“OS CATADORES DE CONCHAS”
Rosamunde Pilcher
“Os catadores de conchas” é o 13º livro de Rosamunde Pilcher e, sem a menor sombra de dúvidas, seu melhor romance.
Assim que foi lançado, em 1988, na Inglaterra, conquistou o público leitor e continua até hoje, com sucesso absoluto, na lista dos best sellers da revista americana Publishers Weekly e do The New York Times Book Review.
Penelope Keeling, personagem central do romance, é filha de um pintor vitoriano idoso e de uma jovem francesa, liberal e independente. “Os catadores de conchas” é o livro que conta a vida de Penelope: a história de uma mulher parecida com milhares de outras mulheres. E é exatamente a sua vida tão comum e igual à de qualquer mulher que torna este romance tão atraente.
Com altos e baixos, Penelope foi feliz por ter sido uma filha amada, e infeliz a por ter-se casado com o homem errado. Encontrou mais tarde o verdadeiro amor, mas as tragédias e problemas ocasionados a por esse encontro deixaram marcas profundas. Teve três filhos - Nancy, Olivia e Noel, cada um com seu mundo estruturado, intransponível, com suas desilusões e alegrias.
É nesse universo que o leitor vai penetrar, envolvendo-se com uma mulher vigorosa, firme e bela. Ao longo de 6OO páginas, O mundo de Penelope arrebatará o leitor de tal maneira, que será impossível não se envolver com o destino da família Keeling.
Como declarou a autora, "senti que me coloquei inteira no livro e que morri no instante em que acabei de escrevê-lo". A saudade de se despedir de Penelope ao final da leitura de “Os catadores de conchas”, inevitavelmente, todos os leitores irão sentir.
Da mesma autora:
O Carrossel
Com Todo Amor
O Dia da Tempestade
Flores na Chuva
O Quarto Azul
O Regresso
Setembro
Sob o Signo de Gêmeos
O Tigre Adormecido
Victoria
Vozes no Verão
Rosamunde Pilcher
“Os catadores de conchas”
Tradução Luísa Ibafiez
25ª EDIÇÃO
BERTRAND BRASIL
Copyright (C) 1987 by Rosamunde Pilcher
Título original: The Shell Seekers
Capa: Felipe Taborda (sobre fundo criado por Leopoldo Blonder, Viena, 19OO)
2OO1
Impresso no Brasil
Printed in Brazil
CIP-Brasil. Catalogação-na-fonte
Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ
Pilcher. Rosamunde. 1924-
P686c “Os catadores de conchas” /Rosamunde Pilcher, tradução Luísa Ibañez
25ª ed. - 25ª ed. - Rio de Janeiro; Bertrand Brasil. 2OO1.
63Op.
Tradução de: The she1l seekers
ISBN 85-286-O111-O
1. Romance escocês. I. Ibañez, Luísa. II. Título.
CDD - 828.99113
96-2O59 CDU - 82O(411)-3
Este livro é para meus filhos e os filhos deles.
Agradecimentos pela permissão da citação de trechos de "Where or When", de Richard Rodgers e Lorenz Hart. Copyright (C) 1937 de Chappell & Co., Inc. Copyright renovado. Assegurado a International Copyright. Todos os direitos reservados. Usado com permissão.
Agradecimentos pela permissão de citação de trechos de "You're the Top" e "I Get a Kick Out of You", de Cole Porter. Copyright (C) 1934 da Warner Bros. Inc. (renovado). Todos os direitos reservados. Usado com permissão.
Trechos de "Autumn Journal" de Luis MacNeice, reimpressos por permissão de Faber and Faber Ltd. extraídos de The Collecled Poems of Louis MacNeire.
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PRÓLOGO
O táxi, um antigo Rover recendendo a fumaça velha de cigarros, rodava pela solitária estrada rural, em marcha indolente. Era começo de tarde, já final de fevereiro, um mágico dia de inverno de céu pálido e sem nuvens, envolto em gélida e cortante friagem. O sol brilhava, produzindo sombras alongadas, apesar do pouco calor, e os campos arados pareciam duros como ferro. Das chaminés das casas de fazenda dispersas e dos pequenos chalés de pedra, a fumaça subia alto, em uma coluna reta no ar parado, enquanto bandos de ovelhas, pejadas de lã e em incipiente prenhez, reuniam-se ao redor de gamelas entulhadas de feno fresco.
Sentada no banco traseiro do táxi, Penelope Keeling olhava através do vidro empoeirado da janela, concluindo que a familiar paisagem rural jamais lhe parecera tão bela.
A estrada possuía curvas íngremes; mais adiante, uma placa indicava a estradinha que levava a Temple Pudley. O motorista diminuiu a marcha e, executando uma penosa manobra, entrou na curva, sacolejando colina abaixo, entre sebes altas e cerradas que ocultavam a visão da paisagem. Pouco depois, entravam na aldeia, com suas casas construídas com pedra dourada das Cotswolds, a loja de jornais e revistas, o açougue, o pub "The Sudeley Arms" e a
igreja - recuada da rua, por trás de um vetusto cemitério e da escura folhagem de alguns teixos, adequadamente sombrios. Havia poucas pessoas por ali. As crianças estavam na escola, e a temperatura frígida mantinha o resto dos moradores dentro de casa. Apenas um velho, de luvas e cachecol, levava seu idoso cão para passear.
- Qual é a casa? -perguntou o motorista do táxi, olhando por sobre o ombro.
Ela se inclinou para a frente, ridiculamente excitada e ansiosa.
- Fica um pouquinho mais à frente. Depois da aldeia. São os portões brancos à direita. Estão abertos. Veja! Chegamos!
O motorista atravessou os portões e parou o carro nos fundos da casa.
Ela abriu a porta do carro e saltou, aconchegando contra o corpo a pelerine azul-escura, para proteger-se do frio. Abrindo a bolsa, encontrou a chave e foi abrir aporta. Às suas costas, o motorista do táxi abriu o porta-malas e retirou de lá uma pequena valise. Penelope se virou para apanhá-la, porém o homem continuou a segurá-la, preocupado.
- Não há ninguém aqui para recebê-la?
- Não. Ninguém. Vivo sozinha e todos acham que ainda estou no hospital.
- Está tudo bem com a senhora?
Ela sorriu para o rosto amistoso do motorista. Era um homem bastante jovem, de cabelos espessos e claros.
- E claro que sim.
Ele vacilou, não desejando parecer presunçoso.
- Se quiser, posso levar sua valise para dentro. Para o andar de cima, se for preciso.
- Oh, é muita gentileza sua, mas eu me arranjo.
- Não é trabalho algum - insistiu ele, seguindo-a à cozinha.
Penelope abriu uma porta e o guiou pelos estreitos degraus do chalé. Tudo estava clinicamente limpo. A Sra. Plackett, que Deus a abençoasse, não perdera tempo durante os poucos dias de ausência de Penelope. Ela até gostava quando Penelope se ausentava, por que podia entregar-se a tarefas como lavar a tinta branca dos corrimãos e balaústres da escada, ferver as flanelas e polir o que houvesse em prata e latão.
A porta de seu quarto estava aberta. Ela entrou, e o rapaz a seguiu, com a valise na mão.
- Há algo mais que eu possa fazer? - perguntou ele.
- Em absoluto. Muito bem, quanto lhe devo?
Ele lhe disse, parecendo constrangido, como se aquilo fosse vergonhoso. Ela pagou, mandando-o ficar com o troco. Ele agradeceu, e os dois desceram a escada.
Não obstante, ele continuou por ali, parecendo relutar em ir embora. Penelope disse para si mesma que talvez o rapaz tivesse alguma avó por quem sentisse a mesma espécie de responsabilidade.
- A senhora acha que estará bem, então?
- Eu lhe garanto que sim. Minha amiga, a Sra. Plackett, virá amanhã. Assim, não ficarei mais sozinha.
Por algum motivo, isto o tranqüilizou.
- Bem, vou indo.
- Adeus. E obrigada.
- Não tem de quê.
Assim que ele foi embora, Penelope tornou a entrar pelos fundos e fechou a porta. Estava só. Que alívio! Em casa. Em sua casa, entre seus bens, em sua cozinha. O aquecedor Aga, alimentado a óleo, fervilhou pacificamente para si mesmo e tudo ficou beatificamente cálido. Ela abriu os prendedores da pelerine e a deixou cair no encosto de uma poltrona. Uma pilha de correspondência descansava sobre a mesa imaculadamente limpa, e Penelope a vistoriou - ali parecia nada haver de vital e interessante. Abandonando a correspondência, cruzou a cozinha e abriu a porta envidraçada que dava para a sua estufa. A idéia de suas preciosas plantas, talvez agonizando de frio ou de sede, a tinha preocupado um pouco durante os últimos dias, porém a Sra. Plackett cuidara delas, como cuidara do resto. A terra nos vasos estava úmida e argilosa, as folhas, viçosas e verdes. Um prematuro gerânio exibia uma coroa de pequeninos botões, e os jacintos haviam crescido pelo menos sete centímetros. Além dos vidros, ficava o seu jardim crestado pelo inverno, as árvores desfolhadas e negras compondo um rendilhado contra o céu pálido, porém havia anêmonas brotando através da turfa musgosa debaixo do castanheiro, e surgiam as primeiras pétalas dourado-amanteigadas dos acônitos.
Saindo da estufa, ela subiu para o andar superior, pensando desfazer a valise mas, em vez disto, entregou-se à pura alegria de estar novamente em casa. Vagou de um lado para outro, abrindo portas, inspecionando cada quarto, espiando de cada janela, tocando os móveis, ajeitando uma cortina. Nada havia fora do lugar. Nada mudara. Novamente no andar térreo e na cozinha, ela recolheu suas cartas, atravessou a sala de refeições e entrou na de estar. Ali estavam seus bens mais preciosos: sua secretária, suas flores, seus retratos. A lenha fora arrumada na lareira. Penelope acendeu um fósforo e ficou de joelhos, para alcançar o jornal. A chama tremulou. Os gravetos secos incendiaram-se e estalaram. Ela empilhou os troncos, e as chamas elevaram-se chaminé acima. Agora, a casa estava viva outra vez e, com esta pequena e agradável tarefa encerrada não havia mais qualquer justificativa impedindo que telefonasse para um de seus filhos e contasse o que havia feito.
Certo, mas qual deles? Sentada na poltrona, considerou as alternativas. Deveria ser Nancy, naturalmente, porque era a mais velha e a que gostava de imaginar-se inteiramente responsável pela mãe. Nancy, no entanto ficaria chocada, tomada de pânico. Não pouparia censuras. Penelope concluiu que ainda não se encontrava suficientemente forte para enfrentar Nancy.
Noel, então? Talvez. como o homem da família, ele tivesse o direito de ser informado em primeiro lugar. Entretanto, a idéia de esperar algum tipo prático de ajuda ou conselho da parte dele era tão hilariante, que Penelope se viu sorrindo. "Noel, eu me dei alta do hospital e voltei para casa.” A resposta dele a tal tipo de comunicação provavelmente seria: "É mesmo?"
Em vista disto Penelope fez aquilo que, o tempo todo sabia que acabaria fazendo. Estendeu a mão para o telefone e discou o número do escritório de Olivia, em Londres.
-Venus.
A telefonista parecia cantarolar o nome da revista.
- Pode me ligar com Olivia Keeling. por favor?
- Um momento.
Penelope aguardou.
- Secretária da Srta. Keeling.
Conseguir falar com Olivia era algo mais ou menos semelhante a ter uma conversinha com o Presidente dos Estados Unidos.
- Eu gostaria de falar com a Srta. Kelling, por favor.
- Sinto muito, mas a Srta. Kelling está em reunião.
- Isto significa que está sentada à mesa da diretoria ou em seu gabinete?
- Ela está em seu gabinete... - a voz da secretária soou desconcertada, mas acrescentou: porém em companhia de uma pessoa.
- Interrompa-a, por favor. Quem fala é a mãe dela, o que quero dizer à srta. Kelling é importante.
- Não... não pode esperar?
- Nem um minuto - declarou Penelope com firmeza. – De qualquer modo, não será demorado.
- Está bem.
Outra espera. Então, finalmente Olivia.
- Mamma?
- Desculpe se a incomodo.
- Mamma! Há algo errado?
- Não, não há nada errado.
- Oh, graças a Deus! Está ligando do hospital?
- Não. Estou ligando de casa.
- De casa? Quando foi que voltou para casa?
- Mais ou menos às duas e meia desta tarde.
-Ora, mas eu pensei que iam deixar você no hospital durante uma semana, pelo menos!
- Era o que eles pretendiam, mas fiquei terrivelmente entediada, absolutamente exausta. Não dormia um minuto à noite, na cama ao lado da minha havia uma velha que não parava de falar. Não, falar não é bem o termo. Ela esbravejava, pobre alma. Então disse ao médico que não suportava mais um minuto daquilo, arrumei a mala e vim embora.
- Você mesma se deu alta! - exclamou Olívia, parecendo resignada, mas nem um pouco surpresa.
- Exatamente. Nada há de errado comigo. Assim, tomei um ótimo táxi com um excelente motorista, e ele me trouxe para casa.
- E o médico protestou?
- Em alto e bom tom, mas não havia muito o que ele pudesse fazer a respeito.
- Oh, mamma! - Havia riso na voz de Olivia. - Você é mesmo travessa! Eu já me dispunha a reservar este fim de semana para uma visita hospitalar... Sabe como é, levar quilos de uvas para você e comê-las todas eu mesma...
- Poderá vir aqui - disse Penelope. no mesmo instante desejando não ter dito, para não dar impressão de melancólica e solitária. De qualquer modo, soou como se precisasse da companhia de Olivia.
- Bem... se você se sente mesmo em forma, adiarei um pouquinho a visita. No momento, estou com um fim de semana ocupadíssimo. Escute, mamma, já falou com Nancy?
- Não. Pensei em ligar para ela, mas acovardei-me. Sabe como é espalhafatosa, Ligarei amanhã de manhã, quando a Sra. Plackett estiver aqui. Então, nossa conversa terá que ser mais comedida.
- Como está se sentindo agora? Diga a verdade.
- Perfeitamente bem. Exceto que, como já falei, fiquei com o sono atrasado.
- Não está exagerando, está? Quero dizer, não foi direto ao jardim, começando a cavar trincheiras ou derrubando árvores?
- Não vou fazer nada disso. Prometo. De qualquer modo, o solo está duro como ferro. Não conseguiria enfiar uma pá na terra.
- Graças a Deus por pequeninas coisas! Escute, mamma, preciso desligar agora. Tenho um colega comigo, aqui no escritório...
- Eu sei. Sua secretária já me disse. Lamento ter incomodado, mas queria contar a você o que aconteceu.
- Fico satisfeita. Ligue de novo para mim, mamma, e alegre-se um pouquinho.
- Está bem. Adeus, minha querida.
- Adeus, mamma.
Penelope desligou, tornou a colocar o telefone sobre a mesa e recostou-se na poltrona.
Agora, nada mais havia a ser feito. Percebeu que estava muito cansada, porém era um cansaço suave, acalentado e confortado por tudo que a cercava, como se sua casa fosse uma pessoa carinhosa, que a abraçasse com ternura. Na sala aquecida, com a lareira acesa e a funda poltrona familiar, ela se percebeu surpresa, impregnada pelo tipo de felicidade irracional que há anos não sentia. Deve ser porque estou viva. Tenho sessenta e quatro anos e, se devo crer naqueles médicos idiotas, sofri um ataque cardíaco. Ou qualquer coisa assim. Sobrevivi, agora isso ficou para trás, e não falarei mais a respeito, nunca mais. Nem pensarei. Porque estou viva. Posso tocar, ver, ouvir, cheirar, saborear; cuidar de mim mesma; deixar o hospital por vontade, pegar um táxi e voltar para casa. Há anêmonas brotando no jardim, e a primavera está a caminho. Eu a verei. Testemunharei o milagre anual, sentirei o sol começar a ficar mais quente à medida que as semanas passarem. E, porque estou viva verei tudo isto acontecer e serei parte do milagre.
Recordou a história do querido Maurice Chevalier. "Qual a sensação de estar com setenta anos?", perguntaram a ele. "Não é tão ruim", respondera Chevalier, "se a gente considerar a alternativa."
Para Penelope Keeling, no entanto, a sensação era mil vezes melhor do que apenas "não tão ruim". Agora, viver se tornara não a simples existência que a pessoa tinha como garantida, mas um prêmio, uma dádiva, com cada dia ainda por vir, transformado em uma experiência a ser saboreada. O tempo não duraria para sempre. Não desperdiçarei um só momento, prometeu a si mesma. Jamais se sentira tão forte, tão otimista. Era como se voltasse a ser jovem, desabrochando, e algo maravilhoso estivesse prestes a acontecer.
1. NANCY
Às vezes Nancy Chamberlain achava que a mais rotineira ou inocente ocupação estava condenada, inevitavelmente, a tornar-se carregada de tediosa complicação.
Como, por exemplo, naquela manhã. Um dia enfadonho, em meados de março. Tudo quanto ela estava fazendo... tudo quanto planejava fazer... era tomar o trem das 9:15 de Cheltenham para Londres, almoçar com sua irmã Olivia, talvez dar uma voltinha pelo Harrods e depois voltar para casa. Afinal de contas, nada havia de particularmente abominável em sua pretensão. Não iria se entregar a uma feroz orgia de compras e nem tampouco ter um encontro com um amante; aliás, muito pelo contrário, seria uma visita por dever, com responsabilidades a serem discutidas, e decisões a serem tomadas. Não obstante, mal seu plano se tornava conhecido em casa, as circunstâncias pareciam cerrar fileiras, ela se via enfrentando objeções ou, pior ainda, indiferença. Isto a deixava com uma sensação de que lutava pela própria vida.
Ao anoitecer da véspera, após ter marcado por telefone o encontro com Olívia, saíra à procura dos filhos. Encontrara-os na pequena sala de estar que, eufemisticamente, ela considerava a biblioteca, esparramados no sofá em frente à lareira, assistindo à televisão. Eles tinham uma sala de brinquedos e uma televisão própria, porém, como lá não havia lareira, o frio era de gelar os ossos, e a televisão, um antigo modelo em preto e branco. Portanto, não era de estranhar que eles passassem aqui a maior parte do tempo.
- Queridos, amanhã terei que ir a Londres, encontrar tia Olívia e conversar com ela sobre a vovô Pen...
- Se você for a Londres, quem vai levar Relâmpago ao ferreiro, para ser ferrado?
Melanie era quem havia falado. E, enquanto falava, mascava a extremidade de seu rabo-de-cavalo e mantinha um maléfico olho grudado no maníaco cantor de rock, cuja imagem ocupava toda a tela. Estava com quatorze anos e, como sua mãe vivia dizendo a si mesma, atravessando aquela idade difícil.
Nancy já esperava a pergunta e tinha a resposta pronta.
- Pedirei a Croftway que cuide disso. Ele conseguirá dar um jeito sozinho.
Croftway era o carrancudo jardineiro e faz-tudo, que vivia com a esposa em um apartamento sobre o estábulo. Odiava cavalos e constantemente os deixava frenéticos, com sua voz roufenha e maneiras brutais, embora parte de seu trabalho fosse lidar com eles. Croftway cumpria essa obrigação a contragosto; com os beiços espumando, os pobres animais eram introduzidos à força no carro de transportar cavalos e, em seguida, conduzidos no desajeitado veículo através da zona rural, ao encontro de vários eventos em clubes eqüestres. Em tais ocasiões, Nancy referia-se a ele como "o cavalariço".
Rupert, com onze anos, agarrou-se ao tom do diálogo, a fim de oferecer sua própria objeção.
- Falei com Tommy Robson que iria tomar chá com ele amanhã. Ele tem algumas revistas de futebol e disse que me emprestaria. Como vou poder voltar para casa?
Era a primeira vez que Nancy ouvia falar naquele compromisso. Recusando-se a perder a calma, sabia que uma sugestão para mudar o dia da visita provocaria instantaneamente uma estridente inundação de argumentos e gemidos de "isso não é justo". Engolindo a irritação, respondeu, o mais educadamente possível, que talvez ele pudesse pegar o ônibus para casa.
- Oh, mas então vou ter que caminhar desde a aldeia.
- Bem, são apenas uns quinhentos metros - ela sorriu, procurando tirar o melhor partido da situação. - Só desta vez, não dará para matá-lo.
Esperava que ele sorrisse de volta, porém Rupert apenas chupou os dentes e tornou a concentrar-se na televisão. Nancy aguardou. O quê? Alguma demonstração de interesse, talvez, em uma situação da visível importância para toda a família? Até mesmo um esperançoso questionamento sobre que presentes ela pretendia trazer-lhes seria melhor do que nada. Entretanto, os dois já haviam esquecido sua presença; estavam inteiramente voltados para o que viam na televisão. Imediatamente, Nancy achou insuportável a barulheira do programa e saiu da sala, fechando a porta atrás de si. No saguão, um frio cortante a envolveu, subindo do piso lajeado para imiscuir-se, escada acima, até os gélidos vazios do patamar.
Aquele havia sido um penoso inverno. De quando em quando, Nancy dizia para si mesma, intrepidamente - ou para quem fosse impelido a ouvi-la - que não se incomodava com o frio. Era uma criatura de sangue quente, e isto não a perturbava. Além do mais, acrescentava, a gente nunca sentia realmente frio na própria casa. Sempre havia muita coisa a fazer.
Neste anoitecer, contudo, com os filhos se mostrando tão desagradáveis e mais a perspectiva de uma ida à cozinha, a fim de "ter uma palavrinha" com a rabugenta Sra. Croftway, ela tiritou e aconchegou apertadamente o grosso cardigã à volta do corpo, enquanto via o tapete surrado se erguer e estremecer, movido pelas rajadas de vento que se insinuavam por baixo da mal-ajustada porta principal da casa.
Porque era uma casa velha aquela em que viviam, um antigo vicariato georgiano, em uma pequena e pitoresca aldeia, na região das montanhas Cotswold. Antigo Vicariato, Bamworth. Era um bom endereço, e ela sentia prazer em fornecê-lo às pessoas, nas lojas. Basta debitar em minha conta - Sra. George Chamberlain, Antigo Vicariato, Bamworth, Gloucestershire. Na casa Harrods, ela o fizera imprimir no alto de seu luxuoso papel azul para correspondência. Pequeninas coisas, como papel de cartas, tinham importância para Nancy. Causavam boa impressão.
Ela e George tinham-se mudado para ali, logo após estarem casados. Pouco antes deste evento, o anterior morador de Bamworth sentira subitamente o sangue subir-lhe à cabeça e se rebelara, informando aos superiores que homem algum... nem mesmo um desprendido homem da Igreja, seria capaz de, com seu magro estipêndio, viver e criar uma família em uma casa de tão monstruosos tamanho, inconveniência e frigidez. Após alguma deliberação, além de uma visita com pernoite do arquidiácono (que pegou um resfriado e quase morreu de pneumonia), a Diocese finalmente concordou em construir um novo vicariato. Foi devidamente erigido um
bangalô de tijolos na extremidade oposta da aldeia, sendo o velho vicariato posto à venda.
George e Nancy o compraram. "Agarramos a oportunidade", contava ela às amigas, como se os dois houvessem ido diretamente ao alvo, com extrema sagacidade. De fato, tinham comprado a casa por uma ninharia, mas com o tempo, Nancy logo descobriu que havia sido somente porque ninguém mais pretendia adquiri-la.
- Claro que há muito a fazer por lá, porém é uma casa encantadora, de fins do período georgiano, com uma boa área de terreno... padoques e estábulos... além de ficar a somente meia hora de Cheltenham e do escritório de George. De fato, sob medida para nós.
Era perfeito. Para Nancy, criada em Londres, a casa simbolizava a concretização final de todos os seus sonhos de adolescente - fantasias alimentadas pelos romances que devorava, escritos por Barbara Cartland e Georgette Heyer. Viver no campo e ser a esposa de um proprietário rural, há muito, eram o auge de suas modestas ambições, naturalmente, após uma tradicional temporada londrina, um casamento de gala com damas de honra e sua fotografia em Tatler. Conseguiu tudo, exceto a temporada londrina, e, recém-casada, viu- se senhora de uma casa nas Cotswolds, com um cavalo no estábulo e um jardim para festividades da igreja. Com o tipo certo de amigos e a espécie certa de cães; com George presidindo os Conservadores do lugar e lendo o trecho selecionado da Bíblia, nas manhãs de domingo.
A princípio, tudo correra perfeitamente. Até então, não havia falta de dinheiro: eles haviam posto em ordem a antiga propriedade e a casa, pintado as partes externas em branco, instalado aquecimento central, e Nancy arranjara o mobiliário vitoriano que George herdara dos pais, tendo decorado alegremente seu quarto com uma profusão de chintz. Entretanto, com o passar dos anos, a inflação expandiu-se, subindo com ela o preço do combustível para aquecimento e os salários, desta maneira cada vez se tornando mais difícil encontrar alguém que prestasse serviços na casa e no jardim. A carga financeira para simplesmente manterem a propriedade a cada ano pesava mais e, por vezes, eles achavam que tinham mordido além do que podiam mastigar.
Como se ainda não bastasse, já estavam enfrentando a terrível despesa de educar os filhos. Tanto Melanie como Rupert estavam matriculados nas escolas particulares locais, como alunos externos. Melanie provavelmente permaneceria na sua até terminar os níveis A, porém Rupert deveria ir para Charlesworth, a escola pública que seu pai cursara; George inscrevera lá o nome do filho, um dia após o nascimento de Rupert, tendo efetuado na mesma época um pequeno seguro educacional, porém a soma insignificante que então pagara, agora, em 1984, mal daria para cobrir a primeira viagem de trem.
Certa vez, passando uma noite em Londres com Olivia, Nancy confidenciara suas preocupações à irmã, na esperança de ouvir alguma orientação construtiva daquela determinada mulher voltada para a profissão. Olivia, entretanto, não se mostrou compreensiva. Achava que eles eram tolos.
- Seja como for, escolas públicas são um anacronismo - respondera a Nancy. - Matricule-o na escola integrada distrital, deixe-o ficar na companhia do resto do mundo. A longo prazo, será mais vantajoso para seu filho, do que todo aquele ambiente rarefeito de tradição antiquada.
Tal atitude, no entanto, era impensável. George e Nancy jamais haviam considerado a educação proporcionada pelo Estado como indicada para seu único filho. De fato, vez por outra Nancy se entregara a sonhos secretos sobre Rupert em Eton, entremeados com fantasias de si mesma no Quatro de Junho, enchapelada para uma festividade ao ar livre. Quanto a Charlesworth, sólida e prestigiada como era, constituía uma segunda melhor escolha. Entretanto, ela não admitiria isto para Olivia.
- Está inteiramente fora de questão - replicou, lacônica.
*Na Inglaterra, escola secundária particular (geralmente internato) mantida por doações e preparando alunos para o curso universitário ou para serviço público. (N. da T)
- Pois bem, então, deixe-o tentar uma bolsa de estudos. Que Rupert faça alguma coisa para ajudar a si mesmo. Não vejo qual o proveito em sacrificar-se tanto por um garotinho!
Rupert, entretanto, não era amigo dos livros. Tanto George como Nancy sabiam que ele jamais conseguiria uma bolsa de estudos.
- Neste caso - disse Olivia, encerrando o assunto, porque começava a ficar maçante - acho que a única alternativa para vocês é vender o velho Vicariato, mudar-se para algo menor. Pense em todo o dinheiro que economizaria, não tendo que manter a velha propriedade em ordem!
A perspectiva de semelhante decisão, no entanto, deixou Nancy ainda mais horrorizada do que a menção de um colégio do Estado para seu filho. Era o mesmo que admitir a derrota e abdicar de tudo pelo que lutara. Além do mais, havia uma dolorosa suspeita de que ela, George e os filhos, morando em uma casinha acessível nos arredores de Cheltenham, sem os cavalos, sem o Instituto Feminino, o Comitê Conservador, as gincanas e festas da Igreja, sentir-se-iam rebaixados, perderiam o interesse dos amigos do condado e, como sombras moribundas, seriam relegados a uma família de esquecidas insignificâncias.
Tornando a tiritar, ela procurou compor-se, expulsou aquelas repulsivas idéias e caminhou firmemente pelo corredor lajeado, em direção à cozinha. Ali, o enorme aquecedor Aga, em incessante funcionamento, deixava tudo confortavelmente aquecido e aconchegante. Nancy às vezes pensava, especialmente naquela época do ano, que era uma pena todos eles não viverem na cozinha... que qualquer outra família, além da dela, provavelmente sucumbiria à tentação, passando ali o inverno inteiro. Entretanto, eles não eram uma família qualquer. A mãe de Nancy, Penelope Keeling, praticamente vivera na velha cozinha do porão, no casarão da Rua Oakley, cozinhando e servindo enormes refeições na grande mesa de tampo esfregado; ali ela escrevia cartas, criava os filhos, remendava roupas e até mesmo recebia seus intermináveis visitantes. E Nancy, que tanto se ressentia como ficava ligeiramente envergonhada da mãe, desde então reagira contra esta calorosa e informal maneira de viver. Quando eu me casar, havia jurado em criança, terei uma sala de visitas e uma sala de refeições, como todo mundo; hei de entrar na cozinha o menos que puder.
Por sorte, George tinha idéias similares. Alguns anos antes, após uma séria discussão, haviam concordado em que o lado prático de fazerem o desjejum na cozinha superava a ligeira descida de padrões. Mais do que isto, entretanto, nenhum deles estava disposto a ceder.
Assim, almoço e jantar eram servidos na enorme sala de refeições, com o teto muito alto e a mesa corretamente arrumada, a formalidade substituindo o conforto. Esse depressivo aposento era aquecido por uma lareira elétrica, cujo calor não ia além da grelha. Quando tinham convidados para jantar, Nancy a ligava umas duas horas antes de ser servida a refeição, jamais podendo compreender por que suas convidadas sempre chegavam envoltas em xales. Ainda pior fora certa vez... jamais esquecida... ela vislumbrara por baixo do colete do homem em traje a rigor, os sinais indiscutíveis de um grosso pulôver de gola em V. Ele jamais tornara a ser convidado.
A Sra. Croftway estava em pé diante da pia, descascando batatas para o jantar. Era um tipo de pessoa bastante superior (muito mais do que seu desbocado marido) e, para trabalhar, usava um avental branco, como se isso bastasse para tornar sua culinária profissional e saborosa. Nada disto acontecia, mas o aparecimento noturno da Sra. Croftway na cozinha significava que Nancy não teria que preparar o jantar.
Decidiu ir direto ao assunto.
- Oh, Sra. Croftway... houve uma ligeira mudança de planos. Tenho que ir a Londres amanhã, almoçar com minha irmã. É sobre o problema de minha mãe; essas coisas não podem ser tratadas por telefone.
- Pensei que a mãe da senhora já tivesse saído do hospital e estivesse em casa novamente.
-Sim, foi o que aconteceu, mas ontem falei com seu médico por telefone, e ele acha que, de fato, mamãe não devia mais morar sozinha. Foi apenas um ataque cardíaco brando e ela teve uma recuperação excelente, porém mesmo assim... a gente nunca sabe...
Fornecia tais detalhes à Sra. Croftway, não por esperar grande ajuda ou mesmo simpatia, mas porque doença era um assunto que a mulher apreciava discutir, e Nancy esperava que assim a deixasse com ânimo mais expansivo.
- Minha mãe teve um ataque do coração, e, depois disso, nunca mais foi a mesma. Ficou com o rosto todo arroxeado, e as mãos incharam tanto, que foi preciso cortar a aliança em seu dedo.
- Eu não sabia disso, Sra. Croftway. .
- Ela não podia mais morar sozinha. Tivemos que viver com ela, eu mais o Croftway. O melhor quarto da frente ficou para ela, e isso para mim foi um calvário, é o que lhe digo; subindo e descendo escada o dia inteiro, e ela batendo com uma bengala no chão. No fim, fiquei uma pilha de nervos. O médico disse que nunca vira uma mulher com nervos mais em frangalhos do que eu. Então, ele pôs minha mãe no hospital e ela morreu.
Isto, aparentemente, era o final da depressiva saga. A Sra. Croftway retomou às suas batatas, e Nancy disse, inadequadamente:
- Sinto muito... Imagino que sacrifício deve ter sido para a senhora. Que idade tinha sua mãe?
- Faltava uma semana para completar oitenta e seis.
- Bem... - Nancy procurou manter a voz vigorosa. - Minha mãe só tem sessenta e quatro, o que me dá a certeza de que ficará inteiramente recuperada.
A Sra. Croftway jogou uma batata descascada na panela e se virou, a fim de olhar para Nancy. Ela raramente olhava de frente para as pessoas, mas quando o fazia era algo enervante, porque tinha olhos muito claros, que jamais pareciam piscar.
A Sra. Croftway tinha opiniões próprias sobre a mãe de Nancy. Vira a Sra. Keeling - era como a chamava - apenas uma vez, durante uma de suas raras visitas ao velho Vicariato, porém fora o suficiente para qualquer um. Uma mulherona alta, de olhos escuros como uma cigana, e vestindo roupas que bem poderiam ter sido dadas para um bazar de caridade. Também era turrona, entrando na cozinha e insistindo em lavar os pratos, quando a Sra. Croftway tinha seu próprio jeito de fazer as coisas e não admitia interferências.
- E curioso ela ter um ataque do coração...- observou então. - Pareceu-me forte como um touro.
-Sim - assentiu Nancy fracamente. - Sim, foi um choque... para todos nós - acrescentou, em um tom piedoso, como se a mãe já houvesse morrido e fosse seguro falar bem dela.
A Sra. Croftway fez um trejeito impiedoso com a boca.
- Sua mãe só tem sessenta e quatro anos? - Ela parecia incrédula. - Aparenta mais, não aparenta? Pensei que já tivesse setenta e tantos.
- Não, ela está com sessenta e quatro.
- E quantos anos tem a senhora, então?
A mulher estava sendo insultante. Nancy sentiu-se enrijecer ante a pura agressividade da Sra. Croftway. ao mesmo tempo percebendo que o sangue lhe subia ao rosto. Gostaria de ter coragem para esbofetear a criatura. de dizer a ela que cuidasse da própria vida, mas isto talvez a fizesse pedir as contas e ir embora com o marido. Em tal situação, como se veria Nancy, a braços com o jardim, os cavalos, o casarão e sua família faminta para alimentar?
- Eu tenho... - Sua voz saiu como um grunhido. Ela pigarreou e tentou novamente. - Na verdade, estou com quarenta e três.
- Só isso? Oh, eu pensei que estivesse para fazer cinqüenta a qualquer dia.
Nancy deu uma risadinha, tentando levar a coisa na brincadeira, pois o que mais podia fazer?
- Não está sendo muito lisonjeira, Sra. Croftway.
- Bem, deve ser o seu peso. Só pode ser. Nada para envelhecer tanto, como deixar o peso aumentar. A senhora devia fazer uma dieta... se quer saber, não é bom para a senhora ser gorda. Vai ver, ela deu uma risada casquinada, a senhora é que acaba tendo um ataque do coração.
Eu a odeio. Sra. Croftway! Eu a odeio!
- Esta semana, apareceu uma boa dieta em Woman's Oum... A gente come um grapefruit em um dia e toma um iogurte no outro. Ou talvez seja o contrário... Se quiser, posso recortar a folha e trazer.
- Oh... é muita gentileza sua. Sim, talvez eu queira. - A voz de Nancy soava insegura, trêmula. Procurando controlar-se, ergueu os ombros e, com algum esforço, encarregou-se da deteriorante situação. - Afinal, Sra. Croftway, o que eu realmente queria falar era sobre amanhã. Vou tomar o trem das nove e quinze, de maneira que não haverá muito tempo para arrumações antes de sair. Gostaria que a senhora fizesse o que fosse possível e... poderia ter a bondade de alimentar os cães para mim?... Deixarei a comida deles pronta em suas tigelas. Depois, talvez fosse bom levá-los para correrem um pouco no jardim... e... - Ela prosseguiu rapidamente, antes que a Sra. Croftway começasse a objetar a tais sugestões. - Eu queria que desse um recado meu a Croftway, pedindo que levasse Relâmpago ao ferreiro... ele precisa ser ferrado, e não quero adiar isso.
- Humm - disse a Sra. Croftway, dubitativamente. – Não sei se ele conseguirá manejar esse cavalo sozinho.
- Oh, tenho certeza de que conseguirá, ele já fez isso antes... e então, amanhã à noite, quando eu estiver de volta, talvez pudesse preparar-nos um pouco de carneiro para o jantar. Ou carne de porco, qualquer coisa assim... e algumas das deliciosas couves-de-bruxelas de Croftway...
Somente depois do jantar é que ela teve oportunidade para falar com George. Tendo que pôr as crianças para fazerem os deveres de casa, encontrar as sapatilhas de balé de Melanie, jantar e tirar a mesa, ligar para a esposa do vigário e comunicar-lhe que não poderia comparecer à reunião da Associação de Senhoras ao anoitecer seguinte, e organizando sua vida em geral, Nancy mal teve tempo para trocar uma palavra com o marido. George só chegava em casa às sete da noite, e então queria apenas sentar-se diante da lareira, com um copo de uísque e o jornal.
Por fim, tudo foi feito, e Nancy pôde reunir-se a George na biblioteca. Trancou firmemente a porta ao entrar, esperando que ele erguesse os olhos, porém nada aconteceu por trás do The Times. Assim, ela caminhou até a mesa de bebidas que ficava junto à janela, serviu um uísque para si mesma e depois foi sentar-se na poltrona fronteira à dele, ao lado da lareira. Sabia que logo seu marido estenderia o braço, a fim de ligar a televisão e ver o noticiário.
- George - falou.
- Hum?
- George, ouça um momento.
Ele terminou a frase que lia e então baixou o jornal com relutância, revelando-se como um homem com cinqüenta e tantos anos, mas parecendo bem mais velho, cabelos grisalhos rareando, óculos sem aros, o terno escuro e a gravata sóbria de um idoso cavalheiro. George era advogado, talvez imaginando que aquela aparência cuidadosamente elaborada - como que trajado para o papel em alguma peça - inspiraria confiança a clientes em potencial. Nancy, no entanto, às vezes achava que, se pelo menos ele se ajeitasse um pouco, se usasse um bom terno de tweed e comprasse óculos de aros, então seus negócios talvez também se ajeitassem um pouco. Esta parte do mundo, desde a abertura da auto-estrada para Londres, em pouco tempo ficara incrivelmente na moda. Novos e ricos residentes tinham ido morar ali, propriedades trocavam de mãos por somas exorbitantes; o chalé mais decrépito era adquirido em um piscar de olhos e transformado. a custas enormes em residência de fim de semana. Agentes imobiliários e firmas construtoras floresciam e prosperavam; lojas exclusivas se abriam nas cidadezinhas mais improváveis e Nancy não conseguia entender como Chamberlain. Plantwell e Richards ainda não haviam embarcado nesse carro triunfal de prosperidade e colhido algumas das recompensas que sem a menor dúvida, só esperavam ser apanhadas. George no entanto era do tipo tradicionalista, apegado a hábitos antigos, apavorado ante uma mudança. Também era um homem cauteloso e astuto.
- O que tenho de ouvir? - perguntou ele então.
- Amanhã vou a Londres almoçar com Olivia. Precisamos falar sobre mamãe.
- Qual é o problema agora?
- Oh. George, você sabe qual é o problema! Já lhe contei; tive uma conversa com o médico de mamãe, e ele acha que ela não devia mais morar sozinha.
- E o que vocês pretendem fazer a respeito?
- Bem... tem de encontrar uma governanta para ela. Ou uma acompanhante.
- Ela não vai gostar disso - observou George.
- E mesmo que encontremos alguém... mamãe terá condições de pagar-lhe um salário? Uma boa profissional custaria de quarenta a cinqüenta libras por semana. Sei que ela conseguiu aquela soma fabulosa pela casa da Rua Oakley e que não gastou um níquel em Podmore's Thatch,exceto para construir aquela estufa ridícula. mas esse dinheiro é capital. não? Será que ela pode com toda essa despesa?
George remexeu-se na poltrona. estirando a mão para o copo de uísque.
- Não faço a menor idéia - respondeu.
Nancy suspirou.
- Ela é tão reservada tão odiosamente independente! Torna-se impossível ajudá-la. Se, pelo menos, fosse mais franca conosco, se o deixasse ser seu procurador, isso tomaria a vida muito mais fácil para mim. Afinal, sou a filha mais velha não me consta que Olívia ou Noel já tivessem levantado um dedo para ajudar.
George já ouvira tudo isso antes.
- E quanto à diarista dela. Sra. ... como é mesmo o nome?
- Sra. Plackett. Ela só vai lá três manhãs por semana para faxina; tem casa e família para cuidar.
George colocou o copo na mesa e se endireitou na poltrona, o rosto virado para o fogo, as mãos formando uma tenda, ponta de dedo contra ponta de dedo. Após um momento, falou:
- Não posso imaginar o que a deixa em tal estado.
Seu tom dava a impressão de estar falando com algum cliente particularmente obtuso, e Nancy ficou ofendida.
- Não estou em estado algum!
Ele ignorou a resposta.
- Será apenas por causa do dinheiro? Ou da possibilidade de que talvez não encontre uma mulher que seja santa o bastante para concordar em morar com sua mãe?
- Acho que são as duas coisas - admitiu Nancy.
- E o que imagina como contribuição de Olivia para solucionar a charada?
- Pelo menos, ela pode discutir o assunto comigo. Afinal de contas, em toda a sua vida nunca fez nada por mamãe... e, por falar nisto, nem por qualquer de nós - acrescentou com amargura, recordando ferimentos passados. - Quando mamãe decidiu vender a casa da Rua Oakley e anunciou que retornava à Cornualha, para morar em Porthkerris. eu é que passei os piores momentos, convencendo-a de que seria loucura fazer isso. E ela bem poderia ter ido, se você não lhe encontrasse Podmore's Thatch que, pelo menos, só dista trinta quilômetros de nós. Assim, podemos ficar de olho nela. E se mamãe agora estivesse em Porthkerris, a quilômetros e quilômetros daqui, doente do coração, sem ninguém saber o que acontecia?
- Por favor, não fujamos à questão - pediu George, naquele tom que a deixava sumamente exasperada.
Nancy procurou ignorar o detalhe. Ficara aquecida pelo uísque, que também abrandara antigos ressentimentos.
- Quanto a Noel, praticamente deixou mamãe de lado, desde que precisou mudar-se, quando ela vendeu a casa da Rua Oakley. Aquilo foi um golpe para ele. Aos vinte e três anos, jamais pagara um níquel de aluguel a mamãe! Comia a comida dela, bebia o gim dela, até o uísque era de graça! Fique sabendo, foi um choque para Noel, quando finalmente precisou sustentar-se.
George suspirou fundo. Seu conceito sobre Noel não era melhor do que o que tinha sobre Olivia. Quanto a Penelope Keeling, sua sogra, sempre fora um enigma para ele. Seu mais constante espanto era que uma mulher tão normal como Nancy pudesse originar-se dos rins de tão extraordinária família.
Terminou seu drinque, levantou-se da poltrona, lançou outro tronco ao fogo e foi encher o copo novamente. Falou, do outro lado da sala, acima do tilintar de vidros:
- Suponhamos que aconteça o pior. Suponhamos que sua mãe não tenha meios para pagar uma governanta. - Voltou para a poltrona e tornou a acomodar-se diante da esposa. - Suponhamos que vocês não encontrem alguém que assuma a árdua tarefa de fazer-lhe companhia. E então? Vai sugerir que sua mãe venha morar conosco?
Nancy pensou na Sra. Croftway, perpetuamente melindrada. Recordou as crianças, queixando-se ruidosamente das censuras intermináveis de vovó Pen. Lembrou-se da mãe da Sra. Croftway, cuja aliança de casamento tivera que ser cortada para sair do dedo inchado, jazendo na cama e batendo no assoalho com uma bengala...
Respondeu, em tom desesperado:
- Não creio que eu pudesse suportar isso.
- Acho que eu também não -admitiu George.
- Talvez Olivia...
- Olivia? - A voz de George alteou-se, descrente. – Olívia permitiria que alguém se intrometesse em sua vida tão reservada? Ora, você está brincando comigo!
- Bem, Noel está fora de questão.
- Parece que tudo está fora de questão - comentou George. Ergueu o punho da camisa furtivamente e consultou o relógio. Não queria perder o noticiário. - Creio que não poderei oferecer qualquer sugestão construtiva, enquanto você não conversar com Olivia. Discutir o assunto.
Nancy ficou ofendida. De fato, ela e Olivia nunca haviam sido as melhores amigas do mundo... afinal, nada tinham em comum... mas não gostara das palavras "discutir o assunto", como se ambas jamais houvessem feito algo além de discutir. Ia comentar o fato com George, mas ele a interceptou, quando ligou a televisão, encerrando a conversa. Eram exatamente nove horas, e George acomodou-se satisfeito na poltrona, disposto a ter sua ração diária de greves, bombas, assassinatos e desastres financeiros, tudo arrematado pela informação de que o dia seguinte começaria muito frio e que, no correr da tarde, a chuva cobriria lentamente o país inteiro.
Após um instante, sem palavras para traduzir sua depressão, Nancy levantou-se da poltrona. Desconfiava de que George nem mesmo percebera seu movimento. Foi até a mesa das bebidas, serviu-se de uma generosa dose de uísque e saiu da sala, fechando a porta silenciosamente. Subiu a escada, atravessou seu quarto e entrou no banheiro. Tampou o ralo da banheira, abriu as torneiras e despejou seu óleo de banho perfumado na água, com a mesma generosidade empregada na garrafa de uísque. Cinco minutos mais tarde, entregava-se à atividade mais confortadora que conhecia: jazer em um banho quente e, ao mesmo tempo, beber uísque frio. Relaxada, envolta em bolhas e vapor, deixou-se dissolver em uma orgia de autopiedade. Ser esposa e mãe, disse para si mesma, era uma tarefa ingrata. Dedicava-se ao marido e aos filhos, tratava bem os empregados, cuidava dos animais, preocupava-se com a casa, comprava a comida, lavava as roupas e que agradecimento recebia? Que valorização?
Nada.
As lágrimas começaram a acumular-se nos olhos, misturando-se à umidade geral da água do banho e do vapor. Ansiava por apreço, por amor, por um contato físico afetuoso, por alguém que a acariciasse e lhe dissesse que era maravilhosa, que estava fazendo um excelente trabalho.
Para Nancy, somente uma pessoa nunca a decepcionara. Seu pai tinha sido ótimo enquanto vivera, é claro; porém, a mãe dele, Dolly Keeling, é que realmente conquistara a sua confiança e sempre ficara do seu lado.
Dolly Keeling jamais se entrosara com a nora, não tinha tempo para Olivia, era sempre desconfiada com Noel, mas Nancy fora a sua queridinha, mimada e adorada. Vovó Keeling era quem lhe comprava os vestidos vaporosos de mangas bufantes, quando Penelope teria enviado sua filha mais velha à festa, trajando alguma antiga roupa surrada e herdada. Vovó Keeling era quem a achava bonita e lhe preparava surpresas, como tomar chá na Casa Harrods ou ir ao teatro, para ver alguma peça infantil.
Quando Nancy ficara noiva de George, houvera brigas terríveis. A essa altura, seu pai já partira, e sua mãe não conseguia entender por que era tão importante para ela o tradicional casamento com vestido de noiva, damas de honra, homens usando fraque e uma recepção adequada. Aparentemente. Penelope achava aquilo uma maneira idiota de jogar dinheiro fora. Por que não uma cerimônia íntima e simples, talvez com um almoço comemorativo em seguida na enorme mesa escovada da cozinha, no porão da Rua Oakley? Ou uma festinha no jardim? O jardim era enorme, havia lugar sobrando para todos, as rosas teriam desabrochado...
Nancy chorou, bateu portas, disse que ninguém a compreendia e jamais compreendera. Finalmente, mergulhou em um mau humor que teria continuado para sempre, se não fosse a intervenção da querida vovó Keeling. Toda responsabilidade foi removida de Penélope, que ficou feliz da vida em se ver livre daquilo, passando tudo aos cuidados de vovó. Noiva alguma pediria mais. A Igreja da Santíssima Trindade, vestido de noiva com cauda, damas de honra em cor-de-rosa e, mais tarde, recepção no número 23 de Knightsbridge, com um mestre-de-cerimônias encasacado de vermelho e vários arranjos florais, pesados e enormes. E o querido papai, instigado pela mãe, parecera divino envergando fraque, a fim de conduzir a filha ao altar e entregá-la ao noivo. Em meio a tudo aquilo, a aparência de Penelope, sem chapéu e majestática em camadas de brocado e veludo antigos, nada poderia fazer para estragar a perfeição do dia.
Oh, quanto ela ansiava agora por vovó Keeling! Jazendo no banho, uma pesada mulher de quarenta e três anos, Nancy chorou por vovó Keeling. Como gostaria de tê-la ali, para receber sua simpatia, consolo e admiração! Oh, meu bem, você é uma criatura maravilhosa, tão dedicada à família e à sua mãe, mas eles aceitam tudo isso como pura obrigação sua...
Ainda podia ouvir a voz amada da avó, mas apenas na imaginação. porque Dolly Keeling estava morta. No ano anterior, aos oitenta e sete anos, a galante e miúda senhora. de ruge nas faces, unhas pintadas e seus conjuntos de cardigã malva, havia falecido enquanto dormia. O triste evento ocorrera no pequeno hotel retirado, em Kensington, escolhido por ela e mais inúmeras outras pessoas incrivelmente idosas, para passarem seus anos crepusculares. Dolly Keeling foi adequadamente levada dali pelo agente funerário, com quem a gerência do hotel, mostrando boa dose de previdência, mantinha um entendimento permanente.
A manhã seguinte foi tão ruim quanto Nancy temera. O uísque a deixara com dor de cabeça. A manhã estava mais fria do que nunca e escura como breu quando, às sete e meia, forçou-se a sair da cama. Vestiu-se e, escandalizada, descobriu que a faixa de seu melhor vestido ficara apertada e teria que ser presa com um alfinete de segurança. Enfiou a suéter de lã de carneiro que combinava exatamente com a saia, e desviou os olhos dos rolos de gordura que assomavam volumosos, acima do enorme e reforçado sutiã. As meias de náilon pareceram francamente inadequadas, pois geralmente usava as de lã grossa. Assim sendo, decidiu calçar as botas de cano longo, cujo zíper mal conseguiu fechar.
No andar de baixo. a situação não estava melhor. Um dos cães passara mal, a estufa não aquecia como era de esperar, e havia apenas três ovos na despensa. Nancy botou os cães para fora, limpou o vômito do que passara mal e alimentou a estufa com seu próprio combustível especial - que custava uma fortuna - , rezando para que ele não acabasse, o que daria à Sra. Croftway um bom motivo para queixas. Gritou pelos filhos, dizendo-lhes que se apressassem, ferveu água nas chaleiras, cozinhou os três ovos, fez torradas e arrumou a mesa. Rupert e Melanie apareceram, vestidos mais ou menos corretamente, mas discutindo. Rupert disse que Melanie perdera seu livro de geografia, Melanie replicou que antes de mais nada ele era um mentiroso nojento e, mamãe, ela precisava de vinte e cinco pence, porque a Sra. Leeper ia embora e se haviam cotizado para lhe dar um presente.
Nancy nunca tinha ouvido falar na Sra. Leeper.
George não moveu uma palha para ajudar. Simplesmente apareceu a certa altura durante toda aquela turbulência, comeu seu ovo cozido, bebeu uma xícara de chá e se foi. Nancy ouviu o Rover descendo a alameda para carros, enquanto freneticamente amontoava pratos no secador, prontos a serem utilizados pela Sra. Croftway, como melhor lhe apetecesse.
- Bem, se você não pegou meu livro de geografia...
Os cães uivavam, do outro lado da porta. Ela os deixou entrar e isto a fez recordar que devia preparar a alimentação deles. Encheu as tigelas dos animais com biscoitos caninos e abriu uma lata de ração, mas, em sua agitação, cortou o polegar na borda afiada da tampa.
- Poxa, você é mesmo desajeitada! - comentou Rupert.
Nancy virou as costas para ele e deixou que a água fria da torneira escorresse sobre o polegar, até vê-lo parar de sangrar.
- Se você não me der os vinte e cinco pence, a Srta. Rawlings vai ficar furiosa...
Ela correu ao andar de cima, a fIm de ajeitar o rosto. Não havia tempo para se demorar, esfumando o ruge ou delineando os cílios, de maneira que o resultado estava longe de ser satisfatório. Teria que ficar assim mesmo. O tempo voava. Tirou do guarda-roupa o casaco de peles e o chapéu também de peles, combinando com ele. Encontrou luvas, sua bolsa em pele de lagarto da Mappin & Webb. Dentro dela, esvaziou o conteúdo da bolsa de uso diário e, é claro, não conseguiu fechá-la. E daí? Tinha que ficar assim mesmo. O tempo voava.
Precipitou-se novamente para o andar de baixo, chamando os filhos. Como que por milagre, eles apareceram, recolhendo as respectivas mochilas escolares, Melanie enfiando na cabeça o chapéu que não lhe assentava. Os três trotaram pela porta dos fundos, deram a volta à garagem, entraram no carro - graças a Deus o motor pegou na primeira tentativa - e lá se foram.
Nancy conduziu os filhos às suas diferentes escolas, deixando-os diante dos portões e mal tendo tempo para dizer adeus, antes de partir novamente, a toda velocidade para Cheltenham. Eram nove e dez, quando deixou o carro no estacionamento, e mais doze minutos haviam passado, ao comprar a passagem de volta para o dia. No quiosque de revistas, entrou na fila com o que imaginava ser um sorriso sedutor, comprou para si mesma um Daily Telegraph e - louco desperdício - um exemplar de Harpers and Queen. Após tê-la comprado, viu que era um número atrasado - de fato, a revista do mês anterior -, porém não adiantava reclamar e receber o dinheiro de volta. Além do mais, ela não parecia realmente atrasada; acetinada e lustrosa, seria um maravilhoso presente, ainda assim. Dizendo isto para si mesma, emergiu na plataforma, justamente quando chegava o trem para Londres. Abriu uma porta, qualquer uma, entrou e encontrou um assento. Estava sem fôlego, o coração disparando. Fechou os olhos. Comentou, para si mesma, que ter acabado de escapar de um incêndio devia ser assim.
Momentos mais tarde, após algumas respirações fundas e uma conversinha tranqüilizadora consigo mesma, sentiu-se mais forte. Misericordiosamente, o trem estava bem aquecido. Abrindo os olhos, Nancy afrouxou os fechos do casaco de pele. Acomodou-se mais confortavelmente, espiou pela janela a paisagem, que parecia voar ao lado do vagão, crestada pelo duro inverno, e deixou que os nervos abalados fossem acalentados pelo ritmo do trem. O telefone não tocaria, ela poderia ficar sentada, sem precisar pensar.
A dor de cabeça se fora. Tirou da bolsa o estojo de pó compacto e inspecionou o rosto no pequenino espelho, deu uns retoques de pó no nariz e comprimiu os lábios, a fim de uniformizar o batom. A nova revista jazia em seu colo, encerrando tantas delícias, como uma caixa fechada de bombons cobertos de chocolate, com recheio macio. Começou a folhear a revista e viu anúncios de casacos de pele, casas no sul da Espanha e arrendamento de propriedades nas Highlands escocesas; anúncios de jóias e cosméticos que, de fato, não só deixariam uma mulher mais bela, como lhe revigorariam a pele; anúncios de navios em cruzeiro, velejando para o sol; anúncios de...
Parou bruscamente de folhear as páginas ao acaso, quando algo atraiu sua atenção. Era um anúncio de página inteira, inserido por Boothby's, Comércio de Arte, comunicando que haveria uma venda de objetos vitorianos em suas galerias da Bond Street, quarta-feira, vinte e um de março. Para ilustrar a propaganda, reproduziam um quadro de Lawrence Stern, 1865-1946. A tela era intitulada As aguadeiras (19O4) e mostrava um grupo de jovens em várias posturas, carregando ânforas de cobre sobre o ombro ou apoiando-as à cintura. Após observá-las, Nancy imaginou que deviam ser escravas, porque tinham os pés descalços, e seus rostos não sorriam (coitadas, afinal, não era de admirar, as ânforas pareciam terrivelmente pesadas). Além disso, as vestes eram sumárias, transparentes tecidos em tom azulado de uva e vermelho-ferrugem, com revelação quase desnecessária de seios arredondados e mamilos rosados.
George e Nancy não tinham mais interesse em arte do que em música ou teatro. Aliás, o antigo Vicariato já tinha sua quota certa de quadros, as reproduções esportivas apropriadas a qualquer residência rural de respeito e alguns óleos, representando veados mortos ou fiéis cães de caça com faisões na boca, que George herdara do pai. Certa vez, com uma ou duas horas de folga em Londres, eles tinham ido à Galeria Tate e percorreram, vagarosa e conscientemente, uma exposição de Constables, porém, a única recordação que Nancy guardara da ocasião era um punhado de lanudas árvores verdes e o fato de que seus pés doíam.
Não obstante, até um Constable era preferível a esta pintura. Olhou para ela, achando difícil acreditar que alguém quisesse semelhante horror em uma parede, quanto mais pagando dinheiro por aquilo. Se fosse possuidora de tal coisa, ela terminaria os dias em algum sótão esquecido ou no topo de uma fogueira.
Entretanto, não fora qualquer motivo estético o que lhe chamara a atenção para As aguadeiras. A razão que a levava a fitar a reprodução da tela com tanto interesse era o fato de ser uma obra de Lawrence Stern. Porque ele havia sido o pai de Penelope Keeling e, portanto, avô dela, Nancy.
O curioso é que ela praticamente não conhecia o trabalho do avô. Na época de seu nascimento, a fama dele - que estivera no auge na virada do século - tinha minguado e desaparecera, sua produção há muito vendida, dispersada e esquecida. Em casa de sua mãe, na Rua Oakley, havia apenas três pinturas de Lawrence Stern, duas delas compondo dois painéis inacabados, representando um par de ninfas alegóricas, esparzindo lírios sobre encostas relvadas, pontilhadas de margaridas.
O terceiro quadro pendia da parede do saguão no térreo, logo abaixo da escada, único espaço na casa que poderia acomodar seu considerável tamanho. Era um óleo, produto dos últimos anos de Stern, chamado “Os catadores de conchas”. Mostrava uma grande extensão de mar com ondas espumantes, uma praia e um céu repleto de nuvens arrastadas pelo vento. Quando Penelope se mudara da Rua Oakley para Podmore's Thatch, aquelas três preciosas possessões a tinham acompanhado, os painéis terminando no patamar da escada, e “Os catadores de conchas”, na sala de estar, tomando-a ainda menor, com seu teto baixo de vigas. Nancy agora raramente reparava neles, tão familiares eram, fazendo parte da casa de sua mãe,
tanto quanto os sofás e poltronas desconjuntados, os antiquados arranjos florais, entulhando jarros em azul e branco, o cheiro delicioso que vinha da cozinha.
A verdade é que, durante anos, Nancy nem mesmo pensara em Lawrence Stern. Agora, no entanto, sentada no trem com suas peles e botas, a recordação a puxara pela barra do vestido, lançando-a no passado. Não que houvesse muito para lembrar. Ela nascera em finais de 1940 na Cornualha, no pequeno chalé-hospital de Porthkerris, e havia passado os anos da guerra em Carn Cottage, sob o abrigo do teto de Lawrence Stern. Entretanto, suas recordações infantis do idoso homem eram enevoadas - mais a percepção de existir alguém, do que de uma pessoa. Teria ele sentado a neta nos joelhos, saíra com ela para uma caminhada, lera-lhe alguma coisa em voz alta? Se fizera isso, Nancy esquecera. Parecia que nenhuma impressão se fixara em sua mente infantil, até aquele último dia quando, terminada a guerra. ela e a mãe tinham deixado Porthkerris, encerrando a prolongada permanência, e voltado de trem para Londres. Por algum motivo, este evento tocou a consciência de Nancy e lá ficou para sempre, claramente impresso em sua memória.
Ele tinha ido à estação, para vê-las partirem. Muito velho, muito alto, cada vez mais frágil, apoiado em uma bengala de castão de prata, ficara em pé na plataforma, junto à janela aberta, e beijara Penelope em despedida. Seus cabelos brancos e compridos descansavam sobre a gola de tweed da pelerine e, nas mãos deformadas e torcidas, usava mitenes de lã, onde sobressaíam os dedos inúteis, brancos e pálidos como ossos.
Naquele último instante, quando o trem já começava a se mover, Penelope erguera Nancy nos braços, e o velho estendera a mão, pousando-a na bochecha arredondada da neta. Ela recordava a friagem daquela mão, parecendo de mármore, contra sua pele. Não houvera tempo para mais. O trem ganhou velocidade, a plataforma foi deixada para trás, e lá ficou ele, cada vez menor, acenando com o grande chapéu negro de abas largas, em uma última despedida. Essa era a primeira e única lembrança que Nancy tinha do avô, pois ele falecera no ano seguinte.
Velhas histórias, disse para si mesma. Nada havia para deixá-la sentimental. No entanto, era extraordinário que, nos dias atuais, alguém quisesse comprar o trabalho de seu avô: As aguadeiras. Balançou a cabeça, não entendendo aquilo, e então abandonou o enigma, retomando alegremente às confortadoras irrealidades dos acontecimentos sociais.
2. OLIVIA
O novo fotógrafo chamava-se Lyle Medwin. Era um rapaz muito jovem, de cabelos castanhos fofos, que pareciam ter sido cortados com a ajuda de uma tigela de sopa, e um rosto simpático, de olhos gentis. Irradiava algo semelhante a desprendimento, como se fosse um principiante dedicado. Olivia custava a crer que tivesse sido vitorioso na profissão escolhida, enfrentando a guerra mortal para vencer, sem ter sido degolado.
Estavam em pé perto da mesa, à janela de seu escritório, enquanto ele mostrava uma seleção de trabalhos anteriores, a fim de que ela os examinasse: mais ou menos duas dúzias de grandes fotos, coloridas e acetinadas, esperançosamente espalhadas, aguardando aprovação. Olivia as estudara minuciosamente, antes de concluir que gostava delas. Em primeiro lugar, eram muito lúcidas. Sempre insistia que fotos de moda deviam exibir as roupas, seu feitio, o planejamento de uma saia, a textura de uma suéter. Além disso, as fotos do rapaz respiravam vida, movimento, alegria, e até ternura.
Apanhou uma delas. Mostrava um homem com a corpulência de um zagueiro de futebol, correndo em meio a ondas, vestindo um ofuscante conjunto branco para esportes, contra o mar azul-cobalto. Com a pele bronzeada e suada, era a própria imagem do cheiro de ar salitrado, do bem-estar físico.
- Onde foi que tirou esta foto?
- Em Malibu. Fiz para publicidade de trajes esportivos.
- E esta aqui?
Olivia pegou outra foto, esta batida em um final de tarde, mostrando uma jovem em esvoaçante vestido de chifon semelhante a chamas, com o rosto voltado para o mortiço fulgor do sol que se punha.
- Foi em Point Reays... para um destaque editorial da Vogue americana.
Deixando as fotos, Olivia se virou para ele, inclinado sobre a borda da mesa o que o deixava à altura dela, de modo que os olhos de ambos ficassem no mesmo nível.
- Qual a sua experiência profissional?
Ele deu de ombros.
- Curso universitário técnico. Depois, um pouco de atuação como free-lance e, então, me juntei a Toby Stryber, com quem trabalhei uns dois anos, como assistente.
- Foi Toby quem me falou sobre você.
- Em seguida, quando deixei Toby, fui para Los Angeles. Vivi lá os últimos três anos.
- E se saindo bem.
Ele sorriu com modéstia.
- Sim, acho que sim.
Suas roupas eram puro Los Angeles. Tênis brancos, jeans desbotados, camisa branca, um desbotado blusão de brim. Em deferência ao frígido tempo londrino, usava um cachecol de cashmere coral, enrolado à volta do pescoço esguio e bronzeado. Embora amarfanhada, sua aparência era deliciosamente limpa, de roupa recém-lavada e secada ao sol, ainda por passar. Olivia o achou extremamente atraente.
- Carla já lhe falou sobre a programação? - Carla era a editora de modas para Olivia. - Será para o exemplar de julho, uma última reportagem com roupas de férias, antes de passarmos para os tweeds dedicados às charnecas.
- Falou... ela mencionou fotos em locação.
- Fez algumas sugestões?
- Falamos sobre Ibiza... Tenho contatos lá...
- Ibiza.
Ele foi rápido em harmonizar.
- Se você tem outro lugar em mente, tudo bem para mim. Talvez Marrocos...
- Não. - Desencostando-se da mesa, ele foi sentar-se novamente em sua cadeira. -Não temos usado Ibiza há algum tempo... mas acho que não deviam ser fotos nas praias. Fundos rurais ficariam um pouco diferentes, com cabras, ovelhas e camponeses robustos cuidando das lavouras. Você poderia acrescentar alguns moradores locais, para dar um pouco de autenticidade. Eles têm rostos maravilhosos e adoram tirar retrato...
- Acho formidável...
- Então, discuta o assunto com Carla...
Ele vacilou.
- Quer dizer que estou empregado?
- É claro que está. Apenas, trabalhe bem...
- Farei isso. Obrigado...
Ele começou a reunir suas fotos, formando uma pilha. O interfone soou na mesa de Olivia, ela apertou o botão e falou com sua secretária.
- Sim?
- Uma ligação de fora, Srta. Keeling.
Olivia olhou para o relógio. Meio-dia e quinze.
- Quem é? Estou saindo para o almoço.
- Um Sr. Henry Spotswood.
Henry Spotswood. Quem, diabo, seria Henry Spotswood? Então, o nome surgiu em sua mente, ela recordou o homem que conhecera duas noites antes, no coquetel dos Ridgeway. Cabelos começando a ficarem grisalhos, e tão alto quanto ela. No entanto, ele se apresentara como Hank.
- Quer completar a ligação, Jane?
Enquanto esticava o braço para o telefone, Lyle Medwin, com sua pasta de fotos debaixo do braço, cruzava a sala em passadas macias e abria a porta.
- Tchau - falou baixinho, enquanto se esgueirava para fora.
Olivia acenou com a mão e sorriu, mas ele já se fora.
- Srta. Keeling?
- Ela mesma.
- Olívia, é Hank Spotswood; nos conhecemos em casa dos Ridgeway.
- Sim, claro.
- Tenho uma ou duas horas livres. Alguma possibilidade de almoçarmos juntos?
- Quando? Hoje?
- Sim, agora mesmo.
- Oh, sinto muito, mas não será possível. Minha irmã está vindo do campo, e prometi almoçar com ela. Aliás, estou atrasada, já devia ter ido.
- Oh, é uma pena. Bem, que tal jantarmos esta noite?
A voz dele - lembrou Olívia - preenchia os detalhes. Olhos azuis. Um rosto inteiramente americano. Agradável e forte. Terno escuro. Camisa Brooks Brothers. com colarinho abotoado.
- Seria um prazer.
- Ótimo. Aonde gostaria de ir?
Ela estudou a pergunta por um instante. depois decidiu-se.
- Só por uma vez gostaria de não comer em um restaurante ou hotel?
- O que isto significa?
- Vá até minha casa e eu ofereço o jantar.
- Seria formidável. -Ele pareceu surpreso, mas não sem entusiasmo. - Bem... não será muito trabalho para você?
- Trabalho nenhum -respondeu ela com um sorriso. - Apareça pelas oito horas.
Forneceu o endereço, mais uma ou duas informações, para o caso de ele encontrar um motorista de táxi imbecil, despediram-se, e ela desligou.
Hank Spotswood. Uma boa notícia. Sorriu para si mesma, depois olhou para o relógio, expulsou Hank da mente. levantou-se, apanhou chapéu, casaco, bolsa e luvas; em seguida precipitou-se do escritório, a fim de encontrar Nancy para almoçarem.
O encontro foi no L' Escargot no Soho, onde Olivia reservara mesa. Era sempre lá que tinha almoços de negócios, e não via motivos para outro arranjo, embora sabendo que Nancy estaria muito mais à vontade no Harvey Nichols ou em qualquer outro lugar apinhado de mulheres esgotadas, descansando os pés após uma manhã de compras.
Mas ali estava o L' Escargot. Olivía estava atrasada, e Nancy já esperava por ela, mais gorda do que nunca, em sua grossa suéter de lã e saia do mesmo material, tudo arrematado por um chapéu de pele aproximadamente do mesmo tom de seu desbotado cabelo anelado. O chapéu dava a impressão de que Nancy deixara crescer uma segunda cabeleira. Lá estava ela, única mulher num mar de homens de negócios, a bolsa no colo e um copo alto de gim tônica à sua frente, sobre a mesa pequenina. Parecia tão deslocada, que Olivia sentiu uma pontada de culpa, o que a fez mais efusiva do que se sentia.
- Oh, Nancy, sinto muito, sinto muitíssimo, mas fiquei retida no escritório. Chegou há muito tempo?
Elas não se beijaram. Nunca se beijavam.
- Está tudo bem.
- De qualquer modo, você já pediu um drinque... quer outro? Reservei mesa para meio-dia e quarenta e cinco, não vamos querer perdê-la.
- Boa-tarde, Srta. Keeling.
- Oh, olá, Gerard. Não, sem drinque, por favor não temos muito tempo.
- A senhorita reservou mesa?
- Sim. Para meio-dia e quarenta e cinco. Acho que estou um tanto atrasada.
- Não importa. Se quiser acompanhar-me...
Gerard abriu caminho, mas Olivia esperou que Nancy se içasse da cadeira, apanhasse sua bolsa e sua revista, ajeitando em seguida a suéter sobre o ventre razoável, antes de acompanhá-lo. O restaurante estava cheio, aquecido, repleto de ruidosas conversas masculinas. Foram conduzidas à mesa costumeira de Olivia, em um canto afastado onde, após a tradicional e obsequiosa cerimônia, finalmente acomodaram-se em um sofá curvo, a mesa foi aproximada de seus joelhos, e apresentado um congestionado cardápio.
- Um sherry enquanto a senhorita decide?
- Uma Perrier para mim, Gerard, por favor... e para minha irmã... - Ela se virou para Nancy. - Gostaria de um vinho?
- Sim, seria ótimo.
Ignorando a lista de vinhos, Olivia pediu meia-garrafa do branco da casa.
- E, então, o que deseja comer?
Nancy não sabia. O cardápio era incrivelmente comprido e todo em francês. Olivia sabia que a irmã poderia ficar ali o dia inteiro, estudando os pratos; ofereceu, portanto, algumas sugestões. Por fim, Nancy acedeu em um consomê, seguido por escalope de vitela com cogumelos. Olivia pediu uma omelete e uma salada de verduras. Feitos os pedidos, o garçom desapareceu.
- Que tipo de viagem fez esta manhã? - perguntou.
- Oh, foi muito confortável, realmente. Peguei o trem das nove e quinze. Houve um certo atropelo para levar as crianças à escola, mas consegui acomodar tudo.
- Como estão as crianças?
Tentou demonstrar um interesse sincero, mas Nancy sabia que isso não existia e, felizmente, não se prolongou no tema.
- Muito bem.
- E George?
- Também está bem, imagino.
- E os cães? - insistiu Olivia.
- Todos ótimos... - Nancy começou a falar, e então se lembrou. - Um deles passou mal esta manhã.
Olivia fez uma careta.
- Não me conte nada. Pelo menos, até depois de almoçarmos.
O garçom de bebidas apareceu, trazendo a Perrier de Olívia e a meia-garrafa de Nancy. As duas garrafas foram devidamente abertas e o vinho despejado no copo. O homem esperou. Nancy recordou que devia provar o vinho, e então tomou um gole, franziu os lábios profissionalmente e declarou que estava delicioso. A garrafa foi depositada sobre a mesa e o garçom retirou-se, com rosto inexpressivo.
Olivia serviu sua água mineral.
- Você nunca bebe vinho? - perguntou Nancy.
- Não durante os almoços de negócios.
Nancy ergueu as sobrancelhas, quase arqueando-as.
- Este é um almoço de negócios?
- Bem, acho que sim, não é? Não foi o que nos reuniu aqui? Para falarmos de negócios sobre mamma?
O apelativo tatibitate, como sempre, deixou Nancy irritada. Os três filhos de Penelope a chamavam por nomes diferentes. Noel dirigia-se a ela como "mãe". Nancy, fazia alguns anos, chamava-a de "mamãe", um termo que considerava adequado às suas idades e à própria posição dela, Nancy, na vida. Somente Olivia - de coração duro e sofisticada em todos os outros sentidos - insistia com aquele "mamma". Nancy às vezes perguntava a si mesma se a irmã não percebia o quanto aquilo soava ridículo.
- Seria bom começarmos logo - insistiu O1ivia. - Não tenho o dia inteiro para isso.
Seu tom frio foi a última gota. Nancy, que viajara de trem de Gloucestershire para este encontro, que limpara vômito de cachorro e cortara o polegar na lata de ração, nem sabendo como conseguira levar seus dois filhos para a escola e ainda apanhar o trem, em cima da hora, sentiu uma gigantesca onda de ressentimento.
Não tenho o dia inteiro para isso.
Por que O1ivia precisava ser tão rude, tão inflexível, tão insensível? Será que nunca haveria uma oportunidade de conversarem cordialmente como irmãs, sem O1ivia ostentando a movimentação de sua carreira, como se a vida de Nancy, com suas sólidas prioridades de um lar, marido e filhos, não tivesse qualquer valor?
Quando pequeninas, Nancy tinha sido a bonita. Loura, de olhos azuis, maneira amáveis e (graças a vovó Keeling) roupas bonitas. Era ela quem atraíra olhos, admiração, homens. Olivia era a inteligente e ambiciosa, obsecada por livros, exames e conquistas acadêmicas. Entretanto, era feia, recordou Nancy, bastante feia. Dolorosamente alta e magra, de busto achatado e usando 6culos, exibia uma falta de interesse quase arrogante pelo sexo oposto, retraindo-se em desdenhoso silêncio sempre que um dos namorados de Nancy aparecia, ou indo para seu quarto ler um livro.
Não obstante, O1ivia fora redimida por suas feições. Não seria filha de seus pais, caso não fosse abençoada com aquelas características. Os cabelos muito espessos tinham a cor e o brilho do mogno polido. Os olhos escuros, herdados da mãe, cintilavam como os de algumas aves, mostrando uma espécie de sardônica inteligência.
Então, o que tinha acontecido? A desengonçada, brilhante aluna universitária, a irmã com quem homem nenhum queria dançar, de algum modo, em alguma época, em algum lugar, transformara-se naquele fenômeno, que era Olivia aos trinta e oito anos. A formidável mulher profissional, a editora de Venus.
Sua aparência, agora, era tão descompromissada como sempre. Até mesmo feia, porém quase aterradoramente chique. Um chapéu de veludo negro de copa achatada, um casaco negro, drapeado, blusa de seda creme, colares e brincos dourados, anéis semelhantes a soqueiras de metal. O rosto era pálido, a boca, sempre muito vermelha; até os enormes óculos de aros negros, ela de algum modo os transformara em invejável acessório. Nancy não era nenhuma tola. Ao seguir Olivia no restaurante apinhado, caminhando para a mesa reservada, captara o frisson de interesse masculino, vira os olhares dissimulados e as cabeças que se viravam. Ao mesmo tempo, sabia que não se tinham virado para ela, como a mais bonita das duas, mas para Olivia.
Nancy jamais estivera a par dos mistérios da vida de Olivia e, até aquele tão extraordinário evento de cinco anos atrás, acreditara piamente que a irmã fosse virgem ou de todo assexuada. (Claro que existia outra e mais sinistra possibilidade, que lhe ocorrera após avançar difícil e minuciosamente por uma biografia de Vita Sackville-West, porém, como dissera a si mesma, isto era algo em que nem suportava pensar.)
Clássico exemplo de mulher sagaz e ambiciosa, Olivia parecia ter-se absorvido pela carreira, havendo progredido com firmeza até tornar-se editora-chefe de Venus, a exclusiva e inteligente revista feminina, para a qual trabalhara sete anos. Seu nome constava do expediente; de tempos em tempos, sua foto surgia na revista, ilustrando algum artigo e, certa ocasião, ela aparecera na televisão, respondendo a perguntas em um programa dirigido às famílias.
E então, com tudo correndo bem para ela, na metade da corrente da vida, por assim dizer, Olivia dera aquele passo, inesperado e tão avesso ao seu feitio. Ao passar férias em Ibiza, conhecera um homem chamado Cosmo Hamilton e não voltara para casa. Terminara voltando, mas somente após ter ficado um ano lá, vivendo com ele. A primeira vez que seu editor tomou conhecimento do fato foi através de uma carta que ela remeteu de Ibiza, com um pedido de demissão. Quando a estarrecedora notícia vazou, através de sua mãe, Nancy a princípio se recusara a crer. Disse para si mesma que aquilo era demasiado chocante; no entanto, a verdade é que, de algum modo obscuro, sentia que Olivia dera um passo à sua frente.
Mal podendo esperar para contar a George, esperava vê-lo tão apalermado quanto ela. Entretanto, a reação dele foi surpreendente.
- Que interessante! -foi tudo quanto disse.
- Você não me parece muito surpreso.
- E não estou.
Ela franziu a testa.
- É de Olivia que estamos falando, George!
- Claro que é de Olivia. - Ele fitou o rosto perplexo da esposa e quase riu. - Ora, Nancy! Está mesmo pensando que sua irmã passou a vida inteira como uma freirinha bem-comportada? Essa moça tão reservada, com apartamento em Londres, maneiras evasivas... Se acreditou nisto, então você é mais tola do que pensei.
Nancy sentiu as lágrimas ardendo no fundo dos olhos.
- Ora, mas eu... eu... eu pensei...
- O que foi que pensou?
- Oh, George, ela é tão sem atrativos!
- Está muito enganada, Nancy - respondeu George. – Sua irmã não é, em absoluto, sem atrativos.
- Pensei que você não simpatizasse com ela. !
- E continuo não simpatizando -disse George, abrindo o jornal e, com isto, pondo fim ao diálogo.
Não era do temperamento dele expor uma questão com tanta eficácia e também não era sua tendência ser tão perceptivo, mas, após digerir o assunto e remoer esta nova reviravolta de eventos, Nancy concluiu que seu marido provavelmente estaria certo sobre Olivia. Assim, aceitou a situação e não teve dificuldade para manobrá-la em proveito próprio. Ser capaz de vangloriar-se sobre um relacionamento tão atrevido era ao mesmo tempo fascinante e sofisticado - como uma antiga peça de Noel Coward -e desde que alguém aludisse à questão da vida-em-pecado, Olivia e Cosmo forneciam um tema que constituía um excelente tampão nas conversas em jantares com convidados.
- Sabem como é, minha inteligente irmã Olivia é extremamente romântica. Abandonou tudo por amor. Agora reside em Ibiza... na casa mais maravilhosa que se desejaria. - Sua imaginação corria a rédeas soltas, aventurando outras deliciosas possibilidades e esperançosamente grátis. - No próximo verão, talvez eu, George e as crianças passemos algumas semanas com eles. Tudo depende dos eventos no Clube Eqüestre, é claro, não? Nós, mães, somos escravas do Clube Eqiiestre.
Contudo, embora Olivia convidasse a mãe, e Penelope aceitasse alegremente, tendo passado mais de um mês com ela e Cosmo, tal convite jamais foi estendido aos Chamberlain. Nancy nunca perdoou a irmã por isto.
O restaurante estava quente demais. De repente, Nancy sentiu que o calor era insuportável. Desejou ter vestido uma blusa, em vez de suéter, mas, não podendo tirar a suéter, tomou outro gole de vinho fresco. A despeito do calor, reparou que suas mãos tremiam.
A seu lado, Olivia perguntava:
- Você viu mamma?
- Oh, sim. -Ela deixou o copo na mesa. - Fui vê-la no hospital.
- E como a achou?
- Bem, muito bem, em vista das circunstâncias.
- Eles estavam certos de que foi um ataque cardíaco?
- Oh, sem dúvida. Ela ficou sob tratamento intensivo um ou dois dias. Depois a colocaram em uma enfermaria, mas ela decidiu voltar para casa, por conta própria.
- O médico não deve ter gostado muito disso.
- Sim, ele ficou aborrecido. Foi quando telefonou para mim e disse que ela não devia morar sozinha.
- Você considerou uma segunda opinião?
Nancy se conteve a custo.
- Ele é um excelente médico, Olivia!
- Apenas um clínico rural.
- Ele ficaria muito ofendido...
- Tolice. Acho que não adianta tomarmos qualquer providência sobre uma acompanhante ou governanta, enquanto ela não for examinada por um especialista.
- Você sabe que ela jamais procuraria um especialista.
- Então, que se faça a sua vontade. Por que lhe impormos alguma acompanhante idiota, se o que ela deseja é morar sozinha? Aquela excelente Sra. Plackett está lá, três manhãs por semana, e tenho certeza de que todos na aldeia andarão por perto, de olho nela. Afinal de contas, já são cinco anos morando lá, e todos os moradores a conhecem.
- Certo, mas suponhamos que ela tenha outro ataque e morra, simplesmente por não haver ninguém lá para socorrê-la. Ou que caia na escada. Ou que sofra um acidente com o carro e mate alguém...
Imperdoavelmente, Olivia riu.
- Nunca pensei que você tivesse uma imaginação tão vívida! Afinal, encaremos os fatos: se ela tiver algum acidente com o carro, a presença e uma governanta não a impedirá. Fracamente, não vejo por que nos deveríamos preocupar tanto.
- Nós temos de ficar preocupados!
- Por quê?
- Não se trata apenas da governanta... há outras coisas a serem consideradas. A horta e o jardim, por exemplo. Dois acres plantados, e ela sempre fez tudo sozinha. Plantando legumes e aparando a grama. Tudo! Não é possível que continue com este tipo de esforço físico.
- E não continuará -respondeu Olivia, e Nancy franziu a testa. - Tive uma longa conversa com ela ao telefone, faz algumas noites...
- Você não me contou isso.
- E você mal me deu tempo. Falando comigo, ela parecia em ótimo estado, forte e alegre. Disse que achava o médico um tolo e que, se outra mulher fosse morar em sua companhia, provavelmente a assassinaria. A casa é muito pequena, e as duas se atropelariam a toda hora, no que concordo plenamente. Quanto à horta e ao jardim, já antes de ela ter o chamado ataque cardíaco, havia decidido que davam trabalho demais. Então, entrou em contato com a agência local de jardineiros e arranjou um homem para trabalhar lá, dois ou três dias na semana. Parece que ele começa na próxima segunda-feira.
Nada disto teve o dom de melhorar o estado de espírito de Nancy. Era como se Olivia e sua mãe estivessem conspirando às escondidas.
- Não sei se será uma boa idéia. Como sabermos que tipo de pessoa eles enviarão? Pode ser qualquer um. Mamãe poderia ter contratado um bom homem da aldeia.
- Todos os bons homens da aldeia já estão empregados na fábrica de produtos eletrônicos, em Pudley...
Nancy continuaria a discussão, mas foi interrompida pela chegada de sua sopa. Foi servida em uma tigela redonda de cerâmica marrom, e exalava um cheiro delicioso. De repente, percebeu o quanto estava faminta, pegou a colher e estendeu a mão para um cálido e tostado croissant.
Após alguns momentos, disse em tom formal:
-Você nem pensou em discutir o assunto comigo e com George!
- Pelo amor de Deus, o que havia para discutir? Não tenho nada a ver com pessoa alguma, exceto mamma. Sinceramente, Nancy, você e George a tratam como se ela fosse senil; no entanto, tem apenas sessenta e quatro anos, está na flor da idade, forte como um touro e independente como sempre foi. Por que não param de interferir?
Nancy perdeu a calma.
- Interferir? Talvez se você e Noel interferissem - como denominou - um pouco mais freqüentemente, tirariam de meus ombros parte da carga.
Olivia ficou gélida.
- Em primeiro lugar, não me nivele a Noel. E em segundo, se tem uma carga nos ombros, você mesma a inventou e a colocou lá!
- Não sei por que eu e George nos preocupamos. É evidente que não recebemos agradecimentos.
- E o que devo agradecer a você?
- Muita coisa. Se eu não tivesse convencido mamãe de que era uma loucura, a estas horas teria voltado para a Cornualha e viveria na casa de algum pescador.
- Nunca entendi por que você pensou que fosse tão má idéia.
- Olivia! A quilômetros de todos nós, no outro lado do país... era ridículo! Foi o que disse a ela. Você nunca deve voltar para lá, eu falei. Tudo quanto ela tentava fazer era recapturar sua juventude. Teria sido um desastre. Além do mais, foi George quem encontrou Podmore's Thatch para ela. Nem você poderia dizer que aquela não é a casa mais encantadora, mais perfeita, em todos os sentidos. E tudo graças a George. Não esqueça isso, Olivia. Tudo graças a George!
- Três vivas para George.
Houve outra interrupção a esta altura, enquanto a tigela de sopa de Nancy era removida, e servidos o escalope de vitela e a omelete. O restante do vinho foi despejado no copo de Nancy, e Olivia começou a servir-se de salada. Quando o garçom tomou a afastar-se,
Nancy perguntou:
- E quanto irá custar esse jardineiro? Jardineiros contratados costumam ser dispendiosos.
- Oh, Nancy, isso importa?
- É claro que importa. Mamãe poderá pagar a ele? É mais uma coisa que me preocupa. Mamãe sempre fez tanto mistério sobre dinheiro, embora, ao mesmo tempo, seja tão gastadeira!
- Mamãe? Gastadeira? Ela jamais gastou um níquel consigo mesma!
- Sim, mas está sempre recebendo pessoas. Suas contas de comida e bebida devem ser astronômicas. E aquela estufa ridícula, que mandou construir no chalé... George tentou dissuadi-la. Seria muito mais proveitoso gastar o dinheiro em vidraças duplas.
- Talvez ela não quisesse vidraças duplas.
- Você se recusa a preocupar-se, não é? - A voz de Nancy estava cheia de indignação. - Nem ao menos considera as possibilidades!
- E quais são as possibilidades, Nancy? Esclareça-me.
- Ela poderia viver até os noventa.
- Espero que viva.
- Seu capital não durará para sempre.
Os olhos de Olivia brilharam, divertidos.
- Você e George receiam ficar com uma pessoa desvalida e dependente nas mãos? Será mais um rombo em suas finanças, após terem pago a manutenção daquela casa, que é um celeiro, e matriculado os filhos nos colégios mais caros?
- Não é da sua conta a maneira como decidimos gastar nosso dinheiro.
- E também não é da conta de vocês a maneira com mamma decide gastar o dela!
A resposta silenciou Nancy. Desviando os olhos de Olivia, concentrou a atenção em sua vitela. Olhando para a irmã, Olivia viu-a ruborizar-se, percebeu o ligeiro tremor na boca e nas faces. Pelo amor de Deus, pensou, ela só tem quarenta e três anos, mas parece uma velha, gorda e patética! De repente, sentiu uma pena imensa de Nancy e certa culpa. Ouviu-se dizendo, em tom mais suave e encorajador:
- Em seu lugar, eu não me preocuparia tanto. Ela conseguiu um bom preço pela casa da Rua Oakley, e ainda sobrou uma boa fatia, mesmo depois da compra de Podmore's Thatch. Não creio que o velho Lawrence tenha percebido isso mas, com uma coisa e outra, ele a deixou bastante bem provida. Afinal, foi ótimo para nós três também, eu, você e Noel, pois, falando francamente, em questão de finanças nosso pai sempre foi um fracasso...
Imediatamente, Nancy percebeu que chegara ao fim de suas energias. Estava exausta com a discussão e, além do mais, odiava quando Olivia falava do querido papai daquele jeito. Em circunstâncias normais, teria saltado para defender o morto amado. Agora, no entanto, não tinha mais forças. O encontro com Olivia fora pura perda de tempo. Nada ficara decidido sobre mamãe, sobre dinheiro, governantas ou outra coisa. Como sempre, Olivia falava muito mais rápido do que ela, e agora a deixava com a sensação a de ter sido esmagada por um rolo compressor.
Lawrence Stern.
A deliciosa refeição terminara. Olivia olhou para seu relógio e perguntou a Nancy se ela queria café. Nancy quis saber se ainda havia tempo, Olivia disse que sim, ainda dispunha de uns cinco minutos. Nancy aceitou o café, Olivia o pediu. Relutantemente, Nancy expulsou da mente as imagens dos deliciosos pudins que vira no carrinho das sobremesas, apanhou a Harpers and Queen que comprara para ler no trem, e que agora jazia no assento estofado de veludo, ao seu lado.
- Já viu isto?
Folheou as páginas, até chegar ao anúncio da Boothby's e estendeu a revista para a irmã. Olivia olhou de relance e assentiu.
- Sim, já vi. A venda será na próxima quarta-feira.
- Não é extraordinário? - Nancy pegou a revista de volta.
- Imaginar que alguém queira comprar semelhante horror!
- Nancy, eu lhe garanto que um bocado de gente quer comprar semelhante horror.
- Você deve estar brincando!
- É claro que não estou. - Notando a sincera perplexidade da irmã, Olivia riu. - Oh, Nancy, onde foi que você e George estiveram nestes últimos anos? Tem havido um novo e incrível interesse pela pintura vitoriana. Lawrence Stern, Alma-Tadema, John William Waterhouse... estão conseguindo preços enormes, nas vendas dos negociantes de arte.
Nancy estudou a sombria tela As aguadeiras, com o que esperava ser uma nova perspectiva. Não houve qualquer diferença.
- Ora, mas por quê? - insistiu.
Olivia deu de ombros.
- Há uma nova avaliação da técnica desses pintores. O valor da raridade.
- Quando você fala em preços enormes, o que quer dizer, exatamente? Ou melhor, quanto isto alcançará?
- Não faço a menor idéia.
- Dê um palpite.
-Bem... - Olivia mordeu o lábio considerando. - Talvez... umas duzentas mil.
- Duzentas mil? Por isto?
- Exato. Mais ou menos alguns quebrados.
- Ora, mas por quê? - Nancy tomou a insistir.
- Já lhe disse. O valor da raridade. Nada vale alguma coisa, a menos que alguém o queira. Lawrence Stern nunca foi um pintor prolífico. Se você examinar os detalhes nesse quadro entenderá o motivo. Deve ter levado meses para ficar pronto.
- E o que aconteceu com toda a obra dele?
- Foi-se. Vendida. Provavelmente, mal saída do cavalete, com a tinta ainda molhada. Toda coleção particular ou galeria de arte pública que seja digna do nome no mundo certamente possui alguma tela de Lawrence Stern. Hoje em dia. só de vez em quando um de seus quadros aparece no mercado. E, lembre-se, ele deixou de pintar muito antes da guerra, quando as mãos ficaram tão deformadas, que não conseguiam segurar nem mesmo um pincel. Imagino que ele tenha vendido tudo quanto pôde e bem feliz por vender, apenas para manter a família viva. Vovô nunca foi um homem rico. Para nossa sorte, herdou do pai um casarão em Londres e, mais tarde, conseguiu comprar a posse de Carn Cottage. A venda de Carn Cottage custeou por muito tempo a educação de nós três, e é do produto da venda da casa da Rua Oakley que mamma está vivendo agora.
Nancy ouviu tudo isto, porém não com total atenção. Sua concentração oscilava. enquanto a mente explorava uma tangente. analisando possibilidades, especulando.
- E quanto aos quadros de mamãe? - perguntou, procurando soar o mais casual que pôde.
- Está falando de “Os catadores de conchas?”
- Estou. E dos dois painéis no patamar da escada.
- O que quer saber?
- Se fossem vendidos agora. Acha que valeriam muito dinheiro?
- Imagino que sim.
Nancy engoliu. Tinha a boca seca.
- Quanto?
- Nancy, meu ramo é outro.
- Diga uma quantia aproximada.
- Imagino que... perto de quinhentas mil.
- Quinhentas mil libras! - As palavras mal tiveram som. Nancy reclinou-se no assento, absolutamente chocada. Meio milhão. Podia ver a soma escrita, com o sinal da libra e uma fileira de adoráveis zeros. Naquele momento, o garçom trouxe seu café, preto, fumegante e oloroso. Pigarreando, ela exclamou novamente: - Meio milhão!
- Mais ou menos. - Com um de seus raros sorrisos, Olívia empurrou o açucareiro na direção de Nancy. - Está vendo? Agora, você e George não precisam mais se preocupar com as despesas de mamma.
Aquilo foi o fim da conversa. As duas beberam o café em silêncio, Olivia pagou a conta e levantaram-se para sair. Fora do restaurante, uma vez que iam para direções diferentes, chamaram dois táxis e, como Olivia estava com mais pressa, tomou o primeiro. Despediram-se na calçada e Nancy a viu ir embora. Enquanto almoçavam, começara a chover bastante forte, mas Nancy, parada debaixo do aguaceiro, mal percebeu.
Meio milhão.
Seu táxi aproximou-se. Disse ao motorista que a conduzisse à casa Harrods, deu uma gorjeta para o porteiro e embarcou no veículo. O táxi pôs-se em movimento. Recostada no assento, olhando para Londres que desfilava do outro lado da janela do táxi, ela nada via. Nada conseguira de seu entendimento com Olivia, porém o dia não fora em vão. Podia sentir o coração batendo com secreta excitação.
Meio milhão de libras.
Um dos motivos de Olivia ter feito tanto sucesso em sua carreira era a aptidão que desenvolvera para clarear a mente e, desta maneira, concentrar sua incrível inteligência em um conjunto de problemas a cada vez. Dirigia sua vida como um submarino, dividido em compartimentos estanques, cada um hermeticamente desligado do outro. Assim, nesta manhã tirara Hank Spotswood do pensamento e pudera dedicar-se a Nancy. Ao voltar para o escritório, já quando cruzava a porta do prestigiado edifício. ela era novamente a editora de Venus. Sem pensar em mais nada que não fosse o êxito de sua publicação. Durante a tarde, ditou cartas, teve uma reunião com seu gerente de publicidade, organizou um almoço promocional a acontecer no Dorchester e teve uma longa, atrasada discussão com a editora de ficção, informando à pobre mulher que, se ela não encontrasse histórias melhores do que as até então submetidas à sua aprovação, Venus deixaria de publicar ficção. Neste caso, a editora
de ficção podia procurar outro emprego. Uma mulher só, lutando para criar dois filhos, a editora de ficção debulhou-se em lágrimas, porém Olivia foi inflexível; a revista tinha prioridade sobre qualquer outra coisa e, portanto, limitou-se a estender um lenço de papel à outra, concedendo-lhe duas semanas de folga, durante as quais deveria tirar algum coelho mágico de sua cartola.
Tudo isto, no entanto, era esgotante. Lembrando-se de que estavam na sexta-feira, final de semana, Olivia ficou grata por isto.
Trabalhou até as seis da tarde, arrumou sua mesa, reuniu seus pertences e finalmente tomou o elevador para a garagem do subsolo, onde apanhou seu carro e partiu para casa.
O trânsito era infernal, porém Olivia já estava acostumada à hora do rush e a aceitava. Com uma batida mental da porta isolante, Venus deixou de existir; era como se a tarde jamais houvesse acontecido e ela estivesse novamente no L'Escargot, em companhia de Nancy.
Havia sido brusca com a irmã, acusara-a de exagerar em suas reações, fizera pouco caso da doença da mãe, rejeitara o diagnóstico do clínico geral do campo. Isto acontecia porque, invariavelmente, Nancy transformava grãos de areia em montanhas... pobre criatura, o que mais podia fazer com sua vida tediosa... mas também porque Olivia, como se ainda fosse criança, gostava de pensar em Penelope como tendo sempre boa saúde. Sendo o mesmo imortal. Não a queria doente. Não queria que ela morresse.
Ataque do coração. Que isso acontecesse logo com sua mãe, entre tantas pessoas, uma mulher que jamais ficara doente a vida inteira! Alta, forte, vital, interessada em tudo, porém, o principal, estando sempre lá. Olivia recordava a cozinha no porão da casa na Rua Oakley, o núcleo daquela esparramada casa londrina, onde a sopa estava sempre no fogo e as pessoas sentavam-se em volta da mesa esfregada e limpa, conversando durante horas enquanto bebericava o conhaque ou café, com sua mãe passando roupa ou remendando lençóis. Se alguém mencionava a palavra "segurança", era daquele lugar confortável que Olivia se lembrava.
E agora... Ela suspirou. Talvez o médico estivesse certo. Talvez Penelope precisasse de alguém morando em sua companhia. O melhor que tinha a fazer era visitá-la, conversar e, se preciso, chegar a alguma espécie de arranjo. Amanhã era sábado. Irei vê-la amanhã, decidiu e, imediatamente, sentiu-se muito melhor. Iria de carro a Podmore's Thatch pela manhã e passaria o dia lá. Com esta decisão tomada, ela tirou da mente todo aquele assunto e permitiu que a lacuna resultante se enchesse lentamente com a agradável antecipação da noite que tinha pela frente.
A esta altura, estava praticamente em casa. Primeiro, no entanto, deu uma parada no supermercado local, estacionou o carro e fez algumas compras. Pão fresquinho e crocante, manteiga e um pote de patê de foie gras; frango e o indispensável para uma salada. Azeite de oliva, pêssegos frescos, queijos; uma garrafa de uísque e duas de vinho. Comprou flores, uma braçada de narcisos, colocou tudo no porta-malas do carro e cobriu o curto trajeto que a levaria à Ranfurly Road.
Sua casa era uma entre uma fileira de pequenas edificações eduardianas de tijolos, cada qual com sua janela de balcão saliente, jardinzinho frontal e passagem ladrilhada. Vista de fora, parecia quase melancolicamente comum, porém isto apenas acentuava o impacto do interior, inesperado e sofisticado. Os apertados aposentos do térreo tinham sido transformados em um salão espaçoso, a cozinha, dividida da área de refeições por apenas um balcão, à semelhança de um pequeno bar, com uma escada ampla que levava ao andar de cima. No extremo oposto do aposento, portas-janelas se abriam para um jardim, produzindo uma vista curiosamente rural, pois além do muro do jardim via-se uma igreja, com seu aproximadamente meio acre de terreno, onde um enorme carvalho estendia robustos galhos e, no verão, eram feitos os piqueniques da escola dominical.
Em vista disto, pareceria natural se Olivia decorasse sua casa em estilo campestre, com algodões estampados de florezinhas e mobília de pinho, porém o impacto criado por ela era tão fino e moderno como o de um apartamento de cobertura. O tom predominante era o branco. Olivia adorava branco. Aquele era a cor do luxo, a cor da luz. Piso ladrilhado em branco, paredes brancas, cortinas brancas. Almofadões de algodão branco no assento dos fundos e pecaminosamente confortáveis sofás e poltronas, abajures e cúpulas brancos. O resultado não era frio, porque, sobre esta tela imaculada de alvura, ela salpicara toques de primária animação. Almofadas escarlate e rosa-indiano, tapetes espanhóis, pinturas abstratas vivas emolduradas em prata. A mesa da sala de refeições tinha tampo de vidro, as cadeiras eram negras, e uma parede daquele recanto fora pintada em azul-cobalto, nela pendendo uma galeria de fotos da família e de amigos.
Tudo ali também era cálido, imaculado, irradiando limpeza. Isto porque a vizinha de Olivia, com quem tinha um acordo há muito tempo, vinha diariamente lavar e polir. Agora, ela podia sentir o cheiro do polidor, misturado ao aroma de um vaso de jacintos azuis, cujos bulbos, plantados pessoalmente no outono anterior, finalmente atingiam o auge da perfeição aromática.
Sem pressa, movimentando-se conscienciosamente, entregou-se aos preparativos para a noite que se avizinhava. Fechou as cortinas, acendeu a lareira (a gás, com imitação de troncos, porém tão confortável e legítima como a tradicional), colocou um disco no estéreo e serviu-se de um uísque. Na cozinha, preparou uma salada e respectivos temperos, arrumou a mesa e colocou o vinho na geladeira.
Eram agora quase sete e meia. Foi para o andar de cima. O dormitório ficava nos fundos da casa, dando para o jardim e o carvalho. Também naquele aposento predominava o branco, com um espesso carpete e enorme cama de casal. Olhando para a cama, ela pensou em Hank Spotswood, deliberou por um ou dois momentos, e então tirou sua arrumação, substituindo-a por lençóis de linho, brilhantes e frios, passados a ferro recentemente. Feito isto - e só então - ela se despiu e preparou seu banho.
Para Olívia, o ritual do banho ao anoitecer era de abandono e relaxamento total. Ali, mergulhada em perfumado vapor, deixou que a mente divagasse, que os pensamentos voejassem. Era um interlúdio que conduzia a reflexões agradáveis - férias a considerar. Roupas para os meses vindouros, vagas fantasias concernentes ao seu homem atual. Entretanto, de alguma forma, viu-se novamente pensando em Nancy, imaginando se já estaria em casa àquela altura, naquela casa horrenda, com sua família antipática. De fato, sua irmã tinha problemas, porém todos pareciam auto-induzidos. Com todas as suas presunções, ela e George viviam muito acima das posses, mas procuravam convencer-se de que tinham direito a muito mais. Era difícil não sorrir, ante a recordação do rosto e maxilares flácidos de Nancy, de seus olhos salientes, quando falara a ela sobre o valor provável das telas de Lawrence Stern. Nancy jamais fora muito hábil em esconder o que pensava, em particular quando apanhada desprevenida. O total assombro havia sido quase imediatamente substituído por uma expressão de calculista avareza, como se estivesse visualizando contas escolares pagas, o velho vicariato com vidraças duplas, e garantida a segurança e todo o clã Chamberlain.
Olivia não se preocupou com isto. Não receava pelo “Os catadores de conchas”. Lawrence Stern dera o quadro para a filha como presente de casamento, sendo mais precioso para Penelope do que todo o dinheiro do mundo. Ela jamais o venderia. Nancy - e Noel também estava incluído - simplesmente teria que ficar esperando que a natureza seguisse seu curso, que Penelope finalmente morresse. Um evento que, segundo Olivia esperava devotamente, ainda levaria anos para acontecer.
Abandonou Nancy mentalmente e seus pensamentos mudaram para temas mais atraentes. Aquele sagaz e jovem fotógrafo, Lyle Medwin. Um rapaz brilhante. Um verdadeiro achado. E também perceptivo.
"Ibiza", havia dito ele e, involuntariamente, ela repetira a palavra. Talvez Medwin captasse alguma interrogação em sua voz ou expressão, porque imediatamente oferecera uma sugestão alternativa. Ibiza. Olivia percebeu, enquanto espremia a esponja; a fim de que a água quente pingasse como bálsamo sobre sua nudez, que as lembranças haviam sido espicaçadas e ficavam pairando no fundo de sua consciência, desde aquele breve e aparentemente insignificante diálogo.
Fazia meses que não pensava em Ibiza. No entanto, sugerira "fundos rurais... com cabras, ovelhas e camponeses robustos cuidando das lavouras". Viu a casa, baixa e alongada, de telhas vermelhas, tomada por buganvílias e treliças de vinhas. Ouviu o tilintar dos cincerros das vacas e galos cantando. Sentiu o cheiro cálido da resina de pinheiros e juníperos, soprado do mar por uma brisa quente. De novo, sentiu o calor penetrante do sol do Mediterrâneo.
3. COSMO
Em princípios do verão de 1979. quando passava férias com amigos, Olivia conheceu Cosmo Hamilton, numa festa em um barco.
Ela detestava barcos. Não gostava da intimidade forçada, daquela claustrofobia produzida por muita gente apinhada em tão reduzido espaço, do constante chocar de canelas e cabeças nos turcos e botalós. Aquele barco em particular era um cruzeiro de trinta pés, ancorado no porto, ao qual se chegava por meio de um resistente bote inflável de borracha. Olivia só compareceu porque o restante do grupo queria ir de qualquer jeito; assim mesmo acedeu relutante, tendo sido tudo tão ruim quanto receara. Com toda aquela gente, sem lugar algum para sentar, cada qual procurando mostrar-se mais alegre e sem-cerimônia. todos bebendo Bloody Mary e discutindo em ruidosas risadas a festa a que tinham ido na véspera -uma festa à qual Olivia e seus amigos não haviam comparecido.
Viu-se em pé na cabina do iate. a mão aferrada ao copo, juntamente com mais umas quatorze pessoas. Era como tentar ser sociável dentro de um elevador, onde todos se comprimiam como sardinhas em lata. Outro detalhe terrível era encontrar-se em uma embarcação da qual não se tinha meios de ir embora. Não se podia simplesmente sair pela porta e chegar à rua, acenar para um táxi e ir embora. Estava presa ali. Além disso, apertada, cara a cara com um indivíduo desprovido de queixo parecendo achar que os outros julgavam fascinante sabê-lo membro dos Guardas (*) e saber em quanto tempo era possível ir, em um carro razoavelmente rápido de sua casa em Hampshire até Windsor.
Olivia sentia imenso tédio. Ao se virar um momento para tornar a encher seu copo, se dispôs a sair dali imediatamente, espremendo-se da cabine apinhada e forçando caminho para diante. Enquanto avançava, viu uma jovem quase inteiramente nua, tomando banho de sol no teto da cabina. Na coberta de proa, encontrou vazio um canto do convés e sentou-se ali, de costas apoiadas no mastro. A algazarra das vozes continuou assaltando seus ouvidos mas, pelo menos, ali estava sozinha. Fazia um tremendo calor. Ficou olhando para o mar, impotente.
Uma sombra caiu sobre suas pernas. Ergueu os olhos, receando ver o membro dos Guardas de Windsor, mas era apenas um homem barbudo. Já o tinha visto antes, ao embarcar, mas não se haviam falado. A barba dele era grisalha, porém tinha cabelos espessos e brancos. Era muito alto, magro e musculoso, vestindo uma camisa branca e jeans desbotados, descoloridos pelo ar marinho.
- Quer outro drinque? - perguntou ele.
- Acho que não.
- Está querendo ficar sozinha?
Tinha uma voz sedutora. Não lhe pareceu do tipo autopromocional.
- Não necessariamente - respondeu.
Ele agachou-se ao seu lado. Os olhos de ambos ficaram no mesmo nível, e Olivia viu que os dele eram de um azul tão pálido e suave quanto o tom de seus jeans. O rosto era marcado e profundamente bronzeado. Ele dava a impressão de ser talvez escritor.
- Então, posso ficar com você?
Ela vacilou, depois sorriu.
- Por que não?
O nome dele era Cosmo Hamilton. Morava na ilha; há vinte e cinco anos vivia ali. Não, não era escritor. No começo, dirigira um negócio de iates para excursões, depois empregara-se como agente de uma firma londrina que organizava pacotes de férias, porém agora era um cavalheiro ocioso.
(*) Tropas que, na Inglaterra, são incumbidas de proteger a soberania. (N. da T.)
A contragosto, Olivia ficou interessada.
- Isso não o entedia?
- Por que deveria entediar-me?
- Quero dizer, não ter o que fazer.
- Oh, mas eu tenho mil coisas a fazer!
- Mencione duas.
Os olhos dele cintilaram, divertidos.
- Isso é quase insultante.
De fato, aquele homem parecia tão ativo e em tão boa forma física, que talvez fosse mesmo. Olivia sorriu.
- Não foi uma frase literal.
O sorriso dele aqueceu-lhe o rosto, pareceu iluminá-lo, fez com que os olhos se franzissem nos cantos. Olivia sentiu que seu coração, muito furtivamente, começava a despertar e a entrar em cena.
- Tenho um barco - contou ele - uma casa e um jardim. Prateleiras de livros, duas cabras e três dúzias de galinhas garnisés. Pela última contagem. Os garnisés são notoriamente prolíficos.
- Quem cuida dos garnisés? Você ou sua esposa?
- Minha esposa mora em Weybridge. Somos divorciados.
- Quer dizer que vive sozinho.
- Não inteiramente. Tenho uma filha. Estuda na Inglaterra, de maneira que fica com a mãe durante o período letivo e, nas férias, vem para cá.
- Que idade tem ela?
- Treze anos. Chama-se Antonia.
- Ela deve adorar passar as férias aqui.
- Sem dúvida. Divertimo-nos muito. Como se chama?
- Olivia Keeling.
- Onde está hospedada?
- No "Los Pinos".
- Sozinha?
-Não, com amigos. Por isso é que estou aqui. Um do grupo recebeu o convite, e todos aderimos.
- Eu a vi chegando.
- Odeio barcos - disse ela, começando a rir.
Na manhã seguinte, ele apareceu no hotel, procurando-a. Encontrou-a sozinha, junto da piscina. Sendo cedo, seus amigos provavelmente ainda estariam nos quartos, porém Olivia já tinha nadado e pedira que seu desjejum fosse servido no terraço da piscina.
- Bom-dia.
Ergueu os olhos, o rosto virado para o sol, e o viu parado à sua frente, em um halo de luz ofuscante.
- Olá.
Olivia estava com os cabelos molhados e escorridos para trás, devido à natação, Tinha o corpo envolto em uma toalha felpuda branca.
- Posso fazer-lhe companhia?
- Fique à vontade. - Estirando um pé, empurrou uma cadeira na direção dele. - Já fez seu desjejum?
- Já. - Ele se sentou. - Faz umas duas horas.
- Um café?
- Não, nada. Nem mesmo café.
- Então, em que lhe posso ser útil?
- Vim perguntar se queria passar o dia comigo.
- O convite inclui meus amigos?
- Não. Apenas você.
Olhava de frente para ela, os olhos fixos, sem piscar. Para Olivia, foi como se a desafiassem e, por alguma razão, isto a deixou desconcertada. Há muitos e muitos anos não ficava desconcertada. Para dissimular o estranho nervosismo e ocupar-se de alguma coisa, tirou uma laranja do cesto de frutas sobre a mesa e começou a tentar descascá-la.
- O que vou dizer aos outros? - perguntou.
- Basta dizer-lhes que vai passar o dia comigo.
A casca da laranja era dura e machucou sua unha do polegar.
- E o que iremos fazer?
- Bem, eu pensei em sair no barco... fazermos um piquenique... Dê-me aqui. - Parecia impaciente e, inclinando-se, tirou-lhe a laranja da mão. - Nunca irá descascá-la desse jeito. Enfiando a mão no bolso traseiro, pegou um canivete e começou a dividir a laranja em quatro partes. Olhando para as mãos dele, Olivia disse:
- Eu detesto barcos.
- Eu sei. Já me disse isso ontem. - Ele tomou a guardar o canivete no bolso, pelou a laranja com destreza e a devolveu a Olivia. - E agora - disse, enquanto ela pegava a fruta em silêncio - o que vai responder? Sim ou não?
Olivia reclinou-se na cadeira e sorriu. Dividiu a laranja em gomos e começou a chupá-los, de um em um. Cosmo a fitava em silêncio. Agora, o calor da manhã aumentava e, com o gosto delicioso da fruta cítrica na língua, ela se sentia aquecida e contente, como um gato ao sol. Terminou de comer a laranja lentamente. Ao terminar, lambeu os dedos e, por sobre a mesa, olhou para o homem à espera.
-Sim - falou.
Nesse dia, Olivia descobriu que não detestava barcos, em absoluto. O de Cosmo não era tão grande como aquele da festa, porém infinitamente mais aconchegante. Em primeiro lugar, havia apenas eles dois e, em segundo, não tinham ficado balouçando ociosamente ancorados no porto, mas içaram velas e partiram, deixaram para trás o quebra-mar, entraram em mar aberto e costearam o litoral. Chegaram a uma solitária enseada azul, ainda não descoberta pelos turistas. Lá, deitaram âncoras e nadaram, pulando do convés, tornando a subir para bordo por uma escada de cordas, loucamente caprichosa.
O sol agora estava alto no céu e fazia tal calor, que ele estendeu um toldo acima do convés, a cuja sombra fizeram um piquenique. Pão e tomates, fatias de salaminho, frutas e queijo. O vinho doce estava fresco, porque Cosmo atara barbantes ao gargalo das garrafas e as baixara no mar.
Mais tarde, houve tempo para um tranqüilo banho de sol, estirados no convés; mais tarde ainda, depois que o vento caiu e com o sol já descendo no céu, a claridade refletida na água reverberando contra as paredes brancas do camarote, também houve tempo para fazerem amor.
No dia seguinte. Cosmo tomou a aparecer, em seu castigado, porém pouco modesto Citroën de dois cavalos, mais parecido com uma lata de lixo móvel do que com qualquer outra coisa, e rodou com ela para longe da costa, internando-se na ilha, em direção ao local em que ficava sua casa. A esta altura e compreensivelmente, o restante do grupo ficara meio aborrecido com Olivia. O homem que havia sido incluído para distraí-la começou a censurá-la, os dois discutiram e, como resultado, ele se retraiu em insuportável mau humor. Assim, ficou mais fácil deixá-lo para trás.
Aquela foi outra manhã encantadora. A estrada subia para suaves colinas, atravessando ensolaradas e sonolentas aldeias passando ao lado de pequeninas igrejas caiadas, fazendas onde cabras pastavam em campos minúsculos, e mulas pacientes, atreladas a rodas de moinhos, andavam em círculos.
Tudo aquilo permanecera assim durante séculos, intocado pelo comércio e pelo turismo. O solo da estrada piorou, o moderno asfalto ficou para trás, e finalmente o Citroen rodou sacolejante, descendo por uma estradinha por fazer, sombreada e fresca sob um túnel de frondosos pinheiros, ladeira abaixo, através de um pomar de amendoeiras. Além deste, ficava a casa dele. Comprida e branca, de telhado vermelho, manchada de púrpura pelas buganvílias desabrochadas, oferecia uma visão ininterrupta do amplo vale, descendo em direção ao litoral. Toda a frente da casa era tomada por um terraço coberto por treliças de videiras. Abaixo do terraço, um pequeno e emaranhado jardim descia para uma também pequena piscina, cintilando límpida e turquesa à luz do sol.
- Que casa! - ela pôde finalmente exclamar.
- Vamos, eu lhe mostrarei o interior.
Aquela casa era uma confusão. Escadas ao acaso subiam e desciam, não havia dois aposentos parecendo no mesmo nível. Havia sido outrora uma casa de fazenda e o andar de cima continuava com a sala de estar e a cozinha, enquanto os aposentos do térreo, um dia tendo sido curral, estábulo e chiqueiro, eram agora dormitórios.
O interior era austero e fresco, de paredes caiadas de branco e mobiliado no estilo mais simples. Alguns tapetes de cores vivas sobre o piso de tábuas rústicas, móveis fabricados no lugar, cadeiras com assento de palhinha e mesas de madeira, com tampos muito esfregados. Somente na sala de estar havia cortinas; todas as demais janelas, profundamente encravadas nas paredes grossas, exibiam apenas as persianas.
Entretanto, por ali também havia delícias. Sofás e poltronas fofos, estofados em algodão colorido; jarros de flores; cestas rústicas ao lado da lareira aberta e abastecida de toras. Na cozinha, panelas de cobre pendiam de uma viga, havendo ali o cheiro de ervas e condimentos. Por todos os lados surgiam indícios do homem, evidentemente culto, que ocupara aquela casa por vinte e cinco anos. Centenas de livros, não apenas nas estantes, mas espalhados em cima das mesas, peitoris de janela e na cômoda ao lado de sua cama. Havia também bons quadros e muitos retratos, além de prateleiras de discos, perfeitamente arrumados ao lado do toca-discos.
Por fim, encerrada a inspeção, ele a guiou por uma porta rebaixada, desceu mais outro lance de escadas e, de novo, através de um saguão ladrilhado de vermelho, saíram outra vez no terraço.
Ela ficou parada, de costas para a paisagem, e contemplou a fachada da casa.
- É mais perfeita do que eu poderia imaginar - disse.
- Agora sente-se e contemple a vista, enquanto lhe trago um copo de vinho.
Havia uma mesa e algumas cadeiras de vime dispostas por ali, mas Olivia não quis sentar-se. Preferiu recostar-se à parede caiada de branco, onde grandes potes de cerâmica serviam de canteiro para gerânios de folhas semelhantes às da hera, enchendo o ar com seu perfume ácido, enquanto um exército de formigas, interminavelmente ocupadas, marchava para cá e para lá, em tropas bem organizadas. A quietude era imensurável. Aguçando os ouvidos, ela captou os pequenos sons amortecidos que faziam parte daquele silêncio. Um cincerro distante. O suave cacarejar de galinhas satisfeitas, escondidas em algum ponto no jardim, mas claramente audível. O farfalhar da brisa.
Um mundo inteiramente novo. Tinham viajado apenas alguns quilômetros, mas para ela era como se estivesse a mil quilômetros do hotel, de seus amigos, dos coquetéis, da piscina apinhada, das movimentadas ruas e lojas da cidade, das luzes ofuscantes e das barulhentas discotecas. Mais longe ainda estavam Londres, Venus, seu apartamento, seu emprego -esmaecendo em irrealidade; sonhos esquecidos de uma vida que nunca fora real. Como um vaso que estivera por muito tempo vazio, ela se sentia transbordante de paz. Eu poderia ficar aqui. Uma vozinha, uma mão puxando sua manga. Este é um lugar onde eu poderia ficar.
Ouviu-o as suas costas, descendo a escada de pedra, os saltos das sandálias frouxas batendo contra os degraus. Virando-se, viu-o emergir pela escura abertura da porta (ele era tão alto que, automaticamente, abaixou a cabeça). Trazia uma garrafa de vinho e dois copos. O sol estava a pino, a sombra dele era absolutamente negra. Pousou os dois copos e a garrafa, onde a refrigeração já se desfazia em gotas e, do bolso do jeans, tirou um charuto, que acendeu com um fósforo.
Quando Cosmo terminou de acender o charuto, ela disse:
- Eu não sabia que você fumava.
- Somente estes. De vez em quando. Já fumei cinqüenta por dia, mas finalmente perdi o hábito. Hoje, no entanto, parece uma ocasião oportuna para a auto-indulgência. Já havia desarrolhado a garrafa e agora despejava vinho nos dois copos. Entregou um para Olivia. Estava geladíssimo.
- A que vamos beber? - perguntou ele.
- À sua casa, qualquer que seja o nome que ela tenha.
- Ca'n D'alt.
- Então, a Ca'n D'alt. E a seu dono.
Beberam. Depois ele disse.
- Eu a vi pela janela da cozinha. Você estava tão quieta! Perguntei-me no que estaria pensando.
- Pensava apenas que... aqui... a realidade empalidece.
- É uma boa coisa?
- Penso que sim. Estou...
Ela vacilou, procurando as palavras certas, pois, de repente, pareceu-lhe importantíssimo usar exatamente as palavras certas.
- Não sou uma criatura domesticada - acrescentou Olívia por fim. - Estou com trinta e três anos, sou editora-chefe de uma revista chamada Venus. Levei muito tempo para chegar a este posto. Trabalho para sustentar-me e ser independente desde que deixei Oxford, mas não lhe conto isto querendo que sinta pena de mim. Jamais desejei outra coisa. Jamais desejei casar-me ou ter filhos. Nada desse tipo de permanência.
- E...?
- Acontece apenas que... este é o lugar onde pensei que poderia ficar. Não me sentiria encurralada nem enraizada aqui. Não sei explicar por quê. - Sorriu para ele. - Tampouco sei por quê.
- Então, fique - disse ele.
- Por hoje? Por esta noite?
- Não. Apenas, fique.
- Minha mãe sempre me disse para não aceitar um convite indeterminado e vago. Segundo ela, sempre deve haver uma data de chegada e uma data de partida.
- E tinha inteira razão. Digamos que a data de chegada seja hoje e que você decidirá a data de partida.
Ela o encarou, buscando motivos, implicações. Finalmente:
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