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Fernando Gabeira Oque é isso companheiro?

Fernando Gabeira Oque é isso companheiro?

O QUE É ISSO COMPANHEIRO ? Fernando Gabeira Cada um dos nossos pensamentos não é mais do que um instante de nossa vida. De que serviria a vida se não fosse para cor­rigir os erros, vencer nossos preconceitos e, a cada dia, alargar nosso coração e nossos pensamentos? Nós utilizamos cada dia para alcançar um pouco mais de verdade. Quando chegarmos ao fim, vocês dirão en­tão o que é que valeu nossa pena. Romain Rolland, fean-Christophe Também as estarias não se despreendem apenas do narrador, sim o performam: narrar é resistir. Guimarães Rosa PREFACIO Publicado logo após a anistia, O que é isso, companheiro? per­correu um longo caminho, e, nos últimos meses, estava praticamen­te fora de circulação. Como se tornou uma das referências sobre o período de ditadura militar, ainda era procurado por estudantes e pesquisadores. A preparação do filme de Bruno Barreto, baseado no livro, aumentou a curiosidade em torno do texto, criando mais uma ra­zão para reeditá-lo, com ligeiras alterações. As principais mudanças foram inspiradas pelas críticas do pró­prio embaixador Charles Burke Elbrick, que fez anotações no seu exemplar. Elbrick não entendeu como pude escrever que ele foi levemente golpeado na cabeça e desenhou vários pontos de inter­rogação nessa página do livro. Decidi adotar sua ótica e retirar a expressão para que o leitor tenha uma ideia mais precisa da inten­sidade do golpe. Registro também, pela primeia vez, a autoria do manifesto di­vulgado durante o sequestro do embaixador. O texto é de Franklin Martins, o que não consignei em fins de 79 quando escrevi o livro. Gostaria de ter dado uma visão mais clara do papel e do valor de cada um dos integrantes da luta armada. Meu livro não tinha, no entanto, esse objetivo. Se há cem maneiras de fazer uma só bio­grafia, há, certamente, milhares de caminhos para contar a aven­tura coletiva da resistência à ditadura militar no Brasil. Fernando Gabeira Rio, abril de 96 HOMEM CORRENDO DA POLÍCIA lrarrazabal chama-se a rua por onde caminhávamos em setembro. É um nome inesquecível porque jamais consegui­mos pronunciá-lo corretamente em espanhol e porque foi ali, pela primeira vez, que vimos passar um caminhão cheio de cadáveres. Era uma tarde de setembro de 1973, em San­tiago do Chile, perto da praça Nunoa, a apenas alguns mi­nutos do toque de recolher. Caminhávamos rumo à Embaixada da Argentina, deixan­do para trás uma parte gelada da cordilheira dos Andes e ten­do à nossa esquerda o estádio Nacional, para onde conver­gia o grosso do tráfego militar na área. Na esquina com a rua Holanda, somos abordados por alguém que nos pede fogo. Uma pessoa parada na esquina. Parecia incrível que se pudesse estar parado na esquina, na­quele momento. Vera me olhou com espanto e compreen­di de estalo o que queria dizer: "Coitado, vai cair breve nas mãos da polícia." Ele se curva para acender o cigarro e vemos seus dedos amarelos. A chama do fósforo ressalta as olheiras de quem dormiu pouco ou nem dormiu. Certamente era de esquer­da, o cara parado na esquina. E, como nós, estava transtor­nado com o golpe militar, tentando reatar os inúmeros vín­culos emocionais e políticos que se rompem num momento desses. Tive vontade de aconselhá-lo: se cuida, toma um banho, não dá bandeira, se manda, sai dessa esquina. Mas compreendi, muito rapidamente, que seria absurdo parar para conver­sar na esquina de Irarrazabal com Holanda, naquele princí­pio de primavera. Nós também estávamos numa situação difícil. A alguns minutos do toque de recolher, a meio caminho da Embai­xada da Argentina, nossas chances eram essas: ou saltáva­mos para dentro dos jardins e ganhávamos asilo político, ou ficávamos na rua, em pleno toque de recolher. Se ficásse­mos na rua seríamos certamente presos e teríamos, pelo me­nos, algumas noites de tortura para explicar o que estávamos fazendo no Chile, durante a virada sangrenta que derrubou a Unidade Popular. Pessoalmente teria de explicar por que me chamava Diogo e era equatoriano. E não me chamava Diogo nem era equatoriano. Tratava-se de um passaporte fal­so, de um português que emigrara para Quito, e que me dava margem para falar espanhol com sotaque. Português natu­ralizado equatoriano, caminhando ao lado de uma brasilei­ra e de uma alemã, sem tempo portanto para dar conselhos. Pois, como ia dizendo, estávamos numa situação difí­cil. Na melhor das hipóteses, venceríamos a vigilância dos carabineros e cruzaríamos os jardins da embaixada. Come­çaria aí um exílio dentro do exílio, desta vez mais longo e doloroso porque as ditaduras militares estavam fechando o cerco no continente. Na melhor das hipóteses, portanto, iría­mos sofrer muito. No entanto, era preciso correr. Correr rápido para che­gar a tempo e meio disfarçado para não chamar a atenção dos carros militares. E talvez o cara da esquina nem fosse de esquerda. Foi assim, nessa corrida meio culpada, que me ocorreu a ideia: se escapo de mais essa, escrevo um livro contando como foi tudo. Tudo? Apenas o que se viu nesses dez anos, de 68 para cá, ou melhor, a fatia que me tocou viver e recordar. Este portanto é o livro de um homem correndo da po­lícia, tentando compreender como é que se meteu, de re­pente, no meio da Irarrazabal, se havia apenas cinco anos estava correndo da Ouvidor para a Rio Branco, num dos gru­pos que fariam mais uma demonstração contra a ditadura militar que tomara o poder em 64. Onde é mesmo que está­vamos quando tudo começou? Sinceramente que saí buscando um pouco de ar fresco. A sala do copy-desk do jb tinha uma luz branca e, depois de certo tempo de trabalho, cansava. Era melhor sair para o balcão, olhar a avenida Rio Branco, ver o trânsito fluir ru­mo ao sul da cidade. Gente voltando do trabalho, no fim da tarde. De repente, não sei como, cinquenta pessoas se reúnem no meio da rua, tiram suas faixas e cartazes e gri­tam: abaixo a ditadura. Como? Os carros não podem se me­xer: é uma passeata. Mil coisas estavam acontecendo nos te­legramas empilhados na minha mesa: guerras, terremotos, golpes de Estado. Ali, diante dos meus olhos, cinquenta pes­soas com faixas e cartazes, iluminadas pelos faróis e meio envoltas na fumaça dos canos de descarga, avançavam contra o trânsito. Mais verba, menos tanques, abaixo a ditadura, gri­tavam. Lembrei-me da minha terra. O Guarani Futebol Clu­be batido mais uma vez, pelo mesmo adversário, irrompen­do na rua Vitorino Braga com sua bandeira azul e branca, cantando "Em Juiz de Fora quem manda sou eu". Aquelas pessoas gritando na rua, a vida seguindo seu curso, o trânsito apenas engarrafado por alguns minutos, tudo isso me fazia pensar. O rosto dos jogadores do Guarani, nossas camisas meio rasgadas, a gente de cabeça erguida enquanto todos atacavam seu macarrão de domingo, macarrão com ovos mar­ca Mira, seu vinho Moscatel. Tudo parecia já muito remoto depois do golpe de Esta­do no Chile, com os cachorros latindo e o ruído dos heli­cópteros patrulhando a cidade. Daí a pouco chamariam pa­ra voltar ao trabalho, mas a demonstração estudantil não ia sair fácil da minha cabeça. Desde 64 que estava buscando aquela gente e aquela gente, creio, desde 64 preparava seu encontro com as pessoas olhando da sacada da avenida Rio Branco. Em 64 eu tinha dois empregos. Um era no Jornal do Brasil, outro no Panfleto, semanário da ala esquerda do ptb que, mais tarde, depois do golpe, iria sobreviver de forma autónoma como Movimento Nacionalista Revolucionário, mnr. No jb, trabalhava como redator, no Panfleto, como subsecretário de oficinas. Os dois empregos tinham uma im­portante função para mim. Num trabalhava de acordo com minhas ideias e, no outro, trabalhava para ganhar dinheiro. Isso é ótimo para um depoimento retocado. Na verdade, ha­via outro interesse, um pouco mais baixo, mas importante também: o jb pagava por mês e o Panfleto, dirigido por ami­gos, dava alguns vales que permitiam que fôssemos tocan­do o barco cotidiano. E, afinal, não era um barco muito pesado: vivíamos em cinco num apartamento do 200 da Ba­rata Ribeiro e o aluguel não custava muito, assim dividido por cinco pessoas. Todos eram jornalistas começando car­reira. Quase todos comiam no trabalho e, uma vez ou outra, ali no Beco da Fome, que ficava bem perto de casa. Alguns participavam do Grupo dos 11, uma forma de organização que o Brizola tinha proposto para a resistência ao golpe. Ou­tros não estavam muito interessados, por desencanto, mal de amores ou mesmo problemas que iam explodindo na vi­da de cada um, um pouco indiferentes à crise nacional que se aproximava.