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Henry David Thoreau Walden ou a vida nos bosques.

Henry David Thoreau Walden ou a vida nos bosques.

Título original: Walden or life in the woods 1 a edição 1984 - Global Editora 6 a edição 2001 - Editora Aquariana 7 a edição 2007 - Editora Ground Revisão - Yeda Jagle de Carvalho Antonieta Canelas Editoração eletrônica - Sergio Gzeschnik Capa: Ilustração - Henry Thoreau Arte final - Carlos Guimarães CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO-NA-FONTE SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ T411w 7.ed. Thoreau, Henry David, 1817-1862 Walden, ou, A vida nos bosques ; e, A desobediência civil / Henry D. Thoreau; tradução Astrid Cabral. - 7.ed. - São Paulo : Ground, 2007. 288p.; 23 cm Tradução de: Walden, or, Life in the woods ISBN 978-85-7187-203-5 1. Thoreau, Henry David, 1817-1862 - Residências e lugares habituais - Walden Woods (Massachusetts, Estados Unidos). 2. Walden Woods (Massachusetts, Estados Unidos) - Usos eostumes..istóriaaturalWalden c 3 H n - Woods (Massachusetts, Estados Unidos). 4. Áreas silvestres -Walden Woods (Massachusetts, Estados Unidos). 5. Resistência ao governo. I. Cabral, Astrid, 1936-. II. Título. III. Título: A vida nos bosques. IV. Título: A desobediência civil. 07-2011. CDD:818 CDU: 821.111(73)-8 25.05.07 28.05.07 001913 Todos os direitos reservados à Editora Ground Ltda. Rua Lacedemônia, 85 - Vila Alexandria CEP 04634-020 - São Paulo - SP Tels.: (011) 5031-1500 Fax: (011) 5031-3462 E-mail: aquariana@ground.com.br Site: https://www.ground.com.br 1 WALDEN A VIDA NOS BOSQUES Não me proponho escrever uma ode ao desânimo, mas gargantear com o vigor de um galo matutino empertigado no poleiro, nem que seja apenas para acordar os vizinhos. ECONOMIA Quando escrevi as páginas que se seguem, ou melhor, a maioria delas, vivia sozinho, a mais de quilômetro e meio de qualquer vizinho, numa casa que eu mesmo construíra à margem do lago Walden, em Concord, Massachusetts, e ganhava a vida apenas com o trabalho de minhas mãos. Aí vivi dois anos e dois meses. Atualmente estou de volta à civilização. Não imporia tanto meus assuntos à atenção dos leitores se investigações muito pessoais não tivessem sido feitas por meus concidadãos quanto ao meu modo de vida, e que alguns chamariam de impertinentes, embora a mim não pareçam de modo algum impertinentes, mas, considerando as circunstâncias, bastante naturais e pertinentes. Uns perguntaram o que eu comia, se não me sentia solitário, se não tinha medo e coisas parecidas. Outros mostraram-se curiosos de saber que porção de minha renda eu destinava a finalida- des caridosas; e ainda alguns com famílias grandes, quantas crianças pobres eu sustentava. Pedirei portanto aos leitores que não têm por mim nenhum interesse particular, que me perdoem se me disponho a responder neste livro a algumas de tais perguntas. Na maioria dos livros omite-se o eu, ou primeira pessoa; neste será mantido, o que, quanto ao egotismo, é a principal diferença. Em geral não nos lembramos de que, no final das contas, é sempre a primeira pessoa que está falando. Não falaria tanto de mim mesmo se houvesse outra pessoa que eu conhecesse tão bem. Lamentavelmente, a escassez de minha experiência restringe-me a esse tema. De mais a mais, eu, de minha parte, exijo de todo escritor, cedo ou tarde, um relato simples e sincero da própria vida, e não apenas o que ouviu da dos outros; algo assim como um Irelato que de um país distante enviaria aos parentes, porque se viveu com autenticidade deve ter sido num lugar bem distante daqui. Talvez estas páginas se enderecem em particular a estudantes pobres. Quanto ao restante dos leitores, tomarão as passagens que lhes concernem. Confio em que ninguém romperá as costuras de um casaco que estiver experimentando e que pode vir a servir muito bem a outra pessoa. É um prazer falar de algo que diz respeito mais a quem lê estas páginas e vive na Nova Inglaterra, do que aos chineses ou habitantes das ilhas Sandwich; algo sobre a vossa situação, em especial o vosso ambiente ou circunstâncias neste mundo, nesta cidade, o que está aí, se é necessário que seja tão ruim quanto é, se pode ou não ser melhorado. Tenho andado muito por Concord, e em toda a parte, lojas, escritórios e campos, os habitantes me pareceram fazer penitência de mil maneiras extraordinárias. O que ouvi dizer dos brâmanes sentados entre quatro fogos a encarar o sol, ou suspensos de cabeças para baixo sobre as chamas, ou fitando os céus por cima dos ombros "até que se tornasse impossível retomarem suas posturas normais, enquanto devido à torção do pescoço só líquidos podiam entrar no estômago"; ou morando ao pé de uma árvore algemados para sempre; ou feito lagartas, medindo com seus corpos a extensão de vastos impérios; ou ainda erguendo-se sobre uma perna no alto de pilares — mesmo essas formas de penitência intencional a custo são mais inacreditáveis e estarrecedoras do que as cenas que presencio diariamente. Os doze trabalhos de Hércules eram ninharias comparados com os que vizinhos meus têm empreendido, porque aqueles eram apenas doze e tiveram um fim, ao passo que eu nunca pude ver esses homens matarem ou capturarem monstro algum, nem 2 sequer acabarem qualquer trabalho. Além disso não têm um amigo como Iolas para queimar com ferro em brasa a raiz da cabeça da Hydra; pelo contrário, mal uma cabeça é esmagada, duas brotam. Vejo rapazes, concidadãos meus, cuja má sorte foi terem herdado fazendas, casas, celeiro, gado e instrumentos agrícolas, porque essas coisas são mais fáceis de adquirir do que descartar-se delas. Melhor seria se tivessem nascido em pasto aberto e sido amamentados por uma loba a fim de que pudessem enxergar melhor a terra a que foram chamados a cultivar. Quem os fez servos do solo? Por que comeriam de seus vinte e quatro hectaresuando q oomemstáondenado h e c aomerpenas c a aorçãoeeuarro?orue p d s b P q começariam a cavar seus túmulos logo que nascem? Têm é que viver a vida, deixando todas essas coisas para trás e continuando o melhor que puderem. Quantas pobres almas imortais já não encontrei esmagadas e sufocadas sob suas cargas, rastejando e empurrando pela estrada da vida afora celeiros de vinte e cinco metros por quinze, com seus estábulos de Augias nunca limpos, mais de quarenta hectares de terra para amanho, sega, pastagem, sem falar nos bosques! Quem nada possui não luta com encargos desnecessários herdados e já considera bastante a tarefa de sujeitar e cultivar seu quinhão de carne. Contudo os homens trabalham à sombra de um erro, lançando ao solo para adubo o que têm de melhor. Por uma sina ilusória, vulgarmente chamada necessidade, desgastam-se a amontoar tesouros que a traça e a ferrugem estragarão e que surgem ladrões para roubar. É uma vida de imbecis, como perceberão ao fim dela, se não antes. Diz-se que Deucalião e Pirra geraram homens atirando pedras para trás, por cima de suas cabeças: lnde genus durum sumus, experiensque laborum, Et documenta damus quâ simus origine nati. Ou, como verseja Raleigh a seu jeito sonoro: "Daí sermos raça de coração encouraçado suportando sofrimentos e cuidados comprovando a natureza de pedra em que nossos corpos foram talhados." Tanto transtorno por causa da obediência cega a um desatinado oráculo, ao atirar as pedras para trás, por cima das cabeças, sem prestar atenção aonde caíam. Por simples ignorância e equívoco, muita gente, mesmo neste país relativamente livre, se deixa absorver de tal modo por preocupações artificiais e tarefas superfluamente ásperas, que não pode colher os frutos mais saborosos da vida. A excessiva lida torna-lhe os dedos demasiado trêmulos e desajeitados para isso. Na realidade, o trabalhador não dispõe de lazer para uma genuína integridade dia a dia, nem se pode permitir a manutenção de relações mais humanas com outros homens, pois seu trabalho seria depreciado no mercado. Nãoáondiçõesaraueejautraoisaenãoma h c p q s o c s u máquina. Comoodeleerm p e t e mente aua s ignorância — atitude indispensável ao crescimento interior — quando tem de usar seus conhecimentos com tanta freqüência? Às vezes, antes de julgá-lo, deveríamos dar-lhe roupa e comida, além de chamá-lo para beber conosco. As qualidades mais requintadas de nossa natureza, feito a pelúcia de certos frutos, só podem ser preservadas pelo manuseio delicado. E contudo, não nos tratamos assim ternamente, nem a nós mesmos, nem aos outros. 3 Alguns dentre vós são pobres, acham duro viver, e estão, por assim dizer, esforçando-se por respirar. Não me resta dúvida de que alguns leitores deste livro não têm meios de pagar todos os jantares que comeram ou os casacos e sapatos que estão depressa se gastando ou já se encontram gastos, e defrontam-se com esta página por conta de uma horinha emprestada ou roubada, passando para trás os credores. É bem evidente a vida mesquinha e vil que muitos levam, digo porque a experiência tem-me aguçado a visão para os que vivem na corda bamba, tentando negócios para escaparem às dívidas — esse antiqüíssimo atoleiro que os latinos chamavam de aes alienum, o cobre alheio, pois algumas de suas moedas eram cunhadas nesse metal — ainda assim vivendo e morrendo, enterrados pelo dinheiro alheio, sempre prometendo pagar, jurando pagar amanhã e morrendo hoje insolventes; bajulando por favores, angariando fregueses de mil e um modos desde que não redundem em prisão, mentindo, chaleirando, votando, enredando-se em meia dúzia de palavras corteses ou expandindo-se numa atmosfera de melíflua e vaporosa generosidade a fim de persuadirem o vizinho a deixá-los engraxarem seus sapatos, escovarem seu chapéu e casaco, limparem sua carruagem, ou ainda carregarem para ele compras da mercearia; fazendo-se de doentes de modo a economizarem algo para o dia em que estejam de fato doentes, algo a ser guardado numa velha cômoda ou armazenado atrás do reboco, melhor ainda, na bancada de tijolos, não importa onde, não importa se muito ou pouco. Às vezes me espanto de que possamos ser tão frívolos, ouso até dizer, a ponto de atentarmos para a grosseira e algo adventícia forma de cativeiro conhecida por escravidão negra, quando há tantos senhores sutis e astutos que escravizam quer no norte, quer no sul. É ruim ter um capataz sulista, pior ter um nortista. Mas a situação pior de todas é quando se é o feitor de si mesmo. Falar da natureza divina do homem! Olhai o carroceiro na estrada real, dia e noite a caminho do mercado. Move-o algo de divino? Seu dever mais elevado consiste em dar forragem e água aos cavalos. Que representa para ele o próprio destino comparado aos lucros com o carreto? Não trabalha para um Senhor Importantão? Que história é essa de ser divino, imortal? Basta ver como se agacha e se esgueira, como teme vagamente ao longo do dia, não sendo imortal nem divino, porém escravo, prisioneiro da opinião que tem de si mesmo, da reputação ganha à custa de seus atos. Comparada com a opinião que temos de nós mesmos, a opinião pública é uma débil tirana. O que um homem pensa de si, eis o que determina, ou pelo menos indica, o seu destino. Haja auto-emancipação também nas Antilhas da fantasia e da imaginação. Que Wilberforce 1 1 será capaz de desencadeá-la? Pensem, igualmente, nas senhoras do país que tecem almofadas de toalete até a hora da morte para não deixarem transparecer um interesse muito vivo em seus destinos! Como se se pudesse matar o tempo sem lesar a eternidade. Os homens, em sua maioria, levam vidas de sereno desespero. O que se chama resignação é desespero crônico. Vão das cidades sem perspectiva para o campo sem futuro, e terminam por se consolar com a valentia das martas e dos ratos almiscareiros. Uma desesperança estereotipada mas inconsciente esconde-se mesmo sob os chamados jogos e diversões da humanidade. Não há graça neles já que sucedem ao trabalho. Entretanto, manda a sabedoria não se desesperar com as coisas. Quando consideramos aquilo que, para usar as palavras do catecismo, é a principal finalidade do homem, e em que consistem as verdadeiras necessidades e recursos da vida, tem-se a impressão de que os homens elegeram deliberadamente seu habitual modo de viver porque o preferiram a qualquer outro. No entanto, pensam honestamente que não há opção, se bem que espíritos altivos e saudáveis dêem-se conta de que o sol nasce todas as manhãs e de que nunca é tarde demais para abrir mão de preconceitos. Afinal, nenhum modo de pensar ou agir, por mais consagrado que seja, pode merecer cega confiança. O que, hoje todos aceitam, louvando ou em silêncio, pode revelar-se amanhã como um equívoco, mera fumaça de opinião que alguns tomaram por nuvem que espargiria chuva fecundando os campos. O que as pessoas mais velhas dizem que não podeis fazer, tentam e acabam por conseguir. Fiquem os velhos com as velharias e os novos com as novidades. Tempo houve em que as pessoas de idade eram incapazes de arranjar combustível para manter o 1 William Wilberforce (1759-1833), parlamentar inglês que lutou pela libertação dos escravos nas Antilhas Inglesas. 4 fogo aceso. Hoje, a turma jovem põe lenha na caldeira e dá a volta ao globo com a velocidade de pássaros, quase matando os velhos de susto. Idade não é documento e os jovens podem ser tão qualificados quanto os velhos, já que estes perderam mais do que ganharam. Pode-se inclusive duvidar que o mais sábio dos homens tenha aprendido com a vida algo de real valor. Na prática, os velhos não têm conselhos muito importantes a dar aos jovens, a experiência deles sendo parcial e suas vidas míseros fracassos que procuram justificar, além da possibilidade de que lhes reste alguma fé que contradiga toda a experiência, e que, somando tudo, sejam apenas um pouco menos jovens do que já foram um dia. Há mais de trinta anos que vivo neste planeta e ainda estou por ouvir uma palavrinha que seja, de valor, ou um conselho razoável vindo de meus superiores. Nunca me disseram nada e provavelmente não podem me dizer nada que valha a pena. Eis a vida, experiência em grande parte desconhecida para mim, mas nada me beneficia o fato de que outros a conheçam. Se possuo qualquer experiência válida, tenho certeza de que meus mentores nunca a comentaram. Certo agricultor me diz: "Não se pode viver só à base de alimentos vegetais porque não fornecem matéria-prima para os ossos", e de acordo com isso dedica religiosamente parte do dia a suprir essa deficiência em seu siste- ma e enquanto fala, vai caminhando o tempo todo atrás de bois que, com ossos feitos de vegetais, arrastam às sacudidelas, ele e o arado pesadão, vencendo todos os obstáculos. Há coisas verdadeiramente necessárias à vida em algumas classes sociais mais desassistidas e enfermas, enquanto que em outras são supérfluas e em terceiras, desconhecidas. Para algumas pessoas é como se o chão da vida humana, das montanhas aos vales e o que aí se encontra, tivesse sido percorrido inteirinho por seus antepassados. Segundo Evelyn, "o sábio Salomão ditou regras até para a distância entre as árvores, e os pretores romanos haviam estabelecido quantas vezes um cidadão podia legalmente colher as bolotas dos carvalhos que lhe pertenciam, entrando no terreno do vizinho onde caíam, bem como a percentagem de frutos que cabia ao dono da terra." Hipócrates chegou a deixar instruções sobre a maneira como devíamos cortar as unhas, isto é, acompanhando o contorno dos dedos, nem maiores nem menores. Sem sombra de dúvida, o tédio e os aborrecimentos, que suponho terem exaurido a variedade e a alegria de viver, são velhos como Adão. O potencial do homem, porém, nunca foi medido, nem podemos avaliá-lo baseados em precedentes, pois tem-se tentado muito pouco. Quaisquer que tenham sido os fracas- sos até agora, "não te aflijas, meu filho, pois quem te responsabilizaria pelo que deixaste de fazer?" Pondo-nos a provas simplíssimas, poderíamos examinar nossas vidas. Suponhamos que o mesmo sol que madura meus feijões, ilumina ao mesmo tempo sistemas planetários semelhantes ao nosso. Se tivesse me lembrado disso, teria evitado alguns erros. Não foi a essa luz que cultivei os feijões. As estrelas são ápices de maravilhosos triângulos! Que seres distantes e distintos não estarão nas várias mansões do universo, neste exato instante, contemplando a mesma estrela! A natureza e a vida humana são tão variadas como nossas numerosas constituições. Quem dirá o que a vida reserva a cada um? Haveria milagre maior do que sermos capazes de enxergar com os olhos de outrem, por um segundo que fosse? Numa hora, viveríamos em todas as idades do mundo, em todos os mundos das idades. História, Poesia, Mitologia! — Nenhuma leitura baseada em experiência alheia seria tão surpreendente e esclarecedora como essa. A maior parte das coisas que meus semelhantes consideram boas, creio no fundo da alma que são más, e se de alguma coisa me arrependo é provável que seja do meu bom comportamento. Que diabo se apossou de mim para que me comportasse tão bem? Ó velho, tu que já viveste setenta anos, com toda espécie de honraria, podes dizer o que consideras mais sábio, e uma irresistível voz me convida a dar as costas à tua opinião. Uma geração abandona as conquistas da outra como se estas fossem barcos encalhados. Penso que podemos, sem correr risco, ser bem mais confiantes, abrindo mão de tanta atenção conosco e aplicando-a alhures. A natureza está bem ajustada, quer à nossa fraqueza, quer à nossa força. A incessante ansiedade e tensão de alguns é quase uma forma incurável de doença. Temos a tendência de exagerar a importância de qualquer trabalho, contudo quanto deixamos de fazer, ou o que aconteceria se adoecêssemos? 5 Como nos fiscalizamos, determinados a não viver pela fé sempre que podemos evitá-la! O dia inteirinho de prontidão, quando chega a noite rezamos as orações sem ânimo e nos entregamos a dúvidas. Somos completa e sinceramente forçados a viver reverenciando nossa vida e negando a possibilidade de modificação. Dizemos ser esta a única maneira, mas há tantas quantos os raios que podem ser desenhados a partir de um centro. Toda modificação é um milagre a contemplar, mas um milagre que ocorre a cada instante. Confúcio disse: "Saber que sabemos o que não sabemos e que não sabemos o que não sabemos, eis o verdadeiro saber." Quando um homem conseguir com que um fato da imaginação se torne um fato do seu entendimento, prevejo que todos os homens terminarão por estabelecer suas vidas sobre essa base. Consideremos por um momento em que consiste a maior parte da preocupação e ansiedade a que me referi, e o quanto é preciso que sejamos preocupados ou pelo menos cuidadosos. Seria vantajoso, mesmo em plena civilização materialista, viver uma vida primitiva no meio do mato, nem que fosse para aprender quais são nossas necessidades básicas e que métodos foram empregados para obtê-las, ou quem sabe dar uma olhada nos livros antigos de contabilidade mercantil, para ver o que é que as pessoas costumavam comprar nas mercearias, o que era armazenado, enfim, quais os artigos mais elementares, visto que o progresso pouco influenciou as leis essenciais que regem a existência do homem, pois nossos esqueletos, provavelmente, não se distinguem dos de nossos antecessores. Com a expressão "coisas necessárias à vida" designo o que quer que seja que o homem obtém por esforço próprio, e que desde o início, ou pelo uso contínuo tornou-se tão importante para a vida humana que nenhum ou poucos até hoje tentaram viver sem elas, seja por selvageria, pobreza, ou filosofia. Neste sentido, para muitas criaturas, não há senão uma coisa indispensável: comida. Para o bisão da pradaria bastam pequenos trechos de pasto apetecível, mais água para beber, a menos que ele procure o abrigo da floresta e a sombra da montanha. Nenhum ser bruto requer mais que comida e abrigo. Quanto ao homem e em se tratando deste clima, as coisas necessárias à vida podem ser criteriosamente agrupadas sob os itens: alimento, abrigo, roupa e combustível, porque só depois de termos assegurado todos eles estaremos em condições de enfrentar, com liberdade e perspectiva de sucesso, os verdadeiros problemas da vida. O homem inventou não apenas casas, mas roupas, alimentos elaborados e possivelmente, da descoberta casual do calor do fogo e seu conseqüente uso, no começo um luxo, nasceu a atual necessidade de aquecer-se. Observamos que gatos e cães estão adquirindo essa segunda natureza. Abrigados e vestidos de modo adequado, mantemos naturalmente o calor interno; contudo o excesso desses elementos ou de combustível, aumentando o calor externo sobre o interno, não terá ocasionado o surgimento da arte culinária? O naturalista Darwin conta que em sua equipe os homens bem vestidos sentiam frio sentados junto a uma fogueira, enquanto os selvagens da Terra do Fogo que se encontravam nus à distância, para surpresa geral, "suavam em bica padecendo tal churrasco". Fala-se também que o nativo da Austrália anda nu sem maiores problemas, ao passo que o europeu tirita em suas roupas. Será impossível combinar a resistência física dos selvagens com a intelectualidade dos civilizados? Segundo Liebig, o corpo humano é uma estufa;endo s olimento a o combustível que mantém a combustão interna nos pulmões. Comemos mais quando faz frio e menos quando faz calor. O calor animal resulta da combustão lenta, a doença e a morte ocorrem quando a combustão é muito rápida, quando falta combustível, ou o fogo se extingue por defeito na corrente de ar. Claro que não se deve confundir o calor vital com o fogo, aqui empregado por analogia. Do que foi enumerado, deduz-se portanto que as expressões vida animal e calor animal são quase sinônimas, pois se o alimento pode ser visto como o combustível que mantém o fogo dentro de nós — e o combustível serve unicamente para preparar aquele alimento ou aumentar o calor corporal como aditivo externo — o abrigo e a roupa também servem apenas para reter o calor assim gerado e absorvido. A grande necessidade para nosso corpo consiste, pois, em se conservar aquecido a fim de manter o calor vital interno. A que trabalheira não nos entregamos, não só por conta de alimentação, vestuário e moradia, mas também com as camas, que são nossas roupas noturnas, pilhando ninhos e assaltando pássaros para com suas penas preparar esse abrigo dentro de outro abrigo, tal qual a toupeira que faz a caminha de capim e folhas no 6 fim da toca! O pobre costuma queixar-se do frio que anda pelo mundo, e ao frio físico e ao social atribuímos grande parte de noss