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James Ridfield A décima profecia.

James Ridfield A décima profecia.

 

 

 

JAMES REDFIELD

 

A DÉCIMA PROFECIA

 

APROFUNDANDO A VISÃO

 

 

 

         NOVAS AVENTURAS

DE A PROFECIA CELESTINA

 

 

 

Tradução de Adalgisa Campos da Silva

 

 

 

 

 

 

 

 

NOTA DO AUTOR

 

Como A Profecia Celestina, esta continuação é uma parábola de aventura, uma tentativa de ilustrar o processo de transformação espiritual que está ocorrendo em nossa época. Com esses dois livros, desejei comunicar o que eu chamaria de um quadro consensual, um retrato vivido, dos novos sentimentos, percepções e fenômenos que estão chegando para definir a vida neste limiar do terceiro milênio.

Nosso maior erro, a meu ver, é pensar que a espiritualidade humana já tenha sido entendida e definida. Se a história nos diz alguma coisa, é que a cultura e o conhecimento estão sempre evoluindo. Somente as opiniões individuais são imutáveis e dogmáticas. A verdade é mais dinâmica, e a grande alegria da vida está em nos soltarmos, em descobrirmos a verdade especial e individual que cabe a cada um de nós contar, e depois observar a forma sincrônica pela qual esta verdade evolui e fica mais nítida, exatamente quando precisamos dela para influenciar a vida de alguém.

Juntos, estamos caminhando para algum lugar, cada geração se aprimorando graças às realizações da anterior, com um destino do qual temos apenas uma vaga lembrança. Estamos todos vivendo um processo de despertar e de abertura para descobrir quem realmente somos e o que viemos fazer neste mundo, tarefa às vezes dificílima. No entanto, tenho a firme convicção de que, se integramos o melhor das tradições de nossos ancestrais e tivermos em mente o processo, a noção de milagre e destino nos fará superar os percalços do caminho e os atritos com o nosso próximo.

 

Não tenho intenção de minimizar os enormes problemas que a humanidade continua enfrentando. Apenas desejo sugerir que cada um de nós está à sua maneira envolvido na solução desses problemas. Se estivermos sempre conscientes e reconhe­cemos que esta vida é um grande mistério, veremos que cada um de nós está perfeitamente colocado, na posição exatamente certa... para fazer toda a diferença.

 

JR PRIMAVERA, 1996

 

 

­

 

 

 

 

 

 

 

...Olhei, e vi, uma porta foi aberta no céu: e a primeira voz que ouvi foi... uma trombeta a falar comigo; e disse ela: "Aproxima-te, e mostrar-te-ei o que deve ser a outra vida." E imediatamente eu estava em espírito: e vi, havia um trono no céu... e havia um arco-íris a envolver o trono, qual esmeralda. E, em volta do trono, havia vinte e quatro assentos: e sobre estes assentos eu vi vinte e quatro anciãos assentados, vestidos com brancas túnicas... E vi um novo céu e uma nova terra: pois o primeiro céu e a primeira terra estavam mortos...

 

REVELAÇÃO

 

SUMÁRIO

 

ILUSTRANDO O CAMINHO

15

 

REVENDO A JORNADA

35

SUPERANDO O MEDO

54

 

RECORDANDO

79

 

ABRINDO-SE AO CONHECIMENTO

95

 

UMA HISTÓRIA DE DESPERTAR

116

 

UM INFERNO INTERIOR

145

 

PERDOANDO

167

 

LEMBRANDO O FUTURO

200

 

SUSTENTANDO A VISÃO

223

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

ILUSTRANDO O CAMINHO

 

FUI ATÉ A BEIRA da laje de granito e olhei para o panorama que se descortinava ao norte. Um amplo e des­lumbrante vale dos Apalaches, de uns dez quilômetros por oito, estendia-se lá embaixo. Ao longo deste vale, no sentido do comprimento, um riacho serpeava por prados e florestas densas e coloridas - florestas seculares, com árvores de mais de cem metros.

Olhei para o mapa tosco em minha mão. O vale coincidia nos mínimos detalhes com o desenho; a íngreme vertente em que

eu estava, a estrada que descia, o aspecto da paisagem e do riacho, as meias-laranjas ao fundo. Tinha de ser o lugar que Charlene desenhara no bilhete encontrado em seu escritório. Por que havia feito isso? E por que desaparecera?

Já se passara mais de um mês desde o último contato de Charlene com seus colegas da firma de pesquisas, e, quando Frank Sims, que trabalhava na mesma sala que ela, teve a idéia de metelefonar, estava visivelmente preocupado.

 

- Muitas vezes ela sai por conta própria, mas nunca passou tanto tempo sumida, e nunca quando tinha compromissos agen­dados com clientes antigos. Alguma coisa está errada.

- Como você soube onde me encontrar? - perguntei.

Em resposta, ele descreveu um trecho de uma carta, encon­trada na sala de Charlene, que eu havia escrito para ela há alguns meses contando as minhas experiências no Peru. Junto com a carta, disse-me ele, havia um papel com o meu nome e telefone anotados.

- Estou telefonando para todo mundo que eu saiba que tem alguma ligação com ela - acrescentou. - Até agora, parece que ninguém sabe de nada. Pela carta, vi que você deve ser amigo de Charlene. Estava com esperança de que soubesse dela.

- Sinto muito - respondi. - Não falo com ela há qua­tro meses.

Quando disse aquilo, até custei a acreditar que já fizesse tanto tempo. Logo que recebeu minha cal1a, Charlene deixou um longo recado em minha secretária eletrônica falando do seu entusiasmo a respeito das Visões e comentando sobre a rapidez com que elas estavam se difundindo. Lembro que ouvi diversas vezes esse recado de Charlene, mas fiquei protelando ligar para ela - dizendo a mim mesmo que ligaria depois, talvez no dia seguinte ou no outro, quando eu estivesse pronto para falar. Eu sabia que, se falasse com ela, teria de recordar e explicar os detalhes do Manuscrito, e achei que precisava de mais tempo para pensar e digerir o que aconteceu.

A verdade, obviamente, era que havia partes da profecia que ainda me escapavam. Naturalmente eu ainda era capaz de entrar em contato com minha energia espiritual, o que me confortava muito, considerando que as coisas acabaram não dando certo com Marjorie, e eu estava muito sozinho. E estava mais sensível do que nunca às intuições, aos sonhos e à luminosidade de uma sala ou de uma paisagem. Mas, ao mesmo tempo, a natureza es­porádica das coincidências tomara-se um problema.

Eu me enchia de energia, por exemplo, definindo a questão prioritária para mim, e em geral algo me mostrava nitidamente o que fazer ou aonde ir para procurar a resposta - só que raramente acontecia alguma coisa importante mesmo depois de eu fazer o que era para eu fazer. Eu não encontrava nenhuma mensagem, nenhuma coincidência.

Isso acontecia especialmente quando a intuição me mandava procurar alguém que de alguma forma eu já conhecesse, um velho amigo, talvez, ou uma pessoa com quem eu costumasse trabalhar. Às vezes essa pessoa e eu descobríamos novos pontos de interesse, mas às vezes também, por mais que eu me esforçasse em emitir energia, minha iniciativa era totalmente rechaçada, ou o que era pior, começava com muita animação, depois se descontrolava e acabava se perdendo numa explosão de emoções e irritação.

Tal fracasso não me desencantou com o processo, mas percebi que me faltava alguma coisa para continuar vivenciando as Visões. No Peru, eu agia no calor do impulso, muitas vezes espontaneamente, com uma fé que era fruto do desespero. Ao voltar, porém, já no meu ambiente normal, muitas vezes cercado de pessoas inteiramente céticas, parece que fui deixando de esperar, ou de acreditar, que minhas intuições pudessem me levar a algum lugar. Era como se eu tivesse esquecido uma parte vital do conhecimento... ou talvez ainda não tivesse descoberto.

 

- Não estou sabendo bem o que fazer agora - frisou o sócio de Charlene. - Ela tem uma irmã, acho eu, em Nova Iorque. Você não sabe como entrar em contato com ela, sabe? Ou com alguém que possa saber onde ela está?

- Sinto muito - respondi. - Não sei. Charlene e eu, na verdade, estamos reatando uma amizade antiga. Não me lembro de nenhum parente dela e não conheço as pessoas com quem ela se dá atualmente.

- Bom, acho que vou notificar a polícia, a não ser que você tenha uma idéia melhor.

- Não, acho que isso é uma providência sensata. Há alguma outra pista?

- Só um desenho; talvez a descrição de um lugar. É difícil dizer.

Depois ele me mandou por fax o bilhete encontrado na sala de Charlene com o desenho tosco de linhas cruzadas e números, com marcas não muito definidas, nas margens. E, em meu estúdio, com calma, comparei o desenho com os números das estradas do Atlas do Sul, e achei que consegui localizar aquele lugar. Depois a imagem de Charlene me apareceu com uma grande nitidez, como me aparecera no Peru quando fiquei sabendo da existência da Décima Visão. Teria o seu desaparecimento algo a ver com o Manuscrito?

Senti a brisa me tocando o rosto, e novamente estudei o panorama lá embaixo. À esquerda, no extremo oeste do vale, eu via uma fileira de telhados. Tinhade ser a cidade que Charlene indicara no mapa. Guardei o papel no bolso da jaqueta, voltei para a estrada e entrei no Pathfinder.

 

A cidade propriamente dita era pequena - com uma população de dois mil habitantes, segundo a placa ao lado do primeiro e único sinal de trânsito. A maioria dos prédios comerciais ficava na marginal do rio. Atravessei o sinal, vi um motel perto da entrada do Parque Florestal e parei num estacionamento em frente ao restaurante e bar adjacentes. Havia várias pessoas entrando no restaurante, entre elas um homem alto e moreno de cabelos negros carregando uma mochila grande. Ele olhou para mim e nossos olhares se cruzaram rapidamente.

Saltei, tranquei o carro e resolvi, por palpite, passar pelo restaurante antes de me registrar no motel. Lá dentro, as mesas estavam quase todas vazias - só havia uns excursionistas no bar e algumas pessoas que haviam entrado na minha frente. A maioria nem prestou atenção em mim, mas, observando a sala, tomei a encontrar o olhar do homem alto que eu havia visto há pouco; ele estava indo para o fundo do restaurante. Esboçou um sorriso, manteve aquele contato visual mais um segundo, depois saiu por uma porta dos fundos.

Fui atrás dele. Ele estava a uns cinco metros da saída, debruçado sobre a mochila. Vestia jeans, camisa e botas de caubói e aparentava ter uns cinqüenta anos. Atrás dele, o sol poente lançava longas sombras entre aquelas árvores altas e a relva, e, quinze metros adiante, passava o rio, iniciando seu percurso vale adentro.

Ele sorriu friamente e olhou para mim.

- Mais um peregrino? - perguntou.

- Estou procurando uma amiga - falei. - Pressenti que você podia me ajudar.

Ele balançou a cabeça, estudando cuidadosamente a minha figura. Aproximando-se, apresentou-se como David Águia Solitá­ria, explicando, como se eu precisasse saber daquilo, que descen­dia em linha direta dos americanos nativos que habitavam origi­nalmente aquele vale. Reparei que ele tinha o lado esquerdo do rosto cortado por uma cicatriz fina que ia da ponta da sobrancelha até o queixo, por pouco não pegando o olho.

- Quer tomar um café? - perguntou. - Ali no bar a Perrier é ótima, mas o café é intragável.

Ele indicou com a cabeça uma área perto do riacho onde havia uma pequena tenda com três grandes álamos em volta. Dezenas de pessoas estavam passando por ali, algumas por uma trilha que atravessava a ponte e entrava no Parque Florestal. Tudo parecia seguro.

- Claro - respondi. - Seria ótimo.

No acampamento, ele acendeu um fogareiro a gás, depois encheu uma chaleira com água e levou-a ao fogo.

- Como é o nome da sua amiga? - perguntou afinal. - Charlene Billings.

Ele parou e olhou para mim, e, enquanto nos olhávamos, vi nitidamente em minha mente a imagem dele num tempo passado. Era mais jovem e estava de calças de couro, sentado diante de uma grande fogueira. Seu rosto estava pintado para a guerra. Ele estava rodeado de outras pessoas, na maioria americanos nativos, mas entre elas havia também dois brancos, uma mulher e um homem muito corpulento. A discussão estava acalorada. No grupo, uns queriam a guerra; outros, a reconciliação. Ele interveio, ridicularizando os partidários da paz. Como podiam ser tão ingênuos, disse-lhes, depois de tanta traição?

A mulher branca pareceu entender, mas pediu que ele a ouvisse. A guerra poderia ser evitada, sustentava, e o vale ficaria razoavelmente protegido, se o remédio espiritual fosse forte o bastante. Ele rechaçou inteiramente o ponto de vista dela, depois, repreendendo o grupo, montou em seu cavalo e partiu. A maioria o seguiu.

- Seus instintos são bons - disse David, arrancando-me da minha visão. Ele estava estendendo entre nós uma manta artesanal, oferecendo-me um lugar para sentar. - Eu ouvi falar nela. - Olhou-me com um olhar interrogativo.

- Estou preocupado - disse eu. - Ninguém sabe dela, e eu só quero saber se ela está bem. E precisamos conversar.

- Sobre a Décima Visão? - perguntou ele, sorrindo.

- Como sabe?

- É só um palpite. Muita gente que vem aqui no vale não

vem só pela beleza do Parque Florestal. Vem para falar das Visões. As pessoas acham que a Décima está por aqui. Algumas até dizem que sabem o que ela diz.

Ele virou-se e despejou uma medida de café na água fervente. Algo em seu tom de voz me fez achar que ele estava me testando, tentando descobrir se eu era quem afirmava ser.

- Onde Charlene está? - perguntei. Ele apontou para leste.

- Na Floresta. Eu não conheço a sua amiga, mas uma noite dessas ouvi quando ela foi apresentada a uma pessoa no res­taurante, e, desde então, a vejo de vez em quando. Vi-a ainda outro dia; ela estava indo para o vale, sozinha, e, pela bagagem que levava, eu diria que ela ainda está lá.

Olhei naquela direção. Dali, o vale parecia enorme, esten­dendo-se a perder de vista.

- Aonde acha que ela estava indo? - perguntei.

Ele ficou me olhando.

- Provavelmente para o Sipsey Canyon. É lá que está uma das aberturas.

Ele observava a minha reação.

- Aberturas?

Deu um sorriso enigmático.

- Isso mesmo, as aberturas dimensionais.

Inclinei-me para ele, lembrando-me daquela experiência nas Ruínas Celestinas.

- Quem está a par disso tudo?

- Muito poucas pessoas. Até agora só há boatos, infor­mações soltas, intuição. Ninguém viu um manuscrito. Quase todas as pessoas que vêm aqui à procura da Décima sentem que estão sendo guiadas sincronicamente, e estão sinceramente tentando viver as Nove Visões, embora se queixem que as coincidências guiam-nas até um certo ponto e depois simplesmente param. ­

Ele deu um risinho. - Mas estamos aí, não é verdade? A Décima Visão é sobre a compreensão de todo esse processo de conscien­tização - a percepção de coincidências misteriosas, o desenvol­vimento da consciência espiritual na Terra, os desaparecimentos da Nona Visão - sob o prisma da outra dimensão, para podermos entender por que está ocorrendo esta transformação e participar mais plenamente.

- Como sabe disso? - perguntei.

Ele me olhou com um olhar penetrante, subitamente irritado.

- Sabendo!

Ele continuou sisudo por alguns instantes, depois sua ex­pressão tornou-se novamente amistosa. Serviu o café em duas xícaras e me ofereceu uma.,

- Meus ancestrais viveram milhares de anos neste vale ­prosseguiu. - Eles consideravam esta floresta um lugar sagrado, ligando o mundo superior e este mundo intermédio que é a Terra.

Meu povo jejuava e tinha visões que levavam meus ancestrais ac vale, procurando seus dons específicos, seus medicamentos, c caminho que deviam seguir nesta vida.

- Meu avô me contou sobre um xamã de uma tribo distante que ensinou nosso povo a buscar o que ele chamava de estado de purificação. O xamã ensinou meus ancestrais a saírem exata­mente daqui, levando só uma faca, caminharem até encontrarem um sinal de algum animal e seguirem este sinal até chegarem ao que chamavam de abertura sagrada para o mundo superior. Se fossem dignos, se tivessem se purificado das emoções inferiores, dizia ele, meus ancestrais até poderiam ser autorizados a passar pela abertura e ter um contato direto com os ancestrais deles, onde poderiam se lembrar não só de sua própria visão, mas também da visão do mundo inteiro.

- Claro, tudo isso terminou quando o homem branco chegou. Meu avô já não se lembrava de como se fazia aquilo, e nem eu me lembro. Temos que tentar descobrir, como to­do mundo.

- Você está aqui procurando a Décima, não está? ­perguntei.

- Claro...! Mas parece que a única coisa que estou fazendo é esta penitência de perdão. - Seu tom de voz endureceu de novo, e de repente era como se ele estivesse falando mais para si mesmo do que para mim. - Todas as vezes que eu tento avançar, uma parte de mim não consegue superar o ressentimento e a raiva pelo que aconteceu ao meu povo. E a coisa não melhora. Como é que a nossa terra pôde ser roubada, nossos costumes suprimidos, destruídos? Por que isso foi permitido?

- Quem dera que não tivesse acontecido - disse eu. Ele olhou para o chão e tornou dar aquele risinho.

- Acredito. Mas, mesmo assim, eu sinto muita raiva quando penso no que estão fazendo com esse vale.

- Está vendo essa cicatriz - acrescentou ele, apontando para o rosto. - Eu poderia ter evitado a briga em que isso aconteceu. Uns caubóis texanos que tinham abusado da bebida. Eu poderia ter me afastado se não fosse por essa raiva que me rói.

- Esse vale agora não está quase todo sob a proteção do Parque Florestal? - perguntei.

- Só mais ou menos a metade, ao norte do riacho, mas os políticos estão sempre ameaçando vender essa parte ou autorizar que seja loteada.

- E a outra metade? A quem pertence?

- Durante muito tempo, essa área era propriedade quase que exclusivamente de pessoas físicas, mas agora uma empresa estrangeira está tentando comprá-la. A gente não sabe quem está por trás, mas alguns proprietários estão recebendo ofertas muito grandes para vender.

Ele desviou a vista rapidamente, depois falou:

- Meu problema é que eu gostaria que esses três últimos séculos tivessem sido diferentes. Eu não perdôo os europeus por terem vindo colonizar esse continente sem levar em consideração o povo que já estava aqui. Eu queria que as coisas não tivessem acontecido como aconteceram, como se eu pudesse de algum jeito mudar o passado. Nossos costumes eram importantes. Estávamos aprendendo como é importante recordar. Essa é a grande mensagem que os europeus poderiam ter recebido do meu povo se eles tivessem parado para ouvir.

Enquanto conversávamos, fiquei de novo sonhando acorda­do. Duas pessoas - outro americano nativo e a mesma mulher branca - conversavam às margens de um regato. Atrás deles havia uma mata fechada. Logo, outros americanos nativos se aglomeraram em volta deles para escutar a conversa.

- Podemos curtir isso! - dizia a mulher.

- Acho que ainda não estamos preparados - retrucou o nativo, com uma expressão que denotava uma grande conside­ração pela mulher. - A maioria dos chefes já foi embora.

- Por que não? Pense nas discussões que já tivemos. Você mesmo disse que com fé, poderíamos curar isso.

- Sim - ponderou ele. - Mas a fé é uma certeza que vem quando se sabe como as coisas deveriam ser. Os ancestrais sabem, mas ainda não há um número suficiente de pessoas entre nós que tenham chegado a essa compreensão.

- Mas talvez possamos chegar a ela agora - argumentou a mulher. - Precisamos tentar!

Meus pensamentos foram interrompidos quando um grupo de jovens funcionários da Guarda Florestal aproximou-se de um senhor na ponte. O senhor tinha o cabelo grisalho bem aparado e estava com uma calça social e uma camisa engomada. Quando ele andava, notava-se que mancava um pouco.

- Está vendo o homem com os guardas? - perguntou David.

- Estou - respondi. - O que é que tem?

- Há duas semanas que o vejo por aqui. O nome dele é Feyman, acho eu. O sobrenome não sei. - David inclinou-se para mim, finalmente demonstrando plena confiança em mim. ­

Olhe, algo de muito estranho está acontecendo. Parece que a Guarda Florestal anda contando as pessoas que entram na floresta. Nunca fizeram isso antes, e ontem uma pessoa me disse que o extremo leste da mata está interditado. Nessa área há pontos que ficam a uns dezesseis quilômetros da estrada mais próxima. Sabe quantas pessoas costumam se aventurar a ir tão longe? Tem gente entre nós que começou a ouvir uns barulhos estranhos vindo daquela direção.

- Que tipo de barulho?

- Uma vibração. A maioria das pessoas não consegue ouvir. De repente ele estava em pé, desmontando rapidamen­te a tenda.

- O que está fazendo? - perguntei.

- Não posso ficar aqui - respondeu ele. - Preciso ir para o vale.

Passado um momento, ele interrompeu aquela função e tornou a olhar para mim.

- Olhe - disse. - Tem uma coisa que você precisa saber. Esse Feyman. Eu vi a sua amiga várias vezes com ele.

- Fazendo o quê?

- Só conversando, mas eu lhe digo que tem alguma coisa errada aqui. Ele continuou a levantar acampamento.

Fiquei calado, observando-o. Eu não sabia o que pensar a respeito daquela situação, mas senti que ele estava certo ao afirmar que Charlene estava lá no vale.

- Deixe eu ir pegar o meu equipamento - pedi. - Eu

gostaria de ir com você.

- Não - retrucou ele rapidamente. - Cada um tem que vivenciar o vale sozinho. Não posso ajudá-lo agora. É a minha visão que eu preciso descobrir.

A expressão dele era de sofrimento.

- Pode me dizer exatamente onde fica o desfiladeiro?

- Siga o riacho por uns três quilômetros. Vai encontrar um regato que vem do norte e se encontra ali com o riacho. Siga esse regato por mil e seiscentos metros. Vai dar na boca do Sipsey Canyon.

Balancei a cabeça e virei-me para ir embora, mas ele me pegou pelo braço.

- Olhe - disse. - Você pode encontrar sua amiga se passar a sua energia para um nível mais alto. Há locais específicos no vale que podem ajudá-lo.

- As aberturas dimensionais? - perguntei.

- É. Nelas você pode descobrir a perspectiva da Décima Visão, mas para encontrá-las vai ter que entender a verdadeira natureza das suas intuições e como conservaressas imagens mentais. Observe também os animais e começará a lembrar o que veio fazer aqui no vale... por que estamos todos juntos aqui. Mas muito cuidado. Não deixe que vejam você entrando na floresta.

- Ele pensou um pouco. - Tem outra pessoa lá, um amigo meu, Curtis Webber. Se o vir, diga a ele que falou comigo e que vou encontrá-lo.

Ele sorriu e recomeçou a dobrar a tenda.

Eu queria perguntar o que ele quis dizer com intuição e observação de animais, mas ele evitou os meus olhos e ficou concentrado no que estava fazendo.

- Obrigado - disse eu.

Ele acenou de leve com uma das mãos.

 

Fechei a porta do motel sem fazer barulho e saí ao luar. O frio da noite e a tensão me provocam um arrepio. Por que, me perguntei, eu estava fazendo aquilo? Não havia nenhuma prova de que Charlene ainda estivesse naquele vale ou de que as suspeitas de David estivessem certas. No entanto, meu instinto me dizia que de fato havia algo errado. Passei horas pensando se chamaria o chefe de polícia local. Mas o que diria? Que minha amiga tinha desaparecido e que havia sido vista entrando na floresta por livre e espontânea vontade, mas que devia estar em apuros, baseado apenas num bilhete vago encontrado a centenas de quilômetros dali? Uma busca naquele lugar ermo exigiria centenas de pessoas e eu sabia que as autoridades jamais se dariam àquele trabalho todo sem algo de mais concreto.

Fiz uma pausa e olhei para a lua quase cheia subindo no céu. Meu plano em atravessar a nascente do riacho a leste do posto da guarda florestal e então ir entendo no vale pela trilha principal. Achei que o luar fosse iluminar meu caminho, mas não contei que estivesse tão claro. A visibilidade era de pelo menos cem metros.

Passei pelo bar e cheguei ao local em que David havia acampado. A área estava completamente limpa. Eles chegam a espalhar folhas e palha de pinho para apagar qualquer vestígio de sua presença. Para atravessar onde eu havia planejado, eu teria de passar uns quarenta metros na frente do posto da Guarda Florestal, que agora eu via nitidamente. Através de uma janela lateral, vi dois guardas conversando. Um deles se levantou e pegou o telefone.

Agachando-me, pus a mochila às costas, fui até a praia de areia que margeava o riacho e finalmente entrei na água, pisando em pedras lisas e troncos apodrecidos. Uma sinfonia de pererecas e grilos irrompeu à minha volta. Olhei de novo para os guardas; os dois continuavam conversando, sem perceber o meu avanço sorrateiro. No ponto mais fundo do rio, a água, com uma correnteza razoável, me chegava até a virilha, mas levei apenas alguns segundos para atravessar aqueles dez metros de uma margem à outra e chegar a um bosque de pinheiros pequenos.

Avancei com cautela até encontrar a trilha de acesso ao vale. A leste, a trilha se dissolvia na escuridão, e, enquanto eu ia seguindo nesta direção, mais dúvidas começaram a me assaltar. Que barulho misterioso seria aquele que tanto preocupava David? O que eu poderia encontrar ali naquela escuridão?

Dominei o medo. Sabia que tinha de ir em frente, mas como solução de meio-termo, entrei apenas seiscentos metros na flores­ta antes de me afastar da trilha e ir armar a barraca no meio do mato para pernoitar, satisfeito (e tirar aquelas botas molhadas e pô-las para secar. Seria mais inteligente continuar com dia claro).

Acordei, quando amanhecia, pensando no comentário enig­mático de David sobre conservarminhas intuições e fiquei ali deitado no saco de dormir refletindo no quanto eu tinha absorvido da Sétima Visão, sobretudo na idéia de que a experiência da sincronicidade obedece a uma estrutura definida. Segundo esta Visão, cada um de nós, desde que se esforce para se livrar de seus dramas passados, pode identificar certas questões que definem um estágio determinado de sua vida, questões ligadas à carreira, às relações pessoais, ao local em que se deve morar, ao modo como o caminho deve ser seguido. Então, se continuarmos conscientes, sensações, palpites e intuições nos dirão aonde ir, o que fazer e com quem falar para chegarmos à resposta que buscamos.

Depois disso, obviamente, deve ocorrer uma coincidência, revelando por que fomos levados a tomar aquele rumo e trazendo mais informações pertinentes à nossa pergunta, fazendo-nos avançar. De que maneira conservar a intuição ajudaria?

Saí do saco de dormir, abri a barraca para espiar lá fora. Não percebendo nada de anormal, saí naquele ar puro da manhã e fui ao riacho lavar o rosto com água fria. Depois, levantei acampa­mento e continuei para leste, beliscando uma barra de granola e me escondendo ao máximo atrás das árvores que margeavam o riacho. Após pouco mais de cinco quilômetros de caminhada, fui ficando nervoso e com medo e imediatamente me senti cansado. Então sentei-me encostado a uma árvore, tentando me concentrar no que me cercava e ganhar energia interna. O céu estava limpo e o sol da manhã dançava através do arvoredo e pelo chão à minha volta. Vi uma plantinha verde com flores amarelas a uns três metros e me concentrei em sua beleza. Já totalmente banhada de sol, ela de repente ficou mais luminosa, com um verde mais vivo. Uma onda de perfume chegou à minha consciência, junta­mente com o cheiro úmido das folhas e da terra preta.

Simultaneamente, vindo das árvores mais ao norte, ouvi o crocitar de vários corvos. A riqueza do som me surpreendeu, mas, por incrível que pareça, eu não conseguia definir exatamente de onde ele vinha. Prestando atenção, percebi claramente dezenas de sons individuais que integravam aquele coro matinal: o canto dos pássaros nas árvores lá em cima, um mangangá no meio das margaridas silvestres à beira do regato, a água gorgolejando por entre as pedras e os galhos caídos... e então uma outra coisa, quase imperceptível, um zumbido baixo e dissonante. Levantei-­me e olhei em volta. O que era aquilo?

Peguei a mochila e continuei andando para leste. Por causa do barulho que eu fazia ao pisar nas folhas caídas no chão, tinha de parar e ficar prestando atenção no zumbido se quisesse ouvi-Io. Mas ele continuava. A mata terminou mais à frente, e eu entrei num grande prado colorido, coberto de flores silves­tres e densas moitas de sálvia de sessenta centímetros que pareciam se estender por uns oitocentos metros. Correntes de brisa alisavam o alto das moitas. Quando eu estava quase no fim do prado, notei umas moitas de amoras silvestres ao lado de uma árvore caída. Fiquei. deslumbrado com aquelas moitas e me aproximei para olhá-las mais de perto, imaginando que estivessem carregadas de frutinhos.

Ao fazer isso, senti uma forte sensação de déjà vu. Aquela paisagem de repente me pareceu muito familiar, como se eu já tivesse estado ali naquele vale, comido aqueles frutinhos. Como era possível? Sentei-me no tronco da árvore caída. Então, no fundo de minha mente, surgiu a cena de um lago de águas cristalinas, tendo ao fundo uma cascata com várias quedas, um local que, quando o mentalizei, me pareceu igualmente familiar. Tornei a ficar nervoso.

Então, assustei-me com o barulho que um animal fez de repente, ao sair correndo da moita de amoras e parar bruscamente seis metros mais ao norte. A criaturJ. estava escondida no meio da sálvia, e eu não tinha noção do que fosse, mas podia seguir seu rastro pela relva. Alguns minutos depois, ela voltou um pouco para trás, deu uma paradinha e arrancou de novo em direção ao norte, parando outra vez uns seis metros adiante. Achei que fosse um coelho, embora seus movimentos parecessem especialmente estranhos.

 

Tendo ficado uns cinco ou seis minutos observando a área onde o animal passou por último, fui indo devagar para lá. Quando já estava a cerca de um metro e meio dele, ele tornou a chispar para o norte. A certa altura, antes que ele sumisse de vista, vi a cauda branca e as patas traseiras de um coelho grande.

Sorri e continuei seguindo a trilha para leste. O prado terminou e entrei numa área de mata cerrada. Ali avistei um regato, de pouco mais de um metro de largura, que afluía para o riacho vindo da esquerda. Eu sabia que aquela confluência devia ser a referência que David mencionara. Eu deveria virar para o norte. Infelizmente a trilha não ia nessa direção, e, o que era pior, a mata à margem do regato era um emaranhado de árvores novas e urzes espinhosas. Não dava para passar; eu teria de voltar até o prado e procurar um jeito de contornar a mata.

Voltei e fui pelo meio da relva acompanhando o limite da mata para ver se encontrava uma brecha na vegetação cerrada.

Para minha surpresa, encontrei o rastro do coelho na sálvia e segui-o até avistar novamente o regato. Aí o mato se tornava mais ralo, permitindo que eu chegasse a uma área de árvores maiores e antigas, onde eu podia seguir o regato para o norte.

Após prosseguir por cerca de mil e seiscentos metros segundo meus cálculos, vi ao longe os contrafortes de duas montanhas de ambos os lados do regato. Mais adiante, percebi que essas montanhas formavam os paredões de um desf1ladeiro e que mais à frente ficava o que aparentemente era a única entrada.

Quando cheguei, sentei-me ao lado de uma grande noguei­ra-amarga e estudei o panorama. Por noventa metros de ambos os lados do regato, as montanhas tinham uma vertente abrupta em calcário de quinze metros de altura, depois iam se abrindo e formando uma bacia com uns três quilômetros de largura por seis de comprimento. Nos primeiros oitocentos metros, havia poucas árvores e muita relva. Pensei no zumbido e fiquei uns cinco ou dez minutos de ouvido atento, mas parecia que o barulho havia cessado.

Então tirei um fogareiro a gás de dentro da mochila, acendi-o e enchi uma panela com água do meu cantil, acrescentei um pacote de guisado de legumes desidratado e botei a panela no fogo. Fiquei uns minutos contemplando as espirais de fumaça se erguerem da panela e se dissolverem com a brisa. Nesse devaneio, tornei a ver mentalmente o lago e a cascata, só que dessa vez parecia que eu estava lá, subindo, como se para cumprimentar alguém. Tirei essa cena da cabeça. O que estava acontecendo? Essas imagens estavam ficando mais vivas. Primeiro David em outm vida; agora essa cascata.

Um movimento no desfiladeiro me chamou a atenção. Olhei para o regato e depois para uma árvore solitária mais adiante, a uns duzentos metros, já praticamente toda desfolhada. Estava coberta do que aparentemente eram grandes corvos; vários voam para o chão. Ocorreu-me que aqueles eram os mesmos corvos que eu ouvi antes. De repente vi que todos decolaram e ficaram dramaticamente sobrevoando a árvore em círculos. Na mesma hora, tornei a ouvir seu crocitar, mas, como antes, o volume da algazarra não condizia com a distância; soava como se as aves estivessem bem mais próximas.

O borbulhar da água e o chiado do fogo trouxeram minha atenção de volta ao fogareiro. O guisado estava transbordando para o queimador. Peguei a panela com uma toalha e apaguei o gás com a outra mão. Quando parou de ferver, tornei a botar a panela no fogareiro e olhei para a árvore ao longe. Os corvos tinham sumido.

Comi o guisado às pressas, lavei e guardei os utensílios e fui para o desfiladeiro. Logo que passei as escarpas, notei que as cores estavam mais fortes. A sálvia ganhara um tom espantoso de dourado, e pela primeira vez reparei que estava salpicada de centenas de flores silvestres - brancas, e amarelas, e cor de laranja. Dos penhascos a leste, a brisa trazia um odor de ce­dro e pinho.

Mesmo continuando a seguir o riacho para o norte, eu não tirava o olho da árvore alta que os corvos haviam sobrevoado à minha esquerda. Quando tive essa ;Í1vore bem a oeste, vi que o riacho de repente se alargava. Passei por entre salgueiros e amentilhos e constatei que havia chegado a um laguinho que alimentava não apenas o riacho que eu estava seguindo, mas também um outro que dali partia para sudoeste. A princípio, pensei que aquele lago era o que eu havia visto em minha mente, mas faltava a cascata.

Adiante, outra surpresa: ao norte do lago, o riacho desapa­recera completamente. De onde vinha a água? Aí me dei conta de que o lago e o riacho que eu estava seguindo eram alimentados por um enorme manancial subterrâneo que aflorava ali.

Quinze metros à minha esquerda, avistei uma pequena elevação onde havia três sicômoros, cada um com mais de três palmos de diâmetro - um lugar bem apropriado para uma rápida reflexão. Fui até lá e sentei-me confortavelmente junto ao tronco de uma das árvores. Ali, eu tinha as outras duas uns dois metros à minha frente, a dos corvos à minha esquerda e o manancial à direita. A questão agora era que rumo tomar. Eu poderia passar dias vagando por ali sem ver sinal de Charlene. E aquelas imagens?

Fechei os olhos e tentei recuperar aquela cena do lago com a cascata, mas, por mais que eu me esforçasse, não consegui me lembrar dos detalhes exatos. Acabei desistindo e fiquei contem­plando a relva e as flores silvestres, depois os dois sicômoros à minha frente. Aqueles troncos lembravam uma colagem cinza e branca, com veios marrons e em vários tons de âmbar. À medida que eu me concentrava na beleza desta cena, essas cores pareciam mais intensas e brilhantes. Respirei fundo outra vez e tomei a contemplar a campina e as flores. A árvore dos corvos parecia particularmente iluminada.

Peguei minha mochila e fui até a árvore. No mesmo instante, a imagem do lago com a cascata se produziu em minha mente. Dessa vez tentei recordar a cena inteira. O lago que eu via era largo, com cerca de quatrocentos metros quadrados, e a água que recebia vinha de detrás, cascateando em vários níveis. Duas quedas menores tinham um desnível de apenas cinco metros, mas a última caía de um penhasco de dez metros. De novo, na imagem que me vinha à mente, parecia que eu estava entrando naquele cenário, encontrando alguém.

O som de um carro à minha esquerda me fez estacar. Ajoelhei-me atrás de umas moitinhas. Um jipe cinza saiu da floresta à esquerda e atravessou o campo seguindo para sudoeste. Eu sabia que, pelas normas da Guarda Florestal, os veículos particulares não tinham autorização para trafegar ali, portanto imaginei que fosse ver o logotipo da Guarda Florestal na porta do jipe. Para minha surpresa, não havia marca nenhuma. Quando estava uns cinqüenta metros à minha frente, o carro parou. Através da folhagem, vi que só tinha um homem lá dentro; o homem estava examinando a área de binóculo, então deitei-me no chão e fiquei bem escondido. Quem era aquele homem?

O carro tornou a arrancar e logo desapareceu entre as árvores. Virei-me e sentei-me, tentando ouvir o zumbido. Nada ainda. Pensei em voltar à cidade, em procurar Charlene de outra maneira. Mas no fundo eu sabia que não havia alternativa. Fechei os olhos tornando a pensar nas instruções de David para que eu conservasse as minhas intuições, e finalmente recuperei toda a imagem do lago em minha mente. Ao me levantar e seguir em direção à árvore dos corvos, tentei gravar mentalmente os detalhes da cena.

De repente ouvi o guincho de outro pássaro, dessa vez, um falcão. À minha esquerda, bem depois da árvore, mal conseguia divisar sua forma; a ave ia voando para o norte. Apertei o passo, tentando não perdê-la de vista.

A aparição do pássaro pareceu me dar mais energia, e, mesmo depois que ele desapareceu no horizonte, continuei seguindo no seu rumo por pouco mais de três quilômetros, subindo e descendo morros rochosos. No alto do terceiro, tornei a ficar paralisado, ouvindo outro som ao longe, um som como o da água correndo. Não, era água caindo.

Com cautela, desci a encosta e passei por uma garganta funda que me trouxe de novo a sensação de déjà vu. Subi o morro seguinte e lá, depois do topo, estavam o lago e a cascata, exatamente como eu imaginara - só que a área era bem maior e mais bonita. O lago propriamente dito, aninhado entre grandes rochedos, tinha cerca de oitocentos metros quadrados e suas águas de um azul cristalino cintilavam sob o céu da tarde. À esquerda e à direita do lago, havia grandes carvalhos, estescercados de bordos menores, liquidâmbares e salgueiros de tons variados.

O outro lado do lago era uma explosão branca de umidade pulverizada, a espuma produzida pela agitação da água de duas quedas menores mais acima no morro. Vi que nenhum rio saía do lago. A água dali penetrava no subsolo e corria silenciosamente até aflorar no grande manancial próximo à árvore dos corvos.

Enquanto eu observava a beleza daquela paisagem, a sen­sação de já ter estado ali aumentava. Os sons, as cores, a vista da colina - tudo me parecia extremamente familiar. Eu já havia estado naquele local também. Mas quando?

Desci até o lago e percorri toda a área. Fui até a margem para provar a água, subi a cascata para sentir a água borrifada de cada uma das quedas, subi no cocoruto dos rochedos, onde eu alcançava as árvores. Eu estava querendo me impregnar deste lugar. Afinal me espreguicei numa laje seis metros acima do lago e virei-me para o poente de olhos fechados, sentindo os raios do sol em meu rosto. Nesse momento, outra sensação familiar me invadiu - um bem-estar e um respeito que há meses eu não sentia. De fato, embora eu já não soubesse como era aquela sensação, naquele momento ela foi perfeitamente reconhecível. Abri os olhos e virei-me rapidamente, sabendo exatamente quem eu iria encontrar.

 

REVENDO A JORNADA

 

EM UMA PEDRA LÁ no alto, meio oculto por uma laje em balanço, estava Wil, mãos na cintura, sorrindo de uma orelha à outra. Parecia ligeiramente desfocado, então pisquei com força e me concentrei, e o rosto dele acabou ficando mais nítido.

- Eu sabia que você estaria aqui - disse ele, descendo com agilidade e pulando na pedra ao meu lado. - Eu estava esperando.

Olhei assombrado para ele, e ele me abraçou; tinha uma certa luminosidade nas mãos e no rosto, mas, à parte isso, parecia normal.

- Que coisa incrível você estar aqui - gaguejei. - O que houve quando você sumiu no Peru? Por onde tem andado?

Ele fez um gesto mandando que eu sentasse de frente para ele em uma daquelas pedras.

- Vou lhe contar tudo - disse -, mas primeiro preciso saber de você. O que o trouxe aqui a esse vale?

Contei-lhe em detalhes o desaparecimento de Charlene, falei-lhe do mapa do vale e de como conhecera David. Wil queria saber mais sobre o que David havia dito, e eu lhe contei tudo o que consegui me lembrar sobre a conversa.

Wil inclinou-se para mim.

- Ele lhe disse que a Décima explicava o renascimento espiritual da Terra sob o enfoque da outra dimensão? E nos ensinava a identificar a verdadeira natureza de nossas intuições?

- Disse - respondi. - É isso mesmo?

Ele pareceu pensar um pouco, depois perguntou:

- O que você vivenciou desde que entrou no vale?

- Eu imediatamente comecei a ver imagens - respondi.

- Umas eram de outras eras, mas depois comecei a ter visões repetidas desse lago. Vi tudo: as rochas, a cascata, vi até que havia alguém me esperando aqui, embora eu não soubesse que era você.

- Onde você estava na cena?

- Foi como se eu estivesse andando e vendo.

- Então era uma cena de um futuro potencialpara você. Apertei os olhos para ele.

- Acho que não estou acompanhando.

- A primeira parte da Décima, como disse David, é sobre entender mais as nossas intuições. Nas primeiras nove Visões, a gente sente as intuições sob a forma de sensações físicas e palpites vagos. Mas, à medida que vamos nos familiarizando com o fenômeno, podemos perceber com mais clareza a natureza dessas intuições. Lembre-se do Peru. Lá você não via cenas do que ia acontecer, não se via com outras pessoas num determinado local, fazendo uma determinada coisa, e intuía que rumo tomar? Não foi assim que você viu quando devia ir para as Ruínas Celestinas?

- Aqui no vale está acontecendo a mesma coisa. Você recebeu uma imagem mental de um acontecimento em potencial - descobrir a cascata e encontrar alguém - e conseguiu viver isso, causando a coincidência de realmente descobrir o local e me encontrar. Se não tivesse dado importância à imagem, ou não acreditassemais que fosse encontrar acascata, perderia a sincro­nicidade, e sua vida ficaria na mesma. Mas você levou a imagem a sério; “guardou" em sua cabeça.

- David falou alguma coisa sobre aprender a "conservar" a intuição - disse eu.

Wil balançou a cabeça.

- E as outras imagens - perguntei -, as cenas de uma outra era? E esses bichos? A Décima menciona isso tudo? Você viu o Manuscrito?

Wil fez um gesto, descartando minhas perguntas.

- Primeiro deixe eu lhe falar da minha experiência em outra dimensão. o que eu chamo a dimensão da Outra Vida. Quando consegui manter meu nível de energia no Peru, mesmo quando vocês todos ficaram com medo e perderam a vibração. me vi num mundo de uma beleza e uma clareza incríveis. Eu estava no mesmo lugar, mas tudo era diferente. O mundo era luminoso e assombroso num sentido que ainda não consigo descrever. Passei muito tempo apenas andando em volta desse mundo incrível, vibrando numa vibração mais alta, e depois descobri uma coisa espantosa. Eu conseguia me transportar para qualquer lugar do planeta apenas mentalizando aonde eu queria ir. Viajei para todos os lugares que imaginei, procurando por você e Julia e os outros, mas não encontrei nenhum de vocês.

- Então acabei descobrindo outra habilidade. Mentalizando um espaço vazio, eu conseguia sair do planeta e ir para um lugar de idéias puras. Lá eu podia criar o que quisesse, só mentalizando. Fiz oceanos. montanhas e panoramas. imagens de pessoas que agiam exatamente como eu queria, todos os tipos de coisa. E tudo parecia tão real quanto qualquer coisa aqui na Terra.

- Mas, no fim. percebi que um mundo assim construído não era um lugar gratificante. Apenas criar arbitrariamente não me dava satisfação interna. Depois de algum tempo, fui para casa e pensei no que eu desejava fazer. Naquela época. eu ainda podia me materializar suficientemente pa.a conseguir falar com muita gente sobre uma consciência mais elevada. Eu podia comer e dormir, embora não precisasse. Finalmente percebi que eu já não sabia mais como era a emoção de evoluir e experimentar coinci­dências. Por já estar tão confiante. achei que estava mantendo minha ligação interna, mas, na verdade, eu tinha ficado exces­sivamente controlador e linha me perdido. É muito fácil a pessoa se perder nesse nível de vibração, porque criar a própria vontade é urna coisa instantânea e facílima.

- O que aconteceu então? - perguntei.

- Focalizei meu interior, procurando uma ligação mais alta com a energia divina, do jeito que sempre fizemos. Bastou isso; minha vibração se elevou mais, ainda e voltei a ter intuições. Vi uma imagem sua.

- O que tu estava fazendo?

- Eu não consegui distinguir; a imagem estava embaçada. Mas, quando pensei na intuição e segurei-a, fui indo para uma área nova da Outra Vida onde eu realmente via outros espíritos, grupos espirituais mesmo, e, embora eu não conseguisse propria­mente falar com eles, conseguia mais ou menos captar o que pensavam e sabiam.

- Eles podiam lhe mostrar a Décima Visão? - perguntei. Ele engoliu em seco e me olhou como se estivesse para soltar uma bomba.

- Não, a Décima Visão jamais foi escrita.

- O quê? Não faz parte do Manuscrito original?

- Não.

- E existe, pelo menos?

- Ah, existe sim. Mas não na dimensão terrena. Essa Visão ainda não chegou ao plano físico. Esse conhecimento, só existe na Outra Vida. Só quando for instruído por um número suficiente de pessoas aqui na Terra, poderá tornar-se suficientemente real na consciência das pessoas para que alguém o registre por escrito. Foi o que aconteceu com as nove primeiras Visões. Aliás, o que acontece com todos os textos espirituais. Mesmo as nossasescrituras mais sagradas. Esses textos sempre transmitem informações que existem previamente na Outra Vida, e são captadas com clareza suficiente na dimensão física para que sejam manifestadas por alguém supostamente incumbido de registrá-Ias por escrito. Por isso é que se diz que esses textos têm ins­piração divina.

- Então por que a Décima custou tanto a ser captada? Wil parecia perplexo.

- Não sei. O grupo espiritual com o qual eu estava em contato aparentemente sabia, mas eu não consegui entender bem. Minha energia não tinha chegado a um nível tão elevado. Isso está ligado ao Medo que surge numa cultura que está passando de uma realidade material para uma visão de mundo transformada e espiritualizada.

- Você acha que estamos preparados para receber a Décima?

- Sim, os grupos espirituais viram a Décima se alastrando aos poucos pelo mundo inteiro agora, na medida que o co­nhecimento da Outra Vida vai ampliando a nossa perspectiva. Mas ela precisa ser captada por um número suficiente de pessoas, como as nove primeiras, para que o Medo possa ser vencido.

- Sabe sobre o que mais a Décima fala?

- Sei, parece que não basta estar a par das nove primeiras.

Precisamos entender como implementar esse destino. Para isso é necessário entender a relação especial que há entre a dimensão física e a Outra Vida. Precisamos entender o processo de nasci­mento, saber de onde viemos, ter uma ótica mais abrangente para compreender o que a história da humanidade está tentando realizar.

De repente tive uma idéia.

- Espere aí. Você não conseguiu ver uma cópia da NonaVisão? O que ela dizia sobrea Décima?

Wil inclinou-se para mim.

- Dizia que as nove primeiras Visões descreveram aevolução espiritual tanto sob o prisma pessoal quanto sob o coletivo. Porém, para se implementarem efetivamente essas Vi­sões, para vivenciá-las e realizar esse destino, é necessário que setenha uma compreensão mais profunda do processo, uma Décima Visão. Essa Visão nos mostraria a realidade da transformação espiritual não apenas da perspectiva da visão terrena, mas também da perspectiva da dimensão da Outra Vida. Dizia que poderíamos entender melhor por que estávamos unindo as dimensões, por que os seres humanos precisam satisfazer esse propósito histórico. Essa compreensão, uma vez integrada à cultura, é que garantiria esse resultado futuro. Mencionava também o Medo, dizendo que, ao mesmo tempo que emergia uma nova consciência espiritual, uma polarização ruiva surgiria também em oposição, por medo, procurando obstinadamente controlar o futuro com diversas tecnologias novas - ainda mais perigosas do que a ameaça nuclear - que já estão sendo descobertas. A Décima Visão resolve esta polarização.

Ele parou bruscamente e apontou com a cabeça para leste. - Está ouvindo isso?

Prestei atenção, mas só consegui escutar a cascata.

- O quê? - perguntei.

- Esse zumbido.

- Há pouco eu ouvi. O que é?

- Não sei exatamente. Mas é um som que também pode ser ouvido na outra dimensão. Os espíritos que eu vi pareceram muito perturbados com ele.

Quando WiI falou, visualizei claramente o rosto de Charlene. - Acha que o zumbido tem a ver com essa nova tecnologia?

- perguntei, meio distraído.

WiI não respondeu. Notei que ele estava com um ar ausente. - Essa amiga que você está procurando é loura? ­ perguntou ele. - De olhos grandes... e muito inquisitivos? - É.

- Acabei de ver uma imagem do rosto dela.

Fiquei olhando para ele.

- Eu também.

Ele virou e ficou olhando para a cascata, e eu acompanhei o olhar dele. A espuma e os borrifos brancos formavam um pano de fundo majestoso para nossa conversa. Senti a energia aumentando em meu corpo.

- Você ainda não tem energia suficiente - disse ele. ­

Mas esse lugar tem tanta força que acho quese eu ajudar e a gente mentalizar o rosto da sua amiga, podemos passar à dimensão espiritual e talvez encontrar o paradeiro dela, e descobrir o que está acontecendo neste vale.

- Você garante que pode fazer isso? - perguntei. – Talvez você possa ir e eu possa esperar aqui por você.

O rosto dele estava saindo de foco.

Wil tocou-me nas costas, energizando-me, sorrindo de novo.

- Não vê que o fato de estarmos aqui tem um propósito?

A cultura humana está começando a entender a Outra Vida e a captar a Décima Visão. Acho que estamos tendo a oportunidade de explorar juntos a outra dimensão. Você sabe que isso parece uma coisa predestinada.

Então notei aquele zumbido ao fundo, mesmo com o barulho da cascata. Na verdade, sentia-o no plexo solar.

- O zumbido está ficando mais forte - disse Wil. – Temos que ir agora. Charlene pode estar em apuros!

- O que vamos fazer? - perguntei.

Wil aproximou-se um pouco, ainda tocando em minhas costas.- Precisamos recriar a imagem que recebemos de sua amiga. - Sustentá-la?

- É. Como eu disse, estamos aprendendo a reconhecere a acreditar em nossas intuições num estágio mais alto. Todos queremos ver as coincidências ocorrendo com mais freqüência, mas para a maioria de nós essa é uma nova consciência, e a culturaque nos rege ainda opera fundamentalmente baseada no velho ceticismo, assim perdemos a esperança, a fé. No entanto, estamos começando a nos dar conta de que, quandoestamos inteiramenteatentos, inspecionando os detalhes do futuro em potencial que nos é apresentado, retendo deliberadamente a imagem no fundo de nossa mente, acreditando imencionalmente, em geral a cena que estamos mentalizando se realiza mais depressa.

- Então a gente faz as coisas acontecerem?

- Não. Lembre-se da minha experiência com a Outra Vida.

Aí, tudo o que a gente deseja acontece, mas o que se consegue assim não satisfaz. Nessa nossa dimensão também é assim, só que as coisas se passam num ritmo mais lento. Na Terra, podemos fazer acontecer quase tudo o que desejamos, mas só nos satisfa­zemos plenamente quando entramos em sintonia com o nosso rumo interior e nossa orientação divina. Só então usamos nossa vontade para partir na direção dos futuros em potencial que recebemos. Sob este aspecto, somos co-criadores: participamos da fonte divina da criação. Vê como esse conhecimento introduz a Décima Visão? Estamos aprendendo a usar nossa capacidade de mentalizar as coisas do modo como ela é usada na Outra Vida, e, quando a usamos, nos alinhamos nessa dimensão, e isso ajuda a unir o Céu e a Terra.

Balancei a cabeça, entendendo plenamente. Após respirar fundo algumas vezes, Wil pressionou mais as minhas costas e mandou que eu recriasse os detalhes do rosto de Charlene. A principio, nada aconteceu, depois me veio uma onda súbita de energia, impelindo-me à frente e acelerando-me loucamente.

Eu estava deslizando a uma velocidade fantástica por um túnel multicor. Plenamente consciente, perguntei-me por que eu não estava com medo, por que a sensaçäo que eu estava sentindo era de reconhecimento, de contentamento, de paz, como se eu já tivesse estado ali antes. Quando o movimento parou, vi-me num ambiente de luz branca e quente. Procurei Wil e percebi que ele estava à minha esquerda, ligeiramente recuado.

- Muito bem - disse ele, sorrindo.

Seus lábios não se moviam, mas eu ouvia claramente sua voz. Então reparei que seu corpo apareceu. Ele estava com o mesmo aspecto, só que era como se estivesse totalmente ilumi­nado por dentro.

Fui tocar na mão dele e reparei que meu corpo estava igual. Ao encostar nele, o que senti foi um campo a alguns centí­metros do braço que eu estava vendo. Pressionando mais, perce­bi que não conseguia penetrar a energia dele; apenas empur­rava seu corpo.

Wil estava quase explodindo de alegria. De fato, ele estava com um ar tão engraçado que acabei rindo.

- Incrível, não é?- perguntou.

- Essa vibração é maior do que a das Ruínas Celestinas ­respondi. - Sabe onde estamos?

Wil ficou calado, contemplando o cenário à nossa volta. Parecia que estávamos num ambiente espacial e tínhamos noção do que estava em cima e do que estava embaixo, mas estávamos suspensos no ar e não havia horizonte. A luz branca era uma tonalidade constante em todas as direções.

Finalmente Wil disse:

- Este éum pomo de observação; já estive aqui rapida­mente, da primeira vez que mentalizei o seu rosto. Havia mais espíritos aqui.

- O que estavam fazendo?

- Observando as pessoas que chegavam depois da morte. - O quê? Você está dizendo que épara cá que as pessoas vêm logo que morrem?

- Estou.

- Por que estamos aqui? Será que aconteceu alguma coisa com Charlene?

Ele virou-se mais para mim.

- Não, acho que não. Lembre-se do que aconteceu comigo quando comecei a mentalizar você. Fui a muitos lugares antes de acabarmos nos encontrando na cascata. Aqui deve haver alguma coisa que precisamos ver antes de podermos encontrar Charlene. Vamos esperar e ver o que acontece com esses espíritos.

Ele apontou com a cabeça para o nosso lado esquerdo, onde várias entidades antropomórficas estavam se materializando a uns dez metros de nós, bem à nossa frente.

Minha primeira reação foi de cautela.

- Wil, como sabemos que são bem-intencionados? E se tentarem nos possuir ou coisa assim?

- Acompanho-o até o manancial - disse eu.

Peguei minha mochila, e, enquanto descíamos o morro, ele perguntou: .

- Se aquela era a sua amiga, aonde acha que ela estava indo?

- Não sei.

- Procurando um lugar místico, talvez? Uma utopia.

Ele tinha um sorriso cínico nos lábios.

Percebi que estava me testando.

- Talvez - disse eu. - Não acredita em utopia?

- Não, claro que não. É uma idéia neolítica. Ingênua. Olhei para ele, começando a me sentir dominado pelo cansaço, tentando encerrar a conversa.

- É só uma diferença de opinião, acho eu.

Ele riu.

- Não, é verdade. Não tem utopia nenhuma chegando. As coisas só fazem piorar, nada melhora. A economia já está escapan­do do controle e vai acabar explodindo.

- Por que diz isso?

- Puramente por uma questão demográfica. Durante a maior parte desse século, havia uma classe média numerosa nos países ocidentais, uma classe que promovia a ordem e o bom senso e acreditava que o sistema econômico pudesse funcionar para todo mundo.

- Mas agora quase ninguém ainda acredita nisso. É geral. Cada vez há menos gente confiando no sistema, ou agindo de acordo com as regras. E tudo isso porque a classe média está encolhendo. O desenvolvimento tecnológico está desvalorizando o trabalho e dividindo os homens em dois grupos: os que têm e os que não têm, os que têm investimentos e participação na economia mundial e os que não têm outra opção a não ser fazer serviços menores. Some isso ao fracasso da educação e poderá ver o tamanho do problema.

- Parece uma posição terrivelmente cínica - disse eu. - É realista. É a verdade. A maioria das pessoas precisa lutar cada vez mais para sobreviver aqui. Já viu as pesquisas sobre o estresse? A tensão está escapando do controle. Ninguém se sente seguro, e o pior ainda nem começou. O mundo está superpovoa­do, e, com o desenvolvimento da tecnologia, o abismo entre os que detêm o saber e os que não detêm vai aumentar cada vez mais, e o controle da economia global ficará cada vez mais na mão dos ricos, enquanto o consumo de drogas e a criminalidade continuarão aumentando assustadoramente entre os pobres.

- E o que acha - prosseguiu ele - que acontecerá nos países subdesenvolvidos? Grande parte do Oriente Médio e da África já está nas mãos dos fundamentalistas religiosos cujo objetivo é destruir a sociedade organizada, que para eles é um império satânico, e substituí-Ia por uma teocracia pervertida, onde os líderes religiosos controlam tudo e têm o poder de condenar à morte aqueles que consideram heréticos, em qualquer lugar do mundo.

- Que tipo de gente há de concordar com uma carnificina dessas em nome da espiritualidade? No entanto, essas carnificinas são cada vez mais freqüentes. Na China, ainda se pratica o infanticídio de meninas, por exemplo. Dá para acreditar numa coisa dessas?

- Estou lhe dizendo: a lei, a ordem e o respeito pela vida humana estão acabando. O mundo está degenerando e assumin­do uma mentalidade de turba, dominada pela inveja e pela vingança e imposta por charlatães pervertidos, e talvez já seja tarde demais para acabar com isso. Mas sabe de uma coisa? Ninguém está se importando. Ninguém! Os políticos não fazem nada. Só querem saber dos próprios redutos eleitorais e de como mantê-los. O mundo está mudando muito rápido. Não dá para acompanhar o ritmo das mudanças, o que faz com que todo mundo só pense em si e tente rapidamente agarrar o que puder, antes que seja tarde demais. Esse sentimento está permeando a sociedade toda e cada grupo ocupacional.

Ele tomou fôlego e olhou para mim. Eu havia parado no topo de um dos morros para apreciar o pôr-do-sol, e nossos olhos se encontraram. Ele parecia se dar conta de que se emocionara com o discurso, e naquele instante começou a me parecer profundamente familiar. Disse-lhe o meu nome e ele disse o dele, Joel Lipscomb. Ficamos mais um tempo olhando um para o outro, mas ele não demonstrou me reconhecer. Por que nos encontra­mos naquele vale?

Tão logo acabei de formular esta última pergunta em minha mente, soube a resposta. Ele estava exprimindo a visão do Medo que Williams mencionara. Fiquei arrepiado. Isto estava programa­do para acontecer.

Olhei para ele mais seriamente.

- Acha mesmo que as coisas estejam tão ruins assim?

- Acho, sem dúvida - respondeu ele. - Sou jornalista, e essa atitude é comum em nossa profissão. Antigamente, pelo menos tentávamos trabalhar dentro de um certo padrão de integridade. Mas agora não é mais assim. Só tem propaganda e sensacionalismo. Ninguém mais está procurando a verdade nem tentando apresentá-la da maneira mais precisa. Os jornalistas vivem atrás do furo, da perspectiva mais chocante, de tudo o que for sujeira.

- Mesmo que determinadas acusações tenham uma explicação lógica, elas são reportadas de qualquer maneira, pelo impacto que possam causar nas taxas e na circulação. Num mundo onde as pessoas estão entorpecidas e distraídas, só vende o que é inacreditável. E a tristeza é que esse tipo de jornalismo se perpetua. Um jovem jornalista vê essa situação e pensa que para sobreviver na profissão é preciso entrar no jogo. Senão, acha que vai ficar para trás, arruinado, o que, conseqüentemente, leva os chamados repórteres investigativos a serem intencionalmente falsos. Acontece a toda hora.

Tínhamos continuado para o sul e estávamos descendo por um terreno pedregoso.

- Em outras profissões ocorre a mesma coisa - prosseguiu Joel. - Meu Deus, veja só a advocacia. Pode ser que algum dia trabalhar num tribunal tenha significado alguma coisa, quando os participantes do processo respeitavam a verdade e a justiça. Mas agora já não é assim. Pense nos últimos julgamentos de celebri­dades cobertos pela televisão. Os advogados agora fazem tudo o que podem para subverter a justiça, intencionalmente, tentando convencer os jurados a acreditar em hipóteses quando não há provas - hipóteses que eles sabem que são mentiras - apenas para livrar a cara de alguém. E outros advogados comentam esses procedimentos como se essas táticas fossem uma prática comum e absolutamente justificada em qualquer sistema legal, o que não é verdade.

- Em nosso sistema, todo mundo tem direito a um julga­mento justo. Mas os advogados têm a obrigação de garantir a lisura e a correção, não a de distorcer a verdade e minar a justiça simplesmente para livrar seu cliente a qualquer custo. Por causa da televisão, pelo menos estamos podendo ver o que essas práticas corruptas representam: um mero expediente dos causídi­cos para se valorizarem e poderem cobrar honorários maiores. E eles só fazem esse estardalhaço todo porque acham que ninguém liga, e obviamente não liga mesmo. Todo mundo está fazendo a mesma coisa.

- Estamos querendo juntar dinheiro rápido, maximizando lucros de curto prazo em vez de planejar a longo prazo, porque no fundo, consciente ou inconscientemente, não acreditamos que nosso sucesso seja duradouro. E fazemos isso mesmo se tivermos que quebrar a relação de confiança que temos com os outros e promover os nossos interesses em detrimento dos interesses dos outros.

- Logo, logo todos os princípios que unem a sociedade estarão totalmente subvertidos. Imagine o que acontecerá quando o desemprego chegar a um certo nível nas cidades do interior. A criminalidade já está fora de controle. Os policiais não vão mais ficar arriscando a vida para uma opinião pública que afinal de contas nem repara. Por que estar duas vezes por semana no banco das testemunhas sendo interrogado por um advogado que não está nem um pouco interessado na verdade, ou, pior ainda, acabar caído num beco escuro, morrendo de dor e se esvaindo em sangue, quando ninguém se importa? Melhor fechar os olhos e servir os vinte anos bem quietinho, talvez até fazendo uma caixinha com o dinheiro das propinas. E a coisa continua sempre assim. O que vai deter isso?

Ele fez uma pausa, e fiquei olhando para ele ali caminhando. - Será que você está pensando que um renascimento espiritual vai mudar isso tudo? - perguntou.

- É o que certamente espero.

Ele pulou um tronco caído para me alcançar.

- Ouça - prosseguiu -, eu cheguei a entrar nessa de espiritualismo, essa coisa de objetivo, e destino, e Visões. Até consegui achar umas coincidências interessantes na minha vida. Mas cheguei à conclusão de que isso é tudo loucura. A mente é capaz de imaginar todo tipo de bobagem; e nem percebe. Quando a gente analisa, toda essa conversa de espiritualidade é só retórica duvidosa.

Ia refutar o argumento dele, mas mudei de idéia. Minha intuição me mandava ouvi-Io primeiro.

- É - disse eu. - Acho que as vezes até parece mesmo.

- Vamos tomar o exemplo do que eu ouvi falar sobre esse vale - continuou. - Esse é o tipo do absurdo que eu costumava ouvir. Esse aqui é só um vale cheio de árvores e moitas feito milhares de outros. - Ele tocou numa árvore grande no caminho. - Acha que esse Parque Florestal vai sobreviver? Esqueça. Do jeito que os homens estão poluindo os mares, saturando o ecossistema com substâncias cancerígenas produzidas em labo­ratório e consumindo papel e outros derivados de madeira, isso aqui vai virar uma lata de lixo, como qualquer outro lugar. Na verdade, as pessoas estão se lixando para as árvores. Por que acha que não acontece nada com o governo que fica construindo estradas por aí com o dinheiro do contribuinte e depois vende a madeira abaixo do custo de mercado? Ou troca as áreás melhores e mais lindas por umas terras imprestáveis em qualquer lugar, só para agradar os empresários imobiliários?

- Você deve achar que algum fenômeno místico está acontecendo aqui nesse vale. E por que não? Todo mundo ia adorar que uma coisa dessas estivesse acontecendo, ainda mais se levarmos em conta a degradação da qualidade de vida. Mas o negócio é que não tem nada de esotérico acontecendo. Somos apenas animais, criaturas inteligentes e azaradas o bastante para perceber que estamos vivos, e vamos morrer sem saber a que viemos. Podemos fingir qualquer coisa e querer qualquer coisa, mas o fato existencial básico é um só: não podemos saber.

Tomei a olhar para ele.

- Não acredita em nenhum tipo de espiritualidade? Ele riu.

- Se Deus existe, deve ser um Deus de uma perversidade monstruosa. Não dá para ter uma realidade espiritual operando aqui! Como poderia ter? Olhe só o mundo. Que tipo de Deus faria um lugar assim tão devastador onde crianças morrem de mortes horrorosas, vítimas de terremotos, de crimes absurdos e de fome,enquanto os restaurantes jogam fora toneladas de comida diaria­mente?

- Mas - acrescentou ele -, talvez seja assim que as coisas tenham que acontecer. Talvez seja o plano de Deus. Talvez os estudiosos do "fim do mundo" estejam certos. Eles acham que a vida e a história são apenas um teste de fé para ver quem vai se salvar e quem não vai, um plano divino para destruir a civilização e separar os bons dos maus.

Esboçou um sorriso, que logo se desmanchou quando ele mergulhou em seus pensamentos.

Afinal apertou o passo para me acompanhar. Estávamos chegando de volta ao campo de sálvia. e eu já avistava a árvore dos corvos a uns quatrocentos metros.

- Sabe o que esses profetas do apocalipse acreditam que esteja acontecendo de verdade? - perguntou ele. - Estudei esse pessoal há uns anos atrás, foi fascinante.

- Não estou muito por dentro - disse eu, com um gesto de cabeça para que ele prosseguisse.

- Eles estudam as profecias ocultas na Bíblia, sobretudo as do livro do Apocalipse. Acreditam que estamos vivendo o que eles chamam de os últimos dias, a época em que todas as profecias se realizam. Essencialmente eles acreditam no seguinte: o mundo já está preparado para a volta do Cristo e a criação do reino dos céus na Terra. Mas primeiro a Terra ainda precisa passar por uma série de guerras, de desastres naturais e outros acontecimentos apocalípticos previstos nas escrituras. E eles conhecem cada uma dessas previsões, de modo que passam a vida observando o que acontece no mundo, aguardando o próximo acontecimento pro­gramado.

- E qual é o próximo? - perguntei.

- Um tratado de paz no Oriente Médio que vai permitir a reconstrução do Templo de Jerusalém. Logo depois, segundo eles, os verdadeiros fiéis, sejam eles quem forem, começarão a expe­rimentar um êxtase profundamente intenso e serão arrebatados da face da Terra e levados diretamente para o céu.

Parei e fiquei olhando para ele.

- Eles acham que esses fiéis vão começar a sumir da face da Terra?

- É, está na Bíblia. Depois começam as atribulações, que são um período de sete anos de inferno para quem sobrar na Terra. Parece que tudo deve desmoronar: terremotos violentís­simos destroem a economia; o nível dos mares sobe, arrasando muitas cidades; isso mais tumultos e criminalidade etc. Aí aparece um político, provavelmente na Europa, que apresenta um plano para consertar as coisas, se, obviamente, lhe outorgarem o poder supremo. Isso inclui uma economia eletronicamente centralizada coordenando grande parte do comércio mundial. Para participar dessa economia, porém, e se beneficiar da automação, todos terão de prestar vassalagem ao líder e receber na mão o implante de um chip por meio do qual todas as interações econômicas serão documentadas.

- Esse Anticristo primeiro protege Israel e facilita um tratado de paz, e mais tarde ataca, provocando uma guerra mundial que em última instância se trava entre as nações islâmicas, a Rússia e finalmente a China. Segundo as profecias, quando Israel estiver prestes a cair, Deus envia seus anjos para vencerem a guerra, e é instaurada uma utopia espiritual que dura mil anos.

Ele pigarreou e olhou para mim.

- Entre em qualquer livraria especializada em assuntos religiosos e dê uma olhada no que há; vai encontrar comentários e romances sobre essas profecias, e a toda hora estão saindo mais títulos nessa linha.

- Acha que esses acadêmicos do fim do mundo estão certos? Ele meneou a cabeça.

- Acho que não. A única profecia que está se realizando aqui nesse mundo é a da ganância e corrupção do homem. Pode ser que um ditador assuma o poder, mas só porque terá visto como se aproveitar do caos.         .

- Acha que isso vai acontecer?

- Não sei, mas vou lhe dizer uma coisa. Se a classe média continuar encolhendo, com os pobres ficando mais pobres, a criminalidade aumentando nas cidades do interior e se alastrando para a. periferia das grandes cidades, e ainda por cima vier uma série de grandes desastres naturais quebrando a economia mundial, teremos hordas de famintos pilhando tudo, e haverá um pânico generalizado. Diante deste tipo de violência, se alguém aparecer com um plano de salvação e recuperação mundial, pedindo apenas para a gente abrir mão de algumas liberdades civis, não tenho dúvida de que abriremos.

Paramos, e ele bebeu um pouco da água do meu cantil.

Cinqüenta metros adiante estava a árvore dos corvos.

Fiquei animado; estava conseguindo detectar a vibração fraca daquele zumbido em meio aos outros sons.

Joel concentrou-se apertando os olhos e me olhando com atenção.

- O que está escutando?

Virei-me e encarei-o.

- É um barulho estranho, um zumbido que a gente percebe.

Acho que pode ser alguma experiência sendo feita aqui no vale.

- Que tipo de experiência?Quem é o responsável por ela? Por que não consigo ouvir?

Eu já ía lhe contar quando fomos interrompidos por outro som. Apuramos os ouvidos.

- É barulho de carro - disse eu.

Mais dois jipes cinzentos vinham vindo do oeste em nossa direção. Corremos para nos esconder atrás de uma moita alta de urzes, e eles passaram direto a noventa metros de nós, pela mesma trilha por onde havia passado aquele outro jipe rumando para sudeste.

- Não estou gostando disso - disse Joel. - Quem era?

- Bem, não é a Guarda Florestal, e ninguém mais pode circular de carro por aqui. Talvez sejam as pessoas envolvidas na experiência.

Ele parecia horrorizado. 

- Se você preferir, tem um caminho mais curto para a cidade. Vá na direção daquele morro lá embaixo, a sudoeste. Daqui a uns mil e duzentos metros você vai encontrar o riacho e basta segui-lo para oeste que vai dar na cidade. Acho que consegue chegar antes,de escurecer demais.

- Você não vem?

- Já não. Vou para o sul até o riacho esperar um pouco a minha amiga.

Ele franziu a testa.

- Esse pessoal não poderia estar fazendo uma experiência

aqui sem o conhecimento da Guarda Florestal.

- Eu sei.

- Você não está achando que pode fazer alguma coisa a

respeito, está? É uma coisa grande.

Não respondi; senti um aperto no peito de nervoso.

Ele ficou escutando um pouco, depois entrou no vale, apressando o passo. Olhou para trás uma vez e meneou a cabeça.

Fiquei olhando até ele sumir na mata depois do prado e tomei logo o rumo sul, pensando de novo em Charlene. O que ela tinha ido fazer ali? Aonde estava indo? Eu não tinha nenhuma resposta.

Caminhando em ritmo acelerado, levei cerca de meia hora para chegar ao riacho. O sol estava totalmente encoberto por uma faixa de nuvens no poente, e o crepúsculo envolvia a mata num lusco-fusco acinzentado sinistro. Eu estava sujo e cansado, e sabia que tinha ficado muito abalado com o que Joel dissera e com aqueles jipes passando. Talvez eu jã tivesse reunido provas suficientes para procurar as autoridades; talvez esta fosse a maneira mais eficaz de ajudar Charlene. Muitas opções me passavam pela cabeça, todas justificando minha volta à cidade.

Como a mata era rala nas duas margens, resolvi atravessar o rio e entrar na floresta mais cerrada do outro lado, mesmo sabendo que era propriedade particular.

Já do outro lado, estaquei ao ouvir mais um jipe, depois saí correndo. Quinze metros adiante, o terreno foi ficando íngreme e pedregoso, com rochedos de seis metros de altura. Subindo depressa, cheguei ao topo e apertei o passo, depois pulei e caí num monte de pedras, quando pretendia cair do outro lado. Quando bati com o pé na pedra do alto, ela rolou, eu me desequilibrei e o monte todo começou a deslizar. Quiquei nos quadris e aterrissei numa pequena greta, as pedras continuando a deslizar para cima de mim. Algumas tinham de três a quatro palmos de diâmetro e vinham direto em cima de mim. Consegui rolar para o lado esquerdo e erguer os braços, mas sabia que não conseguiria sair do caminho.

Então, pelo canto do olho, vi uma forma branca e delgada movendo-se à minha frente. Na mesma hora, alguma coisa estranha me deu a certeza de que as pedras não me atingiriam. Fechei os olhos e ouvi o estrondo delas batendo à minha esquerda e à minha direita. Abri os olhos devagar e espiei através da nuvem de poeira, limpando a terra e os fragmentos de rocha do rosto. As pedras estavam todas arrumadas ao meu lado. Como aconteceu aquilo? O que era aquela forma branca?

Fiquei olhando em volta e vi alguma coisa se mexer atrás de uma das pedras. Um filhote de lince saiu dali e ficou me encarando. Eu sabia que ele já tinha tamanho para fugir, mas ficou ali parado, olhando para mim.

O ruído de um carro se aproximando acabou espantando o bicho para o mato. Levantei e cheguei a dar uma corrida antes de pisar de mau jeito em outra pedra. Senti uma pontada de dor na perna inteira quando meu pé esquerdo falseou. Caí no chão e me arrastei por uns dois metros até as árvores. Rolei para trás de um carvalho grande enquanto o carro se aproximava do riacho, diminuía a marcha e depois seguia a toda, mais uma vez para sudeste.

Com o coração aos pulos, sentei e tirei a bota para examinar meu tornozelo. Já estava começando a inchar. Por que isso?, pensei. Quando estiquei a perna, vi uma mulher me olhando a uns dez metros. Fiquei paralisado enquanto ela se aproximava de mim.

- Você está bem? - perguntou, num tom preocupado, mas desconfiado. Era uma negra alta, de seus quarenta anos, com um conjunto de moletom folgado e de tênis. Ela estava com um rabo-de-cavalo meio desmanchado, as mechas do cabelo preto balançando ao vento acima na fronte. Trazia uma pequena mochila verde.

- Eu estava ali sentada e vi você cair - disse ela. – Sou médica. Quer que eu dê uma olhada?

 - Gostaria muito - respondi atordoado, sem acreditar naquela coincidência.

Ela se ajoelhou ao meu lado e moveu o meu pé com delicadeza, enquanto ficava de olho na área para os lados do riacho.

- Está sozinho aqui?

Contei-lhe rapidamente que estava procurando Charlene, mas omiti o resto. Ela disse que não havia visto ninguém correspondendo àquela descrição. Enquanto ela falava, final­mente se apresentando como Maya Ponder, convenci-me de que era uma pessoa que merecia total confiança. Disse-lhe o meu nome e onde eu morava.

Quando terminei, ela falou:

- Sou de Asheville, mas tenho uma clínica. ao sul daqui, junto com uma sócia. A clínica é nova. Temos também essa propriedade de dezesseis hectares aqui, confmando com o Parque Florestal. - Ela apontou para a área onde estávamos sentados.

         - E mais dezesseis hectares na parte sul do desfiladeiro.

Abri o fecho ecler do bolso da minha mochila e peguei o cantil. - Quer um pouco d'água? - perguntei.

- Não, obrigada, eu tenho.

Ela pegou o cantil dela dentro da mochila e abriu-o. Mas, em vez de beber, embebeu uma toalhinha com água e envolveu o meu pé, o que me provocou uma careta de dor.

Virando-se para mim e me encarando, ela disse:

- Você fez mesmo uma entorse nesse tornozelo.

- Grave? - perguntei.

Ela hesitou.

- O que acha?

- Não sei. Deixe eu experimentar andar.

Tentei me levantar, mas ela me deteve.

- Espere um minuto - disse ela. - Antes de tentar andar, analise sua atitude. Acha que está muito machucado?

- O que você está querendo dizer?

- Quero dizer que muitas vezes o tempo de recuperação depende do que vocêacha, não do que eu acho.

Olhei para o tornozelo.

- Acho que pode ser uma coisa séria. Se for, tenho que dar um jeito de voltar para a cidade.

- E depois?

- Não sei. Se eu não puder andar, talvez tenha que arranjar alguém para ir procurar Charlene.

- Sabe por que esse acidente foi acontecer agora?

- Não. Por quê?

- Porque o modo como você encara um acidente que você sofreu também afeta a sua recuperação.

Olhei atentamente para ela, consciente da minha resistência.

Em parte estava achando aquela discussão uma perda de tempo.

Parecia muito egocêntrica para a situação. Embora o zumbido tivesse cessado, eu precisava presumir que a experiência conti­nuava. Tudo parecia perigosíssimo e já era quase noite... e, ao que eu soubesse, Charlene podia estar numa encrenca terrível.

Eu também estava me sentindo profundamente culpado em relação a Maya. Por quê? Tentei me livrar daquela emoção.

- Que tipo de médica você é? - perguntei, bebendo um pouco d'água.

Ela sorriu, e pela primeira vez vi a energia dela subir. Ela também resolveu confiar em mim.

- Deixe que eu lhe fale do tipo de medicina que eu pratico - disse ela. - A medicina está mudando, e rápido. Já não se pensa mais no corpo como uma máquina, com peças que se desgastam e precisam ser consertadas ou trocadas. Estamos começando a entender que a saúde do corpo é muito determinada por nossos processos mentais: o que achamos da vida e es­pecialmente de nós mesmos, tanto em nível consciente quanto inconsciente.

- Isso representa uma mudança fundamental. Pelo método antigo, o médico era o especialista que tinha o poder de curar, e o paciente, o recipiente passivo, torcendo para que o médico soubesse todas as respostas. Mas agora sabemos que o estado de espírito do paciente é fundamental. Uns fatores fundamentais são o medo e o estresse e a forma como lidamos com eles. Às vezes o medo é consciente, mas é muito comum reprimirmos totalmente esse sentimento.

- Essa é a atitude machista: negar o problema, afastá-lo, evocar nossa agenda heróica. Quem adota essa atitude continuará a ser corroído pelo medo. Uma postura positiva é extremamente benéfica para a saúde, mas é preciso assumi-la com consciência, usando o amor e não o machismo para que ela seja plenamente eficaz. O que acredito é que nossos medos não falados bloqueiam a nossa energia, e é sobretudo esse bloqueio que acaba causando os problemas. Os medos continuam se manifestando em graus cada vez maiores até os enfrentarmos. Os problemas físicos são o último passo. O ideal é que esses bloqueios sejam tratados logo, de forma preventiva, antes que a doença se desenvolva.

- Então você acha que todas as doenças podem, em última instância, ser evitadas ou curadas?

- Acho, claro que podemos ter uma vida mais longa ou mais curta; isso provavelmente depende do Criador, mas a gente não precisa adoecer, e não precisa sofrer tantos acidentes.

- Então você acha que isso se aplica tanto a um acidente, como a minha entorse, quanto às doenças?

Ela sorriu.

- Em muitos casos, sim.

Eu estava confuso.

- Olhe, agora eu não tenho tempo. Estou realmente preocupado com minha amiga. Preciso fazer alguma coisa!

- Eu sei, mas tenho o palpite de que essa conversa não vai demorar muito. Se você sair correndo sem fazer caso do que estou dizendo, talvez não veja o significado disso que obviamente é uma coincidência e tanto aqui.

Ela olhou para mim para ver se eu havia entendido sua referência ao Manuscrito.

- Está por dentro das Visões? - perguntei.

Ela balançou a cabeça.

- O que exatamente sugere que eu faça?

- Bem, a técnica que eu costumo usar com grande sucesso é a seguinte: primeiro, tentamos lembrar o tipo de pensamento que tínhamos pouco antes do problema de saúde - em seu caso, a entorse. Em que estava pensando? Qual é a ameaça que esse problema está lhe revelando?

Pensei um pouco, depois disse:

- Eu estava com medo, dividido. Essa situação aqui estava parecendo mais sinistra do que eu imaginava. Não me sentia preparado para enfrentá-la. Por outro lado, sabia que Charlene devia estar precisando de ajuda. Eu estava confuso e sem saber o que fazer.

- Então torceu o tornozelo?

Inclinei-me para ela.

- Está dizendo que eu me sabotei para não ter que tomar uma atitude? Isso não é simples demais?

- Você é quem pode dizer, não eu. Mas em geral a coisa é simples. Além do mais, o mais importante é não ficar perdendo tempo se defendendo ou tentando provar um ponto de vista. Entre no jogo. Tente lembrar de tudo que puder sobre a origem do problema de saúde.

- Como?

- Você tem de aquietar sua mente e receber esta informação. - Intuitivamente?

- Intuitivamente, como que orando, seja qual for a sua concepção do processo. Resisti novamente, em dúvida se eu conseguiria relaxar e limpar a mente. Afinal fechei os olhos, e por um momento meus pensamentos cessaram, mas em seguida veio uma sucessão de lembranças de Wil e dos acontecimentos daquele dia. Deixei-as passar e tomei a limpar a mente. Na mesma hora, vi uma cena de quando eu tinha dez anos, saindo de campo mancando no meio de uma partida de futebol, consciente de que meu sofrimento era fingido. É mesmo!, pensei. Eu costumava simular entorses para evitar agir sob pressão. Havia esquecido isso completamente! Me dei conta de que depois passei a realmente machucar freqüente­mente o tornozelo, em qualquer tipo de situação. Enquanto eu refletia sobre essa lembrança, tive outro lampejo, vendo-me numa cena em outro tempo, todo atrevido, confiante, atirado, trabalhan­do à luz de vela numa sala escura quando a porta foi arrombada e eu fui arrastado cheio de pavor.

Abri os olhos e olhei para Maya.

- Talvez eu tenha alguma coisa.

Partilhei o conteúdo da lembrança infantil, mas a outra visão era vaga demais para poder ser descrita, então não a mencionei. Depois, Maya perguntou:

- O que acha?

- Não sei; aparentemente a entorse foi totalmente por acaso. É difícil imaginar que o acidente tenha sido causado por essa necessidade de fugir da situação. Além do mais, já estive em situações piores várias vezes e não torci o pé. Por que isso foi acontecer agora?

Ela ficou pensativa.

- Quem vai saber? Talvez tenha chegado a hora de compreender o hábito. Os acidentes, as doenças, o processo de cura, tudo isso é um mistério maior do que se pode imaginar. Acredito que temos uma capacidade ainda desconhecida que nos faz influenciar o que nos acontece no futuro, inclusive em termos de saúde, embora, nesse aspecto também, o poder tenha que continuar com o paciente.

- Eu tenho motivos para não querer dar minha opinião sobre a gravidade da sua entorse. Nós que estamos nessa profissão sabemos que as opiniões médicas precisam ser dadas com muito cuidado. Com o tempo, as pessoas foram desenvolvendo uma certa idolatria pelos profissionais da medicina, e, quando um médico diz alguma coisa, os pacientes acham que é lei. O médico do interior no século passado sabia disso e partiria desse princípio para pintar um quadro extremamente otimista de qualquer situação. Se o médico dizia que o paciente ia melhorar, em geral o paciente internalizava essa idéia e realmente desafiava todas as probabilidades para se recuperar. Ultimamente, porém, conside­rações éticas vêm evitando esse tipo de distorção, e o sistema vem achando que o paciente tem direito a uma avaliação fria e científica de sua situação.

- Infelizmente, essa sinceridade já matou muitos pacientes diante do médico, só porque eles foram informados de que tinham uma doença terminal. Sabemos agora que precisamos ter muito cuidado com essas avaliações, por causa da força da nossa mente. Queremos focalizar essa força para um lado positivo. O corpo tem uma capacidade de regeneração milagrosa. Órgãos tidos antigamente como formas sólidas na verdade são sistemas de energia que podem se transformar do dia para a noite. Já leu a última pesquisa sobre o poder da oração? O simples fato de estar sendo provado cientificamente que esse tipo de visualização espiritual funciona, abala todo o nosso antigo modelo terapêutico. Estamos tendo que trabalhar com um novo modelo.

Ela parou, molhou mais a toalha em volta do meu tornozelo e prosseguiu.

- Acho que o primeiro passo nesse processo é identificar a ameaça que um determinado problema de saúde evoca; isso desbloqueia o corpo e deixa a energia fluir para uma cura consciente. O passo seguinte é absorver o máximo de energia e se concentrar no ponto exato do bloqueio.

Eu já ia perguntar como se fazia isso, mas ela me inter­rompeu.

- Vá em frente e aumente ao máximo o seu nível de energia.

Aceitando a orientação dela, comecei a prestar atenção na beleza da paisagem à minha volta e a me concentrar numa ligação espiritual dentro de mim, evocando uma exacerbada sensação de amor. Gradativamente as cores foram se avivando mais e tudo se tornou mais presente em minha consciência. Percebi que ela estava elevando sua própria energia também.

Quando tive a sensação de que minha vibração aumentara ao máximo, olhei para ela.

Ela sorriu para mim.

- Pronto, agora você pode focalizar a energia no bloqueio. - Como? - perguntei.

- Use a dor. É para isso que ela existe, para ajudar na focalização.

- O quê? A idéia não é a gente se livrar da dor?

- Infelizmente isso é o que sempre se pensou, mas a dor realmente é um farol.

- Um farol?

- É - disse ela, pressionando meu pé em vários pontos.

- Como está a dor agora?

- Está latejando, mas não está doendo muito.

Ela tirou a toalha.

- Centre sua atenção na dor e tente senti-la ao máximo. Determine o ponto exato.

- Eu sei onde é. É no tornozelo.

- Sim, mas a área do tornozelo é grande. Qual é o pon­to exato.

Estudei a dor. Ela tinha razão. Eu estava generalizando aquela sensação para o tornozelo todo. Mas, quando eu ficava com a perna esticada e os dedos do pé apontados para cima, a dor se localizava na parte superior esquerda dessa junta e cerca de dois centímetros para dentro.

- Pronto - disse eu. - Já localizei.

- Agora centre sua atenção neste ponto exato. Transporte­-se todo para lá.

Fiquei alguns minutos calado. Em total concentração, senti plenamente o ponto doloroso em meu tornozelo. Notei que tudo o mais que me tornava consciente do meu corpo - a respiração, a localização de minhas mãos e braços, o suor melado em minha nuca - se diluía em segundo plano.         .

- Sinta plenamente a dor - lembrou ela. - Certo - disse eu. - Estou sentindo.

- O que está acontecendo com a dor? - perguntou ela. - Ainda está doendo, mas está diferente. Está ficando mais quente, incomodando menos, parece uma dormência.

Enquanto eu estava dizendo isso, a dor foi voltando ao que era.

- O que aconteceu? - perguntei.

- Acho que a dor tem outra função além de nos dizer que algo está errado. Talvez indique também a localização exata do problema, como um farol a nos guiar pelo nosso corpo, para que possamos centrar nossa atenção no ponto exato. É quase como se a dor e nossa concentração não pudessem ocupar o mesmo espaço. Obviamente, em casos extremos, quando a concentração é impossível, podemos usar anestésicos para mitigar o sofrimento, embora eu ache que é melhor manter um pouco da dor para que o efeito farol possa ser utilizado.

Ela fez uma pausa e olhou para mim. - E o próximo passo? - perguntei.

- O próximo passo - respondeu ela - é passar uma energia divina mais elevada para o ponto revelado pela dor, desejando que o amor opere uma transformação nas células dessa região e as leve de volta a um estado de perfeito funcionamento.

Fiquei olhando para ela.

- Vá em frente - disse ela. - Torne a se ligar completa­mente. Guiarei você.

Balancei a cabeça quando fiquei pronto.

- Sinta a dor com todo o seu ser - começou ela - e agora mentalize a sua energia amorosa dirigindo-se ao centro da dor, colocando esse ponto específico do seu corpo, os próprios átomos, numa vibração maior. Veja as partículas darem um salto quântico e assumirem o padrão de pura energia que é o estado ideal delas. Literalmente sinta uma sensação de formigamento neste ponto à medida que a vibração se acelera.

Após uma pausa de um minuto, ela prosseguiu:

- Agora, continuando a focalizar o ponto da dor, vá sentindo sua energia, o formigamento, lhe subir pelas pernas... pelos quadris... pelo abdome e pelo peito... e chegar ao pescoço e à cabeça. Sinta seu corpo inteiro formigando com a vibração maior. Veja cada órgão operando no nível ideal de eficiência.

Segui à risca essas instruções, e em pouco tempo meu corpo inteiro estava mais leve, mais energizado. Fiquei assim por uns dez minutos, depois abri os olhos e olhei para Maya.

Usando uma lanterna naquela escuridão, Maya estava armando minha barraca numa área plana entre dois pinheiros. Olhando para mim, perguntou:

- Está melhor?

Balancei a cabeça.

- Está entendendo o processo?

- Acho que sim. Passei energia para a dor.

- Sim, mas o que fizemos antes foi igualmente importante. A gente começa analisando o significado do ferimento ou da doença, vendo que a ocorrência daquilo aponta para alguma coisa que nos ameaça e nos segura, e que está se manifestando em nosso corpo. É isso que rompe o bloqueio do medo para que a mentalização possa penetrar.

- Rompido o bloqueio, a gente pode usar a dor como um farol, aumentando a vibração naquela área e depois no corpo todo. Mas identificar a origem do medo é de importância vital. Quando a origem da doença ou do acidente é muito profunda, às vezes é preciso usar hipnose ou uma psicoterapia intensiva.

Contei-lhe sobre aquela visão medieval que eu tivera da porta sendo chutada e eu sendo arrastado.

Ela ficou pensativa.

- Às vezes a origem do bloqueio é muito antiga. Mas, à medida que a gente explora e começa a trabalhar o medo que nos paralisa, a gente vai se conhecendo mais profundamente e entendendo essa nossa vida na Terra. E isso é uma preparação para o último - e, estou convencida, o mais importante - estágio do processo. O mais importante de tudo é olhar o mais profun­damente possível para recordaro que a gente quer fazer da vida. A verdadeira cura ocorre quando podemos prever para nós um futuro animador. A inspiraçãoé o que nos mantém em forma. As pessoas não se curam para passar mais tempo diante da televisão.

Fiquei olhando um pouco para ela e falei:

- Você disse que a oração funciona. Qual é a melhor maneira de se rezar por alguém que não está bem?

- Ainda estamos tentando descobrir. Tem a ver com o processo da Oitava Visão de se passar para a pessoa a energia e o amor que fluem para nós da fonte divina, e ao mesmo tempo mentalizar que ela vai lembrar exatamente o que deseja fazer da vida. Claro, às vezes o que ela lembra é que está na hora de fazer a transição para a outra dimensão. Nesse caso, temos que aceitar.

Maya estava terminando de montar a barraca e acrescentou.

- Lembre-se também de que esses procedimentos que recomendo devem ser postos em prática conjuntamente com a melhor medicina tradicional. Se estivéssemos perto da minha clínica, eu faria um exame completo em você, mas nessa situação, a menos que não concorde, sugiro que passe a noite aqui. É melhor não se mexer muito.

Fiquei olhando, e ela montou meu fogareiro, acendeu-o e preparou uma panela de sopa desidratada.

- Vou voltar para a cidade. Preciso arranjar uma tala para o seu tornozelo e mais alguns suprimentos, que a gente pode precisar. Depois volto para ver você. Vou trazer um rádio também, caso a gente tenha que pedir socorro.

Balancei a cabeça.

Ela passou a água do cantil dela para o meu e olhou para mim. Atrás dela, os últimos raios de luz se dissolviam no poente.

- Você disse que sua clínica era aqui perto? - perguntei.

- Na verdade, fica só oito quilômetros ao sul- explicou ­do outro lado do morro, mas por lá não se chega no vale. O único acesso é a estrada principal que sobe pela zona sul da cidade.

- E por que você está aqui?

Ela sorriu e pareceu meio embaraçada.

- Engraçado. Ontem sonhei que tinha vindo fazer outra excursão aqui no vale, e hoje de manhã resolvi que iria fazer exatamente isso. Ando trabalhando muito e acho que estava precisando de um tempo para pensar no que estou fazendo lá na clínica. Minha sócia e eu temos muita experiência com tratamentos alternativos, medicina chinesa, ervas, mas, ao mesmo tempo, temos os melhores recursos da medicina tradicional ao nosso alcance, via computador. Passei anos sonhando com uma clínica desse tipo.

Ela fez uma pausa e disse:

- Antes de você chegar, eu estava ali sentada, e minha energia estava lá em cima. Parecia que eu estava conseguindo ver toda a história da minha vida, todas as minhas experiências, da infância até agora, passando diante de mim. Foi a experiência mais clara da Sexta Visão que já tive.

- Tudo o que aconteceu foi uma preparação - prosseguiu ela. - Na minha família, minha mãe passou a vida lutando com uma doença crônica, mas nunca trabalhou pela própria cura. Na. época, os médicos não sabiam agir de outra forma, mas, durante toda a minha infância, ela se recusava a explorar os próprios medos, e aquilo me irritava. Eu prestava atenção em tudo o que era informação sobre alimentação, vitaminas, nível de estresse, meditação e sobre a influência que isso tem na saúde da gente, tentando convencê-la a se envolver. Na adolescência, eu hesitava entre escolher a vida religiosa ou a medicina. Não sei; era como se eu tivesse uma atração para descobrir como a gente pode usar a intuição e a fé para mudar o futuro, para curar.

- E meu pai - prosseguiu ela. - Ele era diferente. Era biólogo, mas nunca explicava o resultado de suas pesquisas a não ser em monografias acadêmicas. "Pesquisa pura", dizia ele. As pessoas que trabalhavam com ele o tratavam como um deus. Ele estava muito acima de todo mundo, era a autoridade máxima. Eu já era adulta, e ele já tinha morrido de câncer quando compreendi o que o interessava realmente: o sistema imunológico, especifica­mente, como o empenho e a alegria de viver afetam o sistema imunológico.

- Ele foi a primeira pessoa a ver essa relação, e é isso o que as pesquisas mais modernas estão mostrando. No entanto, nunca cheguei a discutir isso com ele. Primeiro eu me perguntava por que tive um pai que agia daquela maneira. Mas acabei aceitando o fato de que meus pais tinham a combinação de traços e interesses exata para inspirar minha própria evolução. Era por isso que eu queria a companhia deles na infância. Olhando para minha mãe, eu sabia que cada um de nós tem de se dedicar à própria cura. E não se pode passar aos outros essa responsabili­dade. A cura essencialmente tem a ver com a superação dos medos associados à vida - o medo das coisas que não queremos enfrentar - e com a descoberta daquilo que nos inspira, uma visão do futuro, que sabemos que estamos aqui para ajudar a criar.

- Graças ao meu pai, vi claramente que a medicina precisa ser mais compreensiva, precisa levar em conta a intuição e a sensibilidade dos pacientes. Precisamos descer da nossa torre de marfim. A combinação do meu pai e da minha mãe me fez procurar um novo paradigma na medicina: baseado na capaci­dade do paciente de assumir o controle de sua vida e voltar ao caminho certo. Essa é a minha mensagem, acho eu, a idéia de que no fundo sabemos como participar de nossa própria cura, física e emocionalmente. Podemos nos inspirar para delinear um futuro mais elevado e ideal, e, quando fazemos isso, os milagres acontecem.

Levantando-se, ela olhou para meu tornozelo, depois para mim.

- Estou indo - disse ela. - Procure não pôr nem um pouco de peso nesse pé. O que você está precisando é de repouso absoluto. Amanhã estou de volta.

Acho que devo ter demonstrado nervosismo, porque ela se ajoelhou e pousou as duas mãos em meu tornozelo.

- Não se preocupe - disse. - Com uma dose suficiente de energia não há o que não se possa curar - ódios... guerras. É só uma questão de união em torno da visão certa. - Ela deu pancadinhas delicadas no meu pé. - Isso pode ser consertado! Isso pode ser consertado!

Ela sorriu uma vez, depois virou-se e foi embora.

Senti uma vontade enorme de chamá-la para contar tudo o que eu vivenciara na outra dimensão e o que eu sabia sobre o Medo e sobre a volta do grupo, mas fiquei quieto, deixando-me vencer pelo cansaço, satisfeito de vê-la sumir na mata. Amanhã já estava chegando, pensei... porque eu sabia exatamente quem era ela.

 

RECORDANDO

 

NA MANHÃ SEGUINTE, acordei sobressaltado, o guincho de um falcão lá no céu me despertando. Fiquei algum tempo de ouvido atento, imaginando a ave planando majes­tosamente. Ela soltou outro guincho, depois parou. Sentei-me depressa e olhei pela abertura da barraca; o dia estava nublado mas quente, e uma leve brisa balançava a copa das árvores.

Peguei uma atadura na mochila e cuidadosamente enfaixei o tornozelo, tendo muito cuidado com a junta e sentindo muito pouca dor, depois me arrastei para fora da barraca e me levantei. Pus então todo o peso no pé e tentei dar um passo. O tornozelo não tinha muita firmeza, mas, se eu mancasse um pouco, conse­guia me sustentar. Perguntei-me: será que o método de Maya ajudara, ou será que o tornozelo não estava assim tão machucado? Não havia como saber.

Catei uma muda de roupa na mochila e peguei a louça suja do jantar. Atento a qualquer som ou movimento, fui até o riacho. Quando localizei um ponto de onde eu não seria visto, despi-me e entrei na água, que estava fria e revigorante. Fiquei ali sem pensar, tentando esquecer o nervosismo que eu começava a sentir, apreciando a cor das folhas lá no alto.

De repente comecei a me lembrar de um sonho da noite anterior. Eu estava sentado numa pedra... alguma coisa estava acontecendo... Wil estava presente... e outras pessoas. Vagamente me lembrei de um campo azul e dourado. Esforcei-me mais um pouco, mas não consegui lembrar de mais nada.

Abrindo um tubo de sabão, reparei que as árvores e as moitas à minha volta pareciam ampliadas. De alguma forma, o ato de recordar o meu sonho me energizara. Sentindo-me mais leve, tomei meu banho e lavei a louça depressa. Quando já estava terminando, reparei que, à minha direita, havia uma pedra muito parecida com aquela em que eu estava sentado no sonho: Parei e examinei-a com mais atenção. Era uma laje com cerca de três metros de diâmetro, exatamente com a mesma forma e a mesma cor da do sonho.

Minutos depois, eu já havia desmontado a barraca, arrumado a mochila e escondido minhas coisas embaixo de uns galhos caídos. Depois, voltei para sentar na pedra e tentar me lembrar do campo azul e da posição exata que Wil ocupava no sonho. Ele esteve à minha direita, um pouco atrás de mim. Nesse instante, me veio à mente uma imagem nítida de seu rosto, como numa foto em dose. Esforçando-me para reter os detalhes exatos, recriei sua imagem e coloquei-a no campo azul.

Segundos depois, senti uma pressão no plexo solar e novamente estava passando pelo meio das cores. Quando parei, o ambiente era de um tom de azul pálido e luminoso, e Wil estava a meu lado.

- Graças a Deus você voltou! - disse ele, aproximando-se.

- Ficou tão denso que não consegui achá-la.

- O que aconteceu antes? - perguntei. - Por que o zumbido ficou tão forte?

- Não sei.

- Onde estamos agora?

- Aqui é um nível especial onde parece que os sonhos acontecem.

Olhei para o azul à nossa volta. Nada se movia.

- Você estava aqui?

- Estava, vim aqui antes de encontrar você lá na cascata, embora na hora eu não soubesse por quê.

Ficamos estudando outra vez a paisagem por algum tempo, depois Wil perguntou:

- O que lhe aconteceu quando você voltou?

Animado, comecei a descrever tudo que acontecera, focali­zando primeiro a previsão de Joel a respeito do colapso do meio ambiente e da sociedade. Wil ouviu atentamente, digerindo todos os aspectos do ponto de vista de Joel.

- Ele estava exprimindo o Medo - comentou Wil. Balancei a cabeça.

- Concordo. Acha que isso tudo que ele disse está aconte­cendo mesmo? - perguntei.

- Acho que o perigo é que um monte de gente está começando a acreditar que esteja. Lembrando o que dizia a Nona Visão: à medida que avança, o renascimento espiritual precisa superar uma polarização do Medo.

Encarei Wil.

- Conheci outra pessoa, uma mulher.

Wil me ouviu contar a experiência com Maya, particular­mente os detalhes da minha entorse e os métodos terapêuticos de Maya.

Quando terminei, ele ficou com o olhar distante, pensativo.

- Acho que Maya é a mulher da visão de Williams ­acrescentei. - A mulher que tentava evitar a guerra com os americanos nativos.

- Talvez a concepção de tratamento dela seja a chave para se lidar com o Medo - retrucou Wil.

Balancei a cabeça para que ele continuasse.

- Isso tudo faz sentido - disse ele. - Olhe o que já aconteceu. Você veio. aqui procurando Charlene e conheceu David, que disse que a Décima era uma maior compreensão do renascimento espiritual que está ocorrendo neste planeta, uma compreensão que atingimos quando entendemos a relação que temos com a dimensão da Outra Vida. Disse que a Visão tem algo a ver com o esclarecimento da natureza das intuições, de retermos essas intuições em nossa mente, de enxergarmos nosso caminho sincrônico mais plenamente.

- Depois, você descobriu como reter suas intuições assim e me encontrou na cascata, e eu confirmei que, quando não deixamos escapar as intuições, nossas próprias imagens mentais, estamos empregando o modo operacional da Outra Vida, e os seres humanos estão se alinhando a essa outra dimensão. Em seguida, estávamos assistindo à Revisão de Vida de Williams, assistindo à agonia dele por não se lembrar de uma coisa que ele queria fazer, que era se juntar a um grupo de pessoas e vir ajudar a enfrentar esse Medo que está ameaçando nosso despertar espiritual.

- Ele diz que precisamos entender esse Medo para poder fazer alguma coisa com ele, e aí a gente se separa e você encontra um jornalista, Joel, que leva um bom tempo enunciando o quê? Uma visão medrosa do futuro. Na verdade, o medo da destruição completa da civilização.

- Então, obviamente, em seguida você encontra uma mulher que só vive para curar e promove a cura estimulando a memória das pessoas para ajudá-las a se desbloquearem, ajudan­do-as a ver por que estão aqui neste planeta. Essa recordaçãotem que ser a chave.

Um movimento súbito chamou nossa atenção. Outro gru­po espiritual parecia estar se formando a uns trinta e cinco metros dali.

- Esse grupo deve estar aqui para ajudar alguém a sonhar - disse Wil.

Olhei sério para ele.

- Eles nos ajudam a sonhar?

- De certa forma, sim. Havia outros espíritos aqui quando você sonhou ontem à noite.

- Como você sabe que sonhei?

- Quando você voltou de repente para o plano físico, tentei encontrá-lo, mas não consegui. Então, enquanto esperava, come­cei a ver seu rosto e vim para cá. Da última vez que estive aqui, não entendi bem o que estava havendo, mas agora acho que entendo o que acontece quando a gente sonha.

Meneei a cabeça, sem entender nada. Ele apontou para os espíritos.

- Aparentemente tudo acontece em sincronia. Esses seres que você está vendo devem estar aqui, como eu estava, por coincidência e agora devem estar esperando para ver quem chega em sonho.

O zumbido de fundo ficou mais alto e eu não consegui responder. Estava confuso, atordoado. Wil chegou mais perto e tocou de novo nas minhas costas.

- Fique aqui comigo! - disse. - Há alguma razão para termos que ver isso.

Esforcei-me para limpar a mente, então notei outra forma se materializando ao lado dos espíritos. Primeiro pensei que fos­sem outros aparecendo, mas depois me dei conta de que a for­mação era muito maior do que qualquer coisa que eu já havia visto: uma cena inteira sendo projetada à nossa frente, feito um holograma, com personagens, cenário, diálogo e tudo. Um único indivíduo parecia estar no centro da ação, um homem vagamente familiar. Concentrando-me um pouco, vi que a pessoa à nossa frente era Joel.

Enquanto assistíamos, a cena foi-se desenrolando, como um filme. Esforcei-me para acompanhar, mas ainda estava meio zonzo; não conseguia entender direito o que se passava. Quando as coisas foram acontecendo e o diálogo foi ficando mais intenso, os espíritos e o jornalista foram se aproximando. Algum tempo depois, parecia que a representação tinha acabado, e todos desapareceram.

- o que está havendo? - perguntei.

- O indivíduo no centro da cena estava sonhando ­respondeu Wil.

- Era Joel, o homem de quem lhe falei - retruquei.

Wil virou-se para para mim.

- Tem certeza?

- Tenho.

- Você entendeu esse sonho que ele teve?

- Não, não consegui bem. O que aconteceu?

- O sonho era sobre uma guerra. Ele estava fugindo de uma cidade bombardeada, tudo explodindo em volta dele, e ele correndo para salvar a pele, sem pensar em mais nada a não ser segurança e sobrevivência. Quando conseguiu chegar no alto de um morro, escapando daquele horror, olhou para a cidade lá embaixo e lembrou que havia recebido ordens para encontrar outro grupo de soldados e fornecer uma peça secreta para um novo artefato que neutralizaria as armas do inimigo. Horrorizado, ele então se deu conta de que como não havia aparecido, os soldados e a cidade agora estavam sendo sistematicamente des­truídos diante de seus olhos.

- Um pesadelo - comentei.

- É, mas tem um significado. Quando sonhamos, incons­cientemente nos transportamos para este nível de sono, e outros espíritos vêm nos ajudar. Não se esqueça de que uma das funções dos sonhos é esclarecer como devemos lidar com determinadas situações de nossa vida. A Sétima Visão diz que para interpretar os sonhos devemos superpor a trama do sonho à situação que estamos enfrentando.

Virei-me e olhei para Wil.

- Mas qual é o papel dos espíritos?

Tão logo fiz essa pergunta, recomeçamos a nos mover. Wil continuou com a mão em minhas costas. Quando paramos, a luz estava mudando para um verde vivo, mas eu via ondas douradas circulando à nossa volta. Quando focalizei com mais intensidade, as riscas douradas viraram espíritos individuais.

Olhei para Wil, que dava um largo sorriso. Esse local parecia ter clima de celebração e alegria. Enquanto eu olhava os espíritos, vários vieram para a nossa frente e formaram um grupo. Tinham um rosto largo e sorridente, ainda difícil de focalizar por um segundo que fosse.

- São tão cheios de amor - disse eu.

- Veja se consegue captar um pouco do conhecimento deles - aconselhou Wil.

Quando me concentrei neles com essa intenção, percebi que esses espíritos tinham uma ligação com Maya. Na verdade, estavam extasiados com as revelações de Maya a seu próprio respeito, especialmente com seu entendimento da preparação de vida que seus pais lhe proporcionaram. Parecia que sabiam que Maya experimentara uma revisão integral da Sexta Visão e estava prestes a lembrar por que nascera.

Virei-me para ficar de frente para Wil, que comunicou que ele, também, estava vendo as imagens.

Nesse instante ouvi de novo o zumbido; meu estômago se contraiu. Wil ficou segurando firme o meu ombro e as minhas costas. Quando o som cessou, minha vibração caiu drasticamente, e olhei para o grupo espiritual, tentando me abrir para me ligar à sua energia, para ver se realçava a minha. Para meu espanto, o grupo de repente saiu de foco e foi se colocar num ponto duas vezes mais longe.

- O que aconteceu? - perguntei.

- Você tentou se ligar àqueles espíritos para aumentar a sua energia - respondeu Wil, em vez de se recolher e se ligar diretamente à energia de Deus dentro de você. Eu já fiz isso uma vez. Os espíritos não permitem que você os confunda com a fonte divina. Sabem que esse tipo de identificação não ajuda o seu crescimento.

Concentrei-me e minha energia voltou.

- Como a gente os faz voltar? - perguntei.

Na hora em que falei, eles voltaram à posição original.

Wil e eu nos entreolhamos, e aí ele ficou fitando o grupo com uma expressão espantada.

- O que você está vendo? - perguntei.

Ele apontou para os espíritos sem pestanejar, e eu me concentrei também no grupo espiritual, tentando captar nova­mente um pouco de seu conhecimento. Depois de algum tempo, comecei a ver Maya. Ela estava imersa num ambiente verde. Suas feições eram ligeiramente diferentes e brilhavam intensamente, mas eu tinha certeza absoluta de que era ela. Enquanto eu focalizava seu rosto, uma imagem holográfica apareceu à nossa frente - uma imagem de Maya outra vez na época da guerra do século XIX, diante de uma cabana de madeira com várias pessoas, animada com a idéia de deter o conflito.

Ela parecia estar sentindo que o sucesso de uma façanha como aquela era apenas uma questão de se atingir a energia. Isso só seria alcançado se as pessoas certas se unissem em torno de uma mesma intenção, pensou. O mais atento era um jovem ricamente vestido. Vi que ele era aquele homem corpulento que depois foi morto com ela. Avançando, a visão passou para aquela sua tentativa frustrada de dialogar com os líderes militares, e depois para a mata, onde ela e o jovem morreram.

Enquanto assistíamos, ela despertou na Outra Vida e passou sua existência em revista, pasma diante da obstinação, da inge­nuidade até, com que lutara por aquele objetivo de impedir a guerra. Sabia que muitos estavam certos: ainda não era a hora. As lembranças que tínhamos da Outra Vida ainda não eram sufi­dentes para que realizássemos tal façanha. Por enquanto.

Após a revista, vimos Maya passar para o ambiente verde, cercada pelo mesmo grupo de espíritos que estava agora diante de nós. Espantosamente, a expressão daqueles rostos todos parecia ter uma coisa em comum. Num determinado nível, por trás de suas feições, todos se pareciam com Maya.

Olhei para Wil com uma expressão interrogativa. - Esse é o grupo espiritualde Maya - disse ele. - O que você quer dizer? - perguntei.

- É um grupo de espíritos que têm a mesma vibração que ela - disse ele animado. - Isso faz o maior sentido. Uma das jornadas que eu fiz, antes de encontrar você, foi para outro grupo que, de certa forma, se parecia com você. Acho que era o seugrupo espiritual.

Antes que eu pudesse abrir a boca, houve um movimento no grupo espiritual à nossa frente. Novamente surgia uma imagem de Maya. Ainda rodeada por seu grupo no ambiente verde, parecia que ela estava calmamente parada diante de uma luz branca muito intensa, semelhante à que havíamos visto na Revisão de Vida de Williams. Ela estava consciente de que havia algo de muito profundo acontecendo. Sua capacidade de se deslocar na Outra Vida diminuíra, e sua atenção se voltava novamente para a Terra. Ela estava vendo sua futura mãe, recém-casada, senta­da numa varanda, se perguntando se teria saúde para enfren­tar uma gravidez.

Maya estava começando a se dar conta do progresso que faria se nascesse daquela mãe. A mulher se preocupava profun­damente com a própria saúde e, assim, bem depressa iria gerar um interesse pelas questões de saúde na mente da criança. Seria o ambiente perfeito para despertar o interesse por medicina e pela arte de curar. E, se ela crescia com a psicologia daquela mulher, aquele não seria um conhecimento apenas teórico, em que o ego inventa uma teoria fantástica e jamais a confronta com os desafios da vida real. Maya sabia que ela própria tinha uma tendência para a fantasia e que já pagara um preço alto por essa falha. Isso não tornaria a acontecer, não com aquela lembrança inconsciente do que acontecera no século XIX a lembrar-lhe que fosse muito cautelosa. Não, ela iria com calma, se isolaria mais, e o ambiente definido por aquela mulher seria perfeito.

O olhar de Wil cruzou com o meu.

- Estamos vendo o que aconteceu quando ela começou a contemplar a vida atual dela - disse ele.

Maya agora via como poderia ser o relacionamento dela com a mãe. Ela cresceria convivendo com a negatividade da mãe, com seus medos, sua tendência .a culpar os médicos, e essa convivência despertaria seu interesse pela ligação mente/corpo e pela responsabilidade que o paciente tem em sarar, e ela de­volveria essa informação à mãe, que então poderia se envolver na própria recuperação. A mãe seria sua primeira paciente, depois um apoio-chave, um exemplo importante dos benefícios da nova medicina.

O foco de Maya passou para o futuro pai, sentado ao lado da mulher no balanço. De vez em quando, a mulher fazia uma pergunta e ele respondia com uma frase lacônica. O que ele queria na realidade era ficar ali sentado contemplando, sem falar. A mente dele estava literalmente explodindo com possibilidades de pesquisas e perguntas exóticas sobre biologia que, ele sabia, nunca haviam sido feitas antes - em particular a relação entre inspiração e o sistema imunológico. Maya viu as vantagens desse desligamento. Com o pai, poderia trabalhar a tendência que tinha para se enganar; teria de pensar por si mesma e ser realista, desde o início. Um dia, ela e o pai poderiam estabelecer uma comunicação de base científica, e ele ficaria mais aberto e lhe daria um embasamento técnico com o qual fundamentar seus próprios métodos.

Ela viu claramente que seu nascimento poderia ser vantajoso também para seus pais. Ao mesmo tempo em que seus pais estavam estimulando um interesse terapêutico antigo, ela também os estaria puxando para uma direção predestinada: a mãe para uma aceitação do seu papel pessoal de evitar as doenças, o pai para a superação de sua tendência a se esconder dos outros e viver apenas em sua cabeça.

Enquanto assistíamos, a visão de Maya passou da previsão de seu nascimento para o que poderia lhe acontecer na infância. Ela viu uma multidão de pessoas específicas entrando em sua vida na hora certa para estimular o aprendizado e a experiência. Na faculdade de medicina, só os pacientes e os médicos certos cruzariam seu caminho para orientá-la na direção de uma prática alternativa em sua profissão.

Sua visão mostrou seu encontro com a sócia da clínica e a adoção de um novo modelo terapêutico. Então, revelou outra coisa; ela se. envolveria num despertar mais global. Pudemos ver ali sua descoberta das Visões.e sua entrada para um grupo específico, um dos muitos grupos independentes que começariam a gravitar juntos pelo mundo inteiro. Esses grupos lembrariam quem eles eram num plano mais elevado e ajudariam a superar a polarização do Medo.

De repente ela se viu tendo uma conversa importante com um homem. Ele era grande, atlético, forte e vestia um uniforme militar. Para espanto meu, percebi que ela sabia que ele era o homem com quem fora morta no século dezenove. Concentrei-me profundamente nele e levei outro choque. Aquele era o mesmo homem que eu havia visto na Revisão de Vida de Williams, o colega de trabalho que ele não pudera ajudar a despertar.

Com isso, a visão de Maya pareceu se ampliar a um nível que ultrapassava minha capacidade de compreensão, seu corpo se integrando à luz ofuscante do fundo. A única coisa que consegui captar foi que esta visão pessoal do que ela poderia realizar com esse nascimento estava sendo integrada a uma visão que abrangia toda a história e o futuro da humanidade. Ela parecia estar vendo sua vida em potencial de uma perspectiva final, situada precisamente no contexto geral de onde a humanidade vinha e para onde estava indo. Eu sentia tudo isso, mas não conseguia ver propriamente as imagens.

Finalmente a visão de Maya pareceu terminar, e pudemos vê-la novamente no ambiente verde ainda rodeada por seu grupo. Agora eles assistiam a uma cena na Terra. Aparentemente os futuros pais de Maya haviam realmente tomado a decisão de ter um filho e estavam realizando o ato de amor que resultou na concepção dela.

O grupo espiritual de Maya ganhara mais energia e agora se mostrava como um grande redemoinho de um tom pálido de dourado em movimento, cuja luminosidade vinha da luz brilhante do fundo. Pude sentir essa energia como um nível de amor e vibração profundamente verdadeiro, quase orgásmico. Lá em­baixo, o casal se abraçava, e, no momento do orgasmo, uma energia esverdeada pareceu escapar da luz, atravessando Maya e seu grupo espiritual, e penetrar no casal. Com um impulso orgásmico, a energia os uniu, atraindo o esperma e o óvulo para aquele encontro predestinado.

Ali assistindo, vimos o momento da concepção e a milagrosa união de duas células formando uma. Lentamente a princípio, depois mais rápido, as células foram se dividindo e diferenciando, fInalmente formando um ser humano. Quando olhei para Maya, percebi que ela ia fIcando menos nítida após cada divisão celular. Finalmente, quando o feto se desenvolveu, ela desapareceu totalmente. Seu grupo espiritual ficou.

Aparentemente havia mais coisas para se conhecer sobre aquilo que acabávamos de testemunhar, mas desconcentrei-me e perdi-as. Então, de repente, o grupo espiritual também desapare­ceu e Wil e eu fIcamos ali olhando um para o outro. Ele parecia excitadíssimo.

- O que foi isso que vimos? - perguntei.

- Foi todo o processo do nascimento de Maya para esta vida atual - explicou Wil - conservado na memória do grupo espiritual dela. Conseguimos ver tudo: o conhecimento que ela teve de quem seriam seus pais, o que ela achava que deveria ser realizado, depois a maneira específica em que passou para a dimensão física na concepção.

Fiz um gesto de cabeça para que Wil continuasse.

- O ato de amor propriamente dito abre uma porta da Outra Vida para a dimensão terrena. Parece que, os grupos espirituais existem num estado de amor extremo, mais extremo do que o que você e eu somos capazes de vivenciar, chegando a ser orgásmico por natureza. O clímax sexual abre essa porta para a Outra Vida, e o que experimentamos como orgasmo é simples­mente um lampejo do nível de amor e vibração da Outra Vida na hora em que a porta se abre e a energia passa, potencialmente trazendo uma nova alma. Vimos isso acontecer. A união sexual é um momento sagrado no qual uma parte do Céu flui para a Terra.

Balancei a cabeça, pensando nas implicações do que eu havia visto, e falei:

- Maya aparentemente sabia como seria a vida dela se nascesse daqueles pais.

- Sim, parece que antes de nascer, nós todos temos uma visão de como poderá ser a nossa vida, completada com reflexões sobre nossos pais e sobre nossa tendência a nos engajar em dramatizações de controle específicas, e até sobre como podemos trabalhar essas dramatizações com essespais e nos preparar para o que desejamos realizar.

- Vi quase tudo isso - disse eu -, mas foi estranho. Comparando com o que ela me contou sobre a vida real dela, essa visão anterior foi mais perfeita do que o que aconteceu de fato - por exemplo, o relacionamento dela com a família. Esse relacionamento não saiu bem do jeito que ela queria. A mãe nunca a entendeu, nem enfrentou a própria doença, e o pai era tão desligado que Maya só soube o que ele estava pesquisando depois que ele morreu.

- Mas isso faz sentido - disse Wil. - A visão aparente­mente é a orientação ideal para o que nosso eu mais elevado pretende que aconteça na vida, é o cenário ideal, por assim dizer, se todos nós seguíssemos religiosamente nossas intuições. O que acaba acontecendo é uma aproximação dessa visão, o melhor que se pode fazer, dadas as circunstâncias. Mas isso tudo é mais informação da Décima Visão sobre a Outra Vida que esclarece nossa experiência espiritual na Terra, sobretudo a percepção das coincidências e o modo como a sincronicidade realmente opera.

- Quando uma intuição ou um sonho nos manda tomar um rumo determinado e seguimos essa orientação, vão aconte­cendo coisas que parecem coincidências mágicas. Sentimo-nos mais vivos e animados. Os acontecimentos parecem predestinados, como se estivessem programados para acontecer.

- o que acabamos de ver põe isso tudo numa perspectiva mais elevada. Quando temos uma intuição, uma imagem mental de um futuro possível, na verdade estamos tendo lampejos da memória de nossa Visão de Nascimento, do que desejaríamos fazer numa determinada etapa de nossa jornada. Pode não ser uma coisa exata, porque as pessoas têm livre-arbítrio, mas, quando acontece algo parecido com nossa visão original, ficamos inspirados porque reconhecemos que estamos no caminho que pretendíamos seguir desde sempre.

- Mas como o nosso grupo. espiritual se encaixa nisso? - Somos ligados a ele. Ele nos conhece. Compartilha de nossas Visões de Nascimento, nos segue pela vida e fica conosco quando passamos em revista o que aconteceu. O grupo funciona como um reservatório de lembranças, guardando o conhecimento de quem somos durante nossa evolução.

Ele se interrompeu uni instante, fitando-me nos olhos.

- E aparentemente, quando estamos na Outra Vida e um espírito do nosso grupo nasce no plano físico, fazemos o mesmo em relação a ele. Nós nos tomamos parte do grupo espiritual que o apóia.

- Então, enquanto estamos na Terra - perguntei -, nosso grupo espiritual nos orienta e nos faz intuir as coisas?

- Não, absolutamente. Pelo que pude captar dos grupos espirituais que vi, os sonhos e as intuições são nossos e vêm de uma ligação mais elevada com o divino. Os grupos espirituais apenas nos enviam uma energia extra para nos animar de alguma forma, que ainda não consegui identificar qual é. Mas, animan­do-nos assim, os grupos nos ajudam a lembrar mais rápido o que já sabíamos.

Eu estava fascinado.

- Então isso explica o que estava acontecendo com o meu sonho e o de Joel.

- Sim. Quando sonhamos, nos reunimos com nosso grupo espiritual e somos estimulados a recordar o que realmente desejávamos fazer naquela situação de vida. Temos lampejos de nossa intenção original. Aí, quando voltamos ao plano físico, retemos essa lembrança, que às vezes se expressa simbolicamente por arquétipos. No seu caso, como você é mais aberto es­piritualmente, conseguiu lembrar o conteúdo do sonho bem literalmente. Lembrou que, em sua intenção original, você viu nosso reencontro quando mentalizou meu rosto, então sonhou quase exatamente isso.

- Joel, por outro lado, era menos aberto; teve um sonho mais elaborado e simbólico. Estava com a memória confusa, então a mente consciente dele elaborou a mensagem sob o simbolismo da guerra, passando-lhe apenas a mensagem geral de que, na Visão de Nascimento, ele pretendia ficar e ajudar a enfrentar o atual problema no vale, deixando claro que, se fugisse, iria se arrepender.

- Então os grupos espirituais estão sempre nos enviando energia e torcendo para que cada um de nós se lembre da própria Visão de Nascimento? - perguntei.

- Isso mesmo.

- E foi por isso que o grupo de Maya estava tão feliz? Wil ficou mais sério.

- O grupo estava feliz por estar recordando por que ela nasceu daqueles pais, vendo como as vidas dela a prepararam para uma carreira dedicada a curar as pessoas. Mas... essa foi só a primeira parte da Visão de Nascimento dela. Ela ainda tem mais coisas a lembrar.

- Vi essa parte quando ela reencontrou na vida atual o homem com quem foi morta no século XIX. Mas havia outras partes que não consegui entender. E você, entendeu tudo?

- Tudo, não. Teve outra parte sobre a intensificação do Medo. Confirmava que ela faz .parte do grupo dos sete que Williams viu voltando. E ela viu o grupo, podendo lembrar uma visão maior que está por trás das nossas intenções individuais, uma coisa que precisamos lembrar se quisermos dissipar o Medo.

Wil e eu ficamos um bom tempo nos entreolhando, depois tomei a sentir no corpo uma vibração, daquela experiência. Aí, uma imagem do homem corpulento com quem Maya viu que se reunira me veio à mente. Quem era ele?

Eu já ia mencionar a imagem a Wil, quando senti um aperto no estômago que me deixou sem ar. Na mesma hora, outro guincho altíssimo me fez cair para trás. Como da outra vez, tentei alcançar Wil e vi o rosto dele saindo de foco. Esforcei-me para olhar mais uma vez, aí me desequilibrei e tomei a despencar em queda livre.

 

 

ABRINDO-SE AO CONHECIMENTO

 

 

DROGA, PENSEI, DEITADO na pedra, a aspereza da rocha incomodando minhas costas. Estava de novo no riacho. Fiquei um bom tempo contemplando o céu cinzento, agora ameaçando chuva, ouvindo a água correr. Ergui-me apoiado num cotovelo e olhei em volta, imediatamente sentindo que meu corpo estava pesado e cansado, como daquela última vez em que saí da outra dimensão.

Desajeitadamente me levantei, sentindo o tornozelo latejar um pouco, e voltei mancando para a floresta. Tirei os galhos de cima da minha mochila e preparei alguma coisa para comer, fazendo tudo muito devagar, sem pensar. Mesmo enquanto eu comia, minha mente surpreendentemente continuava vazia, como depois de uma longa meditação. Aí, lentamente, comecei a incrementar minha energia, inspirando profundamente e retendo o. ar nos pulmões diversas vezes. De repente já estava ouvindo o zumbido novamente. Enquanto ouvia, outra imagem me veio à mente. Eu estava indo para oeste na direção do som, à procura do que o causava.

A idéia me apavorou e me veio aquela necessidade antiga de fugir. Na mesma hora, o zumbido cessou, e ouvi um barulho de folhas farfalhando atrás de mim. Sobressaltado, olhei em volta e vi Maya.

- Você sempre aparece na hora certa? - gaguejei.

- Aparecer! Está maluco? Ando procurando você por todo canto. De onde você veio?

- Eu estava lá na beira do riacho.

- Não, não estava, não; estive ali procurando. - Ela ficou me encarando, depois olhou para o meu pé. - Como vai o tornozelo?

Dei um sorriso forçado.

- Está bom. Escute aqui, estou precisando lhe falar sobre uma coisa.

- Eu também estou precisando falar com você. Alguma coisa muito estranha está acontecendo. Um guarda florestal me viu indo para a cidade ontem à noite, e eu lhe contei o que aconteceu com você. Parecia que ele estava querendo sigilo sobre isso, e ficou insistindo em mandar um caminhão vir pegar você hoje de manhã. O jeito que ele falou foi tão estranho que resolvi vir na frente, mas ele deve estar chegando a qualquer momento.

- Então precisamos ir embora - disse eu, correndo para juntar as coisas.

- Espere aí!. Me conte o que está acontecendo. Ela parecia apavorada.

Parei e olhei para ela.

- Tem alguém que eu não sei quem é fazendo uma experiência qualquer aqui no vale. Acho que minha amiga Charlene está envolvida nisso de alguma maneira, ou deve estar em perigo. Alguém da Guarda Florestal deve ter aprovado isso em segredo.     

Ela arregalou os olhos, tentando entender aquilo tudo. Peguei minha mochila e dei a mão a ela.

- Me acompanhe um pouco. Por favor. Há mais coisas que preciso lhe contar.

Ela balançou a cabeça e pegou sua mochila, e, enquanto caminhávamos para leste seguindo o rio, contei-lhe a história inteira, desde que encontrei David e Wil até ter visto a Revisão de Vida de Williams e ouvido Joel. Quando cheguei à parte da Visão de Nascimento dela, fui me sentar numas pedras. Ela se encostou numa árvore à minha direita.

- Você também está envolvida nisso - disse eu. ­

Naturalmente já deve saber que supostamente esta sua vida gira em torno da introdução de técnicas de terapias alternativas, mas não é só isso que você pretende fazer. Você deve fazer parte desse grupo que Williams viu se formando.

- Como sabe de tudo isso?

- Wil e eu assistimos à sua Visão de Nascimento. Ela meneou a cabeça e fechou os olhos.

- Maya, cada um de nós vem aqui com uma visão de como coincidências que nos acontecem têm a função de nos manter no bom caminho, de nos fazer lembrar como queríamos que nossa vida corresse.

- E o que mais eu queria fazer?

- Não sei exatamente; não consegui entender. Mas era alguma coisa ligada a esse Medo coletivo que vem crescendo na consciência dos homens. Essa experiência aqui é conseqüência do Medo... Maya, você pretendia usar seus conhecimentos tera­pêuticos para ajudar a descobrir o que está acontecendo neste vale. Você tem que se lembrar!

Ela ficou em pé e desviou a vista.

- Ah, não, você não pode botar essa responsabilidade nas

minhas costas! Eu não me lembro de nada disso. Estou fazendo exatamente o que deveria estar fazendo como médica. Odeio esse tipo de intriga! Está entendendo? Odeio! Acabei conseguindo ter a clínica do jeito que eu queria. Você não pode esperar que eu me envolva com tudo isso. Arranjou a pessoa errada.

Fiquei olhando para ela, tentando pensar em outra coisa pa­ra dizer. Enquanto ela estava calada, ouvi novamente o zumbido.

- Está ouvindo essebarulho, Maya, uma dissonância no ar, um zumbido? É a experiência. Está se ouvindo agora. Tente escutar!

Ela tentou um pouco e disse:

- Não estou ouvindo nada..

Agarrei o braço dela.

- Tente incrementar sua energia!

- Ela desvencilhou-se de mim.

- Não estou ouvindo zumbido nenhum!

Respirei fundo.

- Está certo, sinto muito. Sei lá, talvez eu esteja enganado. Talvez isso não seja para acontecer assim.

Ela ficou olhando para mim.

- Tem um conhecido meu que trabalha na Chefatura de Polícia. Vou tentar entrar em contato com ele para você. É só o que posso fazer.

- Não sei se isso vai adiantar - disse eu.- Parece que não é todo mundo que consegue ouvir essesom.

- Quer que eu fale com esse meu conhecido?

- Quero, mas diga a ele para fazer uma investigação independente. Não sei se ele pode confiar em todo mundo da Guarda Florestal.

Tomei a pegar a mochila.

- Espero que você compreenda - disse ela. - Não posso me envolver com isso de jeito nenhum. Sinto que aconteceria uma coisa horrível.

- Mas isso é só por causa do que houve da outra vez em que você tentou isso, no século XIX, aqui nesse vaIe. Lembra de alguma coisa sobre isso?

Ela tomou a fechar os olhos, sem querer escutar.

De repente eu me vi nitidamente de calças de couro, subindo uma montanha correndo, puxando um cavalo de carga. Era a mesma imagem que eu havia visto antes. O homem da montanha era eu! Vi que consegui chegar no alto da montanha e parei para olhar para trás. Dali eu via a cascata e a garganta do outro lado.

Lá estavam Maya, o índio e o jovem representante do congresso. Como na outra visão, a batalha estava acabando de começar. Fiquei nervoso, puxei o cavalo e fui em frente, incapaz de ajudá-los a evitar aquele destino.

Afastei da mente aquelas imagens.

- Tudo bem - disse eu desistindo. - Sei como se sente. Maya se aproximou.

- Trouxe aqui mais água e comida. O que está plane­jando fazer?

- Vou seguir para leste... pelo menos por algum tempo. Sei que Charlene estava indo nessa direção.

Ela olhou para o meu pé.

- Tem certeza de que seu tornozelo vai agüentar? Cheguei mais perto e disse:

- Ainda não lhe agradeci pelo que você fez. Meu tornozelo vai ficar bom, acho eu, só está um pouquinho inflamado. Acho que nunca vou saber qual era a gravidade do caso.

- Quando é assim, a gente nunca sabe.

Balancei a cabeça, peguei minha mochila e fui seguindo para leste, olhando para trás uma vez para ver Maya. Por um momento, ela pareceu ter um ar culpado, depois uma expressão de alívio se estampou em seu rosto.

 

Fui indo na direção do zumbido, sem perder de vista o riacho à minha esquerda, parando apenas para descansar o pé. Por volta do meio-dia, tendo cessado o ruído, parei para almoçar e avaliar a situação. Meu tornozelo estava inchando um pouco e descansei uma hora e meia antes de seguir viagem. Após fazer apenas mais mil e seiscentos metros, fui vencido pelo cansaço e parei nova­mente para descansar. No meio da tarde, eu procurava um lugar para acampar.

Eu estava passando por uma mata fechada à margem do riacho, porém mais adiante a paisagem se abria numa série de meias-laranjas cobertas de florestas seculares - árvores de trezentos a quatrocentos anos. Por entre as plantas, vi uma grande crista de morro se erguendo a sudoeste, a uns mil e seiscentos metros.

Perto do topo da primeira colina, avistei um platô coberto de relva que parecia o lugar ideal para se passar a noite. Indo para lá, um movimento nas árvores me chamou a atenção. Escondi-me atrás de um rochedo e olhei. O que era? Um veado? Uma pessoa? Esperei um pouco, depois fui indo para o norte. Quando cheguei mais perto, vi um homem corpulento uns cem metros ao sul do platô, aparentemente também se preparando para acampar. Bem agachado e movendo-se com habilidade, ele agilmente ergueu uma pequena barraca e camuflou-a com galhos. Por um instante, achei que poderia ser David, mas esse homem tinha gestos diferentes e era muito grande. Então, perdi-o de vista.

Esperei bastante ali mesmo e resolvi seguir para o norte até não poder mais ser avistado. Mal tinha caminhado cinco minutos quando o homem surgiu à minha frente.

- Quem é você? - perguntou.

Eu lhe disse meu nome e resolvi ser franco.

- Estou procurando uma amiga.

- Aqui é perigoso - avisou. - Acho melhor você voltar. Isso tudo é propriedade particular.

- O que vocêestá fazendo aqui? - perguntei.

Ele estava calado, com o olhar parado.

Então me lembrei do que David havia me contado.

- Você é Curtis Webber? - perguntei.

Ele ficou me encarando mais um pouco, e de repente abriu um sorriso.

- Você conhece o David Águia Solitária!

- Só tivemos uma conversa rápida, mas ele me contou que você estava aqui e mandou lhe dizer que estava vindo para o vale e iria encontrá-lo.

Curtis balançou a cabeça e olhou para a sua barraca.

- Está ficando tarde, e a gente precisa se esconder. Vamos lá para a minha barraca. Você pode passar a noite lá.

Fui atrás dele descendo uma vertente e subindo por outra onde aquelas árvores maiores nos davam cobertura. Enquanto eu armava minha barraca, ele acendeu o fogareiro dele e abriu uma lata de atum. Eu contribuí com um pacote de pão que Maya me dera.

- Você falou que está procurando uma pessoa - disse Curtis. - Quem?

Rapidamente lhe contei o desaparecimento de Charlene e que David a havia visto andando pelo vale; e também que eu achava que ela devia estar vindo nessa direção. Não falei do que tinha acontecido na outra dimensão, mas mencionei ter ouvido o zumbido e visto os jipes.

- O zumbido - respondeu ele - vem de um aparelho para gerar energia; estão fazendo experiências aqui com esse aparelho por algum motivo. Isso eu garanto. Mas não sei se a experiência está sendo conduzida por um serviço secreto do governo ou por um grupo privado. A maioria dos guardas florestais parece por fora do que está acontecendo; mas os administradores, eu não sei.

- Você já falou sobre isso com a mídia ou com as autoridades locais? - perguntei.

- Ainda não. O fato de não ser todo mundo que ouve o zumbido é um problema. - Ele olhou para o vale. - Se ao menos eu soubesse onde eles estão. Somando o que é propriedade particular com o que é Parque Florestal, dá uma área de milhares de hectares onde eles podem estar. Acho que querem fazer a experiência e dar o fora antes que alguém saiba o que aconteceu.

Isto é, se puderem evitar uma tragédia.

- Como assim?

- Eles poderiam destruir totalmente esse lugar, torná-lo uma

zona misteriosa, outro Triângulo das Bermudas onde as leis da física vivem mudando. - Ele me encarou - O que eles sabem fazer é incrível. Quase ninguém tem idéia .da complexidade dos fenômenos eletromagnéticos. Nas mais modernas teorias dos supercondutores, por exemplo, é preciso partir do princípio que essa radiação atravessa nove dimensões só para fazer a matemá­tica funcionar. Esse dispositivo tem potencial para romper essas dimensões. Pode desencadear terremotos violentos e até a desin­tegração total de certas áreas.

- Como sabe disso tudo? - perguntei. Ele ficou com um ar abatido.

- Porque, na década de 80, ajudei a desenvolver essa tecnologia. Trabalhava numa multinacional que eu achava que se chamava Deltech, mas, depois que fui despedido, descobri que Deltech era um nome fantasia. Já ouviu falar em Nikola Tesla? Bem, desenvolvemos várias teorias dele e ligamos algumas des­cobertas que ele fez a outras tecnologias fornecidas pela compa­nhia. O engraçado é que essa tecnologia se compõe de várias partes que não têm nada a ver umas com as outras, mas basicamente é assim que funciona. Imagine que o campo eletro­magnético da Terra é uma bateria gigante com capacidade para fornecer energia elétrica à vontade se puder ser feita a ligação correta. Para isso é preciso combinar um sistema supercondutivo de geração em temperatura ambiente com um inibidor de alimen­tação eletrônico complicadíssimo, que, matematicamente, aumen­ta certas ressonâncias estáticas da energia produzida. Aí a gente faz uma ligação em série com várias delas, ampliando e gerando a carga, e, quando obtém as calibragens exatas, pronto, tem uma energia praticamente de graça tirada do ar. Para começar, é preciso um pouco de eletricidade, pode ser uma célula foto elétrica ou uma bateria, mas depois a energia se autoperpetua. Um dispositivo do tamanho de uma bomba termal poderia fornecer energia para várias casas, e até para uma pequena fábrica.

- Mas há dois problemas. Primeiro, calibrar esses minige­radores é complicadíssimo. Tínhamos acesso a alguns dos maiores computadores do mundo e não conseguimos. Depois, descobri­mos que, quando tentávamos conseguir uma saída maior do que aquela relativamente pequena, aumentando o deslocamento da massa, criávamos uma grande instabilidade em volta do gerador e o espaço começava a se deformar. Não sabíamos disso na época, mas estávamos captando energia de outra dimensão, e umas coisas estranhas começaram a acontecer. Uma vez, fizemos o gerador inteiro desaparecer, exatamente como o que aconteceu na Experiência de Filadélfia.

- Acha que conseguiram mesmo fazer um navio desapare­cer e aparecer de novo em outro lugar, em 1943?

- Claro que conseguiram! Tem muita tecnologia secreta por aí, e o pessoal é esperto. No nosso caso, conseguiram suspender o trabalho da nossa equipe em menos de um mês e despedir todos nós sem falha nenhuma na segurança, porque cada equipe trabalhava numa parte estanque da tecnologia. Não que eu tenha ficado me fazendo muitas perguntas na época. Achei mesmo que os obstáculos eram grandes demais e que aquela pesquisa não tinha futuro - embora tivesse ouvido que vários funcionários antigos haviam sido contratados por outra empresa.

Ele ficou com um ar pensativo, depois prosseguiu.

- Eu sabia que queria mesmo fazer outra coisa. Agora dou consultoria a firmas pequenas de tecnologia, para ajudá-las a melhorar a capacidade de pesquisa e aproveitar o lixo, essetipo de coisa. E quanto mais faço essetrabalho, mais me convenço de que as Visões estão influenciando a economia. Nossa maneira de fazer negócios está mudando. Mas achava que ainda teríamos que trabalhar muito tempo com fontes de energia tradicionais. Há anos não pensava nas experiências com energia até me mudar para essa região. Você pode imaginar o choque que levei quando cheguei aqui nesse vale e ouvi o mesmo som - esse zumbido característico - que ouvi todos os dias durante anos enquanto trabalhamos no projeto?

- A pesquisa foi levada avante e, a julgar por essas vibrações, progrediu muito. Tentei entrar em contato com duas pessoas que podiam verificar o som e talvez ir comigo à Comis­são. de Energia ou a um comitê do Congresso, mas descobri que um já tinha falecido há dez anos e o outro, meu melhor amigo quando estava naquela empresa, também morreu. Teve um infarto ainda ontem.

A voz dele foi sumindo.

- Desde então - prosseguiu - estou aqui na escuta, tentando descobrir por que eles estão aqui nesse vale. Em geral, esse tipo de experiência é feito em qualquer laboratório. Quer dizer, por que não? A fonte de energia usada é o próprio ar, e o ar está em toda a parte. Mas aí eu me dei conta. Eles devem achar que estão quase conseguindo as calibragens perfeitas, o que significa que estão trabalhando no problema da amplificação.

Acho que estão querendo fazer a ligação com os vórtices de energia desse vale para tentar estabilizar o processo.

Uma onda de irritação passou-lhe pelo rosto.

- O que é uma loucura e totalmente desnecessário. Se realmente conseguirem ajustar as calibragens, não há por que não se usar a tecnologia em pequenas unidades. Na verdade, essa é a maneira perfeita de usá-la. O que estão tentando fazer é loucura. Estou bem por dentro para ver os perigos. Fique sabendo que eles podem estragar totalmente esse vale, ou coisa pior. Se focalizarem essa coisa nas faixas interdimensionais, quem sabe o que pode acontecer?

Ele parou bruscamente.

- Sabe do que estou falando? Já ouviu falar nas Visões? Fiquei olhando para ele e falei:

- Curtis, preciso lhe contar o que senti nesse vale. Talvez você nem acredite.

Ele balançou a cabeça e escutou atentamente enquanto eu descrevia o meu encontro com Wil e minha exploração da outra dimensão. Quando cheguei à Revisão de Vida, perguntei:

- Esse seu amigo que morreu recentemente? O nome dele era Williams?

- Isso mesmo. Era o Dr. Williams. Como sabia?

- Nós o vimos entrar na outra dimensão depois que morreu. Assistimos à Revisão de Vida dele.

Ele pareceu abalado.

- Incrível. Conheço as Visões, pelo menos em tese, e acho possível que existam outras dimensões, mas, como cientista, para mim é bem mais difícil aceitar literalmente a Nona Visão, essa idéia de que podemos nos comunicar com os mortos... Você está dizendo que o Dr. Williams ainda está vivo no sentido de que a personalidade dele está intacta?

- Sim, e ele estava pensando em você.

Ele ficou me olhando fixamente enquanto eu lhe dizia que Williams se dera conta de que Curtis e ele deveriam estar envolvidos em acabar com o Medo... e interromper a experiência.

- Não estou entendendo - disse ele. - O que ele queria dizer com Medo crescente?

- Não sei exatamente. Tem a ver com o fato de muita gente não querer acreditar na emergência de uma nova consciência espiritual. São pessoas que preferem achar que a civilização está degenerando. Isso está criando uma polarização de opiniões e crenças. A humanidade só poderá continuar evoluindo cultural­mente quando essa polarização acabar. Eu estava esperando que você se lembrasse de alguma coisa a esse respeito.

Ele me olhou com uma expressão vazia.

- Não sei nada a respeito de polarização nenhuma, mas voudeter essa experiência.

Ele ficou irritado novamente e desviou a vista.

- Parece que Williams sabia como era o processo para detê-la - disse eu.

- Bem, a gente nunca vai saber, não é?

Quando ele disse isso, vi de relance a imagem de Curtis e Williams conversando no alto do morro relvado, rodeados por muitas árvores altas.

Curtis serviu a comida ainda parecendo irritado, e fizemos a refeição em silêncio. Depois, quando me espreguicei e me encostei numa nogueira pequena, olhei para aquela meia-laranja relvada lá em cima. Uns quatro ou cinco carvalhos enormes formavam um semicírculo quase perfeito no topo.

- Por que você não acampou lá em cima? - perguntei a Curtis, apontando.

- Não sei - respondeu ele. - Cheguei a pensar, mas devo ter achado que era um lugar muito exposto, ou talvez muito forte. Chama-se Cerro de Codder. Quer ir até lá?

Elogiando a beleza da vegetação, Curtis foi subindo na frente. No alto, apesar da pouca claridade, tínhamos uma visibilidade de uns quatrocentos metros ao norte e a leste. Aí, uma lua quase cheia estava despontando acima das árvores.

- É melhor a gente sentar - aconselhou Curtis. - Não queremos ser vistos.

Ficamos um bom tempo ali sentados em silêncio, apreciando a vista e sentindo a energia. Curtis tirou uma lanterna do bolso e deixou-a no chão ao lado dele. Eu estava extasiado com a cor da folhagem de outono.

Então Curtis olhou para mim e perguntou:

- Está sentindo um cheiro de fumaça?

Imediatamente olhei para a mata, suspeitando de um incên­dio, e farejei o ar.

- Não, acho que não. - Alguma coisa na atitude de Curtis estava mudando o clima, trazendo uma sensação de tristeza ou nostalgia. - De que tipo de fumaça você está falando?

- De charuto.

Com aquele luar cada vez mais forte, deu para notar que ele estava sorrindo com um ar pensativo, cismando com alguma coisa. Então comecei a sentir o cheiro.

- O que é isso? - perguntei, tornando a olhar em volta. Ele me encarou.

- O Dr. Williams fumava uns charutos que tinham esse mesmo cheiro. É incrível ele ter morrido.

Enquanto conversávamos, o cheiro desapareceu e tirei da cabeça a experiência toda, satisfeito de ficar contemplando a relva e os grandes carvalhos ali ao lado. Nesse instante, percebi que aquele era exatamente o local em que Williams se vira encontran­do Curtis. O encontro seria exatamente ali!

Segundos depois, vi uma forma se materializando logo depois das árvores.

- Está vendo alguma coisa ali? - perguntei em voz baixa a Curtis, apontando.

Tão logo falei, a forma desapareceu.

Curtis estava se esforçando para ver.

- O quê? Não estou vendo nada.

Não respondi. De alguma forma, eu estava começando a intuir informações que me passavam, exatamente como intuíra dos grupos espirituais, só que agora a comunicação estava mais distante e confusa. Estava sentindo alguma coisa sobre a expe­riência de energia, alguma coisa confirmando as suspeitas de Curtis; as experiências tentavam realmente focalizar os vórtices dimensionais.

- Acabei de me lembrar - disse Curtis abruptamente. ­

Um dos aparelhos que o Dr. Williams estava desenvolvendo antigamente era um foco remoto, um sistema de antenas de projeção. Aposto que é o que estão usando para focalizar as aberturas. Mas como sabem onde elas ficam?

Imediatamente intuí a resposta. Alguém com uma sensibili­dade mais desenvolvida colocava as antenas em posição até eles ficarem conhecendo as variações espaciais à medida que elas iam aparecendo no computador do foco remoto. Eu não tinha idéia do que isso significava.

- Só tem um jeito - disse Curtis. - Eles vão ter que arranjar uma pessoa para posicionar as antenas. Alguém que possa sentir esses pontos de energia mais forte. Depois vão poder fazer o mapeamento energético do local e focalizar com precisão usando um raio focalizador para escanear. Provavelmente essa pessoa nem vai saber o que eles estão fazendo. - Meneou a cabeça. ­

Essa gente é perversa. Não resta dúvida. Como podem fazer isso?

Como em resposta, intuí alguma coisa que era muito vaga para que eu entendesse, mas parecia confirmar que, de fato, havia um motivo. Porém primeiro tínhamos de entender o Medo e a maneira de superá-lo.

Quando olhei para Curtis, ele parecia absorto em seus pensamentos.

Finalmente olhou para mim e disse:

- Eu gostaria muito de saber por que este Medo está aparecendo agora.

- Quando a cultura está em transição - disse eu -, certezas e pontos de vista antigos começam a cair por terra e dar lugar a novas tradições, deixando as pessoas nervosas num primeiro momento. Enquanto uns começam a despertar e desenvolver internamente o amor que os sustenta e lhes acelera o processo evolutivo, outros sentem que as coisas estão se transformando rápido demais e que estamos nos perdendo. Esses ficam mais medrosos e controladores, querendo aumentar a própria energia. Essa polarização de medo pode ser muito perigosa, porque a pessoa com medo é capaz de conceber medidas extremas.

Enquanto falava isso, tive a sensação de estar desenvolvendo o que eu ouvira de Wil e de Williams, porém, ao mesmo tempo, sentia nitidamente que sempre soubera daquilo, mas só naquele exato momento me dava conta.

- Estou entendendo - disse Curtis com firmeza. - É por isso que essas pessoas estão querendo tanto destruir esse vale. Imaginam que a civilização vai acabar, e elas só vão se sentir seguras quando tiverem conquistado mais controle. Bem, eu não vou permitir que isso aconteça. Vou explodir essa coisa toda.

Olhei sério para ele.

- O que você está querendo dizer?

- Isso mesmo. Eu era técnico em demolição. Sei como fazer. Devo ter parecido alarmado porque ele disse:

- Não se preocupe, vou descobrir um jeito de fazer isso sem machucar ninguém. Não quero ter um peso desses na consciência.

Fui invadido por uma onda de lucidez.

- Qualquer tipo de violência - disse eu - só piora as coisas, não vê?

 

- Qual é o outro jeito?

Pelo canto do olho, tomei a ver de relance a forma antes de ela desaparecer.

- Não sei direito - respondi -, mas se os combatermos com raiva e ódio, eles só verão um inimigo. Ficarão mais obstinados. Com mais medo. De alguma forma, aquele grupo que Williams mencionou deve tomar outra atitude. Devemos lembrar nossa Visão de Nascimento inteira... e então podemos lembrar de mais uma coisa, uma Visão do Mundo.

Esse termo me pareceu familiar, mas não sabia onde o tinha ouvido.

- Uma Visão do Mundo... - Curtis pon