centena delas se achasse que ele leria uma que fosse... Talvez ele me chamasse de Amir

jan, como Rahim Khan fazia. E talvez, apenas talvez, ele finalmente me perdoasse por

ter matado minha mãe.

Baba estava falando de quando cortou quatorze pipas em um dia só. Fiquei

sorrindo, assentindo com a cabeça; ri em todos os momentos certos, mas praticamente

não ouvi uma palavra do que ele disse. Agora, eu tinha uma missão. E não ia

decepcionar baba. Não desta vez.

 

NEVOU FORTE NA VÉSPERA DO CAMPEONATO. Hassan e eu ficamos sentados debaixo do kursi,

jogando panjpar, ouvindo os galhos das árvores batendo na vidraça sacudidos pelo

vento. Mais cedo, pedi a Ali que preparasse o kursi para nós — basicamente um

aquecedor elétrico instalado sob uma mesa baixa recoberta com um edredom bem grosso.

Em volta da mesa, ele pôs colchões e almofadas e, desse jeito, umas vinte pessoas

poderiam se sentar e enfiar as pernas ali embaixo. Normalmente, Hassan e eu passávamos

os dias de muita neve desse jeito, jogando xadrez ou cartas — quase sempre panjpar.

 

Comprei o dez de ouros de Hassan e joguei para ele dois valetes e um seis. Ao

lado, no escritório, baba e Rahim Khan estavam tendo uma conversa de negócios com

dois outros homens, um dos quais reconheci como sendo o pai de Assef. Através da

parede, dava para ouvir o som meio chiado do noticiário da rádio Cabul.

 

Hassan deixou o seis e apanhou os valetes. No rádio, Daoud Khan estava

anunciando alguma coisa sobre investimentos estrangeiros.

 

— Ele está dizendo que um dia desses vamos ter televisão em Cabul — disse

eu.

— Quem?

— Daoud Khan, seu idiota, o presidente.

— Ouvi dizer que no Ira já tem — disse Hassan com um risinho.

— Esses iranianos... — suspirei.

 

 

Para muitos hazaras, o Irã representava uma espécie de santuário. Suponho que

fosse porque, como eles, a maioria dos iranianos era xiita. Mas estava lembrando de

algo que meu professor tinha dito naquele verão sobre os iranianos: que eles eram

indivíduos sorridentes e de fala mansa, que davam tapinhas nas costas com uma das

mãos enquanto roubavam a nossa carteira com a outra. Contei isso a baba e ele disse

que meu professor era um daqueles afegãos invejosos, invejosos porque o Irã era um

poder em ascensão na Ásia e a maior parte das pessoas pelo mundo afora mal sabia

localizar o Afeganistão em um mapa. "É duro dizer isto", acrescentou ele dando de

ombros. "Mas é melhor uma verdade que dói do que uma mentira que conforta."

 

— Qualquer dia desses compro uma para você — acrescentei.

O rosto de Hassan se iluminou.

— Uma televisão? Sério?

— Claro. E não vai ser dessas em preto-e-branco, não. Provavelmente já seremos

grandes nessa época, mas vou comprar duas. Uma para você, outra para mim.

— Vou botar em cima da minha mesa, onde ficam os meus desenhos — disse

Hassan.

Ouvi-lo dizer isso me deixou triste. Triste por ele ser o que era, por morar onde

morava. Pelo fato de aceitar que ia crescer naquela cabana do quintal, exatamente como

tinha acontecido com seu pai. Comprei a última carta e joguei para ele um par de

damas e um dez.

 

Hassan pegou as damas.

 

— Sabe, acho que você vai deixar agha sahib muito orgulhoso amanhã.

— Acha mesmo?

— Inshallah — disse ele.

— Inshallah — repeti eu, embora a idéia de uma "vontade de Deus" não

soasse muito sincera em minha boca. Isso era um dos problemas com Hassan. O

desgraçado do garoto era tão puro que a gente sempre parecia hipócrita perto dele.

Comprei o rei e joguei a última carta, o ás de espadas. Ele tinha que comprá-la.

Ganhei, mas, enquanto embaralhava as cartas para uma outra partida, tive a clara

suspeita de que Hassan tinha me deixado ganhar.

 

— Amir agha...

— O quê?

— Sabe... gosto do lugar onde moro. — Ele sempre fazia isso: ler meus

pensamentos. — É o meu lar.

— Bom, você é quem sabe... — disse eu. — Prepare-se para perder outra vez.

 

 

SETE

 

 

No DIA SEGUINTE, ENQUANTO PREPARAVA meu chá preto para o café da manhã, Hassan me

contou que tinha tido um sonho.

 

— Estávamos no lago Ghargha — disse ele. — Você, eu, o pai, agha sahib,

Rahim Khan e mais um monte de gente. Fazia sol, a temperatura estava ótima e o

lago estava límpido como um espelho. Mas ninguém estava nadando porque

andavam dizendo que um monstro tinha vindo para o lago. Estava escondido lá no

fundo, só operando...

Encheu a minha xícara, acrescentou o açúcar e soprou algumas vezes. Pôs então

 

o chá diante de mim.

— Era por isso que todos estavam com medo de entrar na água. De repente,

você descalçou os sapatos, Amir agha, e tirou a camisa.

"Não tem monstro nenhum aí", disse. "Vou mostrar a todos vocês." E antes que

alguém pudesse impedi-lo, mergulhou na água e começou a nadar. Mergulhei também e

saímos os dois nadando.

 

— Mas você não sabe nadar!

— É um sonho, Amir agha — disse Hassan rindo. — A gente pode fazer qualquer

coisa. Seja como for, todo mundo começou a gritar: "Saiam daí! Saiam daí!", mas nós

continuamos a nadar na água fria. Chegamos sãos e salvos ao meio do lago e paramos.

Viramos na direção da margem e acenamos para as pessoas que estavam paradas lá.

Pareciam formiguinhas, mas podíamos ouvir os seus aplausos. Agora estavam vendo.

Não tinha monstro nenhum ali, só água. Depois disso, mudaram o nome do lago,

que passou a se chamar "Lago de Amir e Hassan, sultões de Cabul", e podíamos

cobrar das pessoas que quisessem ir nadar lá.

— E o que isso significa? — perguntei eu.

Ele passou geléia no meu naan e botou em um prato.

— Sei lá... Tinha esperanças que você me explicasse.

— Ora, é um sonho besta. Não acontece nada...

— O pai diz que os sonhos sempre querem dizer alguma coisa.

Tomei uns goles do meu chá.

— Então, por que não vai perguntar a ele, já que é tão esperto — disse eu, mais

rispidamente do que pretendia. Não tinha dormido nada aquela noite. Meu pescoço e

minhas costas estavam parecendo molas bem enroladas, e meus olhos pinicavam. De

todo modo, tinha sido uma peste com Hassan. Quase pedi desculpas, mas acabei não

 

 

fazendo nada. Hassan ia compreender que eu estava nervoso. Ele sempre

compreendia o que acontecia comigo.

 

Podia ouvir lá em cima o ruído da água escorrendo no banheiro de baba.

 

As RUAS CINTILAVAM COM A NEVE FRESCA e o céu estava de um azul impecável. A neve

recobria todos os telhados e pesava sobre os ramos das amoreiras mirradas que

margeavam a nossa rua. Durante a noite, tinha se infiltrado em cada fenda ou vala.

Precisei apertar os olhos diante daquele branco ofuscante quando Hassan e eu saímos

pelo portão de ferro fundido. Ali fechou o portão depois que passamos. Ouvi que

murmurava baixinho uma oração — sempre fazia isso quando o filho saía de casa.

 

Nunca tinha visto tanta gente em nossa rua. Crianças atirando bolas de neve,

brigando, correndo atrás umas das outras, rindo. Competidores às voltas com os

seus ajudantes, fazendo os últimos preparativos. Das ruas adjacentes, podíamos ouvir

gente rindo e conversando. Os telhados já estavam repletos de espectadores reclinados

em cadeiras de jardim, com o chá quente fumegando nas garrafas térmicas e a

música de Ahmad Zahir tocando em altos brados nos toca-fitas. O popularíssimo

Ahmad Zahir revolucionou a música afegã e escandalizou os puristas acrescentando

guitarras elétricas, bateria e trompetes aos instrumentos tradicionais, a tabla e o

harmônio. No palco ou nas festas, ele desprezava a atitude austera e quase soturna dos

cantores de antigamente e chegava mesmo a sorrir enquanto cantava — às vezes até para

as mulheres. Olhei para o nosso telhado e vi meu pai e Rahim Khan sentados em um

banco, ambos com suéteres de lã, tomando chá. Baba acenou. Não pude distinguir se

tinha sido para mim ou para Hassan.

 

— Acho que é melhor a gente começar a se mexer — disse Hassan.

Ele estava usando botas de neve de borracha preta, um chapan verde brilhante por

cima de uma suéter bem grossa e uma calça de veludo cotelê desbotada. A luz do sol

batia em cheio no seu rosto e, com isso, dava para perceber como a marca rosada no

seu lábio superior tinha cicatrizado bem.

 

De repente, me deu vontade de desistir. Pegar as minhas coisas e ir embora para

casa. O que é que estava pensando? Por que estava me metendo nessa enrascada, se já

sabia qual seria o resultado? Baba estava lá em cima do telhado, olhando para mim.

Sentia o seu olhar no meu corpo como a gente sente o calor do sol ardente. Ia ser um

fracasso estrondoso, mesmo para alguém como eu...

 

— Não sei se estou a fim de empinar pipa hoje — disse. — Está um dia lindo —

retrucou Hassan.

Passei o peso do corpo de um pé para o outro. Tentei desviar os olhos do telhado

lá de casa.

 

— Não sei, não. Talvez seja melhor voltar.

Então, ele deu um passo na minha direção e, baixinho, disse uma coisa que me

deixou um pouco assustado.

 

— Não se esqueça, Amir agha. Não tem monstro nenhum; só um lindo dia.

Como eu podia ser assim tão transparente para ele quando, pelo menos em

cinqüenta por cento das vezes, não fazia a menor idéia do que estaria passando pela

sua cabeça? E era eu que ia ao colégio. Era eu que sabia ler e escrever. Era eu o

inteligente. Hassan não era capaz de ler nem um livro de primeira série, mas podia me

ler com a maior facilidade. Era um tanto perturbador, mas também um pouco

reconfortante ter alguém que sempre sabia do que você estava precisando.

 

 

 

— Monstro nenhum... — repeti, sentindo-me um pouco melhor para minha

própria surpresa.

— Monstro nenhum — disse ele sorrindo.

— Tem certeza?

Ele fechou os olhos e fez que sim com a cabeça. Olhei para aquelas crianças

correndo pela rua, atirando bolas de neve.

 

— O dia está lindo, não está?

— Vamos lá? — indagou ele.

Ocorreu-me que talvez Hassan tivesse inventado aquele sonho. Seria possível?

Decidi que não. Hassan não era tão esperto assim. Eu não era tão esperto assim. Mas,

inventado ou não, aquele sonho idiota tinha diminuído um pouco a minha ansiedade.

Talvez devesse tirar a camisa e nadar no lago. Por que não?

 

— Vamos lá — respondi.

O rosto de Hassan se iluminou.

— Ótimo — disse ele.

Ergueu a nossa pipa vermelha com as bordas amarelas e que trazia, logo abaixo

do ponto em que as varetas se cruzam, a marca inconfundível da assinatura de Saifo.

Lambeu os dedos e segurou a pipa lá no alto; testou o vento e, então, correu na sua

direção — nas raras vezes em que empinávamos pipas no verão, ele chutava o chão

para levantar poeira e ver para que lado o vento estava soprando. O carretel ficou

rolando nas minhas mãos até Hassan parar, a uns vinte metros de distância. Ficou

segurando a pipa bem acima da cabeça, como um atleta olímpico que exibe a medalha

de ouro. Dei dois puxões na corda, o sinal combinado entre nós, e ele soltou a pipa.

 

Dividido entre baba e os mulás da escola, ainda não sabia muito bem o que pensar

a respeito de Deus. Mas quando me veio à cabeça um ayat do Corão, que tinha

aprendido na aula de diniyat, eu o repeti baixinho. Respirei fundo e comecei a puxar a

corda. Em um minuto, a minha pipa estava subindo vertiginosamente pelos ares. Fazia

um barulho que parecia um pássaro de papel batendo as asas. Hassan aplaudiu,

assobiou, e correu de volta para perto de mim. Segurei firme na linha, e lhe

entreguei o carretel que ele girou bem depressa para enrolar novamente a parte que

tinha ficado solta.

 

Havia pelo menos umas vinte e tantas pipas no céu, como tubarões de papel

perambulando à cata de uma presa. Em uma hora, esse número tinha duplicado, e pipas

vermelhas, azuis e amarelas voavam e rodopiavam pelo ar. Um vento frio soprava em

meu cabelo. Era o vento perfeito para empinar pipas, apenas forte o bastante para dar a

elas alguma altitude e facilitar os movimentos. Ao meu lado, Hassan segurava o

carretel com as mãos já sangrando por causa do cerol.

 

Logo a batalha começou e as primeiras pipas derrotadas já rodopiavam fora de

controle. Caíam do céu feito estrelas cadentes, com as caudas luzidias e ondulantes,

enchendo o bairro de troféus para os meninos que corriam atrás delas para apanhá-las.

Era possível ouvi-los gritando e correndo pelas ruas. Alguém anunciou que tinha

começado uma briga dois quarteirões adiante.

 

Continuei lançando olhares para baba sentado junto com Rahim Khan no telhado

lá de casa, tentando imaginar o que estaria pensando. Será que estava torcendo por mim?

Ou será que parte dele gostava de me ver fracassar? É isso que acontece quando a gente

empina pipas: nossa cabeça sai voando junto com elas.

 

Agora, caíam pipas por todo lado e a minha ainda estava no ar. A minha ainda

estava no ar. Meus olhos continuavam buscando baba agasalhado em sua suéter de lã.

 

 

 

Será que estava surpreso ao ver que eu estava conseguindo resistir tanto? "Se tirar os

olhos do céu, não conseguirá manter a pipa no ar por muito tempo." Tratei então de

olhar de novo para o céu. Uma pipa vermelha estava se aproximando da minha. Eu a

notei bem na hora. Embolei um pouco com ela, mas acabei levando a melhor quando o

outro empinador ficou impaciente e tentou me cortar por baixo.

 

Por todo canto, viam-se aqueles caçadores que voltavam triunfantes, erguendo

bem alto as pipas que tinham capturado, exibindo-as para os pais e os amigos. Todos

sabiam, porém, que o melhor ainda estava por vir. O maior dos prêmios ainda estava

voando. Derrubei uma pipa amarela brilhante, com uma rabiola branca toda enroladinha.

Esse feito me custou mais um talho no indicador e o sangue começou a escorrer

pela palma da minha mão. Mandei Hassan segurar a linha e, depois de chupar o

sangue, esfreguei bem o dedo na calça jeans.

 

Mais uma hora se passou e a quantidade de pipas que ainda resistiam tinha

despencado de umas cinqüenta para cerca de uma dúzia. Consegui estar entre as doze

finalistas. Sabia que essa parte da disputa ia ser um pouco mais demorada, porque os

caras que tinham agüentado até ali eram bons — não cairiam facilmente, com

armadilhas simples como o velho tentear e debicar, o truque favorito de Hassan.

 

Por volta das três da tarde, o céu foi ficando encoberto e o sol se escondeu atrás

das nuvens. As sombras começaram a aumentar. Os espectadores que estavam nos

telhados se agasalharam ainda mais, com cachecóis e casacos bem grossos. Já éramos

só umas dez, e eu ainda estava voando. As minhas pernas doíam e o meu pescoço estava

duro. Mas, a cada pipa derrubada, a esperança crescia no meu coração, como a

neve que vai se acumulando em cima de um muro, um floco de cada vez.

 

Os meus olhos estavam sempre voltando a fitar uma pipa azul que vinha fazendo a

maior devastação há cerca de uma hora.

 

— Quantas ele já derrubou? — perguntei.

— Contei onze — respondeu Hassan.

— Sabe de quem pode ser essa pipa?

Hassan estalou a língua e esticou o queixo para a frente. Aquele gesto era a sua

marca registrada, significando que não fazia a menor idéia a respeito de algo. A azul

cortou uma outra pipa grande e roxa, e, majestosa, deu duas voltas no ar. Dez minutos

depois, derrubou mais duas, fazendo milhares de garotos saírem desabalados ao seu

encalço.

 

Meia hora depois, só restavam quatro pipas. E eu ainda estava voando. Parecia

praticamente impossível fazer algum movimento errado. Era como se todas as rajadas de

vento soprassem a meu favor. Nunca me senti tão dono da situação, tão sortudo.

Estava embriagado. Não ousava olhar para o telhado lá de casa. Não ousava tirar

os olhos do céu. Precisava me concentrar, ficar ligado no que estava fazendo. Mais

quinze minutos se passaram e aquilo que, pela manhã, teria parecido um sonho

ridículo tinha, de repente, se tornado realidade: só restávamos nós dois, eu e o outro

garoto. O da pipa azul.

 

O ar em volta estava tão tenso quanto a linha com cerol que eu manejava com as

mãos ensangüentadas. As pessoas estavam batendo com os pés no chão, aplaudindo,

assobiando, berrando: "Boboresh! Boboresh! Derrube! Derrube!" Fiquei me

perguntando se a voz de baba estaria entre as que eu estava ouvindo. A música tocava

altíssima. O cheiro de mantu no vapor e de pakora frito se espalhava pelo ar, vindo dos

telhados e das portas abertas.

 

 

 

Tudo o que ouvia, porém — tudo o que me permitia ouvir —, era o pulsar do

sangue na minha cabeça. Tudo o que via era a pipa azul. O único cheiro que sentia era o

da vitória. Salvação. Redenção. Se baba estivesse enganado, e existisse mesmo um Deus,

como me diziam no colégio, então Ele ia deixar que eu vencesse. Não sabia com que

objetivo o outro garoto estava competindo, talvez só para exibir os seus dotes. Mas,

para mim, aquela era a única chance de me tornar alguém que era olhado, e não apenas

visto; que era escutado, e não apenas ouvido. Se existia mesmo um Deus, Ele ia guiar o

vento, deixar que soprasse para mim, e assim, com um puxão na corda, eu ia me livrar

da minha dor, dos meus anseios. Tinha agüentado muito, chegado longe demais. E, de

repente, em um piscar de olhos, a esperança virou certeza. Eu ia ganhar. Era só uma

questão de tempo.

 

Acabou acontecendo mais cedo do que eu imaginava. Uma rajada de vento fez a

minha pipa subir e fiquei em vantagem. Dei mais linha e, depois, um puxão. Com isso, a

minha pipa fez um looping e ficou acima da azul. Mantive essa posição. A pipa azul

sabia que estava em apuros. Tentava desesperadamente realizar manobras para sair

daquele aperto, mas não deixei. Mantive minha posição. A multidão percebia que o fim

da batalha estava próximo. O coro "Derrube! Derrube!" foi ficando cada vez mais forte,

como os romanos gritando para os gladiadores: "Mate! Mate!"

 

— Você está quase lá, Amir agha! Quase lá! — exclamou Hassan ofegante.

Então, chegou a hora. Fechei os olhos e afrouxei a pegada na linha. Cortei os dedos

novamente quando o vento arrastou a minha pipa. E aí... não precisei ouvir os gritos

da multidão para saber. Também não precisei ver nada. Hassan estava gritando e tinha

passado o braço pelo meu pescoço.

 

— Bravo! Bravo, Amir agha!

Abri os olhos e o que vi foi a pipa azul rodopiando loucamente como um pneu

que se solta de um carro em alta velocidade. Pisquei várias vezes, tentei dizer alguma

coisa. Não saiu som nenhum. De repente, eu estava flutuando no ar, vendo a mim

mesmo lá embaixo. Casaco de couro preto, cachecol vermelho, calça jeans desbotada.

Um menino magricela, um tanto pálido e meio baixinho para alguém de doze anos.

Com ombros estreitos e círculos escuros que se insinuavam em torno dos olhos cor de

avelã. O vento despenteava os seus cabelos castanho-claros. Ele ergueu os olhos para

mim e sorrimos um para o outro.

 

Comecei então a gritar, e tudo era cor e som, tudo estava cheio de vida e era

maravilhoso. Abracei Hassan com o braço que estava livre e começamos a pular,

ambos rindo, ambos chorando.

 

—Você ganhou, Amir agha! Você ganhou!

 

—Nós ganhamos! Nós ganhamos! — foi tudo o que consegui dizer. Isso não

estava acontecendo. Logo, logo estaria piscando os olhos e despertando desse sonho

maravilhoso; saindo da cama, descendo até a cozinha para tomar o meu café da manhã

sem ter ninguém com quem conversar a não ser Hassan. Me aprontar. Ficar esperando

por baba. Desistir. De volta à minha velha vida. Foi então que o vi no telhado lá de

casa. Estava de pé na mureta, agitando ambos os braços. Gritando e aplaudindo. E

aquele ali foi o único momento importante dos meus doze anos de vida: ver baba no

telhado, finalmente orgulhoso de mim.

Mas, agora, ele estava fazendo alguma coisa, fazendo um gesto com as mãos

como quem indica urgência. Então, compreendi.

 

— Hassan, nós...

 

 

—Eu sei — disse ele se desvencilhando do meu abraço. — Inshallah, ,vamos festejar

mais tarde. Agora, vou apanhar aquela pipa azul para você — acrescentou. Largou o

carretel e saiu correndo, com a borda do chapan verde arrastando na neve atrás de si.

 

—Hassan! — gritei eu. — Volte com ela!

 

Ele já estava dobrando a esquina, com as botas de borracha levantando neve do

chão. Parou e se virou. Pôs as mãos em concha junto da boca.

 

—Por você, faria isso mil vezes! — disse ele. E deu aquele sorriso de Hassan,

desaparecendo então na esquina. Só voltei a vê-lo sorrir assim tão descontraído vinte e

seis anos mais tarde, olhando uma foto Polaroid desbotada.

 

Comecei a recolher a minha pipa e as pessoas vinham correndo para me dar

parabéns. Cumprimentei a todos, agradeci. As crianças menores me olhavam com um

brilho de respeito nos olhos. Eu era um herói. Mãos vinham me dar tapinhas nas

costas, afagar os meus cabelos. Fui puxando a linha, retribuindo os sorrisos de todos,

mas só pensava mesmo naquela pipa azul.

 

Afinal, tinha a minha pipa nas mãos. Enrolei no carretel a linha solta que estava

amontoada junto dos meus pés, cumprimentei mais algumas pessoas e corri para casa.

Quando cheguei ao portão de ferro, Ali estava esperando por mim do lado de dentro.

Passou as mãos pela grade.

 

— Meus parabéns! — disse.

Entreguei a ele a pipa e o carretel, apertei sua mão.

— Tashakor, Ali jan.

— Fiquei o tempo todo rezando por vocês — acrescentou ele.

— Pois então, continue rezando. Ainda não terminamos.

Voltei correndo para a rua. Nem perguntei a Ali onde estava meu pai. Ainda não

queria vê-lo. Tinha tudo planejado na cabeça: faria uma entrada triunfal, como um

herói, tendo nas mãos ensangüentadas o tão valioso troféu. Todas as cabeças iam se virar

e os olhos ficariam pregados em mim. Rostam e Sohrab se avaliando mutuamente. Um

dramático instante de silêncio. Então, o velho guerreiro ia se aproximar do mais jovem,

abraçá-lo e reconhecer o seu valor. Legitimação. Salvação. Redenção. E depois? Bem...

Felizes para sempre, é claro. O que mais poderia ser?

 

As ruas de Wazir Akbar Khan eram numeradas e haviam sido traçadas

formando ângulos retos, como se fosse uma grade. Naquela época, era um bairro novo,

ainda em fase de formação, com lotes vazios e casas parcialmente construídas em

todas as ruas, entre condomínios cercados por muros de uns três metros de altura. Corri

para cima e para baixo, passando por todas as ruas, à procura de Hassan. Em todo

canto, as pessoas estavam atarefadas dobrando cadeiras guardando comida e

arrumando as coisas depois de um longo dia de festa. Algumas delas, ainda sentadas

nos telhados, gritavam para me dar parabéns.

 

Quatro ruas ao sul da nossa, vi Omar, filho de um engenheiro amigo de baba.

Estava jogando futebol com o irmão no gramado em frente à sua casa. Omar era um

sujeito bem legal. Tínhamos sido colegas na terceira série e, certa vez, ele me deu uma

caneta-tinteiro, daquele tipo que a gente recarrega com um cartucho.

 

— Soube que você venceu, Amir — disse ele. — Parabéns!

— Obrigado. Você viu Hassan?

— O seu hazara?

Fiz que sim com a cabeça.

Omar atirou a bola para o irmão.

 

 

— Ouvi dizer que é fantástico apanhando pipas — acrescentou. O irmão jogou a

bola de volta para ele. Omar a pegou, fazendo-a quicar para cima e para baixo.

— Se bem que sempre me perguntei como consegue isso. Quero dizer, com

aqueles olhinhos apertados, como é que pode ver alguma coisa?

Seu irmão deu uma risada e pediu a bola. Omar o ignorou.

 

— Você o viu? — insisti eu.

Sem se virar, Omar apontou para o sudoeste com o polegar.

— Vi ele passar correndo rumo ao bazaar ainda agora mesmo — respondeu

ele.

— Obrigado — disse eu, e saí em disparada.

Quando cheguei à praça do mercado, o sol já tinha desaparecido quase

inteiramente atrás das colinas e o anoitecer tingiu o céu de rosa e arroxeado. Alguns

quarteirões adiante, na mesquita Haji Yaghouh, o mulá começou a entoar o azan,

convocando os fiéis a estender o tapete, voltados para o oeste, e inclinar a cabeça

para a oração. Hassan nunca deixava de fazer nenhuma das cinco orações diárias-

Mesmo quando estávamos brincando no quintal, ele pedia desculpas, tirava água do

poço, se lavava e desaparecia no seu casebre. Saía de lá poucos minutos depois,

sorrindo, e vinha me encontrar recostado no muro ou trepado em uma árvore. No

entanto, hoje à noite ele ia deixar de fazer as suas orações, e por minha causa.

 

O bazaar estava ficando vazio bem depressa, com os mercadores encerrando os

negócios do dia. Fui correndo pela lama, em meio aos inúmeros cubículos colados uns

aos outros, onde se podia comprar um faisão recém-abatido em uma das tendas e uma

calculadora na do lado. Fui me espremendo por entre a multidão que ia se reduzindo:

os mendigos aleijados embrulhados em trapos esfarrapados, os vendedores carregando

tapetes nos ombros, os mercadores de roupas e os açougueiros que já fechavam suas

lojas. Não vi nem sinal de Hassan.

 

Parei em uma tenda que vendia frutas secas, descrevi Hassan para um velho

mercador que estava pondo caixotes de pinhões e uvas passas no lombo de uma mula

e usava um turbante azul-claro.

 

Ele parou o que fazia para me olhar por um bom momento e só depois me

respondeu.

 

— É possível que o tenha visto...

— Para que lado ele foi? — indaguei.

Ele me olhou dos pés à cabeça.

— Por que um menino como você está andando por aqui, a essa hora do dia,

procurando um hazara?

Os seus olhos se detiveram no meu casaco de couro e na minha calça jeans —

"calças de cowboy", como as chamávamos. No Afeganistão, ter alguma coisa que viesse

dos Estados Unidos, e, principalmente, que não fosse de segunda mão, era sinal de

riqueza.

 

—Preciso encontrá-lo, agha.

 

—O que ele é para você? — perguntou o mercador. Não entendi o porquê

daquela pergunta, mas disse com meus botões que a impaciência não ia fazer com que

ele desse mais informações. — É o filho de nosso empregado — respondi. O velho

ergueu as sobrancelhas grisalhas.

 

 

 

— É? Que sorte a desse hazara, ter um patrão que se preocupa tanto assim

com ele! O pai desse garoto devia se ajoelhar e varrer com as pestanas a poeira do

chão em que você pisa.

— O senhor vai ou não vai me dizer para onde ele foi?

Ele apoiou o braço no lombo da mula e apontou para o sul.

— Acho que vi o garoto que você descreveu correndo naquela direção. Estava

segurando uma pipa nas mãos. Uma pipa azul.

— Estava? — perguntei.

"Por você, faria isso mil vezes" era o que tinha prometido. Grande Hassan. O bom,

velho e leal Hassan. Cumpriu a promessa e pegou aquela pipa para mim.

 

— E claro que, a essa hora, já devem tê-lo apanhado — acrescentou o velho

mercador dando um grunhido e pondo mais um caixote no lombo da mula.

— Quem?

— Os outros garotos — disse ele. — Que estavam correndo atrás dele. Todos

vestidos assim como você. — Ergueu os olhos para o céu e suspirou. — Agora vá

embora, pois está me atrasando para a namaz.

A essa altura, porém, eu já tinha disparado ruela abaixo.

 

Por cerca de cinco minutos, rodei o bazaar inteiro, em vão. Talvez os olhos do

velho mercador o houvessem traído. Acontece que ele tinha visto a pipa azul. Só de

pensar em pôr as mãos nela... Metia a cabeça em cada ruela, em cada tenda. Nem

sinal de Hassan.

 

Já estava ficando preocupado com a idéia de que anoitecesse antes de eu

encontrar Hassan quando ouvi vozes um pouco mais adiante. Cheguei a uma rua

deserta e lamacenta, perpendicular ao fim da avenida que passava bem no meio do

bazaar. Dobrei a esquina da ruela esburacada e fui seguindo o som das vozes. As

minhas botas chapinhavam na lama a cada passo, e a minha respiração ia se

transformando em nuvens brancas à minha frente. De um dos lados da estreita

passagem havia um barranco cheio de neve, onde, na primavera, talvez corresse um

riacho. Do outro lado, fileiras de ciprestes cobertos de neve intercalados com casas de

barro de teto achatado — em sua maioria, simples casebres de pau-a-pique —, separadas

umas das outras por minúsculos becos.

 

Voltei a ouvir aquelas vozes, agora mais altas, vindo de um desses corredores. Fui

me esgueirando até a entrada. Prendi a respiração. Escondido na quina da casa, espiei

lá para dentro.

 

No final do beco sem saída, vi Hassan em uma pose desafiadora: punhos cerrados,

pernas ligeiramente afastadas. Atrás dele, em cima de pilhas de entulho e lixo, estava

a pipa azul. A minha chave para o coração de baba.

 

Impedindo Hassan de sair do beco, estavam três garotos, os mesmos daquela

manhã lá na colina, no dia seguinte ao golpe de Estado de Daoud Khan, quando Hassan

nos salvou com o estilingue. Wali estava parado de um lado, Kamal, do outro, e, no

meio, Assef. Senti o corpo todo se contrair e alguma coisa gelada escorreu pelas

minhas costas. Assef parecia relaxado, confiante. Estava girando o soco-inglês

metálico nas mãos. Os dois outros, nervosos, trocavam constantemente o pé de apoio,

olhando ora para Assef, ora para Hassan, como se houvessem acuado algum tipo de

animal selvagem que só Assef fosse capaz de domar.

 

— Cadê o estilingue, hazara? — perguntou Assef sem parar de brincar com o

soco-inglês. — O que foi mesmo que você disse? "Vão ter de chamar você de Assef, o

 

 

Caolho." É, foi isso sim. Assef, o Caolho. Brilhante. Realmente brilhante. Mas, por

outro lado, é fácil ser tão esperto quando se tem nas mãos uma arma carregada.

 

Percebi que ainda não tinha soltado o ar. Exalei bem devagarinho, sem fazer

barulho. Estava me sentindo paralisado. Fiquei olhando enquanto eles se aproximavam

do menino com quem eu tinha crescido, aquele menino cujo rosto com o lábio leporino

era a minha lembrança mais remota.

 

— Mas hoje é o seu dia de sorte, hazara — prosseguiu Assef. Estava de costas

para mim, mas eu podia apostar que estava rindo. — Estou a fim de perdoar. O que

acham disso, rapazes?

— É muita generosidade sua — exclamou Kamal. — Principalmente depois de

toda a grosseria que ele fez conosco daquela vez.

Tentou falar no mesmo tom de deboche, mas a sua voz saiu um tanto trêmula.

Foi então que entendi tudo: na verdade, não era Hassan que metia medo nele. Estava

com medo porque não tinha a menor idéia do que Assef pretendia fazer.

 

Assef fez um gesto com a mão, como que encerrando a questão.

 

— Bakhshida. Está perdoado. Pronto. — E acrescentou, baixando um pouco a voz:

— É claro que nada nesse mundo é assim, de graça. Por isso o meu perdão tem um preço

bem razoável.

— É justo — disse Kamal.

— Nada é de graça — acrescentou Wali.

— Você é um hazara de sorte — disse Assef, dando um passo na direção de

Hassan. — Porque, hoje, isso só vai lhe custar essa pipa azul. Um negócio bem justo,

não é, rapazes?

— Mais que justo — respondeu Kamal.

Mesmo do lugar em que estava, pude ver o medo se instalando nos olhos de

Hassan, mas ele abanou a cabeça.

 

— Amir agha ganhou o campeonato e corri atrás dessa pipa para ele. E consegui

apanhá-la jogando limpo. Essa pipa é dele.

— Que hazara mais leal... Leal como um cachorro — disse Assef.

O riso de Kamal soou estridente, nervoso.

— Mas, antes de se sacrificar por Amir, pense nisso: será que ele faria a mesma

coisa por você? Já se perguntou por que ele nunca inclui você nas brincadeiras

quando tem visita? Por que só brincam juntos quando não tem ninguém mais por lá?

Eu lhe digo por quê, hazara. Porque, para ele, você não passa de um bichinho de

estimação feioso. Alguma coisa para brincar quando ele está aborrecido; alguma coisa

que pode chutar quando está zangado. Não tente se enganar, e lembre que você é

mais que isso.

— Amir agha e eu somos amigos — disse Hassan. E me pareceu que tinha ficado

vermelho.

— Amigos? — exclamou Assef, rindo. — Seu idiota patético! Algum dia você

vai acordar dessa sua fantasia e descobrir que ótimo amigo ele é. Agora, bas! Chega de

lengalenga. Passe essa pipa pa ra cá!

Hassan se abaixou e pegou uma pedra.

Assef vacilou. Já ia dando um passo atrás, mas parou.

 

 

— É a sua última chance, hazara!

A resposta de Hassan foi erguer a mão que segurava a pedra.

— Como quiser...

 

 

Assef desabotoou o casaco, tirou-o e, deliberadamente, dobrou-o com todo

cuidado, pondo-o junto do muro.

 

Abri a boca e quase disse algo. Quase. O resto da minha vida poderia ter sido

bem diferente se eu tivesse dito alguma coisa naquela hora. Mas não disse. Só fiquei

olhando. Paralisado.

 

Assef acenou com a mão e os dois outros garotos se separaram para formar um

semicírculo, encurralando Hassan naquele beco sem saída.

 

— Mudei de idéia — disse Assef. — Vou deixar que fique com a pipa, hazara.

Vou deixar que fique com ela para que nunca se esqueça do que vou fazer agora.

Então, atacou. Hassan atirou a pedra, atingindo Assef na testa. Ele gritou e

partiu para cima de Hassan, derrubando-o no chão. Wali e Kamal o seguiram.

Mordi a mão. Fechei os olhos.

 

UMA RECORDAÇÃO:

 

Sabia que Hassan e você mamaram do mesmo leite? Sabia disso, Amir agha? Ela

se chamava Sakina. Era uma linda hazara de olhos azuis, nascida em Bamiyan, e

cantava para vocês velhas cantigas de casamento. Dizem que as pessoas que mamam do

mesmo leite são como irmãs. Sabia disso?

 

Uma recordação:

 

"Uma rupia por cabeça, crianças. Só uma rupia por cabeça, e abrirei para vocês

as cortinas da verdade." O velho estava sentado junto a um muro de barro. Os seus

olhos cegos eram como prata derretida encrustada em duas crateras profundas,

idênticas. Curvado sobre a bengala, o vidente passa a mão nodosa por toda a superfície

do rosto murcho. Estende para nós a mão em concha. "Não é um preço muito alto

pela verdade, é? Uma rupia por cabeça." Hassan põe uma moeda naquela palma

áspera. Eu ponho outra. "Em nome de Allah, o mais clemente, o mais misericordioso",

sussurra o velho adivinho. Pega primeiro a mão de Hassan e, com uma unha que mais

parecia um osso, fica fazendo voltas e voltas, voltas e voltas na sua palma. O dedo se

desloca então até o rosto de Hassan e, com um ruído seco e áspero, vai

acompanhando lentamente o traçado das suas bochechas, o contorno das suas orelhas.

As pontas calejadas daqueles dedos roçam os olhos de Hassan, A mão pára ali e se

detém Por um instante. Uma sombra percorre o rosto do cego. Hassan e eu nos

entreolhamos. O velho pega a mão de Hassan e põe a rupia de volta em sua palma.

Vira-se para mim. "E você, meu jovem amigo?" pergunta. Do outro lado do muro, um

galo canta. O velho pega minha mão, mas eu a retiro.

 

Um sonho:

 

Estou perdido em uma tempestade de neve. O vento assobia atirando pedacinhos

de gelo que espetam os meus olhos. Vou cambaleando, os pés afundando em camadas

daquela brancura fofa. Grito por socorro, mas o vento não deixa que os meus gritos

sejam ouvidos. Caio e fico ofegando na neve, perdido naquela imensidão branca, com o

lamento do vento soando nos meus ouvidos. Vejo que a neve está apagando as minhas

pegadas. "Agora sou um fantasma", penso eu, "um fantasma sem pegadas". Volto a

gritar, com a esperança sumindo como as marcas dos meus passos. Desta vez, porém,

há uma resposta longínqua. Protejo os olhos com as mãos e dou um jeito de me sentar.

Além das cortinas flutuantes de neve, tenho a breve visão de algo se movendo, um borrão

 

 

 

de cor. Uma forma familiar se materializa. Uma mão se estende na minha direção.

Vejo profundos talhos paralelos cortando a sua palma e o sangue escorrendo, tingindo a

neve. Seguro aquela mão e, de repente, a neve desaparece. Estamos em um campo de

relva verde-clara e macios flocos de nuvens deslizam no céu. Olho para cima e vejo o céu

claro coalhado de pipas verdes, amarelas, vermelhas, laranja. Elas cintilam à luz do

entardecer.

 

HAVIA UM MONTE DE LIXO E SUCATA espalhado pelo beco. Pneus de bicicleta velhos,

garrafas com os rótulos arrancados, revistas rasgadas, jornais amarelados, tudo jogado

em meio a uma pilha de tijolos e de placas de cimento. Um fogareiro de ferro

enferrujado, com um enorme furo em um dos lados, estava apoiado no muro. Mas, no

meio de todo aquele lixo, havia duas coisas de que eu não conseguia tirar os olhos.

Uma delas era a pipa azul encostada no muro, perto do tal fogareiro enferrujado; a

outra era a calça de veludo cotelê marrom de Hassan jogada sobre uma pilha de

tijolos danificados.

 

— Não sei não... — dizia Wali. — Meu pai diz que é pecado.

Ele parecia hesitante, excitado, assustado, tudo ao mesmo tempo. Hassan estava

deitado, com o peito colado no chão. Kamal e Wali seguravam os seus dois braços

virados para trás, e dobrados na altura do cotovelo, fazendo com que as suas mãos

ficassem imobilizadas nas costas. Assef estava de pé, acima deles, pressionando, com o

salto da bota de neve, a nuca de Hassan.

 

— O seu pai não vai ficar sabendo de nada — retrucou Assef.

— E não vejo que pecado pode haver em dar uma boa lição em um burro

desrespeitoso.

— Não sei não... — murmurou Wali.

— Bom, como quiser — resmungou Assef. — E quanto a você? — perguntou

virando-se para Kamal.

— Eu... bem...

— É só um hazara — disse Assef. Mas Kamal manteve os olhos voltados para o

outro lado. — Tudo bem! — exclamou. — Só o que precisam fazer então, seus

covardes, é segurar ele firme no chão. Será que disso vocês conseguem dar conta?

Wali e Kamal concordaram com um gesto de cabeça. Ambos pareciam aliviados.

 

Assef se ajoelhou por trás de Hassan, agarrou-o pelos quadris e ergueu um

pouco o seu traseiro. Continuou segurando com uma das mãos e, com a outra, abriu

a fivela do próprio cinto. Baixou o fecho ecler da calça jeans. Fez o mesmo com a

cueca. Se ajeitou atrás de Hassan. Este não lutou. Nem mesmo se lamentou. Virou a

cabeça lentamente e pude ver o seu rosto de relance. O que vi, ali, foi resignação. Era

um olhar que eu já tinha visto antes. O olhar de um cordeiro.

 

AMANHÃ É O DÉCIMO DIA DO DHUL-HIJJAH, último mês do calendário muçulmano, e o

primeiro dos três dias do Eid Al-adha, ou Eid-e-Qorban, como se diz no Afeganistão —

quando se celebra o episódio em que o profeta Abraão esteve a ponto de sacrificar o

próprio filho a Deus. Como sempre, baba escolheu pessoalmente o carneiro para esse

ano: ele era branco e peludo, com umas orelhas negras meio descaídas.

 

Estamos todos de pé, no quintal dos fundos: Hassan, Ali, baba e eu. O mulá

recita a oração, passa a mão pela barba. Baba murmura baixinho "Vamos logo com

 

 

 

isso". Parece chateado com aquelas orações intermináveis do ritual para que a carne

se torne halal. Ele despreza a história que está por trás do Eid, como despreza, aliás, tudo

 

o que se refira a religião. Mas respeita a tradição do Eid-e-Qorban Segundo o costume,

a carne é dividida em três porções, uma para a família, uma para os amigos e uma

para os pobres. Todo ano, baba dá tudo para os pobres. "Os ricos já estão gordos o

bastante" é o que diz.

O mulá conclui suas orações. Ameen. Pega o facão de cozinha de lâmina bem

comprida. E costume não deixar que o carneiro veja a faca. Ali faz o animal comer um

torrão de açúcar — outro costume, para que a morte seja mais doce. O carneiro

escoiceia, mas não muito. O mulá o segura pelo focinho e encosta a lâmina •da faca no

seu pescoço. Um segundo antes de ele cortar a garganta do carneiro com um golpe

certeiro, vejo os olhos do animal. E um olhar que vai assombrar os meus sonhos por

semanas a fio. Não sei por que assisto a essa cerimônia que acontece todo ano em

nosso quintal; meus pesadelos ainda persistem bem depois que as manchas de sangue

no gramado já desapareceram. Mas sempre assisto. Assisto por causa dessa expressão

de aceitação nos olhos do animal. E um absurdo, mas imagino que o carneiro entende.

Imagino que ele vê que aquela morte iminente tem um propósito mais elevado. E essa a

expressão dos olhos...

 

PAREI DE OLHAR E ME AFASTEI DO BECO. Alguma coisa quente escorria pelo meu pulso.

Olhei e me dei conta que ainda estava mordendo a mão. E com tanta força que cheguei

a tirar sangue das juntas. Percebi outra coisa também. Estava chorando. Lá da esquina,

podia ouvir os grunhidos rápidos e ritmados de Assef.

 

Era a minha última chance de tomar uma decisão. Uma última oportunidade para

decidir quem eu ia ser. Poderia entrar no beco, ir defender Hassan — do mesmo jeito

que ele me defendeu todas aquelas vezes no passado — e aceitar o que quer que viesse a

acontecer comigo. Ou podia sair correndo.

 

E, afinal, saí correndo.

 

Saí correndo porque era um covarde. Tinha medo de Assef e do que ele pudesse

fazer comigo. Tinha medo de me machucar. Foi o que disse a mim mesmo quando

dei as costas para o beco e para Hassan. Foi disso que me convenci. Realmente desejei

ser covarde, já que a outra alternativa, a verdadeira razão pela qual eu tinha saído

correndo, era que Assef tinha razão: nada era de graça nesse mundo. Talvez Hassan

fosse o preço que eu tinha que pagar, o cordeiro que tinha de sacrificar, para conquistar

baba. Era um preço justo? A resposta ficou pairando na minha mente consciente até eu

conseguir reprimi-la: ele era apenas um hazara, não era?

 

Voltei correndo por onde viera. Voltei correndo pelo bazaar quase deserto.

Titubeando, parei em uma daquelas tendas e me encostei na porta trancada. Fiquei ali

ofegando, suando, desejando que as coisas tivessem tomado outro rumo.

 

Uns quinze minutos depois, ouvi vozes e tropel de passos. Fiquei agachado atrás

da barraca e vi Assef e os dois outros passarem correndo e rindo ruela abaixo. Me

obriguei a esperar mais uns dez minutos. Só então voltei para o caminho lamacento

paralelo ao barranco cheio de neve. Naquela luz baça, apertei os olhos e avistei Hassan

que vinha andando lentamente na minha direção. Nós nos encontramos diante de uma

bétula desfolhada que ficava na margem do barranco.

 

Ele tinha nas mãos a pipa azul: foi a primeira coisa que vi. E não vou mentir agora,

dizendo que os meus olhos não a percorreram de ponta a ponta, para ver se havia algum

 

 

 

rasgão. O chapan de Hassan estava todo sujo de lama na frente, e a sua camisa, rasgada

logo abaixo do colarinho. Ele parou. Cambaleou como se fosse desabar no chão. Depois,

conseguiu recuperar o equilíbrio. E me entregou a pipa.

 

— Onde você estava? Procurei por toda parte — disse eu. E ao dizer essas

palavras, senti como se estivesse mastigando uma pedra.

Hassan enxugou o rosto com a manga da camisa, limpando catarro e lágrimas.

Esperei que dissesse alguma coisa, mas ficamos parados ali em silêncio, à luz do fim do

dia. Benditas sombras do anoitecer, que encobriam o rosto de Hassan e escondiam o

meu. Fiquei feliz por não ter que fitá-lo nos olhos. Será que ele sabia que eu sabia? E

se soubesse, o que eu veria se efetivamente olhasse nos seus olhos? Acusação?

Indignação? Ou, tomara que não, o que eu mais temia: devoção sincera? Porque, mais

que qualquer outra coisa, isso era o que eu não poderia suportar.

 

Começou a dizer algo, mas sua voz falhou. Fechou a boca, voltou a abri-la e,

depois, a fechou novamente. Deu um passo atrás. Enxugou o rosto. E isso foi o mais

perto que Hassan e eu chegamos de uma conversa sobre o que tinha acontecido no

beco. Pensei que ele fosse cair no choro, mas, para meu alívio, não foi o que aconteceu,

e fingi que não tinha percebido que sua voz estava embargada. Assim como fingi não

ver a mancha escura nos fundilhos de sua calça. Ou aquelas gotinhas que iam pingando

por entre as suas pernas, deixando marcas escuras na neve.

 

— Agha sahib vai ficar preocupado — foi tudo o que ele disse.

Afastou-se de mim e saiu mancando.

TUDO ACONTECEU EXATAMENTE DO JEITO que eu tinha imaginado. Abri a porta do

escritório enfumaçado e entrei. Baba e Rahim Khan estavam tomando chá e ouvindo as

notícias chiadas no rádio. Ambos viraram a cabeça. Então, apareceu um sorriso nos

lábios de meu pai. Ele abriu os braços. Pus a pipa no chão e me dirigi para aqueles

braços fortes e peludos. Enterrei a cabeça no calor do seu peito e chorei. Baba me

puxou para si e ficou me embalando, para frente e para trás. Nos seus braços, esqueci

 

o que tinha feito. E isso foi ótimo.

 

 

OITO

 

 

DURANTE UMA SEMANA, PRATICAMENTE NÃO VI Hassan. Acordava de manhã e lá estavam o

meu pão torrado, o meu chá e o meu ovo cozido, tudo pronto e arrumado na mesa da

cozinha. As roupas que ia vestir já estavam passadas e dobradas, em cima da cadeira

com assento de palhinha que ficava no saguão, onde Hassan normalmente passava

roupa. Em geral, ele esperava eu me sentar para tomar café e só então começava essa

tarefa porque, desse jeito, podíamos conversar. E, em geral, também cantava,

encobrindo com a voz o chiado do ferro a vapor. Eram velhas cantigas hazara que

falavam de campos de tulipas, Agora, só as roupas dobradas estavam esperando por mim.

As roupas e um café da manhã que eu mal conseguia terminar.

 

Em uma manhã nublada, estava brincando com o meu ovo cozido, fazendo-o girar

pelo prato quando Ali entrou, carregando uma pilha de lenha cortada. Perguntei onde

estava Hassan.

 

— Voltou a se deitar — respondeu Ali, ajoelhando-se diante do

fogareiro e abrindo a portinhola quadrada.

— Será que daria para Hassan ir brincar hoje?

Ali parou o que estava fazendo, com uma acha de lenha na mão Um ar de

preocupação lhe passou pelo rosto.

 

— Ultimamente, parece que tudo o que ele quer é dormir. Faz as suas tarefas

porque cuido para que não deixe de fazê-las, mas, de pois, só quer voltar para

debaixo das cobertas. Posso lhe perguntar uma coisa?

— Se acha que é necessário...

— Depois daquele campeonato de pipas, ele voltou para casa meio

ensangüentado e com a camisa rasgada. Perguntei o que tinha acontecido, mas

Hassan me disse que não era nada, que tinha se metido em uma briguinha à-toa

com outros meninos por causa de uma pipa.

Fiquei calado. Simplesmente, continuei a fazer o ovo cozido girar pelo prato.

 

— Aconteceu alguma coisa com ele, Amir agha? Alguma coisa que ele não

esteja querendo me contar?

— Como posso saber? — indaguei eu, dando de ombros.

— Você me contaria, não é? Inshallah, você me contaria se tivesse acontecido

algo?

 

 

— Eu já disse... Como posso saber se tem alguma coisa errada com ele? —

acrescentei asperamente. — Talvez esteja doente. Às vezes as pessoas ficam doentes,

Ali. Afinal... é para hoje que você vai acender esse fogareiro ou vou morrer congelado

aqui dentro?

 

NAQUELA MESMA NOITE, PERGUNTEI a meu pai se podíamos ir para Jalalabad na sextafeira.

Ele estava se virando para lá e para cá, na cadeira de couro com rodinhas que

ficava atrás de sua escrivaninha, lendo um jornal. Baixou o jornal, tirou os óculos de

leitura que eu tanto detestava — baba não era velho, não mesmo; e ainda tinha muitos

anos de vida pela frente... Por que então precisaria usar aqueles óculos idiotas?

 

— Por que não? — respondeu ele. Ultimamente vinha concordando com tudo

que eu pedisse. E não era só: duas noites antes, ele tinha vindo me perguntar se eu

queria ir ver El Cid, com Charlton Heston, no cinema Aryana. — Quer chamar Hassan

para ir conosco para Jalalabad?

Por que baba tinha que estragar tudo daquele jeito?

 

— Ele está mareez — disse eu. — Não anda se sentindo bem.

— É mesmo? — indagou baba parando de se remexer na cadeira. — O que é que

ele tem?

Dei de ombros e me afundei no sofá perto da lareira.

 

— Pegou um resfriado, ou coisa do gênero. Ali disse que ele tem estado de

molho, que passa quase o tempo todo dormindo.

— Não o tenho visto muito nesses últimos dias... — disse meu pai. — É só isso

mesmo, um resfriado?

Não pude me impedir de ficar com ódio ao ver a ruga de preocupação que se

formou na sua testa.

 

— É só um resfriado, sim. E então? Vamos na sexta, baba?

— Claro, claro — disse ele, se afastando da escrivaninha. — Que pena essa

história com Hassan... Acho que você se divertiria muito mais se ele fosse conosco.

— Mas nós dois podemos nos divertir juntos — retruquei.

Ele sorriu. Piscou os olhos.

— Agasalhe-se bem — acrescentou.

PODERÍAMOS TER IDO MESMO SÓ NÓS DOIS — aliás, era exatamente isso que eu queria. Mas,

na quarta-feira à noite, meu pai deu um jeito de convidar mais umas vinte pessoas.

Ligou para seu primo Homayoun — na verdade, seu primo em segundo grau — e

mencionou que estava indo para Jalalabad na sexta. Homayoun, que estudou

engenharia na França e tinha uma casa em Jalalabad, disse que seria ótimo poder reunir

todo mundo, que levaria as crianças e suas duas esposas; e, já que iríamos até lá, a

prima Shafiqa, que tinha vindo de Herat com a família para visitá-los, talvez gostasse

de ir junto; e, como ela estava hospedada na casa do primo Nader, em Cabul, ele e sua

família também teriam de ser convidados, embora Homayoun e Nader estivessem meio

brigados; e, se Nader fosse convidado, com certeza o seu irmão Faruq também teria que

ser, caso contrário poderia ficar magoado e não convidar ninguém para o casamento

da filha, no próximo mês; e...

 

Enchemos três caminhonetes. Eu fui junto com baba, Rahim Khan kaka Homayoun

 

— meu pai sempre dizia que as crianças devem chamar todos os homens mais velhos

 

 

de kaka, tio, e todas as mulheres mais velhas de khala, tia. As duas filhas gêmeas de

kaka Homayoun também vieram com a gente, assim como as suas duas esposas — a

mais velha, que tinha uma cara de quem comeu e não gostou e as mãos cheias de

verrugas; a mais moça, que sempre cheirava a perfume e dançava com os olhos

fechados. Sentei no banco de trás, e fiquei tonto e enjoado, espremido entre as duas

gêmeas de sete anos que não paravam de passar o braço na minha frente para dar

tapas uma na outra. A viagem para Jalalabad leva duas horas, por estradas que vão

serpenteando pelas montanhas, beirando grandes precipícios, e o meu estômago

chacoalhava a cada curva que o carro fazia. Todo mundo estava conversando,

falando alto e ao mesmo tempo, quase gritando, o que é o jeito típico de falar dos

afegãos. Perguntei a uma das gêmeas — Fazila ou Karima, já que nunca consegui

saber quem era quem — se não queria trocar de lugar comigo e me deixar ir na janela

para pegar um pouco de ar fresco, dizendo-lhe que estava enjoado. Ela me deu a língua e

disse que não. Eu disse que, então, estava bem, mas que, depois, ela não poderia

reclamar se eu vomitasse no seu vestido. Um minuto mais tarde, lá estava eu olhando

pela janela. Fiquei fitando aquela estrada cheia de altos e baixos, que ia subindo e

descendo, enroscando a cauda no flanco da montanha; fui contando os caminhões de

todas as cores que passavam por nós, carregados de indivíduos acocorados. Tentei

fechar os olhos, deixar que o vento batesse no meu rosto, e abri a boca para engolir

aquele ar puro. Mesmo assim não me senti melhor. De repente, alguém me cutucou.

Era Fazila/Karima.

 

— O que foi? — perguntei.

— É que eu estava contando a eles sobre o campeonato — disse baba, lá do

volante. Kaka Homayoun e suas esposas estavam sorrindo para mim do banco do meio.

— Devia haver bem uma centena de pipas no céu aquele dia — prosseguiu

meu pai. — Não era mais ou menos isso, Amir?

— Acho que sim — murmurei.

— Umas cem pipas, Homayoun jan. Sem laaf. E, no fim do dia, a única que

ainda estava voando era a de Amir. Ele tem a última pipa lá em casa, uma linda pipa

azul. Hassan e Amir conseguiram apanhá-la juntos.

— Meus parabéns — disse kaka Homayoun.

Sua primeira esposa, a que tinha as tais verrugas, bateu palmas.

— Ora, muito bem, Amir jan, estamos todos muito orgulhosos de você!

exclamou ela.

 

A mais nova fez o mesmo e lá estavam as duas batendo palmas, uivando mil

elogios, dizendo como eu tinha deixado todos eles orgulhosíssimos. Só Rahim Khan,

sentado no banco do carona ao lado de baba, continuava calado. E me olhava de um

jeito estranho.

 

— Encoste o carro, por favor, baba — disse eu.

— O quê?

— Estou enjoado — murmurei, me inclinando no banco e espremendo as filhas

de kaka Homayoun.

Fazila/Karima fez cara de nojo.

 

— Encoste o carro, kaka Ele está ficando todo amarelo! Não quero que

vomite no meu vestido novo! — berrou ela.

Baba tratou de encostar o carro, mas não deu tempo. Alguns minutos depois,

estava sentado em uma pedra, à beira da estrada, enquanto eles deixavam a

caminhonete toda aberta para arejá-la. Baba fumava com kaka Homayoun que

 

 

 

mandava Fazila/Karima parar de chorar; ele lhe compraria um outro vestido em

Jalalabad. Fechei os olhos e virei o rosto para o sol. Manchas miúdas iam se formando

por detrás das minhas pálpebras, como mãos brincando de fazer figuras de sombra na

parede. Elas rodopiavam, se fundiam e formavam uma só imagem: a calça de veludo

cotelê marrom de Hassan jogada em uma pilha de tijolos naquele beco.

 

A CASA DE KAKA HOMAYOUN EM JALALABAD era branca, tinha dois andares e uma

varanda que dava para um grande jardim murado, todo plantado de macieiras e

caquizeiros. Havia vários arbustos que o jardineiro podava no verão, formando

figuras de animais, e uma piscina de ladrilhos cor de esmeralda. Com os pés

pendurados, sentei na borda da piscina inteiramente vazia a não ser por uma camada

de neve lamacenta no fundo. Os filhos de kaka Homayoun estavam brincando de

esconde-esconde do outro lado do jardim. As mulheres estavam na cozinha e dava para

sentir o cheiro das cebolas fritas como dava para ouvir os "pff-pff" de uma panela de

pressão, além de música e de risos. Baba, Rahim Khan, kaka Homayoun e kaka Nader

estavam fumando na varanda. Kaka Homayoun dizia que tinha trazido o projetor para

mostrar os slides da sua viagem à França. Já fazia dez anos que ele tinha voltado de

Paris e continuava a exibir aqueles slides idiotas...

 

Não devia estar me sentindo desse jeito... Baba e eu finalmente éramos amigos.

Tínhamos ido ao zoológico alguns dias antes, para ver Marjan, o leão, e ele atirou

uma pedrinha no urso quando não tinha ninguém olhando. Depois, fomos comer

kabob no Dadkhoda em frente ao cinema Park. Comemos kabob de carneiro com naan

fresquinho, saído do tandoor. E meu pai ficou me contando histórias das suas viagens àÍndia e à Rússia, falando das pessoas que conheceu por lá, como aqueles dois em

Bombaim, que não tinham nem braços nem pernas, mas estavam casados há quarenta e

sete anos, e tinham criado onze filhos. Aquilo tudo deveria ter sido bem divertido: passar

um dia assim com baba e ficar ouvindo as suas histórias. Finalmente, eu estava tendo o

que desejei durante todos esses anos. Só que agora, que tinha conseguido o que queria,

estava me sentindo tão vazio quanto aquela piscina maltratada onde os meus pés

balançavam.

 

Ao pôr-do-sol, as esposas e as meninas serviram o jantar — arroz, kofta e qurma de

galinha. Jantamos do modo tradicional, sentados em almofadas à volta da sala, com

toalhas espalhadas pelo chão, cada grupo de quatro ou cinco pessoas comendo com as

mãos a comida servida na mesma travessa. Não estava com fome, mas, mesmo assim,

sentei para jantar junto com meu pai, kaka Faruq e os dois filhos de kaka Homayoun.

Baba, que tinha tomado uns dois uísques antes do jantar, continuava falando do

campeonato de pipas, dizendo como eu tinha suplantado todos os demais, como tinha

voltado para casa com a última pipa cortada. Só se ouvia a sua voz possante na sala.

As pessoas erguiam a cabeça, me davam parabéns. Kaka Faruq me deu um tapinha nas

costas com a mão limpa. Senti como se tivesse levado uma facada no olho.

 

Mais tarde, bem depois da meia-noite, meu pai e seus primos, que tinham

passado algumas horas jogando pôquer, foram se deitar. Os homens ficaram na mesma

sala em que tínhamos jantado, em colchões dispostos no chão, paralelos uns aos

outros. As mulheres foram para o andar de cima. Uma hora se passou e eu ainda

não tinha conseguido pegar no sono. Fiquei me revirando para um lado e para o outro,

ouvindo os meus parentes resmungando, suspirando e roncando enquanto dormiam.

Sentei no colchão. Uma réstia de luar penetrava pela janela.

 

 

 

— Fiquei olhando enquanto Hassan estava sendo violentado —disse eu em

voz alta, sem me dirigir a ninguém em particular.

Meu pai se remexeu dormindo. Kaka Homayoun soltou um grunhido. Parte de mim

tinha esperanças que alguém tivesse acordado e ouvido o que eu disse, porque, assim,

não precisaria mais viver com aquela mentira. Mas ninguém acordou e, no silêncio que

se seguiu à minha frase, compreendi a natureza exata da minha nova maldição: teria

que passar o resto da vida convivendo com a impunidade.

 

Lembrei do sonho de Hassan, aquele em que nadávamos no lago. "Não tem

monstro nenhum aí," era o que tinha dito, "só água". Mas ele estava enganado a este

respeito. Tinha um monstro no lago, sim. Ele agarrou Hassan pelos quadris e o arrastou

para o fundo tenebroso. Esse monstro era eu.

 

Foi a partir dessa noite que passei a ter insônia.

 

NÃO VOLTEI A FALAR COM HASSAN até meados da semana seguinte. Tinha comido muito

pouco no almoço e Hassan estava tirando a mesa. Comecei a subir a escada, me

dirigindo para o meu quarto, quando ele me perguntou se eu não queria ir lá para a

colina. Respondi que estava cansado. Ele também parecia cansado: tinha emagrecido

e dois círculos escuros tinham se formado em torno dos seus olhos inchados. Mas,

quando perguntou novamente, aceitei, embora com relutância.

 

Caminhamos até o topo da colina, com as botas deslizando na neve enlameada.

Nenhum dos dois disse coisa alguma. Sentamos debaixo do nosso pé de romã e me dei

conta de que tinha cometido um erro. Nunca devia ter vindo até a colina. Lá estavam as

palavras que eu tinha gravado no tronco da árvore, com a faca de Ali, "Amir e

Hassan: sultões de Cabul"... Simplesmente, não conseguia olhar para elas agora.

 

Ele me pediu para ler uma história do Shahnamah e eu lhe disse que tinha

mudado de idéia. Que tudo o que queria era voltar para o meu quarto. Hassan

desviou os olhos e deu de ombros. Descemos a colina exatamente do jeito que

tínhamos subido: em silêncio. E pela primeira vez na vida, eu mal podia esperar pela

chegada da primavera.

 

MINHAS LEMBRANÇAS DO RESTO DO INVERNO de 1975 são bem pouco nítidas. Lembro que

ficava razoavelmente feliz quando baba estava em casa. Comíamos juntos, saíamos

para ver um filme, visitar kaka Homayoun ou kaka Faruq. Às vezes, Rahim Khan vinha

nos ver, e meu pai deixava eu me sentar com eles no escritório para tomar chá. Até me

pediu que lesse algumas das minhas histórias para ele. Isso era bom e cheguei a

acreditar que fosse durar para sempre. E baba também acreditou, acho eu. Mas não

devíamos ter acreditado. Durante pelo menos alguns meses depois do campeonato, meu

pai e eu mergulhamos em uma doce ilusão, passamos a ver um ao outro como nunca

tínhamos feito antes. Na verdade, estávamos nos enganando, achando que um

brinquedo feito de papel de seda, cola e bambu podia de algum modo preencher o

abismo que existia entre nós.

 

Mas quando baba saía — e ele saía muito — eu ficava trancado no quarto. Lia

um livro a cada dois dias, escrevia histórias, aprendia a desenhar cavalos. Ouvia Hassan

circulando pela cozinha de manhã, ouvia o tilintar dos talheres, o assobio da chaleira.

Esperava ouvir o barulho da porta se fechando e só então descia para tomar café. No

 

 

 

calendário, tracei um círculo marcando a data do reinicio das aulas, e comecei a fazer

a contagem regressiva.

 

Para meu desespero, Hassan continuou tentando fazer as coisas entre nós

voltarem às boas. Lembro da última vez. Estava no meu quarto, lendo uma versão

abreviada do Ivanhoé traduzido para o farsi, quando ele bateu à porta.

 

— O que é?

— Estou saindo para comprar naan — respondeu ele do outro lado da porta.

— Estava pensando se você... se você não queria vir comigo...

— Acho que prefiro continuar lendo — respondi, esfregando as têmporas. Nos

últimos tempos, sempre que Hassan estava por perto, eu ficava com dor de cabeça.

— Está fazendo sol — disse ele.

— Estou vendo.

— Pode ser divertido dar um passeio.

— Vá você.

— Gostaria que viesse comigo — insistiu ele. E se calou. Algo esbarrou na

porta, talvez a sua testa. — Não sei o que foi que eu fiz, Amir agha. Queria que me

dissesse. Não sei por que não brincamos mais juntos.

— Você não fez nada, Hassan. Agora, vá embora.

— Pode me dizer o que foi. Não vou fazer nunca mais.

Enterrei a cabeça no peito, apertando as têmporas com os joelhos como se fosse

um torno.

 

— Vou lhe dizer o que não quero mais que faça — disse-lhe então, com os olhos

bem fechados.

— Pode dizer.

— Quero que pare de me perturbar. Quero que vá embora — exclamei. Desejei

que ele revidasse, que arrombasse a porta, que me dissesse poucas e boas. Assim,

seria mais fácil; tudo ficaria melhor. Mas não fez nada disso e, quando abri a porta,

minutos depois, ele já não estava ali. Desabei na cama, enfiei a cabeça debaixo do

travesseiro, e chorei.

DEPOIS DISSO, HASSAN FICOU CIRCULANDO pelas beiradas da minha vida. Eu tomava todas as

precauções para que os nossos caminhos se cruzassem o mínimo possível, planejando os

meus dias neste sentido. Porque, quando ele estava por perto, o oxigênio desaparecia do

aposento. Sentia o peito apertado e tinha dificuldade para respirar; ficava ali, sufocando

na minha bolhazinha de atmosfera absolutamente abafada. Mas mesmo quando ele não

estava por perto, estava presente. Estava nas roupas lavadas e passadas sobre a cadeira de

assento de palhinha, nos chinelos aquecidos deixados diante da porta do meu quarto, na

lenha que já ardia no fogareiro quando eu descia para tomar o meu café da manhã.

Para onde quer que eu me virasse, lá estavam os sinais da sua lealdade, da sua maldita

lealdade inabalável.

 

No começo da primavera, uns poucos dias antes do reinicio das aulas, baba e eu

estávamos plantando tulipas no jardim. Quase toda a neve tinha derretido e as colinas

ao norte já ostentavam alguns trechos de grama. Era uma manhã fria e cinzenta; meu

pai estava agachado ao meu lado, cavando a terra e plantando os bulbos que eu ia lhe

passando. Estava dizendo que a maioria das pessoas acredita que a melhor época para

plantar tulipas é o outono, e que isso não era verdade, quando eu o interrompi, sem

mais nem menos, para lhe fazer uma pergunta.

 

— Você nunca pensou em contratar empregados novos?

 

 

Ele deixou cair o bulbo de tulipa que tinha nas mãos e enfiou a pazinha na terra.

Tirou então as luvas de jardinagem. Tinha tomado um susto.

 

— Chi? O que foi que você disse?

— Estava só pensando...

— E por que eu ia querer fazer uma coisa dessas? — indagou ele secamente.

— Acho que não ia, não. Foi apenas uma pergunta — respondi já quase em um

murmúrio. Estava realmente arrependido de ter dito aquilo.

— Tem a ver com você e Hassan? Sei que está acontecendo alguma coisa entre vocês

dois, mas, seja lá o que for, é você mesmo quem tem que resolver tudo, e não eu. Não

vou me meter nessa história.

— Me desculpe, baba.

Ele calçou as luvas outra vez.

— Cresci junto com Ali — disse, com os dentes cerrados. — Meu pai o levou para

morar conosco, e gostava de Ali como se fosse seu próprio filho. Há quarenta anos

que ele vive com a minha família. Há quarenta malditos anos. E agora você vem

achar que vou simplesmente mandá-lo embora?

Virou-se para mim e o seu rosto estava tão vermelho quanto uma daquelas tulipas.

 

— Nunca encostei a mão em você, Amir, mas se disser isso novamente... —

Desviou os olhos, abanando a cabeça. — Você me envergonha. E Hassan... Hassan

não vai a lugar nenhum, está me entendendo?

 

Baixei a cabeça e peguei um punhado daquela terra fria. Deixei então que

escorresse por entre os meus dedos. — Perguntei se esta me entendendo... — rosnou

ele.

 

— Estou, baba — disse eu, me encolhendo.

— Hassan não vai a lugar nenhum — repetiu ele, rispidamente. Abriu uma nova

cova com a pazinha, golpeando a terra com mais força que o necessário. — Vai

continuar morando aqui conosco, pois esta é a casa dele. É o seu lar e nós somos a sua

família. Nunca mais me faça uma pergunta dessas!

— Pode deixar, baba. Me desculpe.

Acabamos de plantar as tulipas em silêncio.

Fiquei aliviado quando as aulas recomeçaram na semana seguinte. Alunos, com

cadernos novos e lápis apontados, caminhavam pelo pátio, chutando poeira,

conversando em grupinhos, esperando pelo apito dos monitores das turmas. Baba

pegou a estrada de terra que levava até o portão. A escola era um velho prédio de dois

andares, com janelas quebradas e corredores de chão de pedra, mal iluminados, onde se

viam trechos de um amarelo pálido, a tinta original, em meio a pedaços descascados que

deixavam aparecer o reboco das paredes. A maioria dos meninos ia a pé para o colégio,

e não eram poucos os olhares invejosos que o Mustang preto de meu pai atraía. Deveria

ter ficado radiante de orgulho quando ele me deixou diante do portão — meu velho eu

ficaria —, mas tudo o que consegui sentir foi um certo constrangimento. Fiquei

encabulado e com uma sensação de vazio. Baba foi embora sem se despedir.

 

Evitei a costumeira comparação de cicatrizes entre os meninos que empinavam

pipas e fui direto para a forma. A sineta tocou e, em fila, dois a dois, fomos para a sala

de aula que seria a nossa. Sentei na última fileira. Quando o professor de farsi distribuiu

os nossos livros de textos, rezei para que ele passasse toneladas de dever de casa.

 

A escola me dava um pretexto para passar horas e horas no meu quarto. E, por

algum tempo, tirava da minha cabeça o episódio ocorrido naquele inverno; aquilo que eu

 

 

 

tinha deixado acontecer. Durante umas semanas, fiquei mergulhado em gravidade e

momentum, átomos e células, guerras anglo-afegãs, em vez de ficar pensando em Hassan e

no que tinha acontecido com ele. Mas minha cabeça acabava sempre voltando para

aquele beco. Para a calça de veludo cotelê marrom jogada na pilha de tijolos. Para o

sangue que pingava, manchando a neve de um vermelho escuro, quase negro.

 

Em uma tarde preguiçosa e enevoada, no começo daquele verão, chamei Hassan

para vir comigo até o topo da colina. Disse que queria ler para ele uma nova história que

tinha escrito. Ele estava estendendo roupas no quintal e vi como ficou impaciente pelo

jeito meio atabalhoado com que acabou a tarefa que fazia.

 

Subimos a colina falando sobre coisas banais. Ele perguntou do colégio, quis

saber o que eu estava estudando, e falei dos meus professores, principalmente do

professor de matemática, aquele malvado que castigava os alunos que ficavam

conversando enfiando uma vareta metálica entre os seus dedos e, depois, apertando

bem. Hassan estremeceu ao ouvir isso e disse que esperava que eu nunca tivesse de

passar por essa experiência. Respondi que, até agora, tinha tido sorte, sabendo muito

bem que aquilo não era absolutamente uma questão de sorte. Eu também ficava

conversando na aula. Mas, como meu pai era rico e todos o conheciam, acabava sendo

poupado do tratamento com vareta metálica.

 

Sentamos junto ao muro do velho cemitério, à sombra do pé de romã. Dentro de

um ou dois meses, tufos de mato amarelo e ressecado estariam cobrindo a colina, mas,

este ano as chuvas da primavera duraram mais que de costume, penetrando pelo início

do verão, e, com isso, a grama ainda estava toda verde, salpicada de flores do campo.

Lá embaixo, via-se Wazir Akbar Khan, com as suas casas pintadas de branco e os

telhados achatados brilhando ao sol, e as roupas penduradas na corda pelos quintais,

que dançavam ao vento como borboletas.

 

Colhemos bem uma dúzia de romãs. Desdobrei a história que tinha trazido, virei

a primeira página, mas, depois, pus as folhas no chão. Fiquei de pé e peguei uma romã

já passada que tinha caído da árvore.

 

— O que você faria se eu desse com isso na sua cabeça? — perguntei, jogando o

fruto nas mãos, para cima e para baixo.

O sorriso de Hassan desapareceu. Ele parecia mais velho do eu imaginava.

Aliás, mais velho não, velho. Seria possível? Linhas marcavam o seu rosto moreno, e

vincos contornavam os seus olhos e a sua boca. Eu bem que poderia ter pegado uma

faca e escavado ali aquelas linhas com as minhas próprias mãos.

 

— O que você faria? — repeti.

Hassan ficou sem cor. Perto dele, o vento soprava as folhas grampeadas da história

que eu tinha prometido ler. Atirei a romã em cima dele. Ela bateu em cheio no seu peito

com um jorro de polpa vermelha. O grito que ele deu estava cheio de surpresa e de dor.

 

— Bata em mim! — exclamei.

Hassan ficou olhando para a mancha no seu peito e para mim.

— Levante daí! Bata em mim! — disse eu.

Hassan levantou mesmo, mas ficou parado, atordoado como um homem que é

arrastado para o oceano por uma onda repentina quando, minutos antes, estava

passeando calmamente pela praia.

 

Atirei outra romã em cima dele; desta vez, no ombro. O suco espirrou em seu

rosto.

 

 

 

— Revide! — exclamei. — Revide, seu maldito!

Queria mesmo que ele fizesse isso. Queria que me desse o castigo que eu estava

pedindo. Talvez, assim, pudesse finalmente dormir de noite. Talvez, assim, as coisas

pudessem voltar a ser como antes entre nós. Mas Hassan não fez nada e continuei

atirando frutas nele sem parar.

 

— Você é um covarde! — gritei. — Apenas um maldito covarde!

Não sei quantas vezes o atingi. Tudo o que sei é que, quando finalmente parei,

exausto e ofegante, Hassan estava todo lambuzado de vermelho, como se tivesse

passado diante de um pelotão de fuzilamento. Caí de joelhos, cansado, sem forças,

frustrado.

 

Foi então que Hassan apanhou uma romã e veio andando na minha direção.

Abriu a fruta e a esmagou na própria testa.

 

— Pronto! — disse ele, com voz rouca, e com o suco vermelho escorrendo pelo

rosto como se fosse sangue. — Está satisfeito agora? Está se sentindo melhor?

 

Depois, virou as costas e começou a descer a colina.

 

Deixei as lágrimas rolarem livremente e, de joelhos, fiquei balançando o corpo

 

para frente e para trás.

 

— O que é que vou fazer com você, Hassan? O que é que vou fazer com você?

Quando as lágrimas secaram, porém, e comecei a me arrastar colina abaixo, já

sabia qual a resposta para essa pergunta.

 

Fiz TREZE ANOS NO VERÃO DE 1976, o penúltimo de um Afeganistão de paz e anonimato.

As coisas entre mim e baba já estavam esfriando novamente. Acho que tudo começou

com aquele estúpido comentário que fiz no dia em que estávamos plantando tulipas,

aquela história de contratar empregados novos. Me arrependi de ter dito aquilo — me

arrependi de verdade —, mas acho que, mesmo que não tivesse dito nada, o nosso

pequeno interlúdio de felicidade ia se acabar de qualquer jeito. Talvez não tão

depressa assim, mas ia acabar. No final do verão, o barulho do garfo e da faca

arranhando o prato tinha substituído as conversas à mesa, e meu pai tinha voltado a se

retirar para o escritório depois do jantar. E a fechar a porta. Já eu recomecei a folhear

Hafez e Khayyam, a roer as unhas quase até o sabugo, a escrever histórias. Guardava

todas elas empilhadas debaixo da cama, deixando-as ali porque, afinal, nunca se sabe...

Mas duvidava que baba algum dia voltasse a me pedir que lesse uma delas para ele.

 

O lema de meu pai sobre dar festas era o seguinte: convide o mundo inteiro, ou

não será uma festa. Lembro de percorrer com os olhos a lista de convidados, uma

semana antes da minha festa de aniversário, e não conseguir identificar pelo menos três

quartos dos quatrocentos e tantos kakas e khalas que viriam me trazer presentes e me

dar parabéns por estar completando treze anos de vida. Depois me dei conta de que

não era exatamente por mim que toda aquela gente viria. O aniversário era meu, mas

eu sabia muito bem quem era a verdadeira estrela daquele espetáculo.

 

Durante vários dias, a nossa casa foi um contínuo entra-e-sai de gente contratada

por baba. Salahuddin, o açougueiro, veio trazendo um novilho e dois carneiros, e se

recusou a receber pagamento por qualquer dos três animais. Ele próprio os abateu no

quintal, perto de um choupo. "O sangue faz bem para a árvore", lembro de ter ouvido

ele dizer enquanto a grama ao redor do choupo ia se tingindo de vermelho. Homens

que eu não conhecia subiram nos carvalhos com rolos de fios cheios de lâmpadas e

 

 

 

metros e metros de extensão. Outros armaram várias mesas pelo quintal, cobrindo cada

uma delas com uma toalha. Na véspera da festança, Del-Muhammad, um amigo de meu

pai que era dono de uma casa de kabob em Shar-e-Nau, veio trazendo sacos de

especiarias. Como aconteceu com o açougueiro, Del-Muhammad — ou Dello, como

baba o chamava — se recusou a ser pago pelos seus serviços. Disse que meu pai já

tinha feito muito por sua família. Enquanto ele estava marinando as carnes, Rahim

Khan cochichou em meu ouvido que foi baba quem emprestou o dinheiro para Dello

abrir o seu restaurante. E se recusou a receber o pagamento da dívida até o dia em

que Dello apareceu na entrada lá de casa, dirigindo uma Mercedes, e disse que só sairia

dali depois que baba tivesse aceitado o tal dinheiro.

 

Sob vários aspectos — ou, pelo menos, aqueles a partir dos quais essas coisas são

julgadas —, a festança do meu aniversário foi um tremendo sucesso. Nunca tinha visto

a casa tão lotada. Convidados, com copos de bebida nas mãos, conversavam pelos

corredores, fumavam pelas escadas, paravam recostados nas portas. Sentavam-se onde

quer que encontrassem um lugar vazio, como as bancadas da cozinha, o saguão e até

mesmo o vão da escada. No quintal dos fundos, amontoavam-se sob as luzes azuis,

vermelhas e verdes das lâmpadas que pendiam das árvores, com os rostos iluminados

pela claridade dos archotes de querosene espetados por todo canto. Meu pai tinha

mandado armar um palco na varanda que dava para o jardim e vários alto-falantes

foram instalados aqui e ali. No palco, Ahmad Zahir tocava harmônio e cantava diante

de uma multidão de corpos dançantes.

 

Eu tinha de ir cumprimentar cada convidado pessoalmente. Baba fazia questão que

fosse assim, pois, no dia seguinte, ninguém sairia por aí dizendo que ele não tinha sabido

educar o filho. Beijei milhares de rostos, abracei gente inteiramente desconhecida,

agradeci a todos pelos presentes que me davam. Meu rosto já estava doendo por causa do

sorriso forçado.

 

A certa altura, estava parado com baba no quintal, perto do bar quando ouvi

alguém dizer "Feliz aniversário, Amir". Era Assef, acompanhado dos pais, O pai dele,

Mahmud, era um sujeito baixo e magro, de pele morena e rosto afilado. A mãe,

Tanya, era urna mulher miúda e agitada, que sorria demais e piscava demais. Assef

estava ali, entre os dois, bem mais alto que ambos, sorrindo, com os braços passados

nos ombros de um e de outro. Veio se aproximando de nós como se fosse ele que tivesse

trazido os pais à festa; invertendo os papéis, como se aqueles dois fossem os seus filhos.

Uma espécie de vertigem percorreu todo o meu corpo. Baba lhes agradeceu por terem

vindo.

 

— Eu mesmo escolhi o seu presente — disse Assef. O rosto de Tanya se

repuxou e seus olhos foram de Assef para mim. Sorriu, de um jeito nada convincente, e

piscou. Fiquei me perguntando se meu pai teria notado.

— Continua jogando futebol, Assef jan? — perguntou baba. Ele sempre quis que

Assef e eu fôssemos amigos.

Assef sorriu. Era assustador ver como conseguia fazer o seu sorriso parecer

autêntico.

 

— Claro que sim, kaka jan.

— Ponta-direita, se bem me lembro?

 

 

— Na verdade, passei a jogar como centroavante esse ano — respondeu Assef. —

A gente tem mais chance de fazer gols nessa posição. Na semana que vem vamos jogar

com o Mekro-Rayan. Deve ser um jogo bem legal. Eles têm alguns bons jogadores.

 

Baba assentiu.

 

— Sabe que eu também joguei de centroavante quando era jovem?

— Aposto que ainda consegue jogar se quiser — disse Assef.

E brindou meu pai com uma piscadela amigável.

Baba retribuiu a piscadela.

— Pelo que vejo, seu pai lhe ensinou as suas célebres táticas lisonjeiras — disse

ele, dando uma cotovelada no pai de Assef e, por pouco, não derrubando o

homenzinho no chão. O riso de Mahmud foi quase tão convincente quanto o sorriso de

Tanya e, de repente, me passou pela cabeça a idéia de que, em certa medida, talvez o

filho os amedrontasse. Tentei fingir que sorria, mas tudo o que consegui fazer foi erguer

um pouquinho os cantos da boca. Meu estômago estava se revirando só de ver o meu

pai todo enturmado com Assef.

Então, ele olhou para mim.

 

— Wali e Kamal também estão aqui. Não perderiam o seu aniversário por nada

no mundo — disse ele com o riso escondido pouco abaixo da superfície. Assenti em

silêncio.

— Estamos pensando em organizar uma partida de vôlei lá em casa amanhã —

prosseguiu ele. — Quem sabe você não vem? Se quiser, pode levar o Hassan.

 

— Parece divertido — disse baba radiante. — O que acha, Amir?

— Não gosto muito de vôlei — murmurei. Vi o brilho desaparecer dos olhos de

meu pai, e um silêncio desconfortável se instalou entre nós.

— Sinto muito, Assef jan — disse baba dando de ombros. E aquilo doeu: meu pai,

pedindo desculpas por mim.

— Imagine, não tem problema — retrucou Assef. — Mas o convite está de pé, Amir

jan. De todo modo, ouvi dizer que gosta de ler e, por isso, trouxe um livro para você. Um

dos meus favoritos. — E, estendendo um embrulho de presente, acrescentou: — Feliz

aniversário.

Ele estava usando uma camisa de algodão e uma calça social azul, com uma

gravata de seda vermelha e mocassins pretos bem engraxados. Cheirava a água-decolônia,

e o cabelo louro estava todo penteado para trás. Por fora, era a própria

encarnação do sonho de todo pai: um garoto alto, forte, bem vestido e com boas

maneiras, talentoso e de boa aparência, sem falar de sua habilidade para fazer

brincadeiras com os adultos. Mas, para mim, eram os olhos que o traiam. Quando os

fitava, a fachada desmoronava, deixando ver algo da loucura que se escondia ali atrás.

 

— Não vai pegar, Amir? — Ouvi baba perguntando.

— Hã?

— O seu presente — disse ele irritado. — Assei jan está lhe dando um presente.

— Ah, é claro — balbuciei.

Peguei o embrulho das mãos de Assef e baixei os olhos. Adoraria estar sozinho no

meu quarto, com os meus livros, longe de toda essa gente.

 

— Bem? — indagou baba.

— O quê?

 

 

E, aí, ele falou bem baixinho, como sempre fazia quando eu o deixava

embaraçado em público.

 

— Não vai agradecer a Assef jan? Foi muita consideração da parte dele.

Queria que baba parasse de se referir a ele desse jeito. Quantas vezes tinha me

chamado de "Amir jan"?

 

— Obrigado — disse eu.

A mãe de Assef me olhou como se quisesse me dizer algo, mas não fez nada, e

foi só nesse momento que me dei conta de que os pais de Assef não tinham dito uma

palavra sequer. Antes que pudesse ficar mais sem jeito e deixar meu pai ainda mais

embaraçado — mas principalmente para me livrar de Assef e do seu sorriso —, fui

embora dali.

 

— Obrigado por terem vindo — disse eu.

Fui me esgueirando por entre aquele monte de convidados e saí pelo portão de

ferro fundido. Duas casas adiante, havia um grande terreno baldio. Ouvi baba dizer a

Rahim Khan que um juiz tinha comprado aquele lote e um arquiteto já estava

trabalhando no projeto. Mas, por enquanto, o terreno estava vazio, a não ser pela lama,

pelas pedras e pelo mato.

 

Rasguei o papel que embrulhava o presente de Assef e espiei a capa do livro à luz

da lua. Era uma biografia de Hitler. Atirei aquilo em uma moita.

 

Encostei no muro do vizinho e fui escorregando até o chão. Fiquei sentado ali por

algum tempo, apertando os joelhos junto ao peito, olhando para as estrelas, esperando

a noite acabar.

 

— Você não deveria estar recebendo os convidados? — perguntou uma voz

familiar. Era Rahim Khan que vinha caminhando pela calçada até onde eu estava.

— Ninguém precisa de mim para isso. Esqueceu que baba esta lá? — disse eu.

O gelo no copo de Rahim Khan tilintou quando ele se sentou ao meu lado.

— Não sabia que você bebia — acrescentei.

— Pois bebo — respondeu ele. E me deu uma cutucada de brincadeira. — Mas

só em ocasiões muito especiais.

— Obrigado — disse eu, sorrindo.

Ergueu o copo na minha direção e tomou um gole. Acendeu um cigarro, um

daqueles cigarros paquistaneses sem filtro que baba e ele estavam sempre fumando.

 

— Já lhe contei que quase me casei certa vez?

— Verdade? — indaguei eu, meio divertido com a idéia de Rahim

Khan se casando. Sempre pensei nele como o alter ego caladão de meu pai, como o

meu mentor em termos de escrita, o meu amigo, alguém que nunca esquecia de me trazer

uma lembrança, um saughat, quando voltava de uma viagem ao exterior. Mas como

marido? Como pai?

 

—Verdade — disse ele. — Eu tinha dezoito anos. Ela se chamava Homaira. Era

uma hazara, filha dos empregados dos nossos vizinhos. Era linda como uma pari, com

cabelos castanho-claros, grandes olhos cor de avelã... e tinha aquele riso... Ainda posso

ouvi-lo de vez em quando. — Ficou brincando com o copo. — Nós nos encontrávamos

às escondidas, na plantação de macieiras de meu pai, sempre depois da meia-noite,

quando todos já tinham ido dormir. Passeávamos sob as árvores e eu segurava a sua

mão... Estou deixando você sem jeito, Amir jan?

 

— Um pouco — respondi.

 

 

—Mas pode deixar que não vai morrer por isso... — disse ele, dando outra

tragada no cigarro. — E tínhamos um sonho. Faríamos uma grande festa de casamento,

convidando todos os amigos e parentes, desde Cabul até Kandahar. Eu compraria uma

casa bem grande para nós dois, com amplas janelas e um pátio azulejado. Plantaríamos

árvores frutíferas no jardim e cultivaríamos todo tipo de flores, e teríamos também umgramado para os nossos filhos poderem brincar. Às sextas-feiras, depois da namaz na

mesquita, todo mundo viria almoçar lá em casa, e comeríamos no jardim, debaixo das

cerejeiras, bebendo água fresca tirada do poço. Depois, tomaríamos chá com

docinhos, vendo os nossos filhos brincarem com os primos...

Tomou um longo gole de uísque. Tossiu.

 

— Devia ter visto a cara de meu pai quando toquei no assunto com ele. Minha

mãe chegou até mesmo a desmaiar. Minhas irmãs tiveram que jogar água em seu

rosto. Começaram a abaná-la e ficaram me olhando como se eu tivesse lhe cortado a

garganta. Ante que meu pai pudesse detê-lo, meu irmão Jalal já tinha ido apanha o

rifle de caça. — Rahim Khan deu uma risada amarga. — Éramos Homaira e eu contra

o mundo inteiro. E ouça o que lhe digo, Amir jan: no final, o mundo sempre sai

ganhando. As coisas são assim pura e simplesmente...

— Mas o que foi que aconteceu?

— Naquele mesmo dia, meu pai pôs Homaira e sua família em um lotação, e os

mandou embora para Hazarajat. Nunca mais voltei a vê-la.

— Puxa, sinto muito — disse eu.

— Provavelmente, foi melhor assim — retrucou Rahim Khan dando de ombros. —

Ela teria sofrido. Minha família jamais a aceitaria como uma de nós. Você não pode

mandar alguém engraxar os seus sapatos em um dia e, no dia seguinte, passar a

chamar essa pessoa de "irmã" — prosseguiu ele, e, virando-se para mim,

acrescentou: — Sabe, Amir jan, pode me contar o que quiser. Quando quiser.

 

— Sei disso — respondi meio hesitante.

Ele ficou me olhando por um bom tempo, como se estivesse esperando alguma

coisa, com os olhos negros e profundos sugerindo a existência de um segredo tácito

entre nós. Por um instante, estive a ponto de falar mesmo. Quase lhe contei tudo. Mas o

que ele ia pensar de mim? Ia me odiar, e com toda razão.

 

— Tome — disse ele entregando-me algo. — Já estava quase me esquecendo.

Feliz aniversário.

Era um caderno com uma capa de couro marrom. Passei os dedos pelos pespontos

dourados que acompanhavam suas bordas. Senti o cheiro do couro.

 

— É para as suas histórias — acrescentou ele.

Ia abrir a boca para agradecer quando ouvimos um estrondo e explosões de luz

iluminaram o céu.

 

— Fogos de artifício!

Voltamos correndo para casa e vimos todos os convidados de pé no quintal,

olhando para o céu. As crianças berravam e gritavam a cada estrondo e a cada assobio.

As pessoas explodiam em aplausos cada vez que um foguete chiava e estourava em

buquês de fogo. A intervalos de poucos segundos, o quintal se iluminava com clarões

vermelhos, verdes e amarelos.

 

Em um desses momentos, vi algo que nunca vou esquecer: Hassan servindo

bebidas a Assef e Wali, em uma bandeja de prata. A luz se apagou. Depois, novo chiado

 

 

 

e novo estrondo, trazendo outro clarão de luz alaranjada: Assef estava rindo, batendo

no peito de Hassan com o punho cerrado.

 

E então voltou a bendita escuridão.

 

 

 

NOVE

 

 

NA MANHÃ SEGUINTE, SENTADO no meio do quarto, fui abrindo os pacotes de presentes,

um atrás do outro. Não sei por que me dei o trabalho de fazer isso, já que só passava

os olhos em cada um deles, sem o menor entusiasmo, antes de empilhar tudo em um

canto. A pilha ia aumentando: uma câmera Polaroid, um rádio transistor, um trem

elétrico cheio de nove-horas — e muitos envelopes fechados contendo dinheiro. Sabia

que nunca ia gastar aquele dinheiro ou ouvir aquele rádio, e o trem elétrico jamais

circularia pelos trilhos no chão do meu quarto. Não queria nada daquilo — era tudo

dinheiro sujo. Baba jamais teria feito uma festa daquelas para mim se eu não tivesse

ganhado o campeonato.

 

Ele me deu dois presentes. Um deles certamente ia deixar todas as crianças do

bairro morrendo de inveja: uma Schwinn Stingray novinha em folha, a rainha das

bicicletas. Só uns poucos garotos em toda Cabul tinham uma Stingray nova e, agora, eu

era um deles. Ela tinha o guidom bem alto, com punhos de borracha pretos, e o célebre

selim em forma de banana. Os raios das rodas eram dourados e a estrutura metálica do

quadro, vermelha, como uma maçã do amor. Ou como sangue. Qualquer outro garoto

teria montado imediatamente naquela bicicleta e saído para dar uma volta no

quarteirão. Eu teria feito a mesma coisa alguns meses atrás.

 

— E aí, gostou? — perguntou meu pai, recostado na porta do meu quarto.

Respondi com um sorriso acanhado e um rápido "Obrigado". Adoraria ter podido

demonstrar um pouco mais de entusiasmo.

— Que tal sairmos para dar uma volta? — disse baba. Aquilo era um convite,

mas não muito animado.

— Mais tarde, talvez. Agora estou um pouco cansado — respondi.

— Claro — disse ele.

— Baba?

— O que foi?

— Obrigado pelos fogos de artifício — disse eu. Era um agradecimento, mas não

muito animado.

— Vá descansar um pouco — respondeu ele, dirigindo-se para o seu quarto.

O outro presente que meu pai me deu — e este, ele não ficou rondando para me

ver abrir — foi um relógio de pulso. Tinha um mostrador azul com ponteiros de ouro

em forma de relâmpagos. Esse aí eu nem experimentei. Botei lá na pilha de

brinquedos no canto do quarto. Só o caderno de couro que Rahim Khan me deu não

 

 

 

foi parar naquela pilha de presentes. Era o único que eu não sentia como sendo dinheiro

sujo.

 

Sentei na beirada da cama, virei e revirei o caderno nas mãos, lembrei de Rahim

Khan falando de Homaira, dizendo que, afinal de contas, aquela história de seu pai ter

mandado ela embora pode ter sido a melhor solução. "Ela teria sofrido", disse ele.

Como nas vezes em que o projetor de kaka Homayoun emperrava em um slide, a mesma

imagem ficava aparecendo sem parar na minha mente: Hassan, cabisbaixo, servindo

bebidas a Assef e Wali. Talvez fosse mesmo o melhor a fazer. Diminuir o seu

sofrimento. E o meu também. Seja como for, uma coisa estava bem clara: um de nós

dois tinha que ir embora.

 

No final daquela tarde, levei a Schwinn para a sua primeira e última saída. Dei

umas duas voltas no quarteirão e voltei para casa. Fui até o quintal dos fundos, onde

Hassan e Ali estavam limpando a sujeira da festa da noite anterior. Copos de papel,

guardanapos amarrotados e garrafas de refrigerante vazias estavam espalhados por

todo canto. Ali estava dobrando as cadeiras e botando todas elas encostadas no muro.

Quando me viu, acenou com a mão.

 

— Salaam, Ali — disse eu, acenando também.

Ele ergueu um dedo, fazendo sinal para eu esperar um pouco, e foi até a casinha

onde morava. Logo depois saiu de lá com alguma coisa nas mãos.

 

— Ontem à noite, Hassan e eu não tivemos oportunidade de lhe dar isso — disseele me entregando um embrulho. — É coisa simples e não é um presente digno de você,

Amir agha. Mesmo assim, esperamos que goste. Feliz aniversário.

Comecei a sentir um nó na garganta.

 

— Obrigado, Ali — murmurei.

Adoraria que não tivessem comprado nada para mim. Abri o embrulho e vi um

Shahnamah novinho em folha, encadernado, com ilustrações acetinadas abaixo das

passagens. Em uma delas, Ferangis fitava o filho recém-nascido, Kai Khosrau. Noutra,

via-se Afrasiyab montado em seu cavalo, espada em punho, à frente de seu exército. E, é

claro, Rostam ferindo mortalmente seu filho, o guerreiro Sohrab.

 

— É lindo! — exclamei.

— Hassan disse que o seu está velho e meio rasgado, e que estão até faltando

algumas páginas — prosseguiu Ali. — Neste aqui, todas as gravuras são feitas à mão, a

bico-de-pena — acrescentou ele, todo orgulhoso, olhando para aquele livro que nem

ele nem o filho eram capazes de ler.

— É maravilhoso! — disse eu.

Era mesmo. E desconfiava que não devia ter sido nada barato. Quis dizer a Ali

que não era o livro que era indigno, mas eu mesmo. Montei outra vez na bicicleta.

 

— Agradeça a Hassan por mim — disse.

Acabei deixando o livro na pilha de presentes do canto do quarto. Mas não

conseguia tirar os olhos dele. Decidi, então, escondê-lo debaixo de tudo. Naquela noite,

antes de ir dormir, perguntei a baba se ele tinha visto o meu relógio novo em algum

lugar.

 

NA MANHÃ SEGUINTE, FIQUEI ESPERANDO no quarto até que Ali tivesse acabado de tirar a

mesa do café na cozinha. Esperei que terminasse de lavar a louça e secar a bancada.

 

 

 

Fiquei na janela para ver quando ele e Hassan sairiam para fazer as compras no

bazaar, empurrando o carrinho vazio.

 

Então, fui até a pilha de presentes e peguei alguns envelopes com dinheiro e o

meu relógio de pulso. Saí do quarto pé ante pé. Parei diante da porta do escritório de

meu pai e fiquei à escuta. Ele tinha passado a manhã toda ali dentro, dando uns

telefonemas. Nesse momento, estava falando com alguém sobre um carregamento de

tapetes que devia chegar na próxima semana. Desci a escada, atravessei o quintal e

entrei na casa de Ali e Hassan, perto da nespereira. Levantei o colchão de Hassan e pus

ali debaixo o meu relógio novo e um punhado de notas de afeganes.

 

Esperei mais uma meia hora. Depois, bati à porta do escritório e disse o que

esperava que fosse a última de uma longa lista de mentiras vergonhosas.

 

PELA JANELA DO MEU QUARTO, vi Ali e Hassan empurrando o carrinho carregado de carne,

naan, frutas e legumes pela alameda de entrada. Vi meu pai saindo de casa e

caminhando para ir ao encontro deles. Vi suas bocas se mexendo, dizendo palavras

que eu não conseguia ouvir. Baba apontou para a casa e Ali assentiu com um gesto

de cabeça. Separaram-se. Baba entrou em casa novamente enquanto Ali seguia Hassan

até a cabana do quintal.

 

Minutos depois, meu pai veio bater à porta do meu quarto.

 

— Venha até o meu escritório — disse ele. — Vamos sentar e resolver essa

história de uma vez.

Fui para o escritório e sentei em um dos sofás de couro. Em meia hora, ou mais,

Hassan e Ali vieram ao nosso encontro.

 

AMBOS TINHAM CHORADO; PODIA VER isso por causa dos seus olhos vermelhos e inchados.

Pararam diante de baba, de mãos dadas e fiquei me perguntando como e quando eu

tinha me tornado capaz de provocar tamanha dor.

 

Meu pai foi direto ao assunto:

 

— Você roubou esse dinheiro? Roubou o relógio de Amir, Hassan? — perguntou

ele.

A resposta foi uma única palavra, dita em voz baixa e rouca:

 

— Roubei.

Tomei um susto. Foi como se tivessem me dado uma bofetada. Senti o coração

apertado e quase deixei escapar a verdade. Depois compreendi: aquele era o sacrifício

final que Hassan fazia por mim. Se ele tivesse dito não, baba teria acreditado, porque

todos nós sabíamos que Hassan não mentia nunca. E, se baba acreditasse nele, eu é que

seria acusado. Teria que dar explicações e todos ficariam sabendo quem eu realmente era.

Meu pai jamais poderia me perdoar. E, com isso, pude compreender outra coisa

também: Hassan sabia. Sabia que eu tinha visto tudo o que aconteceu naquele beco;

sabia que eu estava parado lá e não tinha feito nada. Sabia que tinha sido traído e

estava me salvando mais uma vez; a última, quem sabe. Naquele momento, eu o amei;

mais do que jamais amei qualquer outra pessoa, e quis dizer a todos que eu é que era a

serpente oculta na grama, o monstro no fundo do lago. Não merecia aquele sacrifício;

era um mentiroso, um impostor, e um ladrão. E teria feito isso mesmo, se não fosse o

fato de uma parte de mim estar feliz. Feliz porque logo, logo tudo aquilo estaria

 

 

 

terminado. Meu pai os mandaria embora; haveria algum sofrimento, mas a vida

poderia continuar. Era isso que eu queria: seguir em frente, esquecer, começar uma

vida nova. Queria ter condições de respirar novamente.

 

Só que baba me deixou atônito ao dizer "Eu o perdôo".

 

Como, perdoar? Mas roubar não era o único pecado que não tinha perdão; o

denominador comum entre todos os pecados? "Quando você mata um homem, está

roubando uma vida. Está roubando da esposa o direito de ter um marido, roubando

dos filhos um pai. Quando mente, está roubando de alguém o direito de saber a

verdade. Quando trapaceia, está roubando o direito à justiça. Não há ato mais infame

do que roubar." Baba não tinha me posto no colo e dito essas palavras? Como, então,

podia simplesmente perdoar Hassan? E se podia perdoar isso, por que, então, não

podia me perdoar por não ser o filho que ele sempre quis ter? Por que...

 

— Estamos indo embora, agha sahib — disse Ali.

— O quê? — exclamou baba empalidecendo.

— Não podemos continuar morando aqui — acrescentou Ali.

— Mas eu o perdoei, Ali. Você não ouviu?

— É impossível para nós continuar vivendo aqui, agha sahib.Estamos indo

embora.

Ali chegou mais perto de Hassan, passando o braço nos ombros do filho. Era um

gesto protetor e eu bem sabia de quem ele o estava protegendo. Olhou para mim e, por

aquele olhar frio e que não podia perdoar, fiquei sabendo que Hassan tinha lhe contado

tudo. Tinha lhe contado o que Assef e seus amigos fizeram com ele; tinha lhe contado

sobre a pipa e sobre mim. Era esquisito, mas fiquei feliz vendo que alguém sabia

exatamente quem eu era. Já estava cansado de fingir.

 

— Não me importo com o dinheiro, nem com o relógio — disse baba, com os

braços abertos, as palmas das mãos voltadas para cima. — Não entendo por que você

está fazendo isso... O que significa "impossível"?

— Lamento muito, agha sahib, mas já arrumamos as nossas coisas. Nossa decisão

está tomada.

Meu pai ficou parado e um lampejo de dor percorreu o seu rosto.

 

— Não cuidei para que nunca lhes faltasse nada, Ali? Não fui sempre bom com

você e com Hassan? Você é o irmão que nunca tive, Ali, e sabe disso. Por favor, não

faça isso comigo.

— Não torne as coisas ainda mais difíceis, agha sahib — disse Ali.

Sua boca se contorceu e, por um momento, achei que fosse uma careta. Foi então

que compreendi todo o alcance da dor que eu estava causando, a profundidade da

tristeza que estava fazendo todos eles sentirem, pois nem o rosto paralisado de Ali

tinha sido capaz de esconder aquele sentimento. Fiz um esforço e olhei para Hassan, mas

ele estava de cabeça baixa, ombros encurvados, torcendo e retorcendo um fio solto na

bainha da sua camisa.

Baba agora pedia:

 

— Mas, pelo menos, me diga por quê. Preciso saber!

Ali não contou nada, como também não tinha protestado quando Hassan

confessou ter roubado. Nunca saberei exatamente por quê, mas podia imaginar os dois

chorando naquele casebre escuro, Hassan pedindo a ele que não me entregasse. Mas não

era capaz de imaginar o esforço que Ali deve ter sido obrigado a fazer para cumprir

uma promessa como essa.

 

— Pode nos levar até a rodoviária?

 

 

— Você está proibido de fazer isso! — gritou meu pai. — Proibido! Ouviu bem?

— Com todo respeito, agha sahib, o senhor não pode me proibir nada — retrucou

Ali. — Já não trabalhamos mais aqui.

— E para onde vão? — indagou baba com a voz embargada.

— Para Hazarajat.

— Para a casa do seu primo?

— Isso mesmo. Pode nos levar até a rodoviária, agha sahib? Então vi baba fazer

uma coisa que nunca tinha visto antes: chorar.

Fiquei um pouco assustado vendo um adulto soluçar assim. Afinal, pais não

choram...

 

— Por favor... — insistia ele, mas Ali já estava se encaminhando para a porta,

com Hassan em seu encalço. Nunca vou me esquecer do jeito de baba ao dizer aquilo;

da dor, do medo que havia em seu pedido.

EM CABUL É RARO CHOVER NO VERÃO. Em geral, o que se vê é o céu azul, bem lá no alto, e o

sol como ferro em brasa a nos queimar a nuca. Os regatos onde Hassan e eu

jogávamos pedrinhas durante toda a primavera secavam, e os riquixás levantavam

poeira do chão ao passar pelas ruas. As pessoas iam à mesquita fazer as dez raka'ts do

meio-dia e, depois, tratavam de se recolher onde quer que houvesse alguma sombra,

para fazer a sesta e esperar que o tempo começasse a refrescar mais para o fim da tarde.

O verão significava longos dias suaremos na escola, dentro das salas lotadas e pouco

arejadas, aprendendo a recitar ayats do Corão, lutando com aquelas exóticas palavras

do árabe que eram de dar nó na língua. Significava apanhar moscas com a mão enquanto

 

o mulá prosseguia com sua lengalenga e o vento quente trazia o cheiro de merda das

latrinas que ficavam do outro lado do pátio, além de levantar poeira em torno da

mísera cesta de basquete fincada no chão de terra.

Mas choveu na tarde em que meu pai levou Ali e Hassan até a rodoviária. Com

trovoadas e tudo. E o céu se tingiu de cinza-chumbo. Em poucos minutos, desceu uma

verdadeira cortina de chuva e, nos meus ouvidos, só havia o ruído contínuo da água

que caía.

 

Baba se ofereceu para levá-los até Bamiyan, mas Ali recusou. Pela vidraça turva e

encharcada da janela do meu quarto, eu o vi carregando a única mala que continha

todos os seus pertences, levando-a até o carro de baba, que estava parado esperando do

lado de fora do portão. Hassan ia levando nas costas os colchões enrolados e

amarrados com uma corda. Tinha deixado todos os seus brinquedos no casebre vazio

 

— foi o que descobri no dia seguinte —, empilhados em um canto exatamente como

eu tinha feito com os presentes de aniversário no meu quarto.

Grossas gotas de chuva escorriam pela vidraça. Vi meu pai fechar o porta-malas.

Já encharcado, dirigiu-se para o lugar do motorista. Encostou-se no carro e disse

algo a Ali, que estava no banco de trás, talvez um último esforço desesperado para

fazê-lo mudar de idéia. Conversaram assim por um instante, baba ficando cada

vez mais ensopado, pingando, com um braço apoiado na capota. Quando se

reergueu, porém, vi naqueles ombros encurvados que a vida que eu conhecia desde

que nasci tinha terminado. Ele entrou no carro. Os faróis se acenderam, lançando

dois fachos de luz através da chuva. Se fosse um daqueles filmes indianos que Hassan

e eu víamos juntos, eu agora correria lá para fora, com os pés descalços

chapinhando no chão molhado. Iria atrás do carro, gritando para que parassem.

 

 

 

Tiraria Hassan do banco de trás e lhe diria que sentia muito, muito mesmo, e as

minhas lágrimas se misturariam à chuva que caía. Ficaríamos ali, abraçados, debaixo

daquele aguaceiro. Mas aquilo não era um filme indiano. Estava mesmo arrependido,

mas não chorei, nem saí correndo atrás deles. Vi o carro de meu pai se afastar,

levando consigo aquela pessoa para quem a primeira palavra pronunciada, ao

aprender a falar, foi o meu nome. Ainda vi de relance, pela última vez, o vulto de

Hassan afundado no banco de trás, antes que o carro dobrasse à esquerda naquela

esquina onde tantas vezes tínhamos jogado bolas de gude.

 

Me afastei da janela e tudo o que vi então foi a chuva caindo pelas vidraças, que mais

pareciam prata derretida.

 

 

 

DEZ

 

 

Março de 1981

 

QUEM SE SENTOU DIANTE DE NÓS FOI UMA MOÇA. Estava usando um vestido verde-oliva e tinha a

cabeça coberta por um xale preto bem enrolado em volta do rosto para se proteger da

friagem da noite. Começava a rezar cada vez que o caminhão sacolejava ou passava por

um buraco na estrada, exclamando "Bismillah!" a cada tranco ou solavanco do veículo.

O marido, um homem forte, de calças largas e turbante azul-celeste, embalava um bebê

com um dos braços e, com a mão livre, ia desfiando as contas de oração. Os seus

lábios se moviam em uma prece silenciosa. Havia outros passageiros, uns dez ao todo,

entre os quais meu pai e eu, sentados ali dentro, com a mala entre as pernas, apinhados

entre essa gente estranha, debaixo da coberta de lona da carroceria de um velho

caminhão russo.

 

Minhas entranhas já vinham se contorcendo desde que deixamos Cabul, pouco

depois das duas da manhã. Baba nunca diria uma coisa dessas, mas eu tinha certeza

que considerava os meus enjôos em viagens como mais uma das minhas tantas

fraquezas — percebi isso pela cara constrangida que fez nas vezes em que o meu

estômago se contraiu de tal forma que cheguei a gemer. Quando o sujeito forte com

as contas de oração — o marido da mulher que rezava — perguntou se eu estava

ficando enjoado, respondi que achava que sim. Baba olhou para o outro lado. O

homem levantou uma ponta da lona e bateu na janela do motorista, pedindo-lhe que

parasse. Mas o motorista, Karim, um moreno magricela com cara de falcão e um

bigodinho fino como um lápis, fez que não com a cabeça.

 

— Estamos perto demais de Cabul — respondeu ele. — Diga-lhe para segurar oestômago.

Meu pai resmungou alguma coisa bem baixinho. Quis lhe dizer que sentia

muito, mas, de repente, a minha boca ficou cheia de água e, lá do fundo da garganta,

começou a subir um gosto de bile. Virei de costas, ergui a lona e vomitei pela lateral

do caminhão em movimento. Atrás de mim, baba pedia desculpas aos outros

passageiros. Como se ficar enjoado fosse um crime. Como se alguém de dezoito anos

não pudesse mais ficar enjoado. Vomitei ainda duas vezes até que Karim concordou

em parar, principalmente para evitar que eu empesteasse o caminhão, seu

instrumento de trabalho. Karim era um contrabandista de gente — nessa época,

 

 

 

um negócio bastante lucrativo —, transportando pessoas que saíam da Cabul

ocupada pelos shorawi e deixando-as em relativa segurança no Paquistão. Estava

nos levando para Jalalabad, que fica a cerca de cento e setenta quilômetros a sudeste

de Cabul, e onde o seu irmão, Toor, que tinha um caminhão bem maior, estava

esperando, com um segundo comboio de refugiados, para nos conduzir através do

Passo Khyber até a cidade de Peshawar.

 

Estávamos a alguns quilômetros a oeste das cataratas Mahipar quando Karim

encostou na lateral da estrada. Mahipar — que significa "peixe voador" — é um pico

elevado, com um desfiladeiro que domina a barragem da hidrelétrica construída pelos

alemães em 1967. Baba e eu tínhamos vindo de carro até essa montanha milhares de

vezes, quando íamos para Jalalabad, a cidade dos ciprestes e das plantações de canade-

açúcar onde os afegãos costumam ir passar as férias de inverno.

 

Pulei da traseira do caminhão e fui cambaleando para o acostamento da estrada.

Minha boca ficou cheia de água, sinal da ânsia de vômito que estava por vir. Mal e

mal, consegui chegar à beira do penhasco que dominava o vale profundo agora oculto

pela escuridão. Inclinado para frente, com as mãos nos joelhos, fiquei esperando pela

bile. Em algum lugar, um galho de árvore estalou, uma coruja piou. Um vento frio e

brando balançava os arbustos espalhados pelo barranco, fazendo farfalhar a sua

folhagem. E, lá do fundo, subia o ruído distante da água que rolava pelo vale.

 

Parado ali na beira da estrada, lembrei de como tínhamos deixado a casa onde

passei a vida toda, como se estivéssemos saindo para comer alguma coisa: pratos sujos

de kofta empilhados na pia da cozinha; roupas na cesta de vime que ficava no saguão;

camas por fazer; os ternos de baba pendurados nos cabides. As tapeçarias

continuavam nas paredes da sala de visitas e os livros de minha mãe ainda estavam

amontoados nas estantes do escritório de baba. Os vestígios da nossa fuga eram

bastante sutis: o retrato do casamento de meus pais tinha desaparecido, bem como a

velha foto desbotada de meu avô, com o rei Nader Shah, de pé, junto do veado

morto. Faltavam algumas peças de roupas nos armários. O caderno de couro que

Rahim Khan tinha me dado cinco anos antes também sumiu.

 

Pela manhã, Jalaluddin — nosso sétimo empregado em cinco anos — com certeza

ia pensar que tínhamos saído para dar uma volta. Não contamos nada para ele. Já não

se podia confiar em mais ninguém em Cabul: em troca de dinheiro, ou sob ameaça,

todo mundo entregava todo mundo, vizinhos delatavam vizinhos, filhos delatavam

pais, irmão entregava irmão, empregado entregava patrão, amigo entregava amigo.

Lembrei do cantor Ahmad Zahir, que tinha tocado harmônio na festa do meu

aniversário de treze anos. Ele saiu de carro com uns amigos e, mais tarde, alguém

encontrou o seu corpo na beira da estrada, com uma bala na nuca. Os rafiqs, os

camaradas, estavam por toda parte e tinham dividido Cabul em dois grupos: aqueles

que bisbilhotavam a vida alheia e aqueles que não faziam isso. O problema era que

ninguém sabia quem pertencia a qual desses grupos. Um comentário qualquer, feito

para o alfaiate enquanto se experimenta um terno, podia levá-lo ao calabouço do

Poleh-Charkhi.

 

Reclame do toque de recolher, em uma conversa com o açougueiro e, quando

der por si, estará atrás das grades, de cara para o cano de um Kalashnikov. Até

mesmo durante o jantar, na privacidade das suas casas, as pessoas tinham que pensar

muito antes de falar, pois os rafiqs estavam também nas salas de aula, ensinando as

crianças a espionar os próprios pais, dizendo-lhes a que tipo de assunto deviam prestar

atenção e a quem ir contar o que sabiam.

 

 

 

O que é que eu estava fazendo naquela estrada, no meio da noite? Devia estar na

cama, debaixo das minhas cobertas, tendo, ao meu lado, um livro cheio de páginas

com as pontas dobradas. Isso tinha de ser um sonho. Só podia ser. Quando acordasse,

amanhã de manhã, chegaria na janela e não haveria nenhum soldado russo de cara

amarrada patrulhando as calçadas, nem tanques circulando para cima e para baixo

pelas ruas da minha cidade, com aquelas torres girando feito dedos acusadores; não

haveria escombros, nem toque de recolher, nem veículos do exército russo rodando

pelos mercados e transportando militares de um lado para o outro. Ouvi então, às

minhas costas, baba e Karim conversando, entre uma tragada e outra, sobre as

providências a serem tomadas em Jalalabad. Karim garantia que o seu irmão tinha um

caminhão bem grande, "excelente, de primeiríssima qualidade", e que a viagem até

Peshawar seria coisa absolutamente corriqueira.

 

— Ele pode levar vocês até lá de olhos fechados — afirmou Karim.

Continuou dizendo que ele e o irmão conheciam os soldados russos e afegãos que

trabalhavam nos postos de controle, e que tinham feito um trato "lucrativo para ambas

as partes". Não era sonho. De repente, como se obedecendo a uma deixa, o ruído

estridente de um MiG passando sobre nossas cabeças se fez ouvir. Karim jogou o

cigarro fora e tirou um revólver da cintura. Apontou a arma para o céu, fez gestos

como se estivesse atirando, cuspiu e xingou o avião russo.

 

Pensei em Hassan e me perguntei onde estaria. Aconteceu então o inevitável.

Vomitei em uma moita e o barulho que fiz foi abafado pelo ruído ensurdecedor do

MiG.

 

ENCOSTAMOS NO POSTO DE CONTROLE de Mahipar vinte minutos mais tarde. Nosso

motorista desligou o motor do caminhão e desceu para cumprimentar as vozes que se

aproximavam. Pés esmagavam cascalho. Disseram-se algumas palavras, breves e

sussurradas. Surgiu a luz de um isqueiro. "Spassiba."

 

Novamente o isqueiro. Alguém riu, um riso estridente que me assustou. A mão de

baba se apoiou com força na minha coxa. O homem que ria começou a cantar, uma

versão um tanto incompreensível e desafinada de uma velha cantiga de casamento

afegã, entoada com forte sotaque russo:

 

Ahesta boro, Mah-e-man, ahesta boro.

 

Vá devagar, minha linda lua, vá devagar.

 

Saltos de botas ressoaram no asfalto. Alguém entreabriu a lona que cobria a

carroceria do caminhão e pudemos ver três rostos. Um deles era Karim, os outros dois

eram soldados, um afegão, o outro, um russo sorridente, com cara de buldogue e um

cigarro pendendo do canto da boca. Atrás deles, uma lua esbranquiçada suspensa lá no

céu. Karim e o soldado afegão trocaram algumas palavras em pashtu. Consegui

entender pouca coisa — algo sobre Toor e o seu azar. O soldado russo meteu a

cabeça na traseira do caminhão. Continuava cantarolando aquela cantiga e

tamborilava na borda da carroceria. Mesmo com a pálida luz da lua, pude ver o olhar

um tanto baço que lançava a cada um dos passageiros. Apesar do frio, o suor lhe escorria

pela testa. Os seus olhos se detiveram na mulher que usava o xale preto. Disse algo em

russo a Karim, sem deixar de fitá-la. Karim lhe deu uma resposta curta, em russo, e ele

replicou de modo mais breve ainda. O soldado afegão também disse alguma coisa, em

 

 

 

voz baixa, parecendo ponderar. Mas o russo gritou algo que fez os dois outros homens

estremecerem. Pude sentir que meu pai se chegava mais para perto de mim. Karim

pigarreou e baixou a cabeça. Disse que o soldado queria meia hora com a mulher, ali na

traseira do caminhão.

 

A moça cobriu o rosto com o xale e caiu em prantos. O garotinho sentado no colo

do pai também começou a chorar. O rosto do marido ficou tão pálido quanto a lua lá

no alto. Pediu então a Karim que falasse com o "Senhor Soldado sahib" para que

tivesse um pouco de compaixão; quem sabe não tinha uma irmã ou mãe; talvez até

uma esposa. O russo ouviu o que Karim lhe disse e berrou um monte de palavras.

 

— E o preço que ele está pedindo para nos deixar passar — disse Karim, quenão conseguia ter forças para olhar o marido da moça nos olhos.

— Mas já pagamos um preço bem razoável. Ele está levando um bom dinheiro

nisso — retrucou o marido.

Karim e o russo falaram ainda um pouco mais.

 

— Ele está dizendo... está dizendo que todo preço inclui um imposto.

Foi quando meu pai fez menção de se levantar. E, agora, era minha vez de segurar a

sua perna. Mas ele tirou a minha mão, conseguindo se desvencilhar. Quando ficou de

pé, encobriu a luz da lua.

 

— Quero que pergunte uma coisa a esse homem — disse ele, dirigindo-se a

Karim, mas olhando diretamente para o oficial russo. — Pergunte a ele se não tem

vergonha na cara.

Os dois se falaram.

 

— Ele disse que isso é uma guerra. Não há vergonha na guerra.

— Pois diga-lhe que ele está redondamente enganado. A guerra não nega a

decência. Pelo contrário, exige isso, muito mais que os tempos de paz.

"Você precisa ser sempre o herói?", pensei eu com o coração aos pulos. "Não

pode deixar as coisas correrem soltas, ao menos uma vez na vida?" Mas sabia que

não; uma atitude como essa não estava em sua natureza. O problema é que a sua

natureza ia fazer com que fôssemos todos mortos.

 

O soldado russo disse algo a Karim, com um sorriso retorcendo os seus lábios.

 

— Agha sahib — disse Karim —, esses roussi não são como a gente. Não têm

a mínima idéia do que seja respeito, honra.

— O que foi que ele disse?

— Que vai ter tanto prazer em lhe meter uma bala quanto em...

Karim se afastou, mas fez um aceno com a cabeça para a moça que tinha

deixado o soldado tão interessado. O russo jogou fora o cigarro inacabado e sacou o

revólver. "Então é aqui que baba vai morrer?", pensei eu. "Vai ser desse jeito."

Mentalmente, comecei a rezar uma oração que tinha aprendido no colégio.

 

— Diga-lhe que vai ter que me dar milhares de tiros para que eu permita que

uma indecência como essas aconteça — disse meu pai.

A minha cabeça reviveu aquele dia de inverno, há seis anos. Eu, parado na esquina

do beco, espiando. Kamal e Wali mantendo Hassan deitado no chão. Os músculos do

traseiro de Assef se contraindo e relaxando, os seus quadris se movendo para frente e

para trás. Que grande herói eu tinha sido, só porque estava louco para ter aquela

pipa! Às vezes eu também me perguntava se era mesmo filho daquele homem.

 

O russo com cara de buldogue ergueu o revólver.

 

 

 

— Baba, por favor, sente-se — disse eu, puxando-o pela manga da camisa. —

Acho que esse sujeito pretende mesmo atirar em você.

 

Ele, porém, afastou a minha mão.

 

— Não lhe ensinei nada? — exclamou. E, voltando-se para o soldado

sorridente: — Diga-lhe que é melhor ele me matar com o primeiro tiro. Porque, se eu

não morrer, vou picá-lo em pedacinhos. Maldito seja o seu pai!

O sorriso do soldado russo não diminuiu em momento algum enquanto ouvia a

tradução do que meu pai tinha dito. Destravou o revólver. Mirou o peito de baba. Com

 

o coração pulando na garganta, escondi o rosto entre as mãos.

O revólver disparou.

"Pronto. Acabou. Tenho dezoito anos e estou sozinho. Não me resta mais

ninguém no mundo. Baba morreu e, agora, tenho que enterrá-lo. Onde vou enterrálo?

Para onde vou depois?"

 

Mas o turbilhão de pensamentos inacabados que girava em minha mente estancou

quando entreabri os olhos e meu pai ainda estava de pé à minha frente. Vi um segundo

oficial russo junto com os outros. Era do cano do seu revólver apontado para o alto

que saía fumaça. O soldado que pretendia atirar em baba já tinha guardado a arma

no coldre. Estava se afastando, arrastando os pés. Nunca tive tanta vontade de chorar

e de rir ao mesmo tempo.

 

O segundo oficial russo, um indivíduo grisalho e troncudo, falou conosco em um

farsi meio arrevesado. Pediu desculpas pelo comportamento do colega.

 

— A Rússia os mandou para cá para lutar — disse ele. — Mas não passam de

garotos e, quando chegam aqui, descobrem o prazer das drogas. — Lançou ao oficial

mais jovem um olhar consternado, como um pai exasperado com a má conduta do

filho. — Esse aí está viciado agora. Tenho tentado detê-lo...

E fez sinal para que fôssemos embora.

 

Minutos depois, o caminhão estava saindo do posto de controle. Ouvi uma risada

e, a seguir, a voz do primeiro soldado, pastosa e desafinada, cantando aquela velha

canção de casamento.

 

SEGUIMOS VIAGEM EM SILÊNCIO por cerca de quinze minutos, até que, de repente, o marido

da moça se levantou e fez algo que já tinha visto muitos outros fazerem antes: beijou

a mão de meu pai.

 

O AZAR DE TOOR. NÃO ERA ISSO que eu tinha ouvido naquela conversa lá em Mahipar? .

 

Chegamos a Jalalabad cerca de uma hora antes do nascer do sol. Karim nos levou

rapidamente do caminhão até uma casa térrea, que ficava no cruzamento de duas

estradas de terra ladeadas por outras casas como ela, pés de acácia e lojas fechadas.

Ergui a gola do casaco, tentando me proteger do frio, enquanto corríamos para a tal

casa carregando os nossos pertences. Por alguma razão, lembro de ter sentido cheiro

de rabanetes.

 

Quando já estávamos todos no aposento vazio e mal iluminado, Karim trancou a

porta da frente e fechou os lençóis esfarrapados que faziam as vezes de cortinas.

Depois, respirou fundo e nos deu a má notícia: seu irmão, Toor, não poderia nos levar

para Peshawar. Pelo que sabia, o motor do seu caminhão tinha estourado na semana

passada, e ele ainda estava esperando as peças para o conserto.

 

 

 

— Na semana passada? — exclamou alguém. — Se já sabia disso, por que nos

trouxe até aqui?

Com o canto do olho, percebi um movimento rápido. Depois, foi como se alguma

coisa tivesse passado correndo pela sala. O que vi a seguir foi Karim ser jogado de

encontro à parede, com os pés calçados de sandálias pendurados a mais de meio metro

do chão. Agarrando o seu pescoço estavam as mãos de baba.

 

— Vou lhe dizer por quê — esbravejou ele. — Porque foi pago para fazer essa

parte do percurso. Era só isso que lhe interessava.

Karim fazia uns sons guturais como se estivesse sufocando. Do canto da sua

boca escorria uma saliva espessa.

 

— Solte ele, agha, o senhor vai matá-lo — disse um dos passageiros.

— É exatamente o que pretendo fazer — replicou meu pai.

O que ninguém ali sabia era que ele não estava brincando. Karim começou a ficar

vermelho e a espernear. Baba continuou apertando o seu pescoço até que a jovem mãe,

aquela que tinha deixado o russo todo interessado, lhe implorou que parasse.

 

Quando meu pai finalmente o soltou, Karim despencou lá do alto e ficou se

revirando no chão, tentando desesperadamente respirar. A sala mergulhou em

silêncio. Há menos de duas horas, baba tinha se disposto a levar um tiro em nome da

honra de uma mulher que sequer conhecia. Agora, quase estrangulou um homem até a

morte, e teria estrangulado para valer se não fossem as súplicas da mesma mulher.

 

Ouvimos um barulho na porta. Não, não era naquela porta, era lá embaixo.

 

— O que é isso? — indagou alguém.

— São os outros — balbuciou Karim, ofegante. — No porão.

— Há quanto tempo estão esperando aí? — perguntou meu pai, parado junto

dele.

— Há duas semanas.

— Pensei ter ouvido você dizer que o caminhão quebrou na semana passada...

— Deve ter sido na semana anterior — disse Karim com a voz rouca,

esfregando a garganta.

— Quanto tempo?

— O quê?

— Quanto tempo ainda vai demorar para as peças chegarem? — rosnou baba.

Karim estremeceu, mas não disse nada. Fiquei feliz porque ali dentro estava

escuro. Não queria ver o olhar assassino no rosto de meu pai.

 

UM FEDOR DE UMIDADE, DE COISA MOFADA, penetrou por minhas narinas adentro quando

Karim abriu a porta que dava para a velha escada de madeira do porão. Descemos em

fila indiana. Os degraus rangeram sob o peso de baba. Parado naquele lugar frio, senti

que vários olhos piscando no escuro me observavam. Podia ver vultos amontoados

pelo cômodo, formas projetadas nas paredes pela luz fraca de duas lamparinas de

querosene. Um murmúrio se fez ouvir pelo porão; menos distinto ainda, havia o ruído

de água pingando em algum lugar e um outro barulho, um som rascante.

 

Baba suspirou às minhas costas, e pôs as malas no chão.

 

Karim disse que não levaria mais de dois dias até que o caminhão fosse

consertado. Aí, então, seguiríamos viagem para Peshawar. Para a liberdade. Para a

segurança.

 

 

 

Aquele porão foi a nossa casa durante toda a semana seguinte e, na terceira noite,

descobri de onde vinha aquele som rascante. Eram ratos.

 

QUANDO OS MEUS OLHOS SE ACOSTUMARAM à escuridão, contei uns trinta refugiados ali

embaixo. Ficávamos sentados, um bem junto do outro, encostados nas paredes;

comíamos biscoitos, pão com tâmaras e maçãs. Na primeira noite, todos os homens

rezaram em conjunto. Um dos refugiados perguntou a meu pai por que não se juntava

a eles.

 

— Deus vai nos salvar a todos. Por que não reza para ele?

Baba aspirou uma pitada de rapé. Esticou as pernas.

— O que vai nos salvar são oito cilindros e um bom carburador.

Desde então o resto dos homens se calou de uma vez por todas em termos de

Deus.

 

Foi depois da primeira noite que descobri que duas das pessoas escondidas ali

junto conosco eram Kamal e seu pai. Fiquei bastante chocado ao vê-lo sentado

naquele porão, a uns poucos metros de distância de onde eu estava. Mas quando os

dois vieram para mais perto de nós e vi o rosto de Kamal, vi de verdade...

 

Ele tinha murchado — não havia outra palavra para descrever aquilo. Fitou-me

com os olhos vazios e não havia neles o menor sinal de que tivessem me reconhecido. Os

seus ombros estavam encurvados, e as suas bochechas, caídas, como se estivessem

cansadas demais para aderir aos ossos que ficavam ali atrás. O pai dele, que era dono

de um cinema em Cabul, estava contando a baba que, há três meses, uma bala perdida

tinha atingido a sua esposa no templo, matando-a. Depois, começou a falar de Kamal.

Só pude ouvir uns fragmentos do que ele dizia: "Nunca deveria ter deixado ele ir

sozinho... sempre tão bonito, sabe... eram quatro... tentou lutar... Deus... pegaram

ele... sangrando lá embaixo... as calças dele... nunca mais falou... fica só olhando

fixo..."

 

O CAMINHÃO NÃO VIRIA. Foi o que nos disse Karim, depois que já tínhamos passado uma

semana naquele porão infestado de ratos. O caminhão não tinha conserto.

 

— Mas há uma outra possibilidade — acrescentou, erguendo a voz acima dos

gemidos. Um primo dele tinha um caminhão-tanque e já havia transportado gente

algumas vezes. Estava em Jalalabad e talvez pudesse nos levar a todos.

Todo mundo decidiu ir, exceto um casal mais idoso.

Partimos naquela mesma noite, baba e eu, Kamal e o pai, os outros todos. Karim

e

 

 

o primo, um homem meio calvo, de cara quadrada, chamado Aziz, nos ajudaram a

entrar no tanque de combustível. Um a um, íamos trepando no estribo traseiro do

caminhão, subíamos a escadinha de acesso e deslizávamos para dentro do tanque.

Lembro que meu pai parou no meio da escada, pulou de novo para o chão e tirou a

caixa de rapé do bolso. Esvaziou a caixinha e apanhou um punhado de terra no meio

da estrada que não era asfaltada. Beijou a terra. Encheu com ela a caixinha. Voltou a

guardá-la no bolso da camisa, bem junto do coração.

PÂNICO.

 

Você abre a boca. Abre tanto que as mandíbulas chegam a estalar. Manda que os

seus pulmões puxem o ar, AGORA; você está precisando de ar, precisando AGORA. Mas as

 

 

 

suas vias respiratórias ignoram o seu comando. Entram em colapso, se estreitam, se

contraem e, de repente, você está respirando através de um canudinho de refrigerante.

A sua boca se fecha e os seus lábios se enrugam, e tudo que você consegue fazer é

soltar um som rouco, estrangulado. As suas mãos tremem e se contorcem. Em algum

lugar, as comportas se abriram e uma enxurrada de suor frio transborda, encharcando

todo o seu corpo. Você quer gritar. Gritaria, se pudesse. Mas, para gritar, é preciso

respirar.

 

Pânico.

 

Era bem escuro lá no porão. Mas o tanque do caminhão era um verdadeiro

breu. Olhei para a esquerda, para a direita, para cima, para baixo, abanei as mãos

diante dos olhos, e o máximo que consegui foi ter uma vaga noção de movimento.

Pisquei os olhos; pisquei de novo. Absolutamente nada. O ar ali dentro não era

normal: era espesso demais, quase sólido. E o ar não é para ser uma coisa sólida, Quis

estender os braços, estilhacei o ar em mil caquinhos que se enfiaram pela minha

traquéia abaixo. Ainda por cima, tinha o fedor da gasolina. Os meus olhos estavam

ardendo, como se alguém tivesse virado as minhas pálpebras pelo avesso e esfregado

limão nelas. A cada respiração, o meu nariz pegava fogo. "Você pode morrer em um

lugar como este", pensei. Um grito já vinha subindo pela minha garganta. Subindo,

subindo...

 

E, de repente, um pequeno milagre. Meu pai deu um puxão na manga da minha

camisa e surgiu uma luzinha verde na escuridão. Luz! O relógio de pulso de baba.

Fiquei com os olhos pregados naqueles ponteiros de um verde fluorescente. Estava

com tanto medo de perdê-los que nem ousava piscar.

 

Pouco a pouco, fui me dando conta do que havia à minha volta. Ouvi gemidos e

preces murmuradas. Ouvi um choro de criança e a mãe que a acalmava baixinho.

Alguém teve ânsia de vômito. Alguém amaldiçoou os shorawi. O caminhão ia

sacolejando, de um lado para o outro, para cima e para baixo. Cabeças se

chocavam contra o metal.

 

— Pense em alguma coisa boa — cochichou baba em meu ouvido. — Em alguma

coisa feliz.

Alguma coisa boa. Alguma coisa feliz. Deixei que a minha mente vagasse. Deixei

que as lembranças fossem vindo.

Sexta-feira à tarde, em Paghman. Um campo de relva verde, salpicado de

amoreiras em flor. Hassan e eu parados ali, com as pernas enterradas no mato até os

tornozelos. Eu estou puxando a linha, o carretel vai girando nas mãos calejadas de

Hassan, e ambos temos os olhos voltados para a pipa lá no céu. Não trocamos uma

palavra; não porque não tenhamos nada a dizer, mas porque não precisamos dizer nada

 

— é assim que acontece com as pessoas para quem a outra é a lembrança mais remota;

com pessoas que mamaram do mesmo leite. Um vento faz o mato ondular e Hassan

libera o carretel. A pipa rodopia, mergulha, se firma. As nossas sombras gêmeas

dançam naquela relva ondulante. Vindo de algum lugar, além da mureta de tijolos que

fica do outro lado do campo, ouvimos vozes e risos, e o barulhinho de um chafariz. E

música, algo antigo e familiar. Acho que é "Ya Mowlah", tocada nas cordas do rubab.

Por cima do muro, alguém nos chama, dizendo que está na hora de ir tomar chá com

bolo.

Não me lembrava que mês era, nem mesmo que ano. Só sei que aquela

lembrança vivia dentro de mim como um pedaço gostoso de passado, perfeitamente

 

 

 

encapsulado; uma pincelada de cores naquela tela cinzenta e árida que as nossas vidas

tinham se tornado.

 

O RESTO DA VIAGEM SÃO APENAS PEDAÇOS esparsos de lembranças que vêm e vão, em sua

maioria constituídos de sons e de cheiros: o ronco dos MiGs passando por sobre nossas

cabeças; os staccatos de artilharia; um burro zurrando em algum lugar; o tilintar de

sinos e o balido de carneiros; cascalho esmagado pelos pneus do caminhão; um bebê

choramingando no escuro; o fedor de gasolina, vômito e merda.

 

Depois, o que me lembro mesmo é da luz ofuscante do amanhecer quando saí

daquele tanque de combustível. Lembro de ter virado o rosto para o céu, semicerrando

os olhos, respirando como se o mundo estivesse com falta de ar. Deitei na beira da

estrada de terra, perto de um riacho pedregoso, e fiquei olhando para o céu

acinzentado da manhã, dando graças pelo ar, dando graças pela luz, dando graças por

estar vivo.

 

— Agora, estamos no Paquistão, Amir — anunciou meu pai, de pé junto de

mim. — Karim disse que vai pedir um ônibus para nos levar até Peshawar.

Virei de bruços, sem me levantar da terra fria, e vi as nossas malas de ambos os

lados dos pés de baba. Pelo V invertido formado pelas suas pernas, vi o caminhão

parado na beira da estrada e os outros refugiados descendo pela escada traseira.

Mais adiante, a estrada seguia em meio a campos que mais pareciam lençóis de

chumbo sob aquele céu cinzento e ia desaparecer por detrás de uma fileira de colinas

arredondadas. A meio caminho, passava por um mísero vilarejo encarapitado no topo

de um morro estorricado.

 

Os meus olhos voltaram então para as nossas malas. Fiquei com pena de meu

pai. Depois de tudo o que construiu, planejou, sonhou; depois do tanto que lutou e se

esforçou para conseguir o que queria, era àquilo que toda a sua vida se resumia: um

filho que era uma decepção, e duas malas.

 

Alguém estava gritando. Gritando, não, se lamentando. Vi os passageiros

amontoados em um círculo, ouvi a agitação em suas vozes. Alguém disse a palavra

"exalações". Alguém mais disse a mesma coisa. Os lamentos se transformaram em um

berro dilacerante.

 

Baba e eu corremos até aquele amontoado de curiosos e abrimos caminho por

entre eles. No meio do círculo, o pai de Kamal estava sentado no chão, com as

pernas cruzadas, balançando o corpo para frente e para trás, beijando o rosto terroso

do filho.

 

— Ele não está conseguindo respirar! O meu menino não está conseguindo

respirar! — repetia ele aos prantos. Em seu colo, jazia o corpo sem vida de Kamal. A

sua mão direita, aberta e frouxa, se sacudia ao ritmo dos soluços do pai. — O meu

menino! Ele não está respirando! Allah, ajude-o a respirar!

Baba se ajoelhou ao seu lado e passou-lhe o braço nos ombros. Mas o pai de

Kamal o afastou e investiu contra Karim, que estava parado ali ao lado, junto com o

primo. Depois, tudo aconteceu tão depressa, e foi tão rápido que nem se pode dizer

que tenha sido uma briga. Tomado de surpresa, Karim deu um grito e recuou. Vi um

braço girando, uma perna chutando. Um minuto mais tarde, o pai de Kamal estava

de pé, segurando na mão o revólver de Karim.

 

— Não me mate! — gritou Karim.

 

 

Mas, antes que alguém pudesse dizer ou fazer alguma coisa, o pai de Kamal

enfiou o cano da arma na própria boca. Nunca vou me esquecer do eco daquele

disparo. Nem do clarão de luz e do sangue espirrando.

 

Me curvei novamente e tentei vomitar na beira da estrada, mas não tinha nada

no estômago.

 

 

 

ONZE

 

 

Fremont, Califórnia, década de 1980

 

BABA ADORAVA A IDÉIA da América.

 

Morar nos Estados Unidos lhe valeu uma úlcera.

 

Lembro de nós dois passeando pelo parque do lago Elizabeth, em Fremont, a

algumas quadras do nosso apartamento, olhando os meninos que praticavam

arremessos de beisebol e as meninas que riam e brincavam nos balanços. Ele

aproveitava esses passeios para tentar me instruir em termos de política, alongando-se

em dissertações chatíssimas.

 

— Só existem três povos nesse mundo que são homens de verdade, Amir — dizia

ele. E os contava nos dedos: — os americanos, esses heróis fanfarrões; os britânicos e

os israelenses. Todo o resto — e, ao dizer isso, costumava fazer um gesto com a mão,

acompanhado de um "pfff" — não passa de velhotas mexeriqueiras.

A referência a Israel deixava os afegãos de Fremont enfurecidos e todos o

acusavam de ser pró~judeus e, portanto, antiislã. Meu pai ia sempre se encontrar com

eles no parque, para tomar chá com bolo de rowt, e os levava à loucura com as suas

idéias sobre política.

 

— O que eles não conseguem entender — era o que me dizia mais tarde — é que

isso não tem nada a ver com religião.

Na concepção de baba, Israel era uma ilha de "homens de verdade" em um mar

de árabes que, de tão ocupados que estavam em lucrar com o petróleo, acabavam

esquecendo de si mesmos.

 

— Israel faz isso, Israel faz aquilo — dizia ele, imitando o sotaque árabe. — Pois

então, tomem alguma atitude a este respeito! Partam para a ação. Vocês são árabes.

Pois tratem de ajudar os palestinos!

Detestava Jimmy Carter, a quem chamava "aquele dentuço cretino". Em 1980,

quando ainda estávamos em Cabul, os Estados Unidos anunciaram que iam boicotar os

Jogos Olímpicos de Moscou.

 

— Bah! — exclamou ele enojado. — Brejnev está massacrando os afegãos e tudo

o que esse comedor de amendoim sabe dizer é "não vou nadar na sua piscina"...

Baba estava persuadido de que Carter tinha, deliberadamente, feito mais pelo

comunismo do que Leonid Brejnev.

 

— Ele não é o homem ideal para comandar esse país. E como pôr um menino

que nem sabe andar de bicicleta ao volante de um Cadillac novinho em folha — dizia.

 

 

Segundo ele, os Estados Unidos e o mundo precisavam mesmo era de um homem

enérgico. Um homem com quem todos pudessem contar; alguém que agisse em vez de

ficar trocando apertos de mão. Esse alguém surgiu na pessoa de Ronald Reagan. E,

quando Reagan apareceu na TV chamando os shorawi de "Império do Mal", meu

pai foi para a rua e comprou um retrato do presidente sorrindo, com os polegares para

cima. Mandou emoldurar o retrato para instalá-lo no corredor, pendurado bem ao

lado da velha foto em preto-e-branco onde ele próprio aparecia, usando uma

gravatinha fina, apertando a mão do rei Zahir Shah. Quase todos os nossos vizinhos em

Fremont eram motoristas de ônibus, policiais, frentistas de postos de gasolina e mães

solteiras vivendo com a ajuda da seguridade social; exatamente o tipo de trabalhadores

que em breve estaria sufocando com a política econômica do governo Reagan que os

obrigaria a apertar os cintos. Meu pai era o único republicano no prédio em que

morávamos.

 

Mas a neblina da região da baía de San Francisco fazia os seus olhos arderem, o

barulho do trânsito lhe dava dor de cabeça e o pólen o deixava tossindo. As frutas

nunca eram doces o bastante, a água nunca era limpa o bastante, e onde estavam todas

as árvores e espaços ao ar livre? Durante dois anos, tentei convencer baba a se

inscrever no ESL, para melhorar o seu inglês arrevesado. Mas ele debochava da idéia.

 

— Quem sabe não vou soletrar direitinho a palavra "cat" e a professora vai

me dar uma estrelinha cintilante? Assim, vou poder voltar correndo para casa e

exibi-la para você — resmungava.

Em um domingo da primavera de 1983, fui até uma pequena livraria que vendia

livros de segunda mão, perto do cinema indiano, quase na esquina da Amtrak com o

Fremont Boulevard. Disse a baba que estaria de volta em cinco minutos e ele deu de

ombros. Estava trabalhando em um posto de gasolina em Fremont e era seu dia de

folga. Vi quando atravessou o Fremont Boulevard fora do sinal e entrou na Fast &

Easy, a pequena mercearia do sr. e da sra. Nguyen, um casal vietnamita já mais idoso.

Eram duas criaturas grisalhas e bem gentis; ela sofria do mal de Parkinson, ele tinha

uma prótese na bacia.

 

— Agora, ele é como o "Homem de Seis Milhões de Dólares" — dizia ela,

rindo com a boca banguela. — Lembra do "Homem de Seis Milhões de Dólares",

Amir?

Então, o sr. Nguyen fazia uma cara fechada, imitando Lee Majors, e fingia correr

em câmera lenta.

 

Estava folheando um velho exemplar de um romance de mistério de Mike

Hammar quando ouvi gritos e barulho de vidro se quebrando. Larguei o livro e

atravessei a rua correndo. Encontrei o casal abraçado atrás do balcão, colado na

parede dos fundos e com o rosto lívido. Pelo chão, laranjas, um porta-revistas

derrubado, um frasco de conserva quebrado e muitos cacos de vidro perto dos pés de

meu pai.

 

Acabei descobrindo que baba não tinha dinheiro suficiente para comprar laranjas.

Fez então um cheque, e o sr. Nguyen lhe pediu um documento de identidade.

 

— Ele está querendo ver a minha carteira de motorista — disse baba em farsi,

aos berros. — Há quase dois anos que compramos essas malditas frutas e botamos

dinheiro no bolso dele, e, agora, esse filho-da-mãe vem me pedir um documento!

— Não é nada pessoal, baba — disse eu, sorrindo para o casal Nguyen. — É

praxe pedir um documento de identidade.

 

 

— Não quero mais o senhor por aqui — disse o sr. Nguyen, dando um passo à

frente, para deixar a esposa atrás de si, e apontando para baba com a bengala.

Virando-se então para mim, acrescentou: Você é um bom rapaz, mas seu pai é louco.

Não é mais bem-vindo na nossa loja.

— Ele está achando que sou um ladrão? — indagou baba erguendo a voz. Já tinha

juntado gente do lado de fora. Todos estavam olhando para nós. — Afinal, que tipo de

país é esse? Ninguém confia em ninguém!

— Vou chamar a polícia — disse a sra. Nguyen, mostrando só o rosto por

detrás do marido. — Ou o senhor sai daqui ou chamo a polícia.

— Por favor, sra. Nguyen, não chame a polícia. Vou levá-lo para casa. Mas não

chame a polícia, está bem? Por favor.

— Isso mesmo. Leve-o para casa. Boa idéia — disse o sr. Nguyen. Por detrás das

lentes bifocais na armação metálica, os seus olhos não se afastavam de meu pai.

Saí porta afora levando baba comigo. No caminho, ele ainda chutou uma revista

caída no chão. Depois de fazer ele me prometer que não iria mais lá, voltei à loja para

pedir desculpas ao casal Nguyen. Disse-lhes que meu pai estava atravessando um

período difícil. Dei o nosso endereço e o nosso telefonei sra. Nguyen, e lhe pedi que

calculasse os prejuízos.

 

— Por favor, telefone assim que souber quanto é tudo. Faço questão de

pagar, sra. Nguyen. Lamento muitíssimo.

Ela pegou o papel da minha mão e assentiu com um aceno de cabeça. Vi que as

suas mãos tremiam mais que de costume e fiquei furioso com baba por deixar uma

senhora idosa naquele estado.

 

— Meu pai ainda está se habituando à vida nos Estados Unidos — disse eu à

guisa de explicação.

Gostaria de lhes contar que, em Cabul, pegávamos um galho de árvore e

usávamos aquilo como se fosse um cartão de crédito. Hassan e eu levávamos aquele

galhinho até a padaria. O padeiro ia fazendo marcas na vareta com uma faca e cada

uma delas correspondia a um naan que ele tirava para nós das chamas que rugiam no

tandoor. No fim do mês, meu pai lhe pagava pela quantidade de marcas feitas na vareta.

Era só isso. Sem perguntas. Sem documentos de identidade.

 

Mas não disse nada. Agradeci ao sr. Nguyen por não ter chamado os tiras. Levei

meu pai para casa. Ele ficou todo aborrecido, fumando na varanda, enquanto fui

preparar arroz com guisado de pescoço de galinha. Já fazia um ano e meio que

tínhamos desembarcado do Boeing vindo de Peshawar, e ele ainda estava se

adaptando.

 

Naquela noite, comemos em silêncio. Depois de duas garfadas, baba empurrou o

prato.

 

Olhei para ele, ali, do outro lado da mesa, com as unhas lascadas e sujas de graxa,

as juntas esfoladas, e, nas roupas, os cheiros do posto: poeira, suor e gasolina. Baba era

como aqueles viúvos que voltam a se casar, mas que não conseguem se livrar da esposa

falecida. Sentia falta das plantações de cana-de-açúcar de Jalalabad e dos jardins de

Paghman. Sentia falta do entra-e-sai das pessoas que freqüentavam a nossa casa, dos

passeios pelo alvoroço das alamedas do Shor Bazaar, cumprimentando gente que o

conhecia, mas que também tinha conhecido o seu pai e o seu avô; pessoas que

compartilhavam com ele dos mesmos ancestrais, cujo passado estava interligado ao

seu.

 

 

 

Para mim, os Estados Unidos eram o lugar onde podia enterrar as minhas

lembranças.

 

Para meu pai, uma vida de luto pelas suas.

 

— Quem sabe não seria melhor voltarmos para Peshawar? — sugeri eu, olhando

para o gelo que boiava no meu copo de água. Tínhamos ficado seis meses por lá,

esperando que o serviço de imigração liberasse os nossos vistos. Nosso mísero

apartamento de quarto-e-sala fedia a meias sujas e a mijo de gato, mas estávamos

cercados de gente conhecida, pelo menos gente que meu pai conhecia. Ele convidava

o corredor inteiro para jantar, em sua maioria afegãos à espera de vistos. Alguém

acabava inevitavelmente trazendo um par de tablas e alguém mais, um harmônio.

Preparava-se chá e qualquer pessoa que tivesse um pouco de voz cantava até o sol

raiar. Ninguém mais ouvia o zumbido dos mosquitos e as palmas iam ficando cada vez

mais exaltadas.

— Lá você era mais feliz, baba. Era mais parecido com a nossa terra — disse

eu.

— Peshawar era bom para mim. Não para você.

— Aqui você trabalha tanto...

— Já não é tão ruim agora — disse ele, fazendo alusão ao fato de ter se tornado o

gerente do posto no turno do dia.

Mas eu via como fazia caretas e esfregava os pulsos nos dias mais úmidos. Como

 

o suor lhe banhava a testa quando estendia a mão para pegar o frasco de antiácido

depois das refeições.

— Além disso — acrescentou —, não foi por mim que eu nos trouxe para cá,

foi?

Estiquei o braço e pus a mão sobre a sua. Minha mão de estudante, limpa e macia,

na sua mão de trabalhador, áspera e calejada. Lembrei de todos os caminhões, trens

elétricos e bicicletas que comprou para mim lá em Cabul. Agora, era a América. Um

último presente para Amir.

 

Fazia apenas um mês que tínhamos chegado aos Estados Unidos quando meu pai

conseguiu um emprego no Washington Boulevard, como frentista em um posto de

gasolina de propriedade de um afegão conhecido nosso. Na própria semana em que

chegamos, ele começou a procurar emprego. Durante seis dias por semana, enfrentava

turnos de doze horas pondo gasolina nos carros, acionando a caixa registradora,

fazendo troca de óleo e lavando pára-brisas. Às vezes eu ia até lá levar o seu almoço.

Via baba, com o rosto carregado e pálido sob a luz brilhante das lâmpadas

fluorescentes, apanhando um maço de cigarros para um cliente que esperava do outro

lado do balcão manchado de óleo. A sineta eletrônica da porta tilintava quando eu

entrava e ele olhava para trás, acenava e sorria para mim, com os olhos lacrimejando

de cansaço.

 

No dia mesmo em que foi contratado, fomos procurar a funcionária encarregada

do nosso dossiê na seguridade social. A sra. Dobbins era uma mulher negra e gorda,

com olhos brilhantes e covinhas quando sorria. Certa vez, disse que cantava na

igreja, e acreditei, pois tinha uma voz que me fazia pensar em leite morno com mel.

Baba pôs a pilha de tíquetes-alimentação em cima da escrivaninha, à sua frente.

 

— Obrigado, mas não quero isso — disse ele. — Trabalho sempre. Trabalhei no

Afeganistão, trabalho nos Estados Unidos. Muito obrigado, sra. Dobbins, mas não

gosto de dinheiro dado de graça.

 

 

A sra. Dobbins piscou, incrédula. Pegou os tíquetes-alimentação, olhou para meu

pai e para mim como se estivéssemos brincando, ou "de gozação com ela", como

dizia Hassan.

 

— Há quinze anos que trabalho com isso — disse ela — e nunca tinha visto

alguém fazer uma coisa como essa.

E foi assim que baba pôs um fim àqueles momentos de humilhação, quando

tínhamos que apresentar os tíquetes na caixa registradora, e, com isso, abrandou um

dos seus maiores medos: que algum afegão o visse comprando comida com dinheiro

dado de esmola. Ele saiu do escritório da previdência como um homem curado de um

tumor.

 

NAQUELE VERÃO DE 1983, TERMINEI O segundo grau, aos vinte anos de idade e, com isso,

era de longe o mais velho entre os estudantes que ficaram agitando os capelos naquele

dia, ali no campo de futebol americano. Lembro que perdi meu pai de vista em meio

àquele monte de famílias, flashes de máquinas fotográficas e becas azuis. Fui localizá-lo

perto da linha das vinte jardas, com as mãos enfiadas nos bolsos e a câmera

pendurada no pescoço. Desaparecia e voltava a aparecer por detrás das pessoas que se

moviam entre nós: meninas vestidas de azul, gritando e chorando entre abraços,

garotos comemorando ruidosamente com seus pais. A barba de baba estava ficando

grisalha, os seus cabelos começavam a rarear nas têmporas, e, será que, lá em Cabul,

ele não era mais alto? Estava usando um terno marrom — seu único terno, aquele

mesmo que usava para ir a casamentos e enterros no Afeganistão — e a gravata

vermelha que eu tinha comprado para lhe dar de presente esse ano, quando fez

cinqüenta anos. Então ele me viu e acenou para mim. Fez sinal para que eu pusesse o

capelo e tirou uma foto, com a torre do relógio da escola como pano de fundo. Sorri

para ele — de uma certa forma, esse dia era mais dele do que meu. Depois, veio

caminhando até onde eu estava, passou o braço em meu pescoço e me deu um único

beijo na testa.

 

— Estou moftakhir, Amir — exclamou.

Orgulhoso. Os seus olhos brilharam quando disse isso e fiquei feliz por ser o

ponto para onde aquele olhar se dirigia.

Naquela noite, ele me levou a um restaurante afegão especializado em kabob, que

ficava em Hayward, e pediu uma quantidade enorme de comida. Disse ao dono do

lugar que o filho dele estava indo para a universidade no outono. Tínhamos discutido

rapidamente o assunto um pouco antes da formatura, e eu lhe disse que queria arranjar

emprego. Trabalhar por algum tempo, juntar algum dinheiro e, quem sabe, ir para a

universidade no ano que vem. Mas ele me lançou um daqueles seus olhares

fulminantes e as palavras se evaporaram na minha boca.

 

Quando acabamos de jantar, baba me levou para um bar que ficava do outro

lado da rua. O lugar era meio escuro e o cheiro acre de cerveja, que sempre detestei,

transpirava das paredes. Homens usando bonés de beisebol e camisetas tipo regata

jogavam sinuca; nuvens de fumaça de cigarros pairavam acima das mesas verdes,

rodopiando na luz fluorescente. Todos os olhos se voltaram para nós, baba em seu

terno marrom e eu de calça social e paletó esportivo. Sentamos nos bancos do bar,

perto de um velho cujo rosto macilento ficava ainda mais pálido sob a luz azulada do

letreiro de Michelob pendurado ali em cima. Baba acendeu um cigarro e pediu

cerveja para nós dois.

 

 

 

— Estou felicíssimo esta noite — anunciou ele para quem quisesse ouvir. — Hoje

vou beber com meu filho. E uma também para o amigo aqui — acrescentou, dando um

tapinha nas costas do velho que levou a mão ao chapéu e sorriu. Não tinha os dentes

de cima.

Baba esvaziou o copo com três goles e pediu mais uma cerveja. Já tinha tomado

três enquanto eu, com o maior esforço, tinha tomado um quarto da minha. A essa

altura, ele já tinha pedido um uísque para o velho e convidado uns quatro jogadores

de sinuca para uma caneca de Budweiser. Os homens o cumprimentavam e batiam

nas suas costas. Fizeram um brinde a ele. Alguém acendeu o seu cigarro. Baba

afrouxou a gravata e deu ao velho um punhado de quarters. Apontou para o jukebox.

 

— Diga-lhe que pode pôr as suas músicas favoritas — disse ele, dirigindo-se a

mim.

O velho assentiu com a cabeça e lhe bateu continência. Em poucos minutos, a

música country ecoava pela sala e, assim, sem mais nem menos, baba tinha começado

uma festa.

 

Lá pelas tantas, ele se levantou, ergueu o copo, respingando cerveja pelo chão

recoberto de serragem, e berrou:

 

— Que a Rússia se foda!

O bar inteiro riu, e as sonoras gargalhadas ecoaram por toda parte. Então ele

pagou mais uma rodada de canecas para todo mundo.

Quando resolvemos ir embora, ninguém queria vê-lo sair dali. Cabul, Peshawar,

Hayward. "O mesmo velho baba", pensei, sorrindo.

Eu é que fui dirigindo o velho Buick Century amarelo-ocre de meu pai. Ele

cochilou durante todo o trajeto, roncando como uma britadeira. Dava para sentir o

cheiro de tabaco e de álcool, doce e pungente. Mas, quando parei o carro, sentou bem

aprumado e disse, com voz rouca:

 

— Continue dirigindo até o fim do quarteirão.

— Por quê, baba?

— Ande, vá.

Mandou que eu estacionasse na extremidade sul da rua. Meteu a mão no bolso

do casaco, tirando de lá um chaveiro.

 

— É esse aí — disse ele, apontando para o carro que estava bem à nossa frente.

Era um Ford, modelo antigo, grande e largo, de uma cor escura que não pude

distinguir à luz da lua. — Está precisando de pintura, e um dos rapazes lá do posto

vai instalar amortecedores novos, mas funciona muito bem.

Peguei as chaves, atônito. Fiquei olhando para o carro e para ele.

 

— Vai precisar de um carro para ir para a universidade — disse ele.

Segurei a sua mão. Apertei com força. Os meus olhos estavam cheios de

lágrimas, e achei ótimo que estivesse escuro e não desse para ver os nossos rostos.

 

— Obrigado, baba.

Saímos do carro e sentamos no Ford. Era um "Grand Torino". Azul-marinho,

segundo meu pai. Dei a volta no quarteirão, testando os freios, o rádio, o pisca-pisca.

Parei no estacionamento do nosso prédio e desliguei o motor.

 

— Tashakor, baba jan — disse eu.

Queria dizer mais, queria dizer a ele como estava emocionado com aquele seu gesto

tão carinhoso; agradecer por tudo o que tinha feito por mim, e tudo o que continuava a

fazer. Mas sabia que ia deixá-lo sem jeito. Em vez disso, repeti:

 

 

 

— Tashakor.

Ele sorriu e se recostou no banco, com a cabeça quase batendo no teto. Não

dissemos nada. Só ficamos ali sentados, no escuro, ouvindo o barulhinho do motor

esfriando, o ruído de uma sirene ao longe. Então, ele se virou para mim e disse:

 

— Gostaria que Hassan estivesse aqui conosco hoje.

Punhos de aço se fecharam apertando a minha garganta ao simples som do nome

de Hassan. Baixei o vidro da janela. Fiquei esperando que aquelas mãos de aço

afrouxassem a pressão que faziam.

 

IA ME MATRICULAR NO CURSO BÁSICO no próximo outono. Disse isso a baba no dia

seguinte à festa de formatura. Ele estava tomando chá preto gelado e mastigando

sementes de cardamomo, seu antídoto mais garantido contra a dor de cabeça da

ressaca.

 

— Acho que vou fazer inglês — acrescentei. Estava tremendo por dentro,

esperando a resposta dele.

— Inglês?

— Redação literária.

Ele pareceu refletir. Tomou um gole de chá.

— Quer dizer histórias. Você vai criar histórias..

.

Fiquei de olhos baixos, fitando os meus pés.

— Isso dá dinheiro, inventar histórias?

— Se você for bom — disse eu, — E se alguém o descobrir.

— E isso acontece mesmo, de alguém ser descoberto?

— Acontece.

Ele assentiu com um gesto.

— E o que vai fazer enquanto espera até ser bom e ser descoberto? Como vai

ganhar dinheiro? Se você se casar, como vai sustentar a sua khanum?

Não conseguia erguer os olhos para fitá-lo.

 

— Vou... arranjar um emprego — balbuciei.

— Ah! — disse ele. — Wah wah! Então, se entendi bem, você vai estudar

vários anos para ter um diploma e, depois, vai arranjar um emprego chatti, como o

meu, o tipo de emprego que poderia perfeitamente arranjar hoje mesmo. E tudo isso

apostando na chance remota de que o seu diploma possa um dia ajudá-lo a ser...

descoberto. — Respirou fundo e tomou um gole do seu chá. Resmungou alguma

coisa sobre faculdade de medicina, de direito, e "trabalho de verdade".

O meu rosto estava pegando fogo e me sentia imensamente culpado, culpado por

me permitir fazer o que queria à custa da sua úlcera, das suas unhas pretas e dos seus

pulsos doloridos. Mas ficaria firme, decidi. Não queria mais me sacrificar por baba. A

última vez que fiz isso tinha sido a minha desgraça.

 

Ele suspirou e, desta vez, enfiou na boca um punhado de sementes de cardamomo.

 

ÀS VEZES, SENTO AO VOLANTE DO MEU FORD, baixo os vidros das janelas e fico horas

dirigindo; vou para um dos lados da baía, e, depois, para o outro; vou até a península,

e volto. Dirijo pelas ruas margeadas de choupos do nosso bairro, em Fremont, onde

pessoas que jamais tinham apertado mãos de reis moravam em míseras casas térreas

com grades nas janelas; onde carros tão velhos quanto o meu vazavam óleo pelas ruas

 

 

 

asfaltadas; onde brinquedos, pneus carecas e garrafas de cerveja sem rótulos se

amontoavam nos gramados mal cuidados. Passo pelos parques arborizados que têm

cheiro de cortiça; passo por centros comerciais que são grandes o bastante para

comportar cinco torneios de buzkashi ao mesmo tempo. Vou dirigindo o meu Torino

pelas colinas de Los Altos, passando bem devagar diante de mansões com grandes

janelas panorâmicas e leões prateados guardando os portões de ferro, chafarizes com

figuras de querubins nas bordas das alamedas impecáveis, e onde não se vêem Fords

Torino pelas ruas. Mansões que fariam a casa de meu pai, em Wazir Akbar Khan,

parecer uma cabana de criados.

 

Alguns sábados de manhã, acordava cedo, pegava a auto-estrada 17, em direção

ao sul, e embicava o meu Ford pela estrada sinuosa das montanhas rumo a Santa Cruz.

Parava perto do velho farol e ficava esperando o nascer do sol, sentado no carro e

olhando a neblina que vinha subindo do mar. Enquanto vivia no Afeganistão, só tinha

visto o oceano no cinema. Sentado, no escuro, ao lado de Hassan, sempre fiquei

intrigado me perguntando se seria verdade o que tinha lido: que o ar do mar tinha

cheiro de sal. Dizia para Hassan que algum dia íamos passear por uma praia cheia de

algas marinhas; enfiaríamos os pés na areia e ficaríamos olhando a água ir se afastando

dos nossos dedos. A primeira vez que vi o Pacífico, quase gritei. Ele era tão imenso e

tão azul quanto os oceanos das telas do cinema da minha infância.

 

Às vezes, ao anoitecer, parava o carro e subia em um viaduto de uma via

expressa. Com o rosto colado na cerca, tentava contar as luzinhas vermelhas das

lanternas traseiras que iam se afastando, se estendendo até onde a minha vista

alcançava. Eram BMWs. Saabs. Porsches. Carros que jamais tinha visto em Cabul,

onde a maioria das pessoas dirigia Volgas russos, velhos Opels ou Paikans iranianos.

 

Já tinham se passado quase dois anos desde que chegamos aos Estados Unidos e

eu ainda ficava deslumbrado com o tamanho desse país, com a sua imensidão. Além

de cada via expressa, tinha outra via expressa; além de cada cidade, outra cidade;

colinas além das montanhas e montanhas além das colinas, e, depois delas, mais

cidades e mais gente.

 

Muito antes de o exército roussi invadir o Afeganistão; muito antes de suas

aldeias serem queimadas e suas escolas destruídas; muito antes de se plantarem minas

terrestres como sementes da morte e se enterrarem crianças debaixo de pilhas de pedras,

Cabul já tinha se tornado uma cidade de fantasmas para mim. Uma cidade de fantasmas

de lábio leporino.

 

Nos Estados Unidos era diferente. Aqui era como um rio, correndo, sem pensar

no passado. Eu podia entrar nesse rio, deixar os meus pecados mergulhados lá no

fundo, permitir que a água me levasse para algum lugar ao longe. Algum lugar onde

não houvesse fantasmas, nem recordações, nem pecados.

 

E se não houvesse mais nenhuma outra razão, só essa já bastaria para eu adotar

esse país.

 

NO VERÃO SEGUINTE, o VERÃO DE 1984, quando fiz vinte e um anos, meu pai vendeu o

seu velho Buick. Por quinhentos e cinqüenta dólares, comprou, de um velho afegão

conhecido seu — que tinha sido professor de ciências em Cabul —, uma Kombi 1971

caindo aos pedaços. À tarde, todos os vizinhos se viraram para ver aquela velharia

barulhenta passando pela rua e entrando no estacionamento do nosso prédio. Baba

desligou o motor e deixou a Kombi ir deslizando silenciosamente até a nossa vaga.

Afundamos nos bancos, rimos tanto que chegamos a chorar, e, o que era ainda mais

 

 

 

importante, ficamos ali até termos a certeza de que os vizinhos não estavam mais

olhando. Aquela Kombi era uma mísera carcaça de metal enferrujado, com janelas

quebradas recobertas por sacos de lixo pretos, pneus carecas e o estofamento tão

rasgado que dava para ver as molas. Mas o velho professor garantiu a meu pai que o

motor e a transmissão estavam em ótimo estado e, quanto a isso, não tinha mentido.

 

Aos sábados, baba me acordava de madrugada. Enquanto ele estava se

arrumando, eu passava os olhos nos classificados dos jornais locais e ia assinalando

todos os anúncios das célebres "vendas de garagem". Traçávamos o nosso itinerário —

primeiro, Fremont, Union City, Newark e Hayward; depois, San José, Milpitas,

Sunnyvale e Campbell se desse tempo. Ele dirigia, tomando chá da garrafa térmica, e eu

era o co-piloto. Parávamos naquelas garagens e comprávamos as quinquilharias que

as pessoas não queriam mais. Pechinchávamos no preço de velhas máquinas de

costura, Barbies com um olho só, raquetes de tênis de madeira, violões faltando cordas

e velhos aspiradores Electrolux. Lá pelo meio da tarde, a traseira da Kombi estava

repleta de objetos usados. No domingo de manhã, bem cedo, íamos então para San

Jose, para a feirinha de antiguidades de Berryessa. Alugávamos uma barraca e

vendíamos aquela tralha com uma pequena margem de lucro: um disco do Chicago,

comprado na véspera por vinte e cinco centavos, podia ser vendido por um dólar, ou

por quatro dólares, em um lote de cinco discos; uma máquina de costura Singer, bem

danificada, comprada por dez dólares, podia, depois de alguma negociação, chegar a

render vinte e cinco dólares.

 

Naquele verão, havia toda uma parte da feirinha que era ocupada por famílias do

Afeganistão. Pelas alamedas do setor de objetos usados, o que se ouvia era música

afegã. Havia um código tácito de conduta entre os afegãos da feira de antiguidades:

você cumprimentava o sujeito da barraca em frente à sua, convidava-o para comer

bolani de batata ou um pouco de qabuli, e ficava batendo papo. Dava tassali, pêsames

pela morte de um parente, parabéns pelo nascimento de uma criança, e meneava a

cabeça com ar consternado quando o assunto passava a ser o Afeganistão e os roussi

— o que acabava inevitavelmente acontecendo. Todos, porém, evitavam falar do

sábado. Pois o sujeito da barraca em frente podia ser aquele que você quase atropelou na

véspera, na saída de uma via expressa, tudo porque queria chegar antes dele a uma

"venda de garagem" bem promissora.

 

A única coisa que circulava mais que o chá por aquele setor da feirinha era o

disse-me-disse afegão. Aquilo ali era o lugar onde as pessoas tomavam chá verde com

kolchas de amêndoas e ficavam sabendo que a filha de fulano tinha terminado o

noivado para fugir com um namorado americano; quem era parchami — comunista —

lá em Cabul e quem tinha comprado uma casa com dinheiro recebido por debaixo do

pano, embora continuasse inscrito na seguridade social. Chá, política e escândalos,

estes eram os ingredientes de um domingo afegão na feirinha de antiguidades.

 

Às vezes, era eu que ficava na barraca, enquanto meu pai saía perambulando por

ali, com as mãos respeitosamente junto ao peito, cumprimentando gente que conhecia

de Cabul: mecânicos e alfaiates, que vendiam casacos de lã de segunda mão ou

capacetes de bicicleta arranhados, lado a lado com ex-embaixadores, cirurgiões

desempregados e professores universitários.

 

Em um domingo de julho de 1984, bem cedo pela manhã, enquanto meu pai ficou

arrumando as coisas, fui comprar duas xícaras de café no estande da administração e,

quando voltei, vi que ele estava conversando com um homem mais velho, de

 

 

 

aparência bem distinta. Pus o café no pára-choque traseiro da Kombi, perto do

adesivo "Reagan/Bush 84".

 

— Amir — disse baba, fazendo um gesto para que eu me aproximasse —, este é o

general sahib Iqbal Taheri. Era um oficial condecorado lá em Cabul. Trabalhou no

Ministério da Defesa.

Taheri... Por que será que aquele nome me parecia familiar?

 

O general riu como alguém habituado a freqüentar recepções formais, onde

precisava rir na hora certa ouvindo piadas sem graça contadas por personagens

importantes. Tinha o cabelo grisalho cortado bem curto e penteado para trás, mostrando

a testa lisa e morena, e tufos brancos nas sobrancelhas cerradas. Cheirava a água-decolônia

e usava um terno cinza-chumbo já lustroso das tantas vezes que foi passado a

ferro, e, em seu paletó, pendia a corrente de ouro de um relógio de bolso.

 

— Que apresentação mais pomposa — disse ele, com uma voz grave e

refinada. — Salaam, bachem. Olá, meu menino.

— Salaam, general sahib — disse eu estendendo-lhe a mão. Aquelas mãos

esguias não combinavam absolutamente com a força de seu aperto, como se

houvesse aço escondido por baixo daquela pele umedecida.

— Amir vai ser um grande escritor — disse baba. E custei a acreditar que

tivesse ouvido aquilo. — Acabou o primeiro ano da faculdade e tirou "A" em todas

as matérias.

— Do curso básico — emendei.

— Mashallah — disse o general Taheri. — Vai escrever sobre a nossa terra?

História, talvez? Economia?

— Escrevo ficção — respondi, pensando nos dez ou doze contos escritos naquele

caderno de capa de couro que Rahim Khan tinha me dado, e perguntando a mim mesmo

por que, de repente, estava me sentindo tão sem jeito por causa deles na presença

daquele homem.

— Ah, um contador de histórias — disse o general. — Bem, as pessoas

precisam de histórias para se divertir em tempos tão difíceis como esses. — Pôs a mão

no ombro de baba, e voltou-se para mim. — Por falar em histórias, seu pai e eu fomos

caçar faisões em um dia de verão em Jalalabad — disse ele. — Bons tempos, aqueles!

Se não me falha a memória, seu pai mostrou ter olhos tão argutos para as

caçadas quanto para os negócios.

Com a ponta da bota, baba chutou uma raquete de tênis que estava em cima da

nossa lona.

 

— Alguns negócios...

O general Taheri caprichou em um sorriso simultaneamente tristonho e educado,

soltou um suspiro e deu um tapinha afetuoso no ombro de meu pai.

 

— Zendagi migzara — disse ele. A vida continua. E acrescentou, olhando para

mim: — Nós, afegãos, temos tendência a levar tudo a um certo grau de exagero,

bachem, e já vi muitos homens serem tolamente taxados de grandes. Mas com seu pai é

diferente, ele pertence àquela minoria que realmente merece esse rótulo.

Esse breve discurso me soou exatamente como o seu terno: usado com muita

freqüência e lustroso de uma forma nada natural.

 

— Você está me adulando — retrucou baba.

— Não estou, não — disse o general inclinando a cabeça para o lado e levando

a mão ao peito em sinal de humildade. — Os rapazes e as moças precisam conhecer o

 

 

legado de seus pais. — E, voltando-se para mim: — Você aprecia seu pai, bachem?

Realmente o aprecia?

 

— Balay, general sahib, claro que sim — disse eu, desejando que ele parasse de

me chamar de "meu menino".

— Então, meus parabéns, porque isso é efetivamente meio caminho andado para

você se tornar um homem — disse ele sem nenhum vestígio de humor, ou de ironia, o

cumprimento displicente dos arrogantes.

— Você esqueceu o seu chá, padar jan — disse uma voz feminina. Ela estava

parada atrás de nós. Era uma linda jovem, esbelta, com cabelos negros aveludados,

uma garrafa térmica aberta e um copinho de isopor nas mãos. Pisquei os olhos, com o

coração aos pulos. Ela tinha sobrancelhas negras bem espessas, que chegavam a se unir

acima do nariz, como as asas arqueadas de um pássaro em pleno vôo, e um gracioso

nariz adunco como uma princesa da antiga Pérsia, talvez como o de Tahmineh, do

Shahnamah, a esposa de Rostam e mãe de Sohrab. Os seus olhos, de um castanho

bem escuro, e protegidos por longos cílios recurvados, encontraram os meus.

Detiveram-se ali por um momento. Tomaram outra direção.

— Quanta gentileza sua, minha querida — disse o general Taheri. Pegou o

copinho das suas mãos. Antes que ela se virasse para ir embora, vi que tinha um

sinal de nascença marrom, em forma de foice, na pele suave do rosto, bem acima

do maxilar esquerdo. Foi andando para uma caminhonete de um cinza fosco,

estacionada duas alamedas mais adiante, e pôs a garrafa térmica dentro do carro. O

seu cabelo caiu todo para um lado quando ela se ajoelhou entre as caixas contendo

velhos discos e livros.

— Minha filha, Soraya jan — disse o general Taheri. Respirou fundo, como quem

está querendo mudar de assunto e consultou o relógio de ouro. — Bem, já é hora de ir e

começar a arrumar as coisas.

Meu pai e o general se beijaram de ambos os lados do rosto e ele apertou a

minha mão entre as suas.

 

— Desejo-lhe toda a sorte do mundo com as suas histórias — disse ele olhando

bem nos meus olhos. E aquele olhar de um azul pálido não revelava nada dos

pensamentos que poderiam estar por detrás dele.

Passei o resto do dia lutando comigo mesmo, tentando não ficar olhando o

tempo todo para a tal caminhonete cinzenta.

 

FOI SÓ NO CAMINHO DE VOLTA PARA CASA que a idéia me ocorreu. Taheri. Sabia que já

tinha ouvido aquele nome antes.

 

— Não tinha uma história qualquer sobre a filha de Taheri? — perguntei,

tentando não demonstrar nenhum interesse especial.

—Você me conhece — disse baba avançando bem devagar naquela fila de carros

que saíam da feirinha de antiguidades. — Conversas viram boatos e por aí vai...

—Mas tinha alguma coisa, não tinha? — insisti.

 

—Por que está perguntando isso? — indagou ele, me olhando de um jeito meio

sonso.

Dei de ombros e me defendi com um sorriso.

—Só por curiosidade, baba.

 

—Tem certeza? É só isso mesmo? — perguntou ele, olhando bem nos meus

olhos com um ar brincalhão. — Ou será que você ficou interessado nela?

 

 

Não consegui encará-lo.

 

— Ah, por favor, baba.

Ele sorriu. Passou com a Kombi pela saída da feira e foi se dirigindo para a autoestrada

680. Por algum tempo, ficamos em silêncio.

 

— Tudo o que sei é que houve um homem e as coisas... não deram lá muito certo.

Disse isso em um tom sério, como se tivesse me revelado que ela tinha um câncer

de mama.

 

— Ah...!

— Pelo que ouvi dizer, é uma moça decente, trabalhadora e muito gentil. Só que

nenhum khastegar, nenhum pretendente veio bater à porta do general desde então —

disse baba com um suspiro. — Pode ser injusto, mas o que acontece em poucos dias, às

vezes até uma única vez, pode alterar o rumo da vida inteira, Amir — acrescentou ele.

DEITADO NA CAMA, NAQUELA NOITE, fiquei pensando na marca de nascença em forma de

foice no rosto de Soraya Taheri; no seu nariz levemente adunco e no jeito como os

seus olhos brilhantes tinham fitado os meus por uns breves instantes. O meu coração

parecia que ia parar só de pensar nela. Soraya Taheri. Minha princesa da feirinha de

antiguidades.

 

 

 

DOZE

 

 

NO AFEGANISTÃO, A YELDA É A PRIMEIRA NOITE do mês de jadi, a primeira noite do inverno, e

a mais longa do ano. Como mandava a tradição, Hassan e eu ficávamos acordados até

mais tarde, com os pés enfiados debaixo do kursi, enquanto Ali atirava cascas de maçã

no fogareiro e nos contava velhas histórias de sultões e de ladrões para passar o tempo

dessa noite que era a mais comprida de todas. Foi por meio de Ali que fiquei

conhecendo a tradição da yelda, daqueles meses enfeitiçados, que se precipitam para as

chamas das velas, e dos lobos que sobem ao alto das montanhas em busca do sol. Ali

jurava que quem comesse melancia na noite da yelda não sentiria sede durante o verão

seguinte.

 

Quando fiquei mais velho, li nos meus livros de poesias que a yelda era a noite

sem estrelas em que aqueles que sofrem por amor permanecem acordados, suportando

a escuridão interminável e esperando que o nascer do sol traga consigo a pessoa

amada. Depois que conheci Soraya Taheri, todas as noites da semana passaram a ser

yelda para mim. E, quando chegavam as manhãs de domingo, pulava da cama já

pensando no rosto de Soraya Taheri e naqueles seus olhos castanhos. Na Kombi de

baba, ia contando os quilômetros que faltavam para vê-la sentada, descalça, arrumando

as caixas de papelão cheias de enciclopédias amareladas, com os calcanhares brancos

contrastando com o asfalto e as pulseiras de prata tilintando nos seus pulsos finos.

Lembrava da sombra que seus cabelos projetavam no chão quando escorregavam por

suas costas e pendiam como uma cortina de veludo. Soraya. A princesa da feirinha de

antiguidades. O sol da manhã depois da minha yelda.

 

Inventava desculpas para ficar perambulando pelas aléias — coisa que meu pai

aceitava com um risinho brincalhão — e poder passar diante da barraca dos Taheri.

Acenava cumprimentando o general, eternamente vestido com aquele terno cinza

lustroso de tanto ser passado a ferro, e ele respondia ao meu aceno. Às vezes se

levantava da cadeira de diretor e conversávamos um pouco sobre os meus escritos, a

guerra, as vendas do dia. Eu tinha de me controlar para não deixar que os meus olhos

escapulissem e fossem vagar por perto de Soraya, que ficava sentada lendo um livro.

Depois, nós nos despedíamos e eu me esforçava para não demonstrar que ficava

chateado quando tinha de ir embora.

 

Às vezes ela estava lá sentada, sozinha, pois o general tinha ido para alguma

outra fileira de barracas encontrar os conhecidos, e eu passava ao seu lado, fingindo

não conhecê-la, mas morrendo de vontade de me aproximar. Outras vezes estava com

 

 

 

uma senhora corpulenta, de pele muito pálida e cabelo pintado de ruivo. Prometi a

mim mesmo que falaria com ela antes do fim do verão, mas as aulas recomeçaram, as

folhas foram ficando vermelhas, amarelas, e, depois, caíram; vieram as chuvas do

inverno, atormentando as articulações de baba; depois, novas folhas começaram a

brotar e eu ainda não tinha tido coragem, dil, nem mesmo para olhá-la nos olhos.

 

O trimestre letivo de primavera terminou em fins de maio de 1985. Tive conceito

"A" em todas as matérias, o que foi uma espécie de milagre, considerando-se que

passava as aulas inteiras pensando no nariz levemente adunco de Soraya.

 

Em um domingo escaldante do verão, baba e eu estávamos na feirinha de

antiguidades, sentados na nossa barraca, abanando o rosto com jornal. Embora nesse dia

 

o sol estivesse ardente como ferro em brasa, a feira estava lotada e os negócios foram

ótimos — era apenas meio-dia e meia e já tínhamos vendido cento e sessenta dólares.

Fiquei de pé, estirei o corpo e perguntei se ele queria uma Coca-Cola. Baba respondeu

que adoraria.

— Tome cuidado, Amir — acrescentou ele quando eu já estava me afastando.

— Cuidado com o quê, baba?

— Não sou nenhum ahmaq, portanto não venha bancar o idiota comigo!

— Não sei do que você está falando.

— Lembre-se disso — disse ele, com o dedo apontado para mim. — Um

homem é pashtun até a raiz dos cabelos. Tem nang e namoos.

Nang. Namoos. Honra e orgulho. Os princípios do pashtun. Especialmente

quando se tratava da castidade de uma esposa. Ou de uma filha.

 

— Vou apenas pegar umas bebidas para nós — insisti.

— Só não crie embaraços para mim. É tudo o que lhe peço.

— Pode deixar, baba. Pelo amor de Deus!

Ele acendeu um cigarro e recomeçou a se abanar.

Passei primeiro na barraca da administração. Depois, virei à esquerda e fui para

o estande das camisetas onde, por cinco dólares, se pode mandar imprimir o rosto de

Jesus, de Elvis, de Jim Morrison, ou dos três juntos, em uma camiseta de malha

branca. Ouvi música de mariachi tocando e pude sentir o cheiro de picles e de carne

na churrasqueira.

Avistei a caminhonete cinza dos Taheri a duas aléias da nossa, perto de um

quiosque que vendia mangas no palito. Ela estava sozinha, lendo. Usava um vestido

branco de verão que lhe batia nos tornozelos. E sandálias abertas. Tinha o cabelo

puxado para trás, preso em um coque banana. Tudo o que pretendia era passar

novamente por ali e achei que estivesse fazendo apenas isso. Só que, de repente, me vi

parado junto da borda da toalha de mesa branca dos Taheri, olhando para Soraya

sentada ali, em meio a ferros de frisar cabelo e gravatas usadas. Ela ergueu os olhos.

 

— Salaam — disse eu. — Desculpe se estou sendo mozahem. Não tinha a intenção

de incomodá-la.

— Salaam.

— O general sahib veio hoje? — perguntei. Minhas orelhas estavam ardendo.

Não conseguia olhá-la nos olhos.

— Ele foi por ali — disse ela, apontando para a direita. A pulseira escorregou até

o seu cotovelo, prata sobre azeitona.

— Diga-lhe, por favor, que passei aqui para cumprimentá-lo.

 

 

— Digo, sim — respondeu ela.

— Muito obrigado — disse eu. — Ah, e meu nome é Amir. Talvez precise saber.

Assim, pode dizer a ele. Que passei por aqui. Para... cumprimentá-lo.

— Claro.

Fiquei parado ali, meio inquieto. Pigarreei.

— Já vou indo. Desculpe ter incomodado.

— Não incomodou, não — disse ela.

— Que ótimo! — Levei a mão à cabeça, em um aceno, e sorri ligeiramente.

— Então, vou indo. — Já não tinha dito isso antes? — Khoda hafez.

— Khoda hafez.

Saí andando, mas parei e me virei. Antes que acabasse perdendo a coragem,

disse:

 

— Posso perguntar o que está lendo?

Ela pareceu espantada.

Prendi a respiração. De repente, senti os olhares de todos os afegãos da feirinha

de antiguidades se voltarem para nós. Imaginei o silêncio se instalando no ar. Lábios

parando no meio de uma frase. Cabeças se virando. Olhos se apertando no maior

interesse.

 

O que era isso?

 

Até aquele instante, o nosso encontro poderia ser interpretado como uma

indagação respeitosa, a mesma coisa que um homem pedindo a outro informações

sobre algum lugar. Mas, agora, acabava de lhe fazer uma pergunta e, se ela

respondesse, estaríamos... bem, estaríamos conversando. Eu, um mojarad, um rapaz

solteiro, e ela, uma jovem também solteira. E, ainda por cima, alguém que tinha uma

história. Era algo que beirava perigosamente a condição de assunto para fofocas, e da

melhor qualidade. Línguas venenosas iam começar a se agitar. E ela é que ia ter de

agüentar o impacto desse veneno, não eu — conhecia muito bem o sistema afegão de

dois pesos e duas medidas que favorecia o meu sexo. Ninguém diria "Viu que ele estava

conversando com ela?", mas sim "Xiii! Viu como ela não o largava? Mas que lochak!".

 

Pelos padrões afegãos, minha pergunta tinha sido audaciosa. Com isso, tinha

me traído, não deixando a menor dúvida quanto ao interesse que sentia por ela. Mas

eu era homem e o único risco que corria era o orgulho ferido. E feridas como essas

têm cura. Já as reputações, não. Será que ela ia aceitar o meu desafio?

 

Soraya virou o livro deixando a capa de frente para mim. Era O morro dos

ventos uivantes.

 

— Já leu? — perguntou ela.

Fiz que sim com a cabeça. Podia sentir o meu coração pulsando acelerado por

detrás dos meus olhos.

 

— É uma história triste — comentei.

— Histórias tristes dão bons livros — disse ela.

— É verdade.

— Ouvi dizer que você escreve.

Como podia saber? Será que o pai tinha lhe contado? Talvez ela tenha

perguntado alguma coisa. Descartei imediatamente ambas as possibilidades por serem

absurdas. Pais e filhos podem falar abertamente sobre mulheres. Mas nenhuma garota

afegã — pelo menos nenhuma garota afegã decente e mohtaram — perguntaria algo a

 

 

 

seu pai sobre um rapaz. E nenhum pai, principalmente um pashtun, com nang e

namoos, conversaria com a filha sobre um mojarad, pelo menos não até que o indivíduo

em questão se tornasse um khastegar, um pretendente; que tivesse feito tudo como

manda o figurino, pedindo ao próprio pai que fosse bater à porta daquela casa.

 

Por incrível que pareça, me ouvi perguntando:

 

— Gostaria de ler uma das minhas histórias?

— Gostaria — respondeu ela.

Agora, podia notar que ela estava meio constrangida. Dava para ver isso pelo

jeito com que seus olhos começaram a ir de um lado a outro, talvez procurando o

general. E me perguntei o que ele diria se me visse ali, conversando com a sua filha

por um tempo bastante inconveniente.

 

—Vou ver se trago uma para você um dia desses — disse eu. Estava prestes a

acrescentar mais alguma coisa quando avistei, caminhando pela aléia, aquela mulher

que já tinha visto uma vez com Soraya. Ela vinha trazendo um saco plástico cheio de

frutas. Quando nos viu, os seus olhos saltaram de Soraya para mim e novamente para

Soraya. E ela sorriu.

 

— Amir jan, que bom vê-lo por aqui! — exclamou, depositando a sacola sobre a

toalha. As suas sobrancelhas brilhavam por causa do suor. O cabelo ruivo, penteado

como um capacete, reluzia ao sol, e dava para ver o seu couro cabeludo em certos

pontos onde o cabelo tinha rareado. Ela tinha olhos verdes e miúdos, que

desapareciam no rosto redondo como um repolho, jaquetas nos dentes e os dedos

roliços feito salsichas. Um "Allah" de ouro repousava em seu colo, mas o cordão se

perdia nas rugas e pregas do pescoço.

— Sou Jamila, a mãe de Soraya jan.

— Salaam, khala jan — disse eu todo sem jeito, como acontecia tantas vezes em

rodas de afegãos, porque ela me conhecia e eu não tinha a menor idéia de quem ela

era.

— Como vai seu pai? — indagou.

— Bem, obrigado.

— Sabe, seu avô, o juiz Ghazi sahib? O tio dele e o meu avô eram primos —

disse ela. — Como pode ver, somos parentes. — Sorriu, com aquele sorriso cheio de

jaquetas, e pude perceber que o canto direito da sua boca ficava um tanto descaído. Os

seus olhos voltaram a se mover para Soraya e, depois, para mim.

 

Certa vez, perguntei a baba por que a filha do general Taheri ainda não tinha

se casado.

 

— Falta de pretendentes — disse ele. E logo corrigiu. — Falta de pretendentes

aceitáveis. — E não disse mais nada, pois sabia muito bem como uma simples

conversa podia ser fatal para as perspectivas de uma moça conseguir fazer um bom

casamento. Os homens afegãos, principalmente os de famílias respeitáveis, eram

criaturas inconstantes. Um sussurro aqui, uma insinuação ali, e eles batiam asas como

pássaros assustados. Assim, casamento vai, casamento vem, e ninguém cantou

"Ahesta boro" para Soraya, ninguém pintou as palmas das suas mãos com hena,

ninguém segurou o Corão acima da sua cabeça, e foi o general Taheri que dançou com

ela em todos os casamentos a que compareceram.

Agora, essa mulher, essa mãe estava ali, com uma ansiedade de dar pena, um

sorriso meio torto e uma esperança mal disfarçada nos olhos. Fiquei um pouco

 

 

 

constrangido com a posição de poder que me cabia simplesmente porque ganhei na

loteria genética que determinou o meu sexo.

 

Nunca seria capaz de ler as idéias escondidas por trás dos olhos do general, mas

sabia muito bem o que se passava na cabeça da mulher dele: se porventura tivesse que

enfrentar um adversário nessa história, qualquer que fosse ela, esse adversário não seria

a mãe de Soraya.

 

— Sente-se, Amir jan — disse ela. — Soraya, pegue uma cadeira para ele,

bachem. E lave um desses pêssegos. Estão frescos e bem doces.

— Não, obrigado — retruquei. — Preciso ir andando. Meu pai está esperando

por mim.

— Ah! — exclamou khanum Taheri, nitidamente impressionada por ver que eu

tinha escolhido a atitude mais educada e recusado a sua proposta. — Então, tome.

Ao menos leve isso — acrescentou ela enfiando um punhado de kiwis e alguns

pêssegos em um saco de papel, e insistindo para que eu os aceitasse. — Cumprimente

seu pai por mim. E volte para nos ver.

— Volto, sim. Obrigado, khala jan — disse eu. Com o rabo do olho, vi que

Soraya estava olhando para o outro lado.

— PENSEI QUE VOCÊ TIVESSE IDO APANHAR umas Cocas — disse baba, pegando o saco

de pêssegos de minha mão. Ficou me olhando de um jeito simultaneamente sério e

brincalhão. Já estava tratando de inventar alguma desculpa quando ele mordeu um

pêssego e fez um gesto com a mão, — Deixe para lá, Amir. Só não esqueça do que eu

lhe disse.

ESSA NOITE, DEITADO NA CAMA, fiquei pensando nos raios de sol dançando nos olhos de

Soraya e nas suaves depressões que havia sobre as suas clavículas. Reproduzi

mentalmente a nossa conversa milhares de vezes. Ela tinha dito "Ouvi dizer que você

escreve" ou "Ouvi dizer que você é escritor"? Como teria sido? Empurrei as cobertas e

fiquei olhando para o teto, desanimado diante da perspectiva de seis intermináveis

noites de yelda até poder vê-la de novo.

 

CONTINUEI FAZENDO A MESMA COISA por algumas semanas. Esperava que o general saísse

para dar uma volta e, então, passava diante da barraca dos Taheri. Se khanum Taheri

estivesse lá me oferecia um chá com kolcha e ficávamos conversando sobre a Cabul

dos velhos tempos, as pessoas que conhecíamos, a sua artrite. Com toda certeza, ela

tinha notado que a minha chegada sempre coincidia com as ausências do seu marido,

mas nunca demonstrou nada.

 

— Ah, por pouco você pegava seu kaka aqui — dizia.

Na verdade, gostava quando khanum Taheri estava lá, e não só por causa do seu

jeito acolhedor; Soraya ficava mais relaxada, mais falante se a mãe estivesse por perto.

Como se a presença dela legitimasse o que quer que estivesse acontecendo entre nós —

embora, é claro, não tanto quanto se fosse o general. Mas ter khanum Taheri como

chaperon fazia com que os nossos encontros fossem, se não à prova de fofocas, ao

menos não tão dignos delas, embora o fato de ela ficar meio que me bajulando

deixasse Soraya visivelmente constrangida.

 

 

 

Um dia, Soraya e eu estávamos sozinhos em sua barraca, conversando. Ela estava

me falando da faculdade, de como estava estudando para as matérias do curso básico do

Ohlone College, em Fremont.

 

— O que você pretende fazer? — perguntei.

— Quero ser professora — respondeu ela.

— Verdade? Por quê?

— Sempre quis. Quando morávamos na Virgínia, me diplomei no ESL e, agora,

dou aulas na biblioteca pública uma noite por semana. Minha mãe também era

professora, dava aulas de farsi e de história na escola secundária Zarghoona, para

meninas, em Cabul.

Um homem barrigudo com boné de caçador ofereceu três dólares por um par de

castiçais de cinco dólares, e Soraya deixou que ele os levasse. Jogou o dinheiro em uma

caixinha de balas que estava a seus pés. Olhou para mim com ar encabulado.

 

— Queria lhe contar uma história — disse ela. — Mas estou um pouco sem

graça.

— Conte.

— É que é meio bobo.

— Conte, por favor — insisti.

Ela riu.

— Bem, quando estava na terceira série, em Cabul, meu pai contratou uma

mulher chamada Ziba para trabalhar lá em casa. Ela tinha uma irmã no Ira, em

Mashad, e, como era analfabeta, me pediu que escrevesse umas cartas para a sua irmã

de vez em quando. E, depois que ela respondesse, eu leria as suas cartas para Ziba. Um

dia, perguntei se ela não gostaria de aprender a ler e a escrever. Ela abriu um sorriso

de orelha a orelha, apertando os olhos, e disse que adoraria fazer isso. Então, depois

que eu terminava o dever de casa, íamos sentar à mesa da cozinha e comecei a lhe

ensinar o Alef-beh. Lembro que, às vezes, no meio do dever de casa, olhava para a

cozinha e via Ziba mexer a carne na panela de pressão e, depois, sentar e pegar o lápis

para fazer os exercícios que eu tinha passado na noite anterior.

"Só sei dizer que, em um ano, Ziba já estava lendo livros infantis. Sentávamos no

quintal e ela lia para mim as histórias de Dara e Sara. Devagar, mas certinho. Passou a

me chamar moalem Soraya, professora Soraya. — Riu novamente. — Sei que parece

bobagem de criança, mas, a primeira vez que Ziba escreveu sozinha uma carta,

descobri que não havia nada que eu quisesse tanto quanto ser professora. Estava muito

orgulhosa dela e sentia que tinha feito algo que realmente valia a pena, entende?"

 

— Claro — menti. Fiquei pensando em como tinha usado os meus

conhecimentos para ridicularizar Hassan. Como implicava com aquela história das

palavras que ele não conhecia.

— Meu pai quer que eu vá estudar direito; minha mãe fica sempre insinuando que

eu devia fazer medicina, mas vou ser professora. Não é um trabalho muito bem pago

por aqui, mas é o que quero fazer.

— Minha mãe também era professora — disse eu.

— Eu sei — disse ela. — Minha mãe me contou.

E o seu rosto enrubesceu por ter deixado escapar aquele comentário, já que, com

isso, ficava claro que as duas falavam de mim quando eu não estava presente. E precisei

fazer um esforço imenso para me impedir de sorrir.

 

— Trouxe uma coisa para você. — Tirei o maço de páginas dobradas do bolso

de trás. — Como prometi. — E lhe entreguei um dos meus contos.

 

 

— Ah! você se lembrou — exclamou ela radiante. — Obrigada!

— Mal tive tempo de perceber que ela tinha dito "tu" pela primeira vez, e não

"shoma", o tratamento formal que usava normalmente, porque, de repente, o seu

sorriso se extinguiu. A cor lhe fugiu do rosto e notei que os seus olhos estavam

fitando um ponto qualquer às minhas costas. Virei a cabeça. E me vi cara a cara com

o general Taheri.

— Amir jan. Nosso aspirante a contador de histórias. Que prazer — disse ele

com um breve sorriso.

— Salaam, general sahib — respondi eu, sentindo a boca seca.

Passou por mim, indo direto para a barraca.

— Que lindo dia, não é? — observou, com o polegar enfiado no bolso do paletó

e a outra mão estendida para Soraya, que lhe entregou as folhas de papel. — Dizem

que vai chover essa semana. Difícil de acreditar, não é? — acrescentou, jogando as

páginas dobradas na lata de lixo. Voltou-se para mim e pôs a mão em meu ombro

com brandura. Saímos andando juntos.

— Sabe, bachem — prosseguiu o general —, aprendi a gostar de você. É um rapaz

decente, acredito realmente que seja, mas... — suspirou e fez um gesto com a mão —

mesmo os rapazes decentes precisam que a gente lhes refresque a memória. Portanto, é

meu dever lembrar que, aqui nessa feira, você está entre seus iguais. — Parou. Seus

olhos inexpressivos penetraram pelos meus. — Veja bem, aqui todo mundo é contador

de histórias. — Sorriu revelando dentes absolutamente regulares. — Transmita os meus

respeitos a seu pai, Amir jan.

Deixou cair a mão. Sorriu novamente.

 

— O QUE FOI? — INDAGOU BABA. Estava recebendo o dinheiro de uma senhora idosa que

acabava de comprar um cavalinho de balanço.

— Não foi nada — respondi. E sentei em um velho aparelho de TV. Mas acabei

lhe contando.

— Ah, Amir... — disse ele com um suspiro.

Logo descobri, porém, que não poderia passar muito tempo remoendo o que

tinha acontecido.

Porque um pouco mais tarde, nessa mesma semana, meu pai pegou um

resfriado.

 

TUDO COMEÇOU COM UMA TOSSE SECA e o nariz escorrendo. Depois, a coriza melhorou, mas

a tosse persistia. Ele tossia, levava o lenço à boca e o enfiava de novo no bolso. Fiquei

insistindo para que fosse ver aquilo, mas ele se recusava terminantemente. Baba odiava

médicos e hospitais. Que eu saiba, a única vez que procurou um médico foi quando

pegou malária na Índia.

 

Então, duas semanas mais tarde, eu o surpreendi cuspindo catarro sanguinolento

no vaso sanitário.

 

— Há quanto tempo isso vem acontecendo? — perguntei.

— O que vamos ter para o jantar? — indagou ele à guisa de resposta.

— Vou levá-lo ao médico.

Embora baba fosse gerente, o dono do posto de gasolina nunca lhe propôs um

seguro-saúde, e ele, em sua inconseqüência, não insistiu. Levei-o, então, ao hospital do

 

 

 

condado, em San Jose. O médico pálido e de olhos inchados que nos recebeu se

apresentou como residente de segundo ano.

 

— Ele parece mais jovem que você e mais doente que eu — resmungou meu pai.

O residente nos mandou ao térreo para fazer um raio-X do tórax. Quando a

enfermeira nos trouxe de volta, ele estava preenchendo um formulário.

 

— Leve isso ao balcão de recepção — disse ele fazendo rabiscos apressados.

— O que é isso? — perguntei.

— Um formulário de encaminhamento. — Rabisca, rabisca.

— Para quê?

— Setor de pneumologia.

— O que é isso?

Ele me olhou de relance. Ajeitou os óculos. Recomeçou a rabiscar.

— Ele tem uma mancha no pulmão direito. Quero que examinem para ver o que

é.

— Uma mancha? — perguntei, e, de repente, a sala tinha ficado pequena demais.

— Câncer? — indagou baba como quem não quer nada.

— E possível. Seja como for, é suspeito — murmurou o médico.

— O senhor não pode nos explicar melhor? — indaguei.

— Na verdade, não. Primeiro, é preciso fazer a tomografia computadorizada e,

depois, ir ver o pneumologista. — Estendeu para mim o tal formulário de

encaminhamento. — Você disse que seu pai fuma, não é?

— É

Ele assentiu com a cabeça. Olhou para mim, para baba e para mim de novo.

 

— Vão lhes telefonar em duas semanas.

Quis lhe perguntar como ele achava que eu poderia conviver com aquela palavra,

"suspeito", por duas semanas inteiras. Como eu poderia comer, trabalhar, estudar?

Como é que ele podia me mandar para casa com aquela palavra?

 

Mas peguei o formulário e o entreguei onde ele tinha mandado. Naquela noite,

esperei até meu pai ir dormir e, então, dobrei um cobertor para usar como tapete de

oração. Inclinando a cabeça até o chão, recitei os versículos já meio esquecidos do

Corão — versículos que o mulá tinha nos feito decorar lá em Cabul —, e pedi a

misericórdia de um Deus que nem sabia ao certo se existia. Nesse momento, fiquei com

inveja do mulá; com inveja da sua fé e da sua certeza.

 

Duas semanas se passaram e ninguém telefonou. E, quando eu liguei para lá,

disseram-me que tinham perdido o tal formulário. Será que eu tinha mesmo entregado

 

o papel? Telefonariam, então, em três semanas. Fiz o maior escarcéu e acabei

conseguindo reduzir os prazos: uma semana para fazer a tomografia e duas para a

consulta com o médico.

Tudo estava indo bem com o pneumologista, dr. Schneider, até que meu pai lhe

perguntou de onde ele era. Quando ele disse que era da Rússia, baba perdeu as

estribeiras.

 

— Desculpe-nos, doutor — disse eu, empurrando baba, tentando afastá-lo dali. O

dr. Schneider sorriu e recuou, ainda com o estetoscópio na mão.

— Baba, li a biografia do dr. Schneider na sala de espera. Ele nasceu em

Michigan. Michigan! Nos Estados Unidos. É muito mais americano do que você e eu

jamais seremos...

— Não quero saber onde ele nasceu. Ele é roussi! — esbravejou baba fazendo

uma careta como se tivesse dito um palavrão. — Os pais dele eram roussi. Os avós eram

 

 

roussi. Juro pela memória de sua mãe que vou lhe quebrar o braço se ele tentar

encostar a mão em mim!

 

— Os pais do dr. Schneider fugiram dos shorawi. Você não está entendendo?

Eles eram refugiados!

Mas baba não queria nem saber. Às vezes acho que a única coisa que ele amava

tanto quanto sua falecida esposa era o Afeganistão, seu falecido país. Quase gritei,

tamanha a frustração que sentia. Em vez disso, suspirei e voltei ao consultório do dr.

Schneider.

 

— Sinto muito, doutor. Não vai dar.

O outro pneumologista, dr. Amani, era iraniano e meu pai o aprovou. O dr. Amani,

um homem de fala macia, com um bigode recurvado e uma basta cabeleira grisalha,

disse que tinha examinado a tomografia e que seria preciso fazer um procedimento

chamado broncoscopia, para colher massa pulmonar para um exame patológico.

Marcou o tal exame para a semana seguinte. Agradeci e ajudei baba a sair do

consultório pensando que teria de passar uma semana inteira convivendo com essa

palavra nova, "massa", que ainda era mais sinistra do que "suspeito". Adoraria que

Soraya estivesse ali comigo.

 

Acontece que, como Satã, o câncer tem muitos nomes. O de baba se chamava

"carcinoma aveno-celular". Em estado avançado. Inoperável. Ele pediu ao dr. Amani

que fizesse um prognóstico. O médico mordeu o lábio e usou a palavra "grave".

 

— Por certo, há a quimioterapia — acrescentou ele. — Mas será apenas um

paliativo.

— O que significa isso? — perguntou meu pai.

Significa que não vai alterar em nada o desfecho. Vai apenas retardá-lo —

respondeu o médico com um suspiro.

 

— Aí está uma resposta franca, dr. Amani. E lhe agradeço por isso — disse

baba. — Mas não quero saber desse tratamento.

O seu rosto tinha o mesmo ar decidido que vi naquele dia em que botou os

tíquetes-alimentação em cima da escrivaninha da sra. Dobbins.

 

— Mas, baba...

— Não me conteste na frente dos outros, Amir. Não faça isso nunca. Quem

você pensa que é?

A CHUVA MENCIONADA PELO GENERAL TAHERI, na feirinha de antiguidades, só foi aparecer

algumas semanas mais tarde, mas, quando saímos do consultório do dr. Amani, os

carros que passavam respingavam água suja nas calçadas. Meu pai acendeu um cigarro.

Fumou até chegarmos ao carro e, depois, durante todo o trajeto para casa.

 

Quando estava enfiando a chave na fechadura da porta do prédio, eu lhe disse:

 

— Gostaria que você pensasse na possibilidade da quimioterapia, baba.

Ele pôs as chaves no bolso, tirou-me da chuva puxando-me para debaixo do toldo

listrado da portaria. Me apertou contra o peito com a mão que segurava o cigarro.

 

— Bas! — exclamou. —Já tomei minha decisão.

— E quanto a mim, baba? O que é que eu vou fazer? — indaguei, com os olhos

cheios de lágrimas.

O seu rosto molhado de chuva mostrou uma expressão de desagrado. Era a

mesma cara que fazia quando, em criança, eu caía, esfolava os joelhos e chorava.

 

 

 

Naquela época, ficava assim porque eu chorava; agora, ficou assim porque eu estava

chorando.

 

— Você está com vinte e dois anos, Amir! Já é adulto! Você... — abriu a

boca, fechou-a, voltou a abri-la, reconsiderou. Sobre as nossas cabeças, a chuva

tamborilava no toldo de lona. — Está querendo saber o que vai acontecer com você. É

isso que venho tentando lhe ensinar durante todos esses anos: a nunca precisar fazer

essa pergunta.

Abriu a porta. Voltou-se novamente para mim.

 

— E tem mais uma coisa. Que ninguém fique sabendo disso, está me ouvindo?

Ninguém. Não quero piedade de quem quer que seja.

Dizendo isto, desapareceu no vestíbulo mal iluminado. Passou o resto do dia

fumando um cigarro atrás do outro diante da TV. Não conseguia saber o que ou quem

ele estava desafiando. A mim? O dr. Amani? Ou quem sabe esse Deus em quem nunca

acreditou?

 

POR ALGUM TEMPO, NEM O CÂNCER conseguiu afastar baba da feirinha de antiguidades.

Aos sábados fazíamos a nossa peregrinação pelas "vendas de garagem": ele como

motorista; eu como co-piloto. E armávamos a nossa barraca aos domingos. Lâmpadas

de latão. Luvas de beisebol. Casacos de esqui com o fecho ecler quebrado. Meu pai

cumprimentava os conhecidos lá da nossa terra e discutia com os compradores por

coisa de um ou dois dólares. Como se esses detalhes tivessem alguma importância.

Como se o dia em que eu ia ficar órfão não estivesse se aproximando mais e mais a

cada vez que desmontávamos a barraca.

 

Às vezes o general Taheri e sua esposa passavam por lá. O general, sempre um

diplomata, me saudava com um sorriso e estendia ambas as mãos para me

cumprimentar. Mas havia uma nova reserva na atitude de khanum Taheri. Uma

reserva que só era quebrada pelos sorrisos meio tortos e dissimulados, e os olhares

furtivos como que pedindo desculpas que ela me lançava quando o general estava

prestando atenção em outra coisa.

 

Lembro desse tempo como um período de várias "primeiras vezes". A primeira

vez que ouvi meu pai gemer no banheiro. A primeira vez que vi sangue no seu

travesseiro. Em cerca de três anos na gerência do posto de gasolina, ele nunca tinha

ligado avisando que estava doente. Esta foi mais uma das tais primeiras vezes.

 

Esse ano, na época da festa de Halloween, baba ia ficando tão cansado lá pelo

meio das tardes de sábado que permanecia ao volante enquanto eu saía do carro e

regateava para comprar algum traste. Quando o Dia de Ação de Graças estava se

aproximando, ele já estava exausto antes do meio-dia. Quando começaram a aparecer

os trenós nos gramados diante das casas e a neve falsa nos pinheiros verdes, baba

passou a ficar em casa e eu saía dirigindo a Kombi para cima e para baixo na

península.

 

Às vezes, na feirinha de domingo, alguns afegãos conhecidos nossos comentavam

que ele estava emagrecendo. No início, essas observações eram elogiosas. Alguns

chegaram até a lhe perguntar qual o segredo da sua dieta. Mas as perguntas e os

elogios pararam quando a perda de peso não parou. Quando os quilos foram

diminuindo e diminuindo. Quando o seu rosto ficou encovado. As suas têmporas

murcharam. E os seus olhos afundaram nas órbitas.

 

 

 

Então, em um domingo frio, pouco depois do Ano-Novo, baba estava vendendo

um abajur a um filipino atarracado enquanto eu revirava a Kombi à procura de uma

manta para cobrir as suas pernas.

 

— Ei, alguém! Esse homem está precisando de ajuda! — gritou o filipino

alarmado.

Virei e vi meu pai caído no chão. Os seus braços e as suas pernas se debatiam.

 

— Komak! — gritei. — Alguém me ajude! — E corri até lá. Baba estava

espumando e a sua barba já estava encharcada. Os seus olhos estavam revirados,

inteiramente brancos.

Várias pessoas correram na nossa direção. Ouvi alguém dizer a palavra "ataque".

Alguém mais gritou: "Chamem uma ambulância!" Ouvi passos apressados. O céu

escureceu quando uma multidão nos cercou.

 

De repente, aquela espuma foi ficando vermelha. Ele estava mordendo a língua.

Ajoelhei ao seu lado, segurei os seus braços e disse:

 

— Estou aqui, baba. Estou aqui. Você vai ficar bem. Estou aqui do seu lado. —

Como se pudesse livrá-lo daquelas convulsões. Mandar que elas deixassem o meu baba

em paz. Senti alguma coisa molhada nos meus joelhos. Vi que ele tinha urinado. —

Shhh, baba jan, estou aqui. O seu filho está bem aqui.

 

O MÉDICO, UM HOMEM DE BARBA BRANCA e inteiramente careca, me fez sair do quarto.

 

— Quero examinar as tomografias de seu pai junto com você — disse ele. Pôs

as chapas em um visor que ficava no corredor e, com a borracha da ponta do seu lápis,

foi mostrando as imagens do câncer de baba, como um policial que mostra o retrato

falado do assassino à família da vítima. Naquelas imagens, o cérebro de meu pai

parecia uma série de cortes transversais feitos em uma noz enorme crivada de umas

coisas cinzentas que mais pareciam bolas de tênis.

— Como pode ver, já houve metástase — disse o doutor. — Ele terá de tomar

esteróides para reduzir a dilatação do cérebro e medicamentos anticonvulsivos.

Particularmente, recomendo radiação paliativa. Sabe o que significa?

Respondi que sim. Estava ficando entendido em assuntos relativos ao câncer.

 

— Então, está tudo certo — disse ele. Checou o bipe. — Agora, preciso ir, mas,

se tiver qualquer dúvida, é só bipar para entrar em contato comigo.

— Obrigado.

Passei a noite toda sentado em uma cadeira junto da cama de baba.

NA MANHÃ SEGUINTE, A SALA DE ESPERA perto do saguão de entrada estava repleta de

afegãos. O açougueiro de Newark. Um engenheiro que tinha trabalhado com meu pai

na construção do orfanato. Um a um, foram entrando no quarto e cumprimentando

baba, todos falando bem baixinho. Desejavam que se recuperasse logo. Nesse

momento, ele estava acordado. Meio grogue e exausto, mas acordado.

 

Um pouco mais tarde, na mesma manhã, chegaram o general Taheri e sua

esposa. Soraya vinha logo atrás. Nossos olhos se encontraram e se desviaram ao

mesmo tempo.

 

— Como está, meu amigo? — disse o general Taheri segurando a mão de meu

pai.

Baba fez um gesto indicando o soro que pendia do seu braço. Esboçou um

ligeiro sorriso. O general lhe sorriu também.

 

 

 

— Não deviam ter se incomodado. Todos vocês — disse ele com voz rouca.

— Não é incômodo nenhum — retrucou khanum Taheri.

— Não é mesmo. O mais importante agora é saber se estão precisando de algo

— disse o general. — De nada mesmo? Podem me pedir o que for necessário, como

se eu fosse um irmão.

Lembrei de algo que meu pai tinha dito uma vez sobre os pashtuns. "Podemos ser

cabeças-duras, e sei muito bem que somos orgulhosos demais. Na hora da necessidade,

porém, pode acreditar: não há ninguém melhor para se ter ao nosso lado que um

pashtun."

 

Baba fez que não com a cabeça deitada no travesseiro.

 

— Só o fato de terem vindo até aqui já me deixa muito feliz — disse ele.

O general sorriu e apertou a sua mão.

— E você, como vai, Amir jan? Está precisando de alguma coisa?

O jeito que ele me. olhava, o carinho que havia em seus olhos..

.

— Não, obrigado, general sahib. Estou...

Senti um nó na garganta e os meus olhos se encheram de lágrimas. Saí do quartoquase correndo.

Fui chorar no corredor, perto daquele visor luminoso onde, na véspera, tinha

visto o rosto do assassino.

A porta se abriu e Soraya saiu do quarto. Parou perto de mim. Usava um

moletom verde e calça jeans. E estava de cabelo solto. Quis encontrar algum consolo em

seus braços.

 

— Sinto muito, Amir — disse ela. — Todos nós estávamos sabendo que havia algo

errado, mas não podíamos imaginar que fosse isso.

Enxuguei os olhos com as mangas da camisa.

 

— Ele não queria que ninguém soubesse.

— Está precisando de alguma coisa?

— Não — respondi, tentando sorrir.

Ela pôs a mão sobre a minha. Era a primeira vez que nos tocávamos. Segurei

aquela mão. Trouxe para o meu rosto. Até os meus olhos. E, depois, a soltei.

 

— É melhor você voltar lá para dentro — disse. — Senão, seu pai vai acabar

vindo atrás de mim.

Ela sorriu e concordou.

 

— É melhor mesmo. — E se virou para entrar no quarto.

— Soraya!

— O quê?

— Estou feliz por você ter vindo. Significa... tudo para mim.

BABA TEVE ALTA DOIS DIAS DEPOIS. Trouxeram um especialista em radiação oncológica

para conversar sobre as possibilidades de um tratamento com essa técnica. Ele

recusou. Vieram me pedir que tentasse falar com ele para convencê-lo. Mas vi a

expressão que havia em seu rosto. Agradeci, assinei os formulários e levei baba para

casa no meu Ford Torino,

 

Naquela mesma noite, ele estava deitado no sofá, coberto com uma manta de lã.

Trouxe-lhe chá quente e amêndoas torradas. Passei os braços por suas costas e ergui o

seu tronco com a maior facilidade. Os ossos dos seus ombros pareciam asas de pássaro

sob os meus dedos. Puxei o cobertor de volta para cobri-lo até o peito, onde se viam as

costelas desenhadas sob a pele fina e macilenta.

 

 

 

— Quer mais alguma coisa, baba?

— Não, bachem. Muito obrigado. Sentei ao seu lado.

— Então, quem sabe você não faria uma coisa para mim? Se não estiver cansado

demais.

— O que é?

— Queria que você fosse khastegari. Que pedisse ao general Taheri a mão da filha

dele em casamento.

Os seus lábios ressecados se entreabriram em um sorriso. Um pontinho de verde

em uma folha murcha.

 

— Tem certeza? — indagou ele.

— Como nunca tive em toda a minha vida.

— Já pensou bastante sobre o assunto?

— Balay, baba.

— Então, passe o telefone. E traga também o meu caderninho.

— Agora? — perguntei espantado.

— Quando seria, então?

— Tudo bem — disse eu sorrindo. Fui apanhar o telefone e o caderninho preto

onde baba tinha anotado os números dos seus amigos afegãos. Ele procurou o dos

Taheri. Discou. Levou o fone ao ouvido. E o meu coração fazia piruetas dentro do

peito.

— Jamila jan? Salaam alaykum — disse ele. Identificou-se. Fez uma pausa. —

Bem melhor, obrigado. Foi tão gentil terem vindo me ver... — Ficou ouvindo. Assentiu

com a cabeça. — Não vou esquecer, obrigado. O general sahib está? — Pausa. —

Obrigado.

 

Piscou o olho para mim. Por alguma razão, eu estava com vontade de rir. Ou de

gritar. Levei a mão à boca e a mordi. Baba riu baixinho, pelo nariz.

 

— General sahib, salaam alaykum... Estou, sim, muito melhor... Balay... Muita

gentileza sua. Estou ligando, general sahib, para saber se posso fazer uma visita ao

senhor e a khanum Taheri amanhã de manhã. É um assunto importante... É... Às

onze horas está ótimo. Até lá, então. Khoda hafez.

Desligou. Olhamos um para o outro. Caí na risada. E baba também.

 

BABA MOLHOU O CABELO, PENTEANDO-O todo para trás. Ajudei-o a vestir uma camisa

branca e, quando dei o nó da sua gravata, reparei o espaço sobrando entre o botão do

colarinho e o seu pescoço. Pensei em todos os espaços vazios que baba ia deixar atrás

de si depois que se fosse, e fiz um esforço enorme para pensar em outra coisa. Ele

não tinha ido embora. Ainda não. E esse era um dia para pensar em coisas boas. O

paletó do terno marrom, aquele mesmo que ele tinha usado na minha formatura, ficou

dançando no seu corpo — baba já não conseguia preenchê-lo todo. Tive de dobrar as

mangas. Depois, me agachei e amarrei os cadarços dos seus sapatos.

 

Os Taheri moravam em uma casa térrea de uma das áreas residenciais de Fremont,

conhecida por abrigar uma grande quantidade de afegãos. Tinha aquelas janelas

salientes, telhado pontudo e a porta da frente dando para uma varandinha onde vi

vasos plantados com gerânios. A caminhonete cinzenta do general estava estacionada

na entrada.

 

Ajudei meu pai a sair do carro e voltei para o volante. Ele se inclinou na janela

do lado do carona.

 

 

 

— Fique em casa — disse. — Telefono para você daqui a uma hora.

— Está certo, baba — respondi. — Boa sorte.

Ele sorriu.

Eu fui embora. Pelo retrovisor, vi baba caminhando um tanto trôpego até

a

porta da casa para cumprir uma última obrigação paterna.

 

FIQUEI ANDANDO DE UM LADO PARA O OUTRO da sala lá de casa, esperando pelo telefonema de

meu pai. Quinze passos no comprimento. Dez e meio na largura. E se o general

dissesse que não? E se me detestasse? Vira-e-mexe, ia até a cozinha para olhar as

horas no relógio do forno.

 

Pouco antes do meio-dia, o telefone tocou. Era baba.

 

— E aí?

— O general concordou.

Soltei uma baforada de ar. Sentei. Minhas mãos estavam tremendo.

— Concordou?

— É, mas Soraya jan está lá em cima, no quarto. Quer falar com você antes.

— Tudo bem.

Baba disse alguma coisa para alguém e, depois, veio o clique indicando que ele

tinha posto o fone no gancho.

 

— Amir? — disse a voz de Soraya.

— Salaam.

— Meu pai disse que sim.

— Eu sei — respondi. Sacudi as mãos. Estava sorrindo. — Estou tão feliz que

nem sei o que dizer.

— Também estou feliz, Amir... Mal posso acreditar que isso esteja acontecendo.

— Eu sei — exclamei, rindo.

— Ouça... — disse ela. — Quero lhe contar uma coisa. Uma coisa que você

precisa saber antes de...

— Seja lá o que for, não me importa.

— Você precisa saber. Não quero começar algo já com segredos. E é melhor que

fique sabendo por mim mesma.

— Se vai se sentir melhor assim, então conte. Mas saiba que isso não vai alterar

nada.

Houve uma longa pausa do outro lado da linha.

 

— Quando morávamos na Virgínia, fugi com um afegão. Tinha dezoito anos

nessa época... era rebelde... uma idiota, e... ele estava metido com drogas... Vivemos

juntos por quase um mês. Todos os afegãos da Virgínia comentavam o assunto.

"Padar acabou nos encontrando. Apareceu na nossa porta e me mandou voltar

para casa. Eu estava histérica. Gritando. Berrando. Dizendo que o odiava...

 

"Mas voltei para casa e... — ela estava chorando. — Desculpe. — Ouvi quando

pôs o fone em algum lugar. Assoou o nariz. — Desculpe — disse ela ao voltar, com a

voz rouca. — Quando cheguei em casa, vi que minha mãe tinha tido um AVC, que o

lado direito do seu rosto tinha ficado paralisado e... me senti tão culpada... Ela não

merecia isso.

 

"Logo depois, padar decidiu que nos mudaríamos para a Califórnia." — Ela se

calou.

 

— Como é o seu relacionamento com seu pai agora? — perguntei.

 

 

— Sempre tivemos as nossas diferenças, e continuamos tendo, mas sou muito grata

a ele por ter ido me buscar naquele dia. Acredito mesmo que ele me salvou. —

Voltou a se calar. — E então, não está aborrecido com o que lhe contei?

— Um pouco — respondi. Eu lhe devia a verdade. Não podia mentir para ela,

dizendo que o meu amor-próprio, meu iftikhar, não estava ferido pelo fato de ela ter

vivido com um homem ao passo que eu jamais tinha levado uma mulher para a cama.

Aquilo me incomodava um pouco, mas tinha pensado muito a este respeito durante

semanas, antes de pedir que baba fosse khastegari. E, no final das contas, a pergunta

que acabava sempre se impondo era: como é que eu, entre todas as pessoas, poderia

punir alguém pelo seu passado?

— Incomoda o suficiente para fazer você mudar de idéia? — perguntou ela.

— Não, Soraya. Nem de longe — respondi. — Nada do que você disse muda

coisa alguma. Quero me casar com você.

 

Ela começou a chorar.

 

Fiquei com inveja. O seu segredo não existia mais. Tinha sido dito. Era coisa

 

resolvida. Abri a boca e quase lhe contei como tinha traído Hassan, mentido, mandado

ele embora e destruído a relação de quarenta anos que existia entre baba e Ali. Mas

não disse nada. Comecei a achar que, em muitos aspectos, Soraya Taheri era uma

pessoa melhor que eu. Coragem era apenas um deles.

 

 

 

TREZE

 

 

NA NOITE SEGUINTE, QUANDO CHEGAMOS à casa dos Taheri para o lafz, a cerimônia em

que os pais dos noivos empenham a palavra, tive de estacionar o Ford do outro lado

da rua, pois tudo por ali já estava abarrotado de carros. Estava usando um terno

azul-marinho que comprei na véspera, depois de deixar meu pai em casa após o

khastegari. Verifiquei a gravata no retrovisor.

 

— Você está khoshteep — disse ele. Lindo.

— Obrigado, baba. Você está bem? Acha que está em condições de enfrentar o

que temos pela frente?

— Se estou em condições? Hoje é o dia mais feliz da minha vida, Amir —

respondeu ele com um sorriso cansado.

 

ATRAVÉS DA PORTA FECHADA, podíamos ouvir gente falando, rindo, e música afegã

tocando baixinho — parecia um ghazal clássico, executado por Ustad Sarahang. Toquei

a campainha. Por detrás das cortinas da janela do vestíbulo surgiu um rosto que logo

desapareceu. Ouvi uma voz de mulher dizendo "Eles chegaram!". Pararam as conversas.

Alguém desligou o som.

 

Khanum Taheri veio abrir a porta.

 

— Salaam alaykum — disse ela, radiante. Percebi que tinha feito permanente no

cabelo e estava usando um vestido preto, longo e muito elegante. Quando entrei no

vestíbulo, os seus olhos se encheram de lágrimas.

— Nem bem você pôs os pés aqui em casa, Amir jan, e eu já estou chorando... —

disse ela.

Beijei a sua mão, seguindo à risca as instruções que baba tinha me dado na

véspera.

 

Pelo corredor todo iluminado, ela nos conduziu até a sala de visitas. Nas paredes

revestidas com lambris de madeira, vi retratos das pessoas que passariam a ser a minha

nova família. Khanum Taheri bem jovem, com o cabelo todo armado, e o general —

como pano de fundo, as cataratas do Niágara; khanum Taheri usando uma espécie de

cafetã e o general, sem a calvície e de cabelo preto, vestindo um paletó de lapela estreita

e gravata bem fininha; Soraya prestes a entrar em uma montanha-russa de madeira,

acenando e sorrindo, e o sol refletindo nos aros metálicos do aparelho em seus

 

 

 

dentes. Uma foto do general, envergando o seu uniforme de gala, e apertando a mão do

rei Hussein, da Jordânia. Um retrato de Zahir Shah.

 

A sala de visitas estava cheia, com uns vinte e tantos convidados sentados em

cadeiras dispostas ao longo das paredes. Quando meu pai entrou, todos se

levantaram. Demos a volta na sala — ele na frente, andando bem devagarinho; eu,

atrás — para cumprimentar todo mundo. O general — com o indefectível terno cinza —

e baba se abraçaram, dando tapinhas nas costas um do outro. Ambos disseram

"'salaam''' em voz baixa, em um tom respeitoso.

 

O general estendeu os braços e me segurou pelos ombros, com um sorriso

decidido, como que dizendo "Agora, sim! Esse é o jeito certo — o jeito afegão — de se

fazerem essas coisas, bachem". E nos beijamos três vezes no rosto.

 

Meu pai e eu nos sentamos naquela sala lotada, um ao lado do outro, defronte

do general e de sua esposa. A respiração de baba estava um tanto ofegante e ele

ficou enxugando o suor da testa e da cabeça com o lenço. Quando viu que eu estava

olhando, deu um sorriso forçado.

 

— Estou ótimo — declarou.

Como manda a tradição, Soraya não estava presente.

Por alguns minutos, todos continuaram conversando, até que o general

pigarreou. A sala ficou em silêncio e todos baixaram os olhos, fitando as próprias mãos,

em uma atitude respeitosa. O general acenou então com a cabeça na direção de meu

pai.

 

Baba também limpou a garganta. Quando começou a falar, não conseguia dizer

uma frase completa sem fazer uma pausa para tomar fôlego.

 

— General sahib, khanum Jamila jan... é com toda humildade que meu filho e eu...

estamos aqui em sua casa hoje. Vocês são... pessoas de bem... de famílias conhecidas e

respeitáveis, e... de ascendência honrosa. Estou aqui apenas com o maior ihtiram... e o

mais profundo respeito por vocês, pelo nome de sua família e pela memória... dos seus

antepassados. — Fez uma pausa. Tomou fôlego. Enxugou a testa. — Amir jan é o meu

único filho... meu filho único, e tem sido muito bom para mim. Espero que se mostre...

merecedor da sua bondade. Peço-lhes que concedam a Amir jan e a mim mesmo... a

honra de aceitarem o meu filho em sua família. O general assentiu com gentileza.

— Nós é que nos sentimos honrados em acolher o filho de um homem como

você em nossa família — disse ele. — A sua reputação é bem conhecida por todos

nós. Eu era um humilde admirador seu já em Cabul, e continuo sendo hoje em dia. É

uma honra para nós podermos unir sua família com a nossa.

"Quanto a você, Amir jan, eu o recebo de braços abertos em minha casa, como

um filho, como o marido de minha filha que é a luz, a noor dos meus olhos. A sua dor

será a nossa dor; a sua alegria, a nossa alegria. Espero que possa vir a considerar sua

khala Jamila e eu mesmo como seus segundos pais, e rezo para que você e nossa

querida filha Soraya jan sejam muito felizes. Vocês dois têm a nossa bênção."

 

Todos aplaudiram e, a este sinal, as cabeças se voltaram para o corredor. Era o

momento que eu estava esperando ansiosamente.

 

Soraya apareceu, vestindo um magnífico traje tradicional afegão de mangas

longas, cor de vinho enfeitado de dourado. Baba segurou a minha mão e a apertou.

Khanum Taheri começou a chorar. Lentamente, Soraya veio até onde nós estávamos,

seguida por um cortejo de jovens parentas.

 

Beijou as mãos de meu pai. Finalmente, sentou ao meu lado, com os olhos baixos.

 

 

 

Os aplausos se tornaram ainda mais fortes.

 

DE ACORDO COM A TRADIÇÃO, A FAMÍLIA de Soraya ficava encarregada de organizar a festa

de noivado, a shirini-khori, ou a cerimônia do "comer os doces". Depois, viria um

período de noivado, que devia durar alguns meses. Só então haveria o casamento, que

ficaria por conta de meu pai.

 

Todos concordamos que Soraya e eu íamos dispensar a shirini-khori. Como

todo mundo sabia muito bem por quê, ninguém precisou efetivamente expor os

motivos: baba não teria alguns meses de vida.

 

Enquanto se faziam os preparativos para o casamento, Soraya e eu nunca

saíamos sozinhos, pois, já que ainda não estávamos casados, e nem mesmo tínhamos

tido uma shirini-khori, isso não era considerado adequado. Tinha que me contentar

então em ir jantar na casa dos Taheri, com baba. Sentar defronte de Soraya à mesa e

ficar imaginando como seria sentir a cabeça dela no meu peito, o perfume do seu

cabelo, beijá-la, fazer amor com ela...

 

Baba gastou trinta e cinco mil dólares, praticamente a totalidade das suas

economias, no awroussi, a cerimônia do casamento. Alugou um grande salão de

banquetes em Fremont — o proprietário era um afegão conhecido seu de Cabul, que

lhe deu um desconto considerável. Também foi ele quem comprou as chilas, as

nossas alianças de casamento, e o anel de brilhantes que escolhi. Comprou ainda o

meu smoking e o tradicional terno verde para o nika, a cerimônia do juramento.

 

De toda aquela loucura dos preparativos para a noite do casamento — felizmente

khanum Taheri e suas amigas se encarregaram de quase tudo —, só me lembro de

uns poucos momentos aqui e ali.

 

Lembro de nosso nika. Soraya e eu estávamos sentados em volta da mesa, ambos

vestidos de verde — a cor do islã, mas também a cor da primavera e dos novos

começos. Eu estava de terno e Soraya (a única mulher naquela mesa) usava um vestido

de mangas compridas, com um véu. Meu pai, o general Taheri (desta vez de smoking)

e vários tios de Soraya também estavam sentados ali junto conosco. Soraya e eu

mantínhamos os olhos baixos, em uma atitude solene de respeito. Mas, de vez em

quando, olhávamos um para o outro disfarçadamente. O mulá fez perguntas às

testemunhas e leu passagens do Corão. Pronunciamos os nossos juramentos.

Assinamos as certidões. Um dos tios de Soraya, lá da Virgínia, Sharif jan, irmão de

khanum Taheri, se levantou e pigarreou. Soraya já tinha me dito que ele morava nos

Estados Unidos há mais de vinte anos, trabalhava no serviço de imigração e era casado

com uma americana. Mas também era poeta. O homenzinho franzino, com cara de

pássaro e uma basta cabeleira, leu um imenso poema dedicado a Soraya que tinha sido

escrito em um daqueles papéis de carta de hotel.

 

— Wah wah, Sharif jan — exclamaram todos quando ele terminou.

Lembro de ir andando até o palco, agora de smoking, e Soraya usando um pari

branco, com um véu. Estávamos de mãos dadas. Baba ia caminhando ao meu lado,

um tanto trôpego, enquanto o general e a esposa iam ao lado de Soraya. Um cortejo

de tios, tias e primos nos acompanhou no trajeto até o salão, atravessando um mar

de convidados que batiam palmas, e piscando diante do flash das máquinas

fotográficas. Um dos primos de Soraya, filho de Sharif jan, ficou segurando um Corão

acima das nossas cabeças enquanto íamos avançando devagar. Dos alto-falantes vinha

 

 

 

o som da cantiga nupcial, "Ahesta boro", a mesma que aquele soldado russo tinha

cantado lá no posto de controle de Mahipar, na noite em que baba e eu saímos de

Cabul:

Transforme a manhã em uma chave e atire-a no poço

 

Vá devagar, minha linda lua, vá devagar.

 

Deixe que o sol da manhã esqueça de se erguer a leste

 

Vá devagar, minha linda lua, vá devagar.

 

Lembro que sentei no sofá instalado no palco como se fosse um trono,

segurando a mão de Soraya, diante de uns trezentos rostos ou quase isso, todos

olhando para nós. Fizemos ayena masshaf, que é quando nos entregam um espelho e

põem um véu sobre as nossas cabeças para que, sozinhos, possamos contemplar a

imagem um do outro. Olhando o rosto sorridente de Soraya naquele espelho, na

privacidade momentânea que o véu nos proporcionava, sussurrei para ela, pela primeira

vez, que a amava. E o seu rosto ficou vermelho, como se tivesse sido tingido com

hena.

 

Tenho uma vaga lembrança das travessas coloridas com chopan kabob, sholehgoshti

e arroz com laranja azeda. Vejo baba sentado no sofá, entre nós dois, sorrindo.

Lembro de homens, encharcados de suor, dançando a tradicional attan, formando uma

roda, pulando, girando cada vez mais rápido ao ritmo febril da tabla, até que a grande

maioria não agüentava mais e acabava saindo da roda. Lembro de ter desejado que

Rahim Khan estivesse lá.

 

E lembro de ter me perguntado se Hassan também teria se casado. E se tivesse,

que rosto teria contemplado no espelho por baixo do véu. Que mãos pintadas de hena

teria segurado.

 

POR VOLTA DAS DUAS HORAS DA MANHÃ, a festa se transferiu do salão de banquetes para o

apartamento de meu pai. O chá voltou a rolar e a música tocou até que os vizinhos

chamaram a polícia. Mais tarde, naquela mesma noite, menos de uma hora antes do

nascer do sol, e depois que os convidados tinham finalmente ido embora, Soraya e eu

nos deitamos juntos pela primeira vez. A vida toda, tinha estado cercado de homens.

Nessa noite, descobri a ternura de uma mulher.

 

FOI SORAYA QUE SUGERIU QUE ELA viesse morar com baba e comigo.

 

— Pensei que você preferisse que tivéssemos uma casa só para nós — disse eu.

— Com kaka jan doente como está? — retrucou ela. Seus olhos me diziam que

aquela não era a maneira ideal de se começar um casamento. Eu a beijei.

— Obrigado — disse.

Soraya passou a cuidar de meu pai com a maior dedicação. Preparava o chá e as

torradas para ele de manhã, e o ajudava a se levantar e a se deitar. Dava-lhe os

remédios para dor, lavava as suas roupas, e, toda tarde, lia para ele a seção

internacional do jornal. Fazia o seu prato favorito, shorwa de batata, embora ele mal

conseguisse comer algumas colheradas, e o levava para dar uma voltinha no

 

 

 

quarteirão todos os dias, E, quando ele não pôde mais se levantar da cama, tomava

 

o cuidado de virá-lo de hora em hora, para evitar que se formassem escaras.

Um dia, cheguei da farmácia com as pílulas de morfina. Assim que fechei a

porta, vi de relance Soraya tratando de esconder algo bem depressa debaixo do

cobertor de baba.

 

— Ei, eu vi! O que é que vocês dois estavam fazendo? — perguntei.

— Nada — respondeu Soraya sorrindo.

— Mentirosa. — Levantei o cobertor. — O que é isso? — indaguei, muito embora

tivesse entendido tudo desde o instante em que pus as mãos no caderno encapado de

couro. Passei os dedos por aquelas bordas debruadas de dourado. Lembrei dos fogos de

artifício na noite em que Rahim Khan me deu esse caderno de presente, na noite da

festa do meu aniversário de treze anos; lembrei dos clarões zumbindo e explodindo em

buquês vermelhos, verdes e amarelos.

— Não consigo acreditar que você possa escrever assim... — disse Soraya.

Meu pai fez um esforço para erguer a cabeça do travesseiro.

— A idéia foi minha. Espero que você não se importe.

Devolvi o caderno a Soraya e saí do quarto. Baba detestava me ver chorando.

QUANDO ESTÁVAMOS FAZENDO UM MÊS de casados, os Taheri, Sharif, sua mulher, Suzy, e

várias tias de Soraya vieram jantar em nosso apartamento. Soraya preparou sabzi

challow, arroz branco com espinafre e carneiro. Depois do jantar, todos nós tomamos

chá verde e fomos jogar cartas divididos em grupos de quatro. Soraya e eu jogamos com

Sharif e Suzy na mesinha de centro, perto do sofá onde baba estava deitado e coberto

com uma manta de lã. Ele ficou olhando e me viu brincar com Sharif, viu que Soraya

e eu estávamos de mãos dadas viu quando ajeitei uma mecha do seu cabelo que tinha

se soltado. Eu podia perceber que ele sorria por dentro, um sorriso tão grande quanto

os céus de Cabul nas noites em que os choupos farfalhavam e o barulho dos grilos se

espalhava pelos jardins.

 

Pouco antes da meia-noite, ele nos pediu para levá-lo para a cama. Soraya e eu

passamos seus braços em nossos ombros e, com os nossos, envolvemos suas costas.

Depois que o deitamos, Soraya apagou a lâmpada da mesinha de cabeceira. Ele pediu

que nos abaixássemos e deu um beijo em cada um.

 

— Volto logo com a sua morfina e um copo de água, kaka jan — disse

Soraya.

— Essa noite não precisa — disse ele. — Não estou com dor hoje.

— Então, está bem — respondeu ela. Cobriu-o com o cobertor.

Fechamos a porta.

Baba nunca mais acordou.

TODAS AS VAGAS DO ESTACIONAMENTO da mesquita de Hayward estavam ocupadas. No

gramado um tanto falhado que ficava nos fundos do prédio, vários carros e furgões

tinham parado onde quer que houvesse uma vaga. As pessoas tinham que ir três ou

quatro quarteirões adiante da mesquita para conseguir um lugar para estacionar.

 

O setor masculino da mesquita era um amplo salão quadrado, recoberto de

tapetes afegãos e colchões bem fininhos dispostos em linhas paralelas. Filas de

homens entravam ali, deixando os sapatos na porta, e vinham se sentar de pernas

 

 

 

cruzadas sobre os colchonetes. Um mulá cantava surrahs do Corão ao microfone. Eu me

sentei perto da entrada, no lugar tradicionalmente reservado à família do morto. O

general Taheri se sentou ao meu lado.

 

Pela porta aberta, podia ver filas de carros chegando, com o sol refletindo nos

pára-brisas. As pessoas iam descendo dos carros: homens usando ternos escuros,

mulheres trajando vestidos pretos, e todas elas com a cabeça coberta com o

tradicional hijab branco.

 

Enquanto as palavras do Corão ressoavam pela sala, lembrei da velha história de

baba enfrentando um urso negro lá no Baluquistão.

 

Meu pai passou a vida inteira enfrentando ursos. Perdeu a jovem esposa. Teve de

criar um filho sozinho. Precisou abandonar a sua querida terra natal, o seu watan.

Conheceu a pobreza. A indignidade. Até que, afinal, apareceu um urso que ele não

conseguiu derrotar. Mas, mesmo então, perdeu sem deixar de ditar as regras.

 

Depois de cada seqüência de orações, grupos de pessoas faziam fila e vinham me

cumprimentar antes de sair. Apertei todas aquelas mãos, como era de praxe. Muitos

deles eu mal conhecia. Sorria educadamente, agradecia a todos por suas palavras,

ouvia o que quer que tivessem a dizer sobre baba,

 

— ...me ajudou a construir minha casa em Taimani...

— ...o abençoe...

— ...ninguém mais a quem recorrer e ele me emprestou...

— ...me arranjou um emprego... mal me conhecia...

— ...como um irmão para mim...

Ouvindo-os falar, percebi como boa parte de quem eu era, boa parte do que eu

era tinha sido definido por baba e pelas marcas que ele deixou na vida das pessoas.

Durante toda a minha vida, fui "o filho de baba". Agora, ele tinha ido embora. Nunca

mais poderia me mostrar o caminho a seguir. E eu ia ter que descobrir isso sozinho.

 

Essa idéia me deixou aterrorizado.

 

Um pouco mais cedo, durante o sepultamento, no pequeno setor muçulmano do

cemitério, fiquei olhando enquanto baixavam o corpo de baba no túmulo. O mulá e

um outro homem começaram a discutir sobre qual seria o ayat do Corão mais

adequado para se recitar naquela ocasião. A coisa podia ter ficado feia se o general

Taheri não houvesse interferido. O mulá acabou escolhendo um ayat e o recitou

lançando olhares furiosos ao outro indivíduo. Vi quando atiraram a primeira pá de

terra na sepultura. Então, fui embora. Saí andando para o outro lado do cemitério.

Sentei à sombra de um bordo vermelho.

 

Agora, as últimas pessoas presentes já tinham vindo me dar os pêsames e não

havia mais ninguém na mesquita, a não ser o mulá desligando o microfone e

embrulhando o Corão em um pano verde. O general e eu saímos ao sol do fim de

tarde. Descemos a escada, passando por grupos de homens que fumavam. Ouvi trechos

das suas conversas, um jogo de futebol em Union City na semana que vem, um novo

restaurante afegão em Santa Clara. Era a vida que continuava deixando baba para

trás.

 

— Como você está, bachem? — perguntou o general Taheri.

Cerrei os dentes. Engoli as lágrimas que tinham me ameaçado durante todo o

dia.

 

— Vou procurar Soraya — respondi.

— Está bem.

 

 

Fui andando para o lado feminino da mesquita. Soraya estava de pé na escada,

junto com a mãe e duas outras senhoras que lembrava de ter visto no dia do nosso

casamento. Acenei. Ela disse alguma coisa à mãe e veio ao meu encontro.

 

— Podemos andar um pouco? — perguntei.

— Claro — disse ela, pegando a minha mão.

Saímos andando em silêncio por um caminho de cascalho sinuoso cercado de

arbustos. Sentamos em um banco e ficamos olhando para um casal mais idoso que se

ajoelhou diante de um túmulo, pouco mais adiante, e depositou um buquê de

margaridas perto da lápide.

 

— Soraya?

— O quê?

— Vou sentir falta dele.

Ela pôs a mão no meu colo. A chila comprada por baba reluziu no seu dedo

anular. Por trás de Soraya, vi as pessoas que tinham vindo para o enterro dele indo

embora pelo Mission Boulevard. Logo, logo nós também iríamos embora e, pela

primeira vez na vida, baba ficaria inteiramente só.

 

Soraya me puxou para si e, finalmente, as lágrimas vieram.

 

JÁ QUE SORAYA E EU NÃO TÍNHAMOS TIDO um período de noivado, foi só depois de entrar

para a família que passei a conhecer os Taheri. Por exemplo, fiquei sabendo que, uma

vez por mês, o general tinha umas enxaquecas, com perturbação de visão, que

duravam quase uma semana. Quando isso acontecia, ele ia para o quarto, tirava a

roupa, apagava as luzes, trancava a porta e só saía de lá depois que a dor tivesse

passado. Ninguém podia entrar naquele quarto; ninguém podia bater naquela porta.

Finalmente, o general aparecia, novamente com o terno cinzento, com cheiro de sono e

roupa de cama, e os olhos vermelhos e inchados. Fiquei sabendo, por Soraya, que ele e

khanum Taheri dormiam em quartos separados desde que ela se entendia por gente.

Fiquei sabendo que o general podia ser bem ranheta, fazendo coisas como, por

exemplo, provar a qurma que a esposa punha à sua frente, dar um suspiro e empurrar o

prato. "Vou preparar outra coisa para você", dizia então khanum Taheri. Ele, porém, a

ignorava, fazia uma cara amuada e comia pão com cebola. Aquilo deixava Soraya

furiosa e fazia sua mãe chorar. Ela me disse que o pai tomava anti-depressivos. Fiquei

sabendo ainda que ele mantinha a família graças à seguridade social e nunca tentou

arranjar emprego nos Estados Unidos, pois preferia embolsar os cheques emitidos

pelo governo a se degradar trabalhando em coisas que não estivessem à altura de

um homem como ele — considerava a feirinha de antiguidades apenas um bobby,

uma oportunidade de ter contato com os seus compatriotas afegãos. O general

acreditava que, mais cedo ou mais tarde, o Afeganistão seria libertado, a monarquia,

restaurada, e os seus serviços voltariam a ser requisitados. Portanto, todos os dias

vestia o terno cinzento, dava corda no relógio de bolso, e ficava esperando.

 

Soube também que khanum Taheri — que eu agora chamava de khala Jamila

 

— tinha sido famosa em Cabul por sua magnífica voz. Embora nunca tenha cantado

profissionalmente, tinha talento para isso — fiquei sabendo que cantava música

folclórica, ghazals e até mesmo raga, que é geralmente reservada aos homens. Mas,

assim como apreciava ouvir música — e possuía efetivamente uma coleção

considerável de fitas de ghazals clássicos, interpretados por cantores afegãos e

indianos —, o general acreditava que mais valia deixar sua interpretação por conta de

 

 

gente menos respeitável. Que khanum Taheri jamais se apresentasse em público

tinha sido uma das condições impostas pelo general quando eles se casaram. Soraya me

disse que a mãe queria cantar no dia do casamento, nem que fosse uma única

canção, mas o general lhe lançou um daqueles seus olhares e deu o assunto por

encerrado. Khala Jamila jogava na loto uma vez por semana e assistia ao programa de

Johnny Carson toda noite. Passava os dias no jardim, cuidando das suas rosas, dos

seus gerânios, das suas trepadeiras e das suas orquídeas.

 

Quando me casei com Soraya, as flores e Johnny Carson passaram para o

segundo plano. Eu virei a nova curtição da vida de khala Jamila. À diferença do

general, que mantinha o seu jeito contido e diplomático — nem me corrigiu quando

continuei a chamá-lo "general sahib" —, khala Jamila sequer tentava disfarçar o

quanto me adorava. E por uma razão muito simples: eu a ouvia desfiar a sua incrível

lista de doenças, ao passo que o general já não dava atenção a isso há muito tempo.

Soraya me disse que, desde que a mãe tinha tido o AVC, cada palpitação que tivesse era

um ataque cardíaco; cada dor nas articulações, uma crise de artrite reumatóide; e cada

espasmo no olho, um novo AVC. Lembro da primeira vez que khala Jamila me falou

de um caroço que tinha aparecido em seu pescoço.

 

— Vou faltar à aula amanhã e levá-la ao médico — disse eu.

Ao ouvir isso, o general sorriu e comentou:

— Então talvez você devesse deixar os livros de lado de uma vez por todas,

bachem. O histórico das consultas de sua khala ao médico é como a obra de Rumi: se

apresenta em vários volumes.

Mas não era só porque tinha conseguido uma platéia para os seus monólogos

sobre doenças que ela me tratava daquele jeito. Estava convencido de que, se eu

pegasse um rifle e começasse uma escalada assassina, ainda assim continuaria a contar

com o amor incondicional de khala Jamila. Porque tinha livrado o seu coração da mais

grave das doenças. Tinha eliminado o maior medo de todas as mães afegãs: o de que

nenhum khastegar respeitável viesse pedir a mão de sua filha em casamento. Que a sua

filha fosse envelhecer sozinha, sem marido, sem filhos. E toda mulher precisa de um

marido. Mesmo que ele faça calar a canção que existe nela.

 

Foi também pela própria Soraya que fiquei sabendo dos detalhes do que tinha

acontecido na Virgínia.

 

Estávamos em um casamento. O tio dela, Sharif, aquele que trabalhava para o

serviço de imigração, estava casando o filho com uma moça afegã de Newark. A

cerimônia foi no mesmo salão de festas onde, seis meses antes, Soraya e eu tivemos

nosso awroussí. Estávamos no meio de um monte de convidados, vendo a noiva

aceitar o anel da família do noivo, quando ouvimos duas mulheres de meia-idade

conversando atrás de nós.

 

— Que noiva linda! — disse uma delas. — Olhe só para ela. Tão maghbool,

parece até a lua.

— É mesmo — concordou a outra. — E pura também. Virtuosa. Nunca teve

sequer um namorado.

— Eu sei. E acho que esse rapaz fez muito bem em não se casar com a prima.

Soraya desabou no caminho de volta para casa. Aproximei o Ford do meio-fio e

estacionei junto a um poste, no Fremont Boulevard.

 

 

 

— Está tudo bem — disse eu pondo o seu cabelo para trás. — Por que dar

importância a isso?

— Mas que merda! É tão injusto! — exclamou ela quase gritando.

— Esqueça.

— Os filhos delas vão para as boates à procura de carne fresca e engravidam as

namoradas; têm filhos fora do casamento e ninguém faz nenhum maldito comentário.

Ah! são apenas homens se divertindo! Já eu cometo um erro e, de repente, todo mundo

está falando de nang e namoos, e tenho que passar o resto da vida ouvindo jogarem

isso na minha cara!

Com o polegar, enxuguei uma lágrima que vinha rolando pelo seu rosto, logo

acima daquela marca de nascença.

 

— Não lhe contei — disse Soraya dando umas batidinhas nos olhos —, mas,

naquela noite, meu pai apareceu lá com um revólver. Disse... a ele... que tinha duas

balas no tambor, uma para matá-lo e a outra para si mesmo, caso eu não voltasse para

casa. Fiquei gritando, xingando meu pai de tudo que é palavrão, dizendo que ele não

podia me manter trancafiada para sempre, que adoraria vê-lo morto. — As lágrimas

escorriam por entre as suas pálpebras. — Disse isso, assim mesmo, que queria que ele

morresse.

"Quando me trouxe de volta para casa, minha mãe veio me abraçar e estava

chorando também. Ficou dizendo uma porção de coisas mas eu não consegui entender

nada, porque ela estava articulando as palavras com muita dificuldade. Então, meu

pai me levou para o meu quarto e me fez sentar diante do espelho grande. Pegou uma

tesoura e, com toda calma, me mandou cortar o cabelo. Ficou olhando enquanto eu

fazia o que ele tinha mandado.

 

"Passei várias semanas trancada em casa. E, quando voltei a sair ouvia as pessoas

murmurando coisas ou imaginava esses murmúrios por onde quer que passasse. Isso

aconteceu há quatro anos, e a quase cinco mil quilômetros daqui, mas ainda continuo

a ouvir esses murmúrios."

 

— Que se fodam! — exclamei eu.

Ela fez um barulho estranho, que parecia um soluço misturado com riso.

— Quando lhe contei essa história pelo telefone, na noite do khastegari,

tinha certeza de que você ia desistir.

— Impossível, Soraya.

Ela sorriu e pegou minha mão.

— Que sorte que tive de encontrar você. Alguém tão diferente de todos os

afegãos que jamais conheci.

— Não vamos mais voltar a falar disso, está bem?

— Está.

Dei-lhe um beijo no rosto e saí com o carro. Enquanto dirigia, fiquei me

perguntando por que eu seria diferente. Talvez porque tivesse sido criado por

homens; não cresci rodeado de mulheres e nunca tive de conviver diretamente com

aquele padrão de dois pesos, duas medidas com que a sociedade afegã trata os sexos

masculino e feminino. Talvez fosse também porque baba nunca tenha sido nem de

longe um pai afegão típico; era um liberal que sempre viveu de acordo com as

próprias regras, um insubmisso que desconsiderava ou adotava os costumes da

sociedade quando bem entendia.

 

 

 

Mas acho que boa parte da razão pela qual não me importava com o passado de

Soraya era o fato de eu também ter o meu. Arrependimento era um assunto que

conhecia muito bem...

 

POUCO DEPOIS DA MORTE DE BABA, Soraya e eu mudamos para um apartamento de quarto-

e-sala em Fremont, a umas poucas quadras da casa do general e de khala Jamila. Os

pais de Soraya compraram um sofá de couro marrom e um aparelho de jantar Mikasa,

como presente de inauguração para a casa nova. Mas o general me deu um presente

adiciona], uma máquina de escrever IBM, novinha em folha. Na caixa, ele pôs um

cartão escrito em farsi:

 

Amir jan,

 

espero que você encontre muitas histórias nessas teclas.

General Iqbal Taheri

 

 

Vendi a Kombi de baba e, desse dia em diante, nunca mais fui à feirinha de

antiguidades. Toda sexta-feira, ia de carro até o cemitério e às vezes, ao chegar,

encontrava um buquê de frésias frescas no túmulo dele. Ficava sabendo então que

Soraya também tinha passado por lá.

 

Nós dois estávamos começando a viver a rotina — e as pequenas maravilhas —

da vida de casados. Compartilhávamos escovas de dentes e meias, e trocávamos as

seções do jornal da manhã. Ela dormia do lado direito da cama; eu preferia o esquerdo.

Ela preferia travesseiros bem fofos; eu gostava dos mais duros. Ela comia os cereais

secos, como se fossem salgadinhos; eu tinha praticamente que pescá-los no leite.

 

Naquele verão, fui aceito pela San Jose State para me matricular na graduação em

inglês. Arranjei um emprego de segurança no depósito de uma loja de móveis em

Sunnyvale, para o turno da noite. O trabalho era incrivelmente chato, mas tinha uma

vantagem considerável: às seis da tarde, depois que todo mundo ia embora e as

sombras começavam a se espalhar por entre as fileiras de sofás cobertos de plástico

empilhados até o teto, eu pegava os meus livros e ia estudar. Foi no escritório com

cheiro de Pinho Sol daquele depósito de móveis que comecei a escrever o meu primeiro

romance.

 

No ano seguinte, Soraya também foi estudar na San Jose State e, para tristeza

do pai, se matriculou na habilitação para o magistério.

 

— Não sei por que você fica desperdiçando os seus talentos desse jeito... — disse o

general, certa noite, durante o jantar. — Você sabia, Amir jan, que ela só tirou conceito

"A" durante todo o segundo grau? — Depois, voltou-se novamente para ela. — Uma

garota inteligente como você podia vir a ser advogada, cientista política. E, Inshallah,

quando o Afeganistão for libertado, colaborar no sentido de escrever a nova

constituição. Vamos precisar muito de jovens afegãos talentosos como você. Podem

até lhe oferecer um cargo de ministra, em função do seu sobrenome.

Percebi que Soraya estava se contendo e que o seu rosto tinha se contraído.

 

— Não sou mais uma garota, padar. Sou uma mulher casada. E,

além do mais, também vão precisar de professores.

— Mas ensinar é coisa que qualquer um pode fazer.

— Tem mais arroz, madar? — perguntou Soraya.

 

 

Depois que o general se desculpou, dizendo que tinha de sair para encontrar uns

amigos em Hayward, khala Jamila tentou consolar a filha.

 

— Ele não faz isso por mal — disse ela. — Só quer que você seja uma pessoa

bem-sucedida.

— Porque, assim, ele vai poder se vangloriar da filha advogada para os amigos.

Mais uma medalha para o general — retrucou Soraya.

— Que bobagem que você está dizendo!

— Bem-sucedida... — sussurrou Soraya. — Pelo menos não sou como ele, que

fica aqui sentado, enquanto outras pessoas combatem os shorawi, só esperando a

poeira assentar para chegar lá e reclamar o seu cargo importantíssimo no governo. Os

professores não ganham bem, mas é a profissão que eu amo. E o que quero fazer, e,

aliás, é mil vezes melhor do que ficar vivendo da assistência pública.

Khala Jamila engoliu em seco.

 

— Se por acaso ele ouvir você dizendo isso, nunca mais vai falar com você.

— Não se preocupe — respondeu Soraya rispidamente, atirando o guardanapo

no prato. — Não vou ferir o precioso ego dele.

NO VERÃO DE 1988, CERCA DE SEIS MESES antes de os soviéticos se retirarem do

Afeganistão, terminei o meu primeiro romance, uma história entre pai e filho,

passada em Cabul, quase toda ela escrita na máquina de escrever que o general tinha

me dado. Mandei cartas para uma dezena de agências e fiquei espantadíssimo

quando, em um dia de agosto, abri a nossa caixa de correio e encontrei uma resposta

de uma agência de Nova York solicitando o manuscrito integral. Pus tudo no correio

logo no dia seguinte. Soraya beijou o texto cuidadosamente embalado e khala

Jamila insistiu para que o puséssemos debaixo do Corão. Disse que ia fazer nazr para

mim: ia prometer mandar matar um carneiro e dar a carne para os pobres se o meu

livro fosse aceito.

 

— Por favor, nada de fazer nazr, khala jan — disse eu, beijando-a no rosto. —

Faça apenas zakat, dando dinheiro para alguém que esteja precisando, está bem?

Nada de ficar matando carneiros...

 

Seis semanas depois, um homem chamado Martin Greenwalt telefonou de Nova

York oferecendo-se para me representar. A única pessoa a quem contei isso foi Soraya.

 

— O simples fato de eu ter arranjado um agente não significa que o livro vá ser

publicado. Se Martin conseguir vender o romance, aí, sim, vamos comemorar.

Um mês mais tarde, Martin ligou para me informar que eu ia ser um romancista

publicado. Quando falei com Soraya, ela começou a gritar.

Naquela noite, tivemos um jantar de comemoração com os pais dela. Khala

Jamila fez kofta — bolinhos de carne com arroz — e ferni branco. O general Taheri, com

um brilho de lágrimas nos olhos, disse que estava orgulhoso de mim. Depois que os dois

foram embora, Soraya e eu fizemos a nossa comemoração particular com uma garrafa

de Merlot bem cara que tinha comprado voltando para casa — o general não aprovava

mulheres tomando bebidas alcoólicas e Soraya não bebia na frente dele.

 

— Estou tão orgulhosa de você... — disse ela erguendo a taça em um brinde. —

Kaka também teria ficado muito orgulhoso.

 

— Sei disso — respondi, pensando em baba e em como seria bom que ele tivesse

podido ver isso.

 

 

Mais tarde, depois que Soraya pegou no sono — o vinho sempre a deixava

sonolenta —, fui para a varanda e fiquei respirando aquele ar fresco do verão. Lembrei

de Rahim Khan e do bilhetinho de estímulo que tinha escrito depois de ler minha

primeira história. E lembrei de Hassan. "Algum dia, Inshallah" você vai ser um grande

escritor," foi o que ele me disse certa vez, "e gente do mundo todo vai ler as suas

histórias". Tinha tanta coisa boa acontecendo na minha vida... Tanta felicidade... E

fiquei me perguntando se eu merecia isso.

 

O romance foi lançado no verão do ano seguinte, 1989, e a editora organizou

uma viagem de lançamento por cinco cidades. Passei a ser uma pequena celebridade na

comunidade afegã. E foi nesse ano que os shorawi completaram a sua retirada do

Afeganistão. Era para ter sido um momento de glória para o povo. Em vez disso,

porém veio a guerra, agora entre afegãos, os mujahedin contra o governo de

Najibullah, fantoche dos soviéticos, e refugiados continuaram a afluir em massa ao

Paquistão. Esse foi também o ano em que terminou a Guerra Fria, o ano em que veio

abaixo o Muro de Berlim. Foi o ano da praça da Paz Celestial. No meio disso tudo, o

Afeganistão ficou esquecido. E o general Taheri, cujas esperanças tinham ganhado vida

nova depois da retirada dos soviéticos, voltou a dar corda no relógio de bolso.

 

Foi também o ano em que Soraya e eu começamos a tentar ter um filho.

 

A IDÉIA DE SER PAI DESENCADEOU em mim um turbilhão de emoções. Achava a perspectiva

assustadora, fortalecedora, desanimadora e estimulante, tudo ao mesmo tempo. Que

tipo de pai eu seria, ficava imaginando. Queria ser exatamente como baba e ser

inteiramente diferente dele.

 

Mas um ano se passou e nada aconteceu. A cada menstruação, Soraya ia ficando

mais frustrada, mais impaciente, mais irritadiça. A essa altura, khala Jamila que, de

início, se limitava a insinuações sutis, começou a perguntar abertamente: "Kho

dega?", "E então? Quando é que vou poder cantar alahoo para o meu nawasa?" O

general, sempre o típico pashtun, nunca perguntava nada — fazer isso equivalia a

aludir ao ato sexual entre sua filha e um homem, mesmo que o homem em questão

fosse casado com ela há cerca de quatro anos. Mas os seus olhos se animavam

quando khala Jamila vinha com essa história de bebê.

 

— Às vezes demora um pouquinho — disse eu a Soraya certa noite.

— Um ano não é um pouquinho, Amir! — exclamou ela em um tom ríspido que

não era do seu feitio. — Eu sei que tem alguma coisa errada.

Então, vamos ao médico.

 

O DR. ROSEN, UM HOMEM BARRIGUDO, com uma cara redonda e dentes miúdos e

certinhos, falava com um leve sotaque da Europa oriental, algo remotamente eslavo.

Tinha mania de trens — seu consultório era entulhado de livros sobre a história das

ferrovias, miniaturas de locomotivas, quadros de trens correndo sobre trilhos,

passando por colinas verdejantes ou atravessando pontes. Sobre a mesa, uma

plaquinha afirmava: "A VIDA É UM TREM. SUBA A BORDO."

 

Expôs o seu plano de ação. Eu seria examinado primeiro. .

 

— Com os homens, é mais fácil — disse ele, tamborilando na escrivaninha de

mogno. — O encanamento de um homem é como o seu cérebro: simples, com muito

 

 

poucas surpresas. Por outro lado, vocês, mulheres... bem, Deus pensou e repensou

muito para fazê-las.

 

Fiquei me perguntando se ele empurrava essa história de encanamento para todos

os casais que vinham procurá-lo.

 

— Sorte a nossa... — disse Soraya.

O dr. Rosen riu. Um riso que não me pareceu lá muito convincente. Entregoume

um formulário de laboratório e um frasco de plástico, e deu a Soraya uma

requisição para exames de sangue de rotina. Despedimo-nos.

 

— Bem-vindos a bordo — disse ele ao nos levar até a porta.

MEUS RESULTADOS DERAM TODOS BONS.

 

Durante os meses seguintes, Soraya teve que passar por uma batelada de exames:

temperatura basal, exames de sangue para verificar as taxas de todos os hormônios

possíveis e imagináveis, exame de urina, um negócio chamado "exame de muco

cervical", ultrassonografias, mais exames de sangue e de urina. Ela foi submetida a

uma tal de histeroscopia — o dr. Rosen introduziu um instrumento chamado

histeroscópio no útero de Soraya e examinou tudo lá dentro. Não encontrou nada.

 

— Os encanamentos estão desobstruídos — anunciou ele retirando as luvas de

látex.

Adoraria que o dr. Rosen parasse de usar esse termo. Afinal de contas, não

éramos banheiros.

Depois de todos esses exames, ele nos informou que não sabia explicar por que

não conseguíamos ter filhos. E, aparentemente, isso não era tão raro assim. Era

chamado de "infertilidade sem causa aparente".

 

Veio, então, a fase dos tratamentos. Experimentamos um medica mento chamado

Clomifeno e hMG, uma série de injeções que Soraya aplicava em si mesma. Como

esses recursos não deram resultado, o dr. Rosen recomendou a fertilização in vitro.

Recebemos uma carta do nosso seguro médico nos desejando muito boa sorte, mas

informando que, lamentavelmente, não podiam cobrir as despesas com o processo.

 

Usamos o adiantamento que eu tinha recebido pelo romance para pagar o

tratamento. Este acabou se revelando demorado, meticuloso frustrante e, finalmente,

infrutífero. Depois de meses e meses em salas de espera, lendo revistas como Good

Housekeeping e Reader's Digest; depois de inúmeros aventais descartáveis e saletas de

exames frias e esterilizadas, iluminadas com lâmpadas fluorescentes; da invariável

humilhação de falar de cada detalhe de nossa vida sexual com um completo

desconhecido; das injeções, das sondas e das coletas de amostras, voltamos para o dr.

Rosen e seus trens.

 

Sentado defronte de nós, tamborilando na escrivaninha, ele mencionou a palavra

"adoção" pela primeira vez. Soraya chorou durante todo o trajeto de volta para casa.

 

No fim de semana que se seguiu à nossa última visita ao consultório do dr. Rosen,

Soraya deu a notícia aos pais. Estávamos sentados em cadeiras de armar no quintal

dos fundos da casa dos Taheri, assando trutas na grelha e tomando dogh de iogurte.

Era um fim de tarde do mês de março de 1991. Khala Jamila tinha regado as rosas e

as suas madressilvas novas, e o perfume dessas plantas se misturava com o cheiro do

peixe grelhado. Pela segunda vez, ela esticou o braço para acariciar o cabelo de Soraya,

dizendo:

 

 

 

— Deus sabe o que faz, bachem. Quem sabe é porque não era mesmo para

ser?

Soraya continuava olhando as próprias mãos. Eu sabia que ela estava cansada,

cansada de tudo isso.

 

— O doutor disse que poderíamos adotar... — murmurou.

Ao ouvir isso, o general levantou a cabeça. Chegou mais perto dachurrasqueira.

 

— Disse? — indagou ele.

— Disse que seria uma opção — respondeu Soraya.

Em casa, tínhamos conversado sobre o assunto. Na melhor das hipóteses, diria

que Soraya era ambivalente.

 

— Sei que é bobagem, e talvez até inútil — disse ela quando estávamos indo para a

casa de seus pais —, mas não consigo evitar. Sempre sonhei que ia segurar um bebê

nos braços e saber que o meu sangue o tinha alimentado por nove meses; que, um dia,

ia olhar nos olhos dele e tomar um susto vendo você ou eu ali; que o bebê ia crescer e

ter o seu sorriso ou o meu. Não sendo assim... É errado isso?

— Não — disse eu.

— Estou sendo egoísta?

— Não, Soraya.

— Porque, se você quiser mesmo...

— Não — disse eu. — Se formos fazer isso, não devemos ter nenhuma dúvida

a respeito, e ambos temos de estar de acordo. Caso contrário, não seria justo para com

o bebê.

Ela encostou a cabeça na janela e não disse mais nada pelo resto do trajeto.

Agora, o general estava ao seu lado.

— Bachem, essa história de... adoção, não sei se é uma boa coisa para nós,

afegãos.

Soraya me olhou com ar cansado, e suspirou.

 

— Por um motivo: eles crescem e querem saber quem são os seus pais biológicos

— prosseguiu ele. — E nem se pode censurá-los por isso. Às vezes, vão embora da

casa onde vocês tiveram anos e anos de trabalho para criá-los, para tentar encontrar

as pessoas que lhes deram a vida. O sangue é uma coisa poderosa, bachem. Nunca

se esqueça disso.

— Não quero mais falar sobre esse assunto — disse Soraya.

— Só vou lhe dizer mais uma coisa — acrescentou ele. Pude perceber que o

general estava ficando animado e que estávamos prestes a ter que agüentar um dos seus

pequenos discursos. — Veja Amir jan, por exemplo. Todos sabíamos quem era o seu

pai; eu sei quem foi o seu avô lá em Cabul e, antes dele, o seu bisavô. Se você quiser,

posso me sentar aqui e listar várias gerações dos seus antepassados. Foi por isso que,

quando o pai dele (que Deus o tenha) veio khastegari, não hesitei. E acredite, ele

tampouco teria concordado em pedir a sua mão se não soubesse qual é a sua

ascendência. O sangue é uma coisa poderosa, bachem, e, quando você adota uma

criança, não sabe que sangue é esse que está trazendo para dentro da sua casa.

"Já se você tivesse nascido neste país, isso não teria a menor importância.

Aqui, as pessoas se casam por amor; sobrenome genealogia nunca fazem parte dessa

equação. E é desse jeito também que adotam crianças. Todos ficam felizes, contanto

que o bebê seja saudável. Mas nós somos afegãos, bachem"

 

 

 

— O peixe já deve estar quase pronto — disse Soraya. O general a fitou

detidamente. Deu um tapinha em seu joelho.

— Fique feliz por ter saúde e um bom marido.

— O que você acha, Amir jan? — perguntou khala Jamila.

Pus o copo em uma prateleira onde uma fileira de vasos com gerânios gotejava

água.

 

— Acho que concordo com o general sahib.

Mais tranqüilo, ele assentiu com um gesto e voltou para perto da churrasqueira.

Todos tínhamos os nossos motivos para não adotar um filho. Soraya tinha os

seus; o general, os dele, e o meu era este: que talvez algo ou alguém, em algum lugar,

tivesse decidido me negar a paternidade por causa das coisas que eu tinha feito. Talvez

esse fosse o meu castigo, e talvez um castigo merecido. "Não era mesmo para ser",

como tinha dito khala Jamila. Ou, quem sabe, era para não ser.

 

ALGUNS MESES DEPOIS, USAMOS O adiantamento que recebi por meu segundo romance

para dar entrada na compra de uma linda casa vitoriana, com dois quartos, no bairro

de Bernal Heights, em San Francisco. Ela tinha o telhado do tipo duas águas, assoalho

de madeira e, nos fundos, um jardinzinho que terminava em um terraço com uma

churrasqueira. O general me ajudou a restaurar o terraço e a pintar as paredes. Khala

Jamila ficou se lamentando porque íamos morar em um lugar a uma hora de distância

da casa deles, especialmente agora, quando achava que Soraya estava precisando de

todo amor e conforto possíveis. Mal sabia ela que era justamente essa sua dedicação,

bem-intencionada, mas dominadora, que estava levando Soraya a se mudar.

 

ÀS VEZES, ENQUANTO SORAYA DORMIA ao meu lado, eu ficava na cama ouvindo a porta de

tela que abria e fechava por causa do vento, e os grilos cantando no jardim. E quase

podia sentir o vazio do útero de Soraya, como se fosse uma coisa viva que respira.

Esse vazio tinha se infiltrado no nosso casamento, nos nossos risos, na nossa vida

sexual. Tarde da noite, no escuro do quarto, sentia ele saindo de Soraya e vindo se

instalar entre nós. Vindo dormir entre nós. Como uma criança recém-nascida.

 

 

 

QUATORZE

 

 

Junho de 2001

 

PUS O FONE NO GANCHO E FIQUEI OLHANDO para o aparelho durante um bom tempo. Foi só

depois que o Aflatoon latiu, me dando um susto, que percebi como a sala estava

silenciosa. Soraya tinha tirado o som da televisão.

 

— Você ficou pálido, Amir — disse ela, lá do sofá, aquele mesmo que os seus pais

tinham nos dado de presente para inaugurar o nosso primeiro apartamento. Estava

deitada ali, com a cabeça do Aflatoon aninhada no peito e as pernas enfiadas debaixo

das almofadas velhas. Estava vendo um especial do canal PBS sobre as dificuldades

dos lobos em Minnesota enquanto corrigia uns trabalhos de sua turma dos cursos de

verão — já fazia seis anos que ela estava dando aulas na mesma escola. Sentou-se e

Aflatoon pulou do sofá. Foi o general quem batizou o nosso cocker spaniel, dando-lhe

o nome de "Platão" em farsi, porque, segundo dizia, se a gente passasse algum

tempo olhando bem para os olhos negros e translúcidos daquele cachorro, poderia

jurar que ele estava pensando coisas da maior sabedoria.

Hoje em dia, há uma camada de gordura, uma coisinha de nada, sob o queixo de

Soraya. Os últimos dez anos acrescentaram algum volume às curvas dos seus quadris e

introduziram uns poucos veios de cinza no seu cabelo negro como carvão. Mas ela ainda

tinha aquele rosto de uma princesa em noite de gala, com as sobrancelhas como asas

de pássaros em pleno vôo e o nariz elegantemente recurvado, como uma letra da

antiga escrita árabe.

 

— Você ficou pálido — repetiu Soraya, pondo a pilha de trabalhos sobre a mesa.

—Tenho que ir para o Paquistão.

—Paquistão? — perguntou ela se pondo de pé.

—Rahim Khan está muito doente.

Senti um aperto por dentro ao dizer essas palavras.

— O antigo sócio de kaka?

Ela não conhecia Rahim Khan, mas eu tinha lhe falado muito sobre ele. Fiz que

sim com a cabeça.

 

—Ah! — exclamou ela. — Sinto muitíssimo, Amir.

—Nós éramos muito ligados um ao outro — disse eu. — Quando eu era criança,

ele era o único adulto que considerava meu amigo.

Falei dele tomando chá com baba no escritório, e, depois, fumando perto da

janela, com um cheirinho de rosas vindo lá do jardim e fazendo as colunas gêmeas de

fumaça ondularem.

 

— Lembro de você me contando isso — disse Soraya. Calou-se por um

instante. — E quanto tempo vai ficar fora?

— Não sei. Ele quer me ver.

 

 

— É...?

— É seguro, sim. Não vou ter problema algum, Soraya. — Sabia que era isso

que ela estava querendo perguntar. Os quinze anos de casados tinham nos tornado

capazes de ler os pensamentos um do outro. — Vou dar uma volta.

— Quer que eu vá com você?

— Não. Prefiro ficar sozinho.

FUI DE CARRO ATÉ O PARQUE DA GOLDEN GATE e fiquei passeando perto do lago Spreckels,

na orla norte do parque. Era uma linda tarde de domingo; o sol cintilava na água onde

navegavam dezenas de barcos em miniatura, impulsionados pela brisa forte de San

Francisco. Sentei em um banco do parque, vi uma mãe jogar uma bola de futebol para

 

o filho, dizendo-lhe que não abrisse tanto o braço para atirá-la que tentasse arremessála

por cima do ombro. Ergui os olhos e vi um par de pipas vermelhas, com rabiolas

azuis bem compridas. Estavam voando lá no alto, acima das árvores que ficam mais a

oeste, por sobre os moinhos de vento.

Lembrei de um comentário que Rahim Khan fez logo antes de desligarmos.

Disse aquilo como quem não quer nada, quase como se falasse consigo mesmo. Fechei

os olhos e o vi do outro lado daquele telefonema internacional cheio de ruídos; pude

vê-lo com os lábios entreabertos, a cabeça ligeiramente inclinada para o lado. E mais

uma vez, nos seus olhos negros profundos, havia algo que sugeria a existência, entre

nós, de um segredo que tinha sido calado. Só que agora eu sabia que ele sabia. A

suspeita que tive durante todos esses anos se confirmou. Ele sabia sobre Assef, sobre a

pipa, o dinheiro, o relógio com os ponteiros que pareciam relâmpagos. Sempre soube.

 

"Venha até aqui. Há um jeito de ser bom de novo" foi o que me disse Rahim Khan

pouco antes de desligar o telefone. Disse isso como quem não quer nada, quase como se

falasse consigo mesmo.

 

Um jeito de ser bom de novo.

 

QUANDO CHEGUEI EM CASA, Soraya estava no telefone com a mãe.

 

— Ele não vai demorar muito, madar jan. Uma semana; duas, talvez... Claro.

Você e padar podem vir ficar comigo...

Dois anos atrás, o general tinha fraturado a bacia. Tinha tido mais uma

daquelas suas enxaquecas e, ao sair do quarto, com a vista ainda turva, e meio

atordoado, tropeçou na ponta de um tapete. O grito que deu fez khala Jamila sair

correndo da cozinha.

 

— Parecia até um jaroo, um cabo de vassoura se partindo no meio — repetia

sempre, embora o médico tenha garantido que era muito pouco provável que ela

pudesse ter ouvido algo semelhante.

A bacia fraturada e todas as complicações que o general teve por conta disso —

como pneumonia, septicemia, a estada prolongada em uma clínica — acabaram com

os intermináveis solilóquios de khala Jamila sobre a sua própria saúde. E deram

início a outros tantos sobre a do general. Contava, para quem quisesse ouvir, que os

médicos tinham dito que os rins de seu marido não estavam funcionando bem.

 

— Mas é que eles nunca tinham visto rins afegãos, não é mesmo? — dizia ela,

orgulhosa. De todo o tempo em que o general esteve no hospital, o que mais me lembro

é como khala Jamila sempre esperava o marido pegar no sono e, então, cantava para

 

 

ele canções que eu já tinha ouvido lá em Cabul, no velho transistor de baba que

tanto chiava.

 

A fragilidade do general — e também o tempo — tinham abrandado as coisas

entre ele e Soraya. Agora, os dois passeavam juntos, iam almoçar aos sábados, e, às

vezes, ele ia assistir a uma de suas aulas. Sentava no fundo da sala, usando o velho

terno cinza lustroso, com a bengala pousada no colo, sorrindo. De quando em quando,

chegava até a tomar notas.

 

NAQUELA NOITE, SORAYA E EU estávamos deitados, com as costas dela apertadas contra

 

o meu peito e o meu rosto mergulhado nos seus cabelos. Lembrei da época em

que ficávamos um de frente para o outro, testa encostada em testa, trocando beijos

depois de fazer amor, sussurrando coisas sobre dedinhos miúdos e dobrados,

primeiros sorrisos, primeiras palavras, primeiros passos. De vez em quando ainda

fazíamos isso, mas os sussurros eram sobre aulas ou meu novo livro, e os risos eram

por causa de um vestido ridículo que tínhamos visto em uma festa. Continuava sendo

bom quando fazíamos amor; às vezes até mais que bom. Algumas noites, porém,

eu me sentia aliviado por ter terminado, e porque estava livre para me afastar e

esquecer, ao menos por algum tempo, a inutilidade do que tínhamos acabado de fazer.

Ela nunca disse nada disso, mas eu sabia que, por vezes, Soraya sentia a mesma

coisa. Nessas noites, cada um virava para o seu lado e se deixava levar pelo seu

próprio salvador. O de Soraya era o sono. O meu, como sempre, um livro.

Naquele dia em que Rahim Khan telefonou, fiquei deitado na cama

acompanhando com os olhos as linhas paralelas e prateadas que a lua traçava na

parede passando através das venezianas. A certa altura, talvez pouco antes do

amanhecer, acabei pegando no sono. E sonhei com Hassan correndo na neve, a ponta

do seu chapan verde arrastando no chão, a neve rangendo sob suas galochas pretas.

Ele olhava para trás e gritava: "Por você, faria isso mil vezes!"

 

UMA SEMANA DEPOIS, ESTAVA SENTADO junto da janela de um avião da Pakistani

International Airlines, vendo uns dois funcionários uniformizados retirarem os calços

das rodas. O avião taxiou, foi se afastando do terminal de embarque, e, em pouco

tempo, estávamos voando, passando por entre as nuvens. Recostei a cabeça na janela.

E fiquei esperando em vão que o sono viesse.

 

 

 

QUINZE

 

 

TRÊS HORAS DEPOIS DE O MEU AVIÃO ter aterrissado em Peshawar, eu estava sentado no

estofamento esmolambado do banco traseiro de um táxi todo enfumaçado. O

motorista, que fumava um cigarro atrás do outro, era um homenzinho suarento que

disse se chamar Gholam e que ia dirigindo com displicência e imprudência, tirando

finos incríveis dos outros veículos. E tudo isso sem fazer praticamente nenhuma pausa

na interminável avalanche de palavras que jorrava de sua boca.

 

— ...é terrível o que está acontecendo no seu país, yar. O povo afegão e o povo

paquistanês são como irmãos, não tenha dúvida. Os muçulmanos devem ajudar outros

muçulmanos, por isso...

Para fazê-lo calar, adotei uma atitude educada, mas fria, apenas assentindo com

a cabeça. Lembrava bastante bem de Peshawar, por causa daqueles poucos meses que

baba e eu tínhamos passado aqui em 1981. Estávamos agora rumando para oeste, pela

avenida Jammud deixando para trás o Cantonment do tempo dos ingleses, com a sua

profusão de casas cercadas de muros altos. O tumulto da cidade que passava correndo

por mim parecia uma versão mais populosa e movimentada da Cabul que eu conhecia,

especialmente o Kocheh-Morgha ou mercado de galinhas, onde Hassan e eu íamos

comprar batatas ao chutney e água-de-cerejas. As ruas eram atravancadas por ciclistas

pedestres que iam e vinham, e riquixás que soltavam uma fumaça azulada, todos

zanzando por um labirinto de becos e ruelas estreitos. Mercadores barbudos, envoltos

em mantas leves, vendiam abajures de pele, tapetes, xales bordados e utensílios de

cobre em fileiras de barracas miúdas, todas elas bem coladas umas às outras. A cidade

era extremamente barulhenta: os gritos dos mercadores retiniam nos meus ouvidos,

misturando-se com os sons da música indiana, dos motores dos riquixás e das sinetas

das carroças puxadas por cavalos. Odores fortes, tanto agradáveis quanto ruins,

chegavam até mim pela janela do táxi; o aroma picante do pakora e dos nihari, que baba

teria adorado, se fundiam com o cheiro de diesel, com o fedor de lixo, de coisas podres

e de fezes.

 

Um pouco depois de passarmos pelos prédios de tijolos vermelhos da Universidade

de Peshawar, penetramos em um setor que o meu motorista tagarela chamou de

"Cidade Afegã". Vi confeitarias e vendedores de tapetes, barracas de kabob, crianças

com mãos imundas vendendo cigarros, minúsculos restaurantes — com mapas do

Afeganistão pintados nas janelas — e, no meio disso tudo, agências humanitárias de

fundo de quintal.

 

— Há muitos de seus irmãos nessa região, yar. Estão abrindo alguns negócios,

mas a maioria deles é bem pobre. — Fez um "tsc" com a língua e suspirou. — Bom,

mas estamos quase chegando...

 

 

Pensei na última vez que tinha visto Rahim Khan, em 1981. Ele veio se despedir

na noite em que meu pai e eu fugimos de Cabul. Lembro que baba e ele se abraçaram

no saguão, chorando baixinho. Depois que chegamos aos Estados Unidos, eles

mantiveram contato. Falavam-se umas quatro ou cinco vezes por ano, e, às vezes,

baba me passava o telefone. A última vez que falei com Rahim Khan foi pouco depois

da morte de baba. A notícia tinha chegado a Cabul e ele me telefonou. Só

conseguimos falar por alguns minutos e, depois, a ligação caiu.

 

O motorista encostou diante de um edifício estreito, em uma esquina

movimentada onde duas ruas sinuosas se cruzavam. Paguei a corrida, apanhei a minha

única mala e entrei pela porta toda esculpida. O prédio tinha umas varandas de madeira,

com venezianas abertas, e, em várias delas, havia roupas penduradas secando ao sol.

Subi até o segundo andar, pelas escadas que rangiam, e percorri um corredor meio

escuro até chegar à última porta à direita. Verifiquei o endereço anotado no papel de

carta que tinha nas mãos. Bati.

 

Então, uma coisa feita de ossos e pele que dizia ser Rahim Khan veio abrir a

porta.

 

UM PROFESSOR DE REDAÇÃO LITERÁRIA que tive na San Jose State sempre dizia, referindo-se

aos clichês: "Tratem de evitá-los como se evita uma praga." E ria da própria piada. A

turma toda ria junto com ele, mas sempre achei que aquilo era uma tremenda injustiça.

Porque, muitas vezes, eles são de uma precisão impressionante. O problema é que a

adequação das expressões-clichês é ofuscada pela natureza da expressão enquanto

clichê. Por exemplo, aquela história do "esqueleto no armário". Nada melhor para

descrever os momentos iniciais do meu encontro com Rahim Khan.

 

Sentamos em um colchão fininho encostado à parede, defronte da janela que dava

para a rua barulhenta logo abaixo. O sol penetrava no aposento, desenhando um

triângulo de luz no tapete afegão que recobria o assoalho. Havia duas cadeiras

dobráveis apoiadas em uma das paredes e um pequeno samovar de cobre no canto

oposto. Servi chá para nós dois.

 

— Como foi que você me encontrou? — perguntei.

— Não é difícil localizar pessoas nos Estados Unidos. Comprei um mapa e

telefonei pedindo informações para as cidades do norte da Califórnia — disse ele. —

É maravilhosamente estranho ver você como um adulto.

Sorri e pus três cubinhos de açúcar no meu chá. Lembrei que ele gostava do seu

forte e amargo.

 

— Baba não teve oportunidade de lhe contar, mas me casei há quinze anos. —

Na verdade, naquela época, o câncer no cérebro tinha deixado baba esquecido,

desligado.

 

— Você está casado? Com quem?

— O nome dela é Soraya Taheri. — Pensei nela, lá em casa, preocupada comigo.

Era bom saber que não estava sozinha.

— Taheri... É filha de quem?

Quando eu lhe disse, seus olhos brilharam.

— Ah, sim. Agora estou me lembrando. O general Taheri não é casado com a

irmã de Sharif jan? Como era mesmo o nome dela...?

— Jamila jan.

 

 

— Balay! — exclamou ele sorrindo. — Conheci Sharif jan em Cabul, há muito

tempo, antes de ele ir morar nos Estados Unidos.

— Ele trabalha há anos no serviço de imigração, tratando de inúmeros casos

de afegãos.

— Haiii! — suspirou Rahim Khan. — Você e Soraya jan têm filhos?

— Não.

—Ah!

Tomou um gole do seu chá e não fez mais nenhuma pergunta. Rahim Khan

sempre foi uma das pessoas mais intuitivas que conheci.

Falei muito sobre baba, o seu emprego, a feirinha de antiguidades e contei como,

no final, ele morreu feliz. Falei dos meus estudos, dos meus livros — a essa altura, já

tinha quatro romances publicados. Ele sorriu ao ouvir isso e disse que jamais tivera

dúvida alguma a este respeito. Contei também que tinha escrito contos no caderno

encapado de couro que ele tinha me dado, mas ele já não se lembrava do tal caderno.

Como seria de se esperar, a conversa acabou descambando para o Talibã.

 

— É mesmo tão ruim quanto se diz? — perguntei.

— Não. É pior. Muito pior — respondeu ele. — Eles não permitem que a gente

seja humano. — Apontou para uma cicatriz acima do seu olho direito, que abria uma

trilha sinuosa nas suas espessas sobrancelhas. — Eu estava assistindo a um jogo de

futebol, no estádio Ghazi, em 1998. Acho que era Cabul contra Mazar-i-Sharif, e,

diga-se de passagem, os jogadores eram proibidos de usar calções. Trajes indecentes,

acho eu. — Deu uma risada cansada. — Lá pelas tantas, Cabul marcou um gol e o

homem que estava ao meu lado comemorou aos berros. De repente, um rapaz barbado

que patrulhava a arquibancada, e que não aparentava ter mais de dezoito anos, veio

na minha direção e me acertou na testa com a coronha do seu Kalashnikov. "Se fizer

isso outra vez, corto a sua língua fora, seu burro velho!", esbravejou ele. — Rahim

Khan esfregou a cicatriz com o dedo retorcido. — Eu tinha idade para ser avô dele e,

de repente, estava sentado ali, com o sangue escorrendo pelo rosto, pedindo desculpas

àquele filho-da-mãe.

Fui apanhar mais chá para ele. Rahim Khan ainda falou por algum tempo. A maior

parte do que contou eu já sabia; outras coisas, não. Disse que, como tinham

combinado, ele ficou morando em nossa casa desde 1981. — Isso eu sabia. Baba tinha

"vendido" a casa para Rahim Khan pouco antes de fugirmos de Cabul. Naquela

época, meu pai achava que os problemas do Afeganistão eram apenas uma interrupção

temporária na vida que levávamos — os dias de festa na casa de Wazir Akbar Khan e

os piqueniques em Paghman voltariam a existir, com toda certeza. Entregou então a

casa a Rahim Khan, para que ele cuidasse de tudo até que esse dia chegasse.

 

Rahim Khan me contou que, quando a Aliança do Norte assumiu o controle de

Cabul, entre 1992 e 1996, as diversas facções reivindicaram diferentes áreas da cidade.

 

— Se você saísse de Shar-e-Nau e fosse a Kerteh-Parwan para comprar um

tapete, corria o risco de ser atingido por um atirador escondido em algum lugar, ou

então de ser morto por um míssil. Isso, é claro, se conseguisse passar por todos os

postos de controle — acrescentou. — Precisávamos praticamente de um visto para ir

de um bairro a outro. Por isso, todo mundo acabava simplesmente ficando quieto,

rezando para que o próximo míssil não caísse em cima da sua casa.

Contou também que as pessoas foram abrindo buracos nas paredes de suas casas

para evitar as ruas tão perigosas e poder circular pelo quarteirão passando de buraco

 

 

 

em buraco. Em outros locais, tinha gente que circulava através de túneis

subterrâneos.

 

— Por que você não foi embora de lá? — perguntei.

— Cabul era o meu lar. E continua sendo — disse ele com um risinho. —

Lembra daquela rua que ia de sua casa até o Qishla acampamento militar perto da

escola Istiqlal?

 

— Claro. — Era o atalho para chegar à escola. Lembrei daquele dia em que

Hassan e eu passamos por ali e os soldados ficaram debochando da mãe dele. Mais

tarde, no cinema, Hassan chorou, e eu passei o braço em seus ombros.

— Quando o Talibã entrou em Cabul e expulsou a Aliança do Norte, cheguei

a dançar no meio da rua — disse Rahim Khan. — E, acredite, não fui o único. As

pessoas comemoravam em Chaman, em Deh-Mazang, saudando os talib pelas ruas,

subindo nos