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Oliver Sacks O Homem que confundiu sua Mulher comu

Oliver Sacks O Homem que confundiu sua Mulher comu

Orelha do livro Oliver Sacks é um neurologista que reivindica para o saber médico uma nova abordagem descritiva, que aproxima os ”relatos de casos” a técnicas romanescas, transformando estudos científicos em peças literárias com personagens e enredos tão imponderáveis quanto universais. É impossível ler seus ensaios sem pensar em Freud, o neurologista austríaco que, a partir de relatos clínicos com intensa lapidação estilística, acabou por ampliar os horizontes de representação da vida anímica e fez da psicanálise a matriz do imaginário e do pensamento modernos. Algo semelhante ocorre com Sacks. Em O homem que confundiu sua mulher comum chapéu, estamos na presença de um médico que acolhe a todo momento o novo, o inesperado que irrompe em cada testemunho do drama particular de seus pacientes. Um músico que percebe apenas formas abstratas, que detecta as propriedades geométricas de uma flor mas é incapaz de identificar nela uma rosa; pessoas que sentem dores em membros amputados; uma vítima da amnésia que desesperadamente inventa identidades para as pessoas; o assassino que não recorda seu crime e que, após um acidente, tem pesadelos que reconstituem cada detalhe do assassinato — são estas algumas das personagens de Sacks, almas perdidas na privação neurológica, na super excitação dos sentidos, nos excessos da imaginação, na clausura interior. O homem que confundiu sua mulher comum chapéu (adaptado para o teatro pelo diretor inglês Peter Brook) traz relatos envolventes, em que o observador tenta pacificar seu espante com referências ao universo estável da literatura e da filosofia. Mais de que talento retórico, porém, os latos de Sacks descobrem na arte da narrativa uma possibilidade de ir além do mero registro classificatório dos distúrbios cerebrais, criando uma neurologia da identidade, uma dramaturgia da mente que dá voz a ”viajantes em terras inimagináveis” — alargando, pela sensibilidade poética, o campo de investigação da ciência. Oliver Sacks nasceu em Londres, em 1933, e mora nos EUA, onde leciona no Albert Einstein College of Medicine (Nova York). É autor de Enxaqueca, Um antropólogo em Marte, Tempo de despertar (que inspirou o filme homônimo com Robert De Niro e Robin Williams), A ilha dos daltônicos, Vendo vozes, Tio Tungstênio e com uma perna só — todos publicados pela Companhia das Letras. O HOMEM QUE CONFUNDIU SUA MULHER com UM CHAPÉU OLIVERSACKS O HOMEM QUE CONFUNDIU SUA MULHER COM UM CHAPÉU e outras histórias clínicas Tradução LAURA TEIXEIRA MOTTA Digitalização: Marcilene Aparecida Alberton Ghisi Arranjos: Rosangela Maria Moresco 7° reimpressão COMPANHIA DAS LETRAS Copyright © 1970 1981,1983 1984 1985 by Oliver Sacks Proibida a venda em Portugal Titulo original The man who misíook his wifefor a hat and other clinical tales Capa Hélio de Almeida Sobre ilustração de Zaven Pare Preparação Rosemary Cataldi Revisão Ana Maria Barbosa Cecília Ramos RR Donnelley América Latina Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro SP Brasil) Sacks Oliver W. 1933 0 homem que confundiu sua mulher com um chapéu e outras historias clinicas / Oliver Sacks tradução Laura Teixeira Motti — São Paulo Companhia das Letras 1997 Titulo original The man who mistook his wife for a hat and other clinical tales ISBN 85 7164 6899 1 Doenças do sistema nervoso - Estudo e casos 2 Neurologia I Titulo 97-3435 CDD 616809 NLM WL100 Índices para catalogo sistemático 1 Doenças do sistema nervoso Histórias clinicas: Medicina 616809 2 Neurologia Histórias clinicas: Medicina 616809 2003 Todos os direitos desta edição reservados à EDITORA SCHWARCZ LTDA Rua Bandeira Paulista 702 cj 32 04532 002 — São Paulo — SP Telefone (11) 3707-3500 Fax (11)3707-3501 www.companhiadasletras.com.br ÍNDICE Prefácio 7 Parte I PERDAS Introdução 17 1. O homem que confundiu sua mulher com um chapéu 22 2. O marinheiro perdido 38 3. A mulher desencarnada 59 4. O homem que caía da cama 71 5. Mãos 75 6. Fantasmas 82 7. Nivelado 87 8. Olhar à direita! 93 9. O discurso do Presidente 96 Parte 2 EXCESSOS Introdução 103 1O.Witty ticcy Ray 108 11. A doença de Cupido 119 12. Uma questão de identidade 126 13. Sim, padre-enfermeira 135 14. A possuída 139 Parte 3 TRANSPORTES Introdução 147 15. Reminiscência 150 16. Nostalgia incontinente 169 17. Passagem para a índia 172 18.O cão sob a pele 175 19. Assassinato 180 20. As visões de Hildegarda 185 Parte 4 O MUNDO DOS SIMPLES Introdução 193 21.Rebecca 198 22. O dicionário de música ambulante 207 23. Os gêmeos 215 24. O artista autista 235 Referências bibliográficas 257 Falar sobre doenças é uma espécie de entretenimento das Mil e uma noites. William Osler O médico ocupa-se [diferentemente do naturalista] [...] comum único organismo, o sujeito humano, em luta para preservar sua identidade em circunstâncias adversas. Ivy McKenzie PREFACIO ”A última coisa a decidir ao se escrever um livro é o que se deve pôr primeiro”, observou Pascal. Assim, tendo escrito, reunido e organizado estas histórias singulares, selecionado um título e duas epígrafes, preciso agora examinar o que fiz — e por quê. A duplicidade das epígrafes e o contraste entre elas — de fato, o contraste que Ivy McKenzie estabelece entre o médico e o naturalista — correspondem a uma certa duplicidade em mim: pois eu me sinto igualmente naturalista e médico, e me interesso tanto por doenças quanto por pessoas; talvez eu seja igualmente, ainda que não de forma adequada, um teórico e um dramaturgo, atraído no mesmo grau pelo científico e pelo romântico, vendo sempre ambos na condição humana e, sobretudo na quintessência da condição humana, a doença — os animais contraem enfermidades, mas só o homem mergulha radicalmente na doença. Meu trabalho, minha vida estão voltados totalmente para os doentes — mas os doentes e suas doenças conduzem-me a reflexões que, de outro modo, talvez não me ocorressem. Tanto assim que me vejo compelido a indagar, como Nietzsche: ”Quanto à doença: não somos quase tentados a perguntar se conseguiríamos passar sem ela”? e a ver as questões que ela suscita como sendo de uma natureza fundamental. Invariavelmente meus pacientes levamme a questionar, e invariavelmente minhas questões levam-me aos pacientes, assim, nas histórias ou estudos a seguir, existe um movimento contínuo de um para o outro. Estudos, sim; por que histórias, ou casos? Hipócrates introduziu conceito histórico de doença, a idéia de que as doenças têm um 10 curso, dos primeiros sinais até o clímax ou crise e daí para a resolução feliz ou fatal. Portanto, Hipócrates introduziu o relato de caso, uma descrição, ou representação, da história natural da doença — expressa com precisão pela antiga palavra patologia. Esses relatos são uma forma de história natural, porém nada nos dizem sobre o indivíduo e sua história, nada transmitem sobre a pessoa e sua experiência enquanto se vê diante da doença e luta para sobreviver a ela. Não existe um ”sujeito” em um relato de caso rigoroso; os relatos de caso modernos aludem ao sujeito em uma frase superficial (indivíduo trissômico e albino, sexo feminino, 21 anos), que tanto se poderia aplicar a um rato como a um ser humano. Para devolver o sujeito humano ao centro — o ser humano sofredor, torturado, em luta — devemos aprofundar um relato de caso transformando-o em uma narrativa ou história; só então teremos um ”quem” além de um ”o quê”, uma pessoa real, um paciente, em relação à doença — em relação ao físico. O ser essencial do paciente é muito relevante nas esferas superiores da neurologia e na psicologia, pois, nestas áreas, a individualidade do paciente está essencialmente envolvida, e o estudo da doença e da identidade não pode ser desarticulado. De fato, esses distúrbios, juntamente com sua descrição e estudo, exigem uma nova disciplina, que podemos denominar ”neurologia da identidade”, pois lida com as bases neurais do eu, como antiquíssimo problema de mente e cérebro. É possível que deva existir, necessariamente, um abismo, um abismo categórico, entre o psíquico e o físico; mas os estudos e as histórias que concernem simultaneamente a ambos — e são estes que me fascinam em especial e que (de um modo geral) apresento neste livro — podem, não obstante, servir para aproximá-los mais, para nos levar à própria intersecção de mecanismo e vida, à relação dos processos fisiológicos coma biografia. A tradição das histórias clínicas ricamente humanas atingiu um ponto culminante no século XIX e depois declinou como advento de uma ciência neurológica impessoal. Luria escreveu: ”O poder da descrição, tão comum nos grandes neurologistas e psiquiatras do século XIX, hoje quase desapareceu. [...] Precisa ser revivido”. Suas obras mais recentes, The mind of a mnemoniste e The man with o shattered world, são tentativas de reviver essa tradição perdida. Assim, os relatos de casos contidos neste livro remontam a uma 11 antiga tradição” à tradição oitocentista de que fala Luria, à tradição do primeiro historiador médico, Hipócrates, e à tradição universal e pré-histórica de os pacientes sempre contarem suas histórias aos médicos. As fábulas clássicas contêm figuras arquetípicas: heróis, vítimas mártires, guerreiros. Os pacientes neurológicos são tudo isso e __ nas histórias singulares aqui narradas — são também algo mais. Nesses termos míticos ou metafóricos, em que categoria devemos incluir o ”marinheiro perdido” ou as demais figuras estranhas aqui mencionadas? Podemos dizer que são viajantes em terras inimagináveis terras sobre as quais, de outro modo, não teríamos idéia ou concepção. É por esse motivo que suas vidas e jornadas a meu ver possuem um quê de fabulosas, e foi por isso que usei a imagem das Mil e uma noites de Osler como epígrafe e que me senti compelido a falar em histórias e fábulas tanto quanto em casos. O científico e o romântico, nessas esferas, imploram para ficar juntos — Luria gostava de falar em ”ciência romântica”. Eles se encontram na intersecção de fato e fábula, a intersecção que caracteriza (como fiz em meu livro Tempo de despertar) as vidas dos pacientes aqui narradas. Mas que fatos! Que fábulas! A que os devemos comparar? É possível que não disponhamos de modelos, metáforas ou mitos já existentes. Teria chegado a hora de novos símbolos, novos mitos? Oito dos capítulos deste livro já foram publicados: ”O marinheiro perdido”, ”Mãos”, ”Os gêmeos” e ”O artista autista” em New York Review of Books (1984 e 1985); e ”Witty ticcy Ray”, ”O homem que confundiu sua mulher comum chapéu” e ”Reminiscência” em London Revie* of Books (1981, 1983,1984), onde a versão mais sucinta deste último foi intitulada ”Musical ears” [Ouvidos musicais]. ”Nivelado” foi publicado em The Sciences (1985). Um relato em antigo sobre uma de minhas pacientes — o ”original” de Rose R. de Tempo de despertar e de Deborah de Harold Pinter em A kind of Alaska: peça teatral inspirada naquele livro — encontra-se em ostalgia incontinente” (originalmente publicado como incontinent nostalgia induced by LDopa” [Nostalgia incontinente introduzida por levodapa] em Lancel, primavera de 1970). Dos meus quatro fantasmas”, os dois primeiros foram publicados como 12 ”curiosidades clínicas” no British Medical Journal (1984). Dois trechos breves foram extraídos de livros anteriores: ”O homem que caía da cama” foi extraído de A leg to stand on, e ”As visões de Hildegarda”, de Enxaqueca. Os doze relatos restantes nunca haviam sido publicados e são inteiramente novos todos escritos durante o outono e o inverno de 1984. Tenho uma dívida muito especial para comas pessoas que prepararam meus originais para publicação: primeiro, Robert Silvers, do New York Review of Books, e Mary-Kay Wilmers, do London Review of Books’, depois, Kate Edgar, Jim Silberman da Summit Books de Nova York e Colin Haycraft da Duckworths de Londres, que, entre eles, muito colaboraram para a forma final do livro. Entre meus colegas neurologistas, devo expressar uma gratidão especial ao saudoso dr. James Purdon Martin, a quem mostrei fitas de vídeo sobre ”Christina” e ”sr. MacGregor” e com quem discuti pormenorizadamente sobre esses pacientes — ”A mulher desencarnada” e ”Nivelado” expressam esse reconhecimento; ao dr. Michael Kremer, meu ex- ”chefe” em Londres que, em resposta a A leg to stand on (1984), descreveu um de seus casos que era muito semelhante — e os dois casos estão agora reunidos em ”O homem que caía da cama”; ao dr. Donald Macrae, cujo extraordinário caso de agnosia visual, quase comicamente semelhante ao meu próprio, só foi descoberto, por acidente, dois anos depois de eu ter escrito meu texto — ele está inserido em um pósescrito de ”O homem que confundiu sua mulher com um chapéu”; e, mais especialmente, à minha grande amiga e colega dra. Isabelle Rapin, de Nova York, que discutiu vários casos comigo; ela me apresentou a Christina (a ”mulher desencarnada”) e conhece José, o ”artista autista”, desde quando ele era menino. Quero agradecer a ajuda desinteressada e a generosidade dos pacientes (e, em alguns casos, de seus familiares) cujas histórias relato aqui — pessoas que, sabendo (como muitas vezes sabiam) que elas próprias não poderiam ser ajudadas diretamente, ainda assim permitiram que eu escrevesse sobre suas vidas, e até mesmo me incentivaram a isso, na esperança de que outros pudessem aprender e entender e, um dia, talvez, ser capazes de curar. Como em tempo de despertar, os nomes e detalhes circunstanciais foram 13 alterados em razão do sigilo pessoal e profissional, mas meu intuito foi preservar a “qualidade” essencial de suas vidas. Finalmente quero expressar minha gratidão - mais do que gratidão - ao meu mentor e médico, a quem dedico este livro. o. w. s. Nova York 10 de fevereiro de 1985 Parte I PERDAS INTRODUÇÃO A palavra favorita da neurologia é déficit, significando deterioração ou incapacidade de função neurológica: perda da fala, perda da linguagem, perda da memória, perda da visão, perda da destreza, perda da identidade e inúmeras outras deficiências e perdas de funções (ou faculdades) específicas. Para todas essas disfunções (outro termo muito empregado) temos palavras privativas de todo tipo — afonia, afemia, afasia, alexia, apraxia, agnosia, amnésia, ataxia —, uma palavra para cada função neural ou mental específica da qual os pacientes, em razão de doença, dano ou incapacidade de desenvolvimento, podem verse parcial ou inteiramente privados. O estudo científico da relação entre cérebro e mente começou em 1861, quando Broca, na França, descobriu que dificuldades específicas no uso expressivo da fala, a afasia, seguiam-se invariavelmente a um dano em uma parte específica do hemisfério esquerdo do cérebro. Isso abriu caminho para uma neurologia cerebral, que possibilitou, no decorrer de décadas, ”mapear” o cérebro humano, atribuindo capacidades específicas — lingüísticas, intelectuais, perceptivas etc. — a centros” igualmente específicos do cérebro. Em fins do século evidenciou-se aos observadores mais perspicazes—sobretudo Freud, em seu livro Aphasia — que aquele tipo de mapeamento era demasiado simples, que todos os desempenhos mentais possuíam uma intrincada estrutura interna devendo possuir uma base fisiológica igualmente complexa Freud -julgava que isso era verdade especialmente no tocante a cetros distúrbios do reconhecimento e percepção, para os quais ele cunhou o termo agnosia. A seu ver, o entendimento adequado da afasia ou agnosia exigiria uma ciência nova, mais complexa. 18 A nova ciência de cérebro/mente intuída por Freud concretizou-se na Segunda Guerra Mundial, na Rússia, como uma criação conjunta de A. R. Luria (e seu pai, R. A. Luria), Leontev Anokhin, Bernstein e outros, sendo por eles batizada de ”neuropsicologia”. O desenvolvimento dessa ciência imensamente profícua foi o trabalho de toda a vida de Luria e, considerando sua importância revolucionária, houve uma certa lentidão em sua chegada ao Ocidente. Ela foi exposta, de maneira sistemática, em um livro monumental, Higher cortical functions in man (tradução inglesa de 1966), e, de modo totalmente diferente, em uma biografia ou ”patografia”, The man with a shattered world (tradução inglesa de 1972). Embora esses livros fossem quase perfeitos no que se propunham expor, houve toda uma área que Luria não abordou. Higher cortical functions in man versava apenas sobre as funções pertinentes ao hemisfério esquerdo do cérebro; de modo semelhante, Zazetsky, o sujeito de The man with a shattered world, tinha uma lesão enorme no hemisfério esquerdo — o direito era intacto. De fato, toda a história da neurologia e neuropsicologia pode ser vista como uma história do estudo do hemisfério esquerdo. Uma razão importante para o descaso como hemisfério direito ou ”inferior”, como ele sempre foi chamado, é que, embora seja fácil demonstrar os efeitos de lesões com localizações variadas no lado esquerdo, as síndromes correspondentes do hemisfério direito são muito menos distintas. Em geral com menosprezo, ele era considerado mais ”primitivo” que o esquerdo, sendo este último visto como a flor única da evolução humana. E, em certo sentido, isso é correto: o hemisfério esquerdo é mais complexo e especializado, um produto bem tardio do cérebro dos primatas e, especialmente, dos hominídeos. Por outro lado, é o hemisfério direito que controla as capacidades essenciais de reconhecer a realidade que toda criatura viva precisa possuir para sobreviver. O hemisfério esquerdo, como um computador anexado ao cérebro básico da criatura, é feito para os programas e esquemas, e a neurologia clássica está mais voltada para os esquemas do que para a realidade, de modo que, quando por fim emergiram algumas das síndromes do hemisfério direito, elas foram consideradas bizarras. No passado houve tentativas - por exemplo, de Anton na década de 1890 e de Pötzl em 1928 — para explorar as síndromes do 19 hemisfério direito, mas singularmente não se fez caso delas Em um de seus livros, The W0rkmg brain, Luria dedicou uma seção breve mas tentalizante às síndromes do hemisfério direito, que terminava com as seguintes palavras Esses defeitos ainda totalmente sem estudo conduzemnos a um dos problemas mais fundamentais o papel do hemisfério direito na consciência direta [ ] O estudo desse campo importantíssimo até agora foi negligenciado [ ] Será objeto de uma análise minuciosa em uma série especial de artigos [ ] em fase de preparo para publicação Luria de fato escreveu finalmente alguns desses artigos, nos derradeiros meses de sua vida, quando mortalmente enfermo. Nunca os viu publicados, e eles não foram publicados na Rússia Luria enviou-os a R L Gregory, na Inglaterra, e eles constarão da obra de Gregory, Oxford compamon to the mind, a ser lançada em breve. As dificuldades internas e externas equiparam-se neste caso. Para os pacientes com determinadas síndromes do hemisfério direito, não é só difícil, mas impossível estar cientes de seus próprios problemas — uma singular e específica anosagnosia, na denominação de Babmski. E é singularmente difícil até mesmo para o observador mais sensível, imaginar o estado íntimo, a ”situação” desses pacientes, pois esta é quase inimaginavelmente distante de tudo o que esse observador já vivenciou. Em contraste, as síndromes do hemisfério esquerdo podem ser imaginadas com relativa facilidade embora as síndromes do hemisfério direito sejam tão comuns quanto as do esquerdo — e por que não seriam7 —, encontramos mil descrições de síndromes do hemisfério esquerdo na literatura neurológica e neuropsicológica para cada descrição de uma do hemisfério direito. E como se estas fossem, de algum modo, alheias a todo o espírito da neurologia. E, no entanto, como afirma Luria, elas têm uma importância fundamental. Tanto assim que podem requerer um novo tipo de neurologia uma ciência ”personalista” ou (como ele gostava de dominá-la) ”romântica”, pois as bases físicas da persona, do eu, são delas reveladas para nosso estudo Luria julgava que uma ciência desse tipo seria bem introduzida por uma história, um pormenorizado relato de caso de um homem com um intenso distúrbio do hemisfério direito, um relato de caso que seria ao mesmo tempo o 20 complemento e o oposto de ”The man with a shattered world”. Em uma das últimas cartas que me enviou, ele escreveu: ”Publique essas histórias, mesmo que sejam apenas esboços. É um reino de imenso assombro”. Devo confessar que me sinto especialmente intrigado por esses distúrbios, pois eles dão acesso a reinos, ou prometem reinos, quase nunca antes imaginados, apontando para uma neurologia e psicologia abertas e mais abrangentes, excitantemente diversas da neurologia demasiado rígida e mecânica do passado. Assim, o que me despertou o interesse não foram tanto os déficits na acepção tradicional, e sim os distúrbios neurológicos que afetam o eu. Esses distúrbios podem ser de vários tipos — e podem ter origem tanto em excessos como em deteriorações da função —, e parece acertado considerar separadamente essas duas categorias. Mas deve ficar claro desde o início que uma doença nunca é uma simples perda ou excesso; que existe sempre uma reação, por parte do organismo ou indivíduo afetado, para restaurar, substituir, compensar e preservar sua identidade, por mais estranhos que possam ser os meios; e estudar ou influenciar esses meios, tanto quanto o dano primário ao sistema nervoso, é uma parte essencial de nosso papel como médicos. Isso foi convincentemente exposto por Ivy McKenzie: Pois o que é que constitui uma ”entidade patológica” ou uma ”nova doença”? O médico não se ocupa, diferentemente do naturalista, de uma ampla série de organismos diversos teoricamente adaptados de um modo médio a um ambiente médio, e sim com um único organismo, o sujeito humano, em luta para preservar sua identidade em circunstâncias adversas. Essa dinâmica, essa ”luta para preservar a identidade”, por mais estranhos os meios ou efeitos dessa luta, foi reconhecida pela psiquiatria há muito tempo e, como tantas outras coisas, é especialmente associada ao trabalho de Freud. Os delírios da paranóia, por exemplo, eram vistos por ele não como primários, mas como tentativas (ainda que mal orientadas) de restituição, de reconstituição de um mundo dominado pelo caos total. Exatamente na mesma linha, Ivy McKenzie escreveu: A fisiologia patológica da síndrome parkinsomana é o estudo de um caos organizado, um caos induzido antes de mais nada pela destruição 21 de importantes integrações e reorganizado em uma base instável no processo de reabilitação. Assim como Tempo de despertar foi o estudo de um ”caos organizado” produzido por uma única doença multiforme, o que apresento a seguir é uma série de estudos semelhantes de caos organizados produzidos por uma grande variedade de doenças. Na primeira seção, ”Perdas”, o caso mais importante, a meu ver, é o de uma forma especial de agnosia visual: ”O homem que confundiu sua mulher com um chapéu”. Em minha opinião, sua importância é fundamental. Casos assim impõem um desafio radical a um dos mais arraigados axiomas ou suposições da neurologia clássica: em especial, a concepção de que um dano cerebral, qualquer dano cerebral, reduz ou remove a ”atitude abstrata e categórica” (no termo de Kurt Goldstein), reduzindo o indivíduo ao emocional e concreto. (Hughlings Jackson defendeu uma idéia muito semelhante na década de 1860.) Aqui, no caso do dr. P., vemos exatamente o oposto disso: um homem que perdeu totalmente (embora apenas na esfera do visual) o emocional, o concreto, o pessoal, o ”real”... e foi reduzido, por assim dizer, ao abstrato e categórico, com conseqüências de um tipo particularmente estapafúrdio. O que Hughlings Jackson e Goldstein teriam achado disso? Muitas vezes, na imaginação, eu lhes pedi que examinassem o dr. P, indagando então: ”Cavalheiros! E agora, o que me dizem?”. 23 1 O HOMEM QUE CONFUNDIU SUA MULHER COM UM CHAPÉU O dr. P. era um músico excelente, fora célebre como cantor durante muitos anos e depois, na faculdade de música de sua região, como professor. Foi ali, no relacionamento com seus alunos, que certos problemas foram observados pela primeira vez. Às vezes um aluno se apresentava e o dr. P. não o reconhecia ou, especificamente, não reconhecia seu rosto. No momento em que o aluno falava, o dr. P. reconhecia-o pela voz. Incidentes como esse multiplicaram-se, causando embaraço, perplexidade, medo e, às vezes, situações cômicas. Pois não só o dr. P. cada vez mais deixava de reconhecer rostos, mas ainda por cima via rostos onde eles não existiam: na rua, jovialmente, à la mr. Magoo, ele afagava o topo de hidrantes e parquímetros pensando que eram cabeças de crianças; dirigia-se cordialmente aos puxadores esculpidos dos móveis e se espantava quando eles não respondiam. A princípio, as pessoas, e até mesmo o dr. P, riam dessas confusões esquisitas, julgando que eram gracejos. Pois ele não tivera sempre um senso de humor peculiar, dado a chistes e paradoxos em estilo zen? Suas capacidades musicais continuavam deslumbrantes como sempre; ele não se sentia doente - jamais se sentira melhor na vida —, e os enganos eram tão risíveis, e tão originais, que não poderiam ser sérios ou significar algo grave. A idéia de que havia ”algo errado” só foi surgir uns três anos depois, quando o diabetes se manifestou. Ciente de que o diabetes poderia afetar-lhe a visão, o dr. P. consultou um oftalmologista, que fez um histórico minucioso e lhe examinou atentamente os olhos. ”com seus olhos não há nada de errado”, concluiu o médico. ”Mas há problema nas partes visuais de seu cérebro. O senhor não precisa de 23 meus serviços, precisa consultar um neurologista.” E assim, em conseqüência desse parecer, o dr. P. me procurou. Assim que o vi, em poucos segundos ficou evidente que não havia traço algum de demência na acepção comum do termo. Ele era um homem muito culto e simpático, falava bem, com fluência, imaginação e humor. Eu não podia imaginar por que ele teria sido encaminhado à nossa clínica. E no entanto havia alguma coisa meio estranha. Ele ficava de frente para mim quando falava, estava orientado para mim, porém existia algum problema — era difícil dizer. Ele me encarava com os ouvidos, acabei por constatar, mas não com os olhos. Estes, em vez de me olhar, de me fitar, de me ”acolher” da maneira normal, faziam estranhas fixações súbitas — em meu nariz, minha orelha direita, desciam até meu queixo, subiam para meu olho direito — como se estivessem notando (ou até mesmo estudando) essas características individuais, porém sem enxergar o rosto inteiro, suas expressões mutáveis, ”eu” como um todo. Não tenho certeza de ter percebido isso totalmente na época — havia apenas uma provocadora estranheza, alguma falha na interação normal entre olhar e expressão. Ele me via, corria os olhos por mim e, no entanto... ”Qual parece ser o seu problema?”, perguntei por fim. ”Nenhum que eu saiba”, ele replicou com um sorriso. ”Mas as pessoas parecem achar que há algo errado em meus olhos”. ”Mas o senhor não reconhece algum problema visual?” ”Não, não diretamente, mas de vez em quando cometo erros”. Saí da sala por alguns momentos para conversar com sua esposa. Quando retornei, o dr. P. estava sentado placidamente perto da janela, atento, ouvindo em vez de olhar para fora. ”O tráfego”, disse ele, ”sons das ruas, trens à distância — eles compõem uma espécie de sinfonia, não acha? Conhece a Pacific 234 de Honegger?” Que homem mais simpático, pensei comigo. Como é que pode haver algum problema sério? Ele permitiria que eu o examinasse? ”Sim, mas claro, doutor Sacks.” Acalmei minha inquietação, e talvez também a dele, na tranqüilizadora rotina de um exame neurológico — força muscular, coordenação, reflexos, tono... Foi enquanto examinava seus reflexos — ligeiramente anormais do lado esquerdo — que ocorreu a primeira experiência bizarra. Eu havia tirado seu sapato do pé 24 esquerdo e arranhado a sola do pé com uma chave — um teste de reflexo aparentemente frívolo, porém essencial — e em seguida, pedindo licença para parafusar o oftalmoscópio, deixei-o sozinho para que ele calçasse o sapato. Para minha surpresa, um minuto depois ele não o calçara. ”Posso ajudar?”, perguntei. ”A fazer o quê? Ajudar quem?” ”Ajudá-lo a calçar o sapato.” ”É mesmo, eu tinha esquecido o sapato”, disse ele, acrescentando sotto você ”O sapato? O sapato?”. Ele parecia desconcertado. ”Seu sapato”, repeti. ”Talvez queira calçá-lo”. Ele continuou a olhar para baixo, embora não para o sapato, com uma concentração intensa mas mal dirigida. Por fim seu olhar parou sobre seu pé. ”Esse é meu sapato, não?” Eu teria ouvido mal? Ele teria visto mal? ”Meus olhos”, ele explicou, levando a mão ao pé. ”Este é meu sapato, não é?” ”Não, não é. Esse é seu pé. O sapato está ali”. ”Ah! pensei que aquele fosse meu pé”. Ele estaria brincando? Estaria louco? Estaria cego? Se aquele era um de seus ”erros estranhos”, então era o erro mais estranho que eu já vira. Ajudei-o a calçar o sapato (seu pé) para evitar mais complicações. O dr. P. parecia despreocupado, indiferente, talvez estivesse achando graça. Voltei a meu exame. Sua acuidade visual era boa: ele não tinha dificuldade para enxergar um alfinete no chão, embora às vezes não o visse quando era posto à sua esquerda. Ele enxergava bem, mas o que via? Abri uma revista National Geographic e lhe pedi que descrevesse algumas ilustrações. Suas respostas foram muito curiosas. Seus olhos dardejavam de uma coisa para outra, captando características minúsculas, características individuais, como haviam feito com meu rosto. Um brilho marcante, uma cor, uma forma prendiam-lhe a atenção e suscitavam comentários—mas em nenhum caso ele captou a cena como um todo. Ele não conseguia ver o todo, apenas detalhes, que localizava como os bips de uma tela de radar. Ele não estabelecia uma relação com a figura como um todo - não encarava, por assim dizer, a fisionomia da figura. Não tinha a menor noção de paisagem ou cena. 25 Mostrei-lhe a capa, uma extensão ininterrupta das dunas do Saara. ”O que vê aqui?”, perguntei. ”Vejo um rio”, ele respondeu. ”E uma pequena hospedaria com um terraço à beira d’água. As pessoas estão almoçando no terraço. Vejo guarda-sóis coloridos aqui e ali”. Ele estava olhando, se é que aquilo era ”olhar”, direto para fora da revista e fabulando características inexistentes, como se a ausência de características na figura real o tivesse levado a imaginar o rio, o terraço e os guarda-sóis coloridos. Eu devo ter feito uma cara de espanto, mas ele parecia pensar que se saíra otimamente. Havia um esboço de sorriso em seu rosto. Ele também parecia ter decidido que o exame terminara, e começou a olhar em volta à procura de seu chapéu. Estendeu a mão e agarrou a cabeça de sua mulher, tentou erguê-la e tirála para pôr em sua cabeça. Parecia que ele tinha confundido sua mulher com um chapéu! Ela olhava como se estivesse acostumada com coisas assim. Eu não conseguia entender o que ocorrera em termos de neurologia (ou neuropsicologia) convencional. Em alguns aspectos, ele parecia perfeitamente preservado e, em outros, absolutamente, incompreensivelmente, arruinado. Como é que ele podia, por um lado, confundir sua mulher com um chapéu e, por outro, como aparentemente ainda fazia, lecionar na faculdade de música? Eu precisava refletir, vê-lo de novo — e vê-lo em seu habitat familiar, em sua casa. Poucos dias depois, fui à casa do dr. P. e esposa, levando na pasta uma partitura do Dichterliebe (eu sabia que ele gostava de Schumann) e uma variedade de objetos para o teste de percepção. A Srª. P. recebeume em um apartamento suntuoso, que lembrava a Berlim do fin-de-siècle. Um magnífico Bõsendorfer antigo dominava, imponente, o centro da sala e, por toda parte, havia estantes de música, instrumentos, partituras... Havia livros, havia quadros, mas a música era central. O dr. P. entrou, um tanto curvado e, perturbado, avançou com a mão estendida para o relógio de pêndulo mas, ouvindo minha voz, corrigiu-se e veio apertar minha mão. Trocamos cumprimentos e conversamos um pouco sobre os concertos e apresentações em cartaz. Timidamente, perguntei-lhe se gostaria de cantar. ”O Dichterlieber, exclamou. ”Mas eu já não consigo ler partituras. O senhor poderia tocar?“. 26 Eu disse que tentaria. Naquele esplêndido piano antigo, até o que eu tocava parecia bom, e o dr. P. era um Fischer-Dieskau, idoso mas infinitamente harmonioso, combinando ouvido e voz perfeitos com a mais penetrante inteligência musical. Era evidente que a faculdade de música não o mantinha por caridade. Os lobos temporais do dr. P. estavam obviamente intactos: ele possuía um excelente córtex musical. Fiquei imaginando o que poderia estar ocorrendo em seus lobos parietal e occipital, especialmente nas áreas responsáveis pelo processamento visual. Eu trazia poliedros regulares em meu kit neurológico e decidi começar com eles. ”O que é isto?”, perguntei, retirando o primeiro. ”Um cubo, é claro.” ”E este?”, indaguei, mostrando outro. Ele perguntou se podia examiná-lo, o que fez de um modo rápido e sistemático. ”Um dodecaedro, naturalmente. E não perca tempo com os outros — eu reconhecerei o icosaedro também.” Estava claro que as formas abstratas não eram problema. E quanto aos rostos? Peguei um baralho. Ele identificou todas as cartas instantaneamente, inclusive valetes, rainhas, reis e coringa. Estes, porém, eram desenhos estilizados, não se podendo afirmar se ele via rostos ou meros padrões. Decidi mostrar-lhe um livro de caricaturas que eu tinha na pasta. Com estas, de um modo geral, ele saiu-se bem: o charuto de Churchill, o nariz de Schnozzle — assim que percebia uma característica importante, ele era capaz de identificar o rosto. Mas também as caricaturas são formais e esquemáticas. Restava saber o que ele faria com rostos reais, representados realisticamente. Liguei o televisor, mantendo-o sem som, e encontrei um dos primeiros filmes de Bette Davis. Era uma cena de amor. O dr. P. não conseguiu identificar a atriz — porém isso poderia dever-se ao fato de ela nunca ter entrado em seu mundo. O mais espantoso era ele não conseguir identificar as expressões no rosto da atriz ou de seu parceiro, embora no decorrer de uma cena tórrida os dois passassem da ânsia ardente à paixão, surpresa, indignação, fúria e, por fim, uma reconciliação comovente. O dr. P. não conseguia perceber nada disso. Não indicou com clareza o que estava se passando, quem era quem ou mesmo de que sexo eram. Seus comentários sobre a cena eram decididamente marcianos. 27 Havia a possibilidade de que algumas de suas dificuldades estivessem associadas à irrealidade de um mundo holly woodiano de celulóide; ocorreu-me que ele talvez se saísse melhor identificando rostos de sua própria vida. Nas paredes do apartamento havia fotografias de sua família, colegas, alunos, dele próprio. Reuni uma pilha delas e, meio apreensivo, mostrei-as ao dr. P. O que fora engraçado ou grotesco com relação ao filme revelou-se trágico com relação à sua vida. De um modo geral, ele não reconheceu pessoa alguma: nem parentes, nem colegas, nem alunos, nem a si próprio. Reconheceu um retrato de Einstein porque percebeu o cabelo e o bigode característicos, e o mesmo aconteceu com uma ou duas outras pessoas. ”Ah, Paul!”, disse ele ao ver um retrato do irmão. ”Esse queixo quadrado, esses dentões-eu reconheceria Paul em qualquer lugar!” Mas era Paul que ele reconhecia ou uma ou duas de suas características, com base nas quais ele conseguia fazer uma boa suposição quanto à identidade do sujeito? Na ausência de ”marcadores” óbvios, ele se perdia por completo. Mas não era apenas uma deficiência da cognição, da gnose; havia alguma coisa radicalmente errada em todo o modo como ele procedia. Pois ele lidava com aqueles rostos — mesmo os das pessoas mais chegadas — como se fossem quebra-cabeças ou testes abstratos. Não se relacionava com eles, não os contemplava. Nenhum rosto lhe era familiar, visto como um ”você”; era apenas identificado como um conjunto de características, uma ”coisa”. Assim, havia gnose formal, mas nenhum traço de gnose pessoal. E isso vinha acompanhado de sua indiferença, ou cegueira, para as expressões. Um rosto, para nós, é uma pessoa olhando para fora — vemos, por assim dizer, a pessoa por intermédio de sua persona, de seu rosto. Mas para o dr. P. não havia persona neste sentido — nenhuma persona exterior, e nenhuma pessoa interior. No caminho para o apartamento do dr. P, eu havia entrado em uma floricultura e comprado uma vistosa rosa vermelha para pôr na lapela. Tirei-a dali e a passei para o dr. P. Ele a pegou como um botânico ou morfologista pegaria um espécime, e não como alguém que recebe uma flor. ”Uns quinze centímetros de comprimento”, comentou. ”Uma forma vermelha em espiral, comum anexo linear verde”. ”Sim”, falei, encorajador, ”e o que o senhor acha que é isso, doutor P?”? 28 ”Não é fácil dizer”. Ele parecia perplexo. ”Não tem a simetria simples dos poliedros regulares, embora talvez possua uma simetria própria, superior... Acho que poderia ser uma inflorescência ou flor”. ”Poderia?”, insisti. ”Poderia”, ele confirmou. ”Cheire”, sugeri, e ele outra vez pareceu um tanto desconcertado, como se eu lhe pedisse para cheirar uma simetria superior. Mas cortesmente fez como pedi e levou a flor ao nariz. Então, de repente, ele ganhou vida. ”Lindo!”, exclamou. ”Uma rosa têmpora. Que aroma divino!” E começou a cantarolar ”Die Rose, die Lillie...”. Aparentemente, a realidade podia ser transmitida pelo olfato, não pela visão. Fiz um último teste. Era um dia ainda frio, no começo da primavera, e eu deixara meu casaco e as luvas no sofá. ”O que é isto?”, perguntei, segurando uma luva. ”Posso examinar?”, ele pediu e, pegando-a, passou a examiná-la como fizera com as formas geométricas. ”Uma superfície contínua”, declarou por fim, ”envolta em si mesma. Parece ter” — hesitou — ”cinco bolsinhas protuberantes, por assim dizer”. ”Sim”, eu disse, com cautela. ”O senhor me fez uma descrição. Agora me diga o que é”. ”Algum tipo de recipiente”? ”Sim”, respondi. ”E o que ele guarda”? ”Guarda seus conteúdos!”, replicou o dr. R, rindo. ”Há muitas possibilidades. Poderia ser um portamoedas, por exemplo, para cinco tamanhos de moedas. Poderia...” Interrompi a torrente de idéias amalucadas. ”Não lhe parece familiar? Não acha que isso poderia conter, poderia servir em uma parte de seu corpo”? Nenhuma luz de reconhecimento despontou em seu rosto.i Uma criança nunca teria a capacidade de falar em uma ”superfície contínua... envolta em si mesma”, mas qualquer criança, qualquer NR. Posteriormente, por acidente, ele a calçou, exclamando ”Meu Deus, é uma luva’” Isso lembra o paciente Lanuti, de Kurt Goldstem, que só conseguia reconhecer os objetos dinamicamente tentando usá-los. Fim NR 29 bebê reconheceria imediatamente uma luva como tal, como algo familiar, algo que dizia respeito à mão. O dr. P, não. Ele não via coisa alguma como familiar. Visualmente, ele estava perdido em um mundo de abstrações sem vida. De fato, ele não possuía um verdadeiro mundo visual, assim como não possuía um verdadeiro eu visual - Era capaz de falar sobre as coisas, mas não as via face a face. Hughlings Jackson, discorrendo sobre pacientes com afasia e lesões no hemisfério esquerdo, afirma que eles perderam o pensamento ”abstrato” e ”preposicional” — e os compara a cães (ou melhor, compara os cães aos pacientes com afasia). O dr. P, por sua vez, funcionava exatamente como uma máquina. Não só apresentando a mesma indiferença ao mundo visual existente em um computador, mas ainda mais espantoso — construindo o mundo como um computador o constrói, por meio de características essenciais e relações esquemáticas. O esquema podia ser identificado - como que por um ”kit de identidade” — sem que a realidade fosse percebida. Os testes que eu fizera até então nada me revelaram sobre o mundo interior do dr. P. Seria possível que sua memória e imaginação visual ainda estivessem intactas? Pedi-lhe que se imaginasse entrando em uma de nossas praças pelo lado norte, que a atravessasse na imaginação ou memória e me dissesse as construções por que ele poderia passar enquanto andava. Ele mencionou as construções do lado direito, mas nenhuma do lado esquerdo. Pedi então que ele se imaginasse entrando na praça pelo lado sul. Novamente, ele mencionou os edifícios que ficavam do lado direito, embora fossem exatamente os que ele omitira antes. Os que ele ”vira” internamente antes não foram mencionados dessa vez; podia-se presumir que não eram mais ”vistos”. Estava evidente que seu problema como lado esquerdo, seus déficits no campo visual, eram tanto internos quanto externos, dividindo ao meio sua memória e imaginação visual. E quanto à sua visualização interna em um nível superior? Pensando na intensidade quase alucinatória com que Tolstoi visualiza e anima seus personagens, fiz ao dr. P. perguntas sobre Ana Karenina. Ele conseguiu recordar incidentes sem dificuldade, sua compreensão da trama estava intacta, mas ele omitiu por completo características visuais, narrativas visuais e cenas. Lembrava-se das palavras dos personagens, mas não de seus rostos; e, embora quando solicitado ele pudesse citar as descrições visuais originais, com 30 sua memória notável e quase textual, ficou patente que elas eram absolutamente vazias para ele, destituídas de realidade dos sentidos, da imaginação ou da emoção. Portanto, havia também uma agnosia interna* Ficou claro, porém, que isso apenas ocorria com certos tipos de visualização. A visualização de rostos e cenas, de narrativa ou drama visual encontrava-se profundamente prejudicada, era quase ausente. Mas a visualização de esquemas estava preservada, e talvez mais aguçada. Assim, quando comecei com ele um jogo mental de xadrez, ele não teve dificuldade para visualizar o tabuleiro ou os movimentos — de fato, nenhuma dificuldade para me derrotar estrondosamente. Luria afirmou que Zazetsky perdera por completo sua capacidade de jogar, mas que sua ”imaginação vivida” estava intacta. Zazetsky e o dr. P. viviam em mundos que eram reflexos no espelho um do outro. Mas a diferença mais triste entre eles estava em que Zazetsky, como explicou Luria, ”lutava para recuperar suas faculdades perdidas com a tenacidade indômita dos desgraçados”, ao passo que o dr. P. não estava lutando, não sabia o que fora perdido e, de fato, não sabia que alguma coisa se perdera. Mas o que era mais trágico, ou quem era mais desgraçado: o homem que sabia ou o que não sabia? Quando o exame terminou, a Srª. P. nos chamou para a mesa, onde havia café e uma deliciosa profusão de pedaços de bolo. Faminto, cantarolando, o dr. P. atirouse aos bolos. Com rapidez e fluência, sem pensar, melodiosamente, ele puxava os pratos para si e se servia deste e daquele numa grande torrente gorgolejante, uma canção comestível, até que, subitamente, houve uma interrupção: um alto e peremptório toc-toc-toc à porta. Sobressaltado, confuso, paralisado pela interrupção, o dr. P. parou de comer e quedou-se NR • Muitas vezes refleti a respeito das descrições visuais de Helen Keller, a despeito de toda a sua eloqüência, seriam elas também, de alguma forma, vazias? Ou será que, pela transferência de imagens do táctil para o visual ou, ainda mais extraordinariamente, do verbal e metafórico para o sensorial e visual, ela realmente conseguia a capacidade de ter imagens visuais, muito embora seu córtex visual jamais houvesse sido estimulado diretamente pelos olhos? Mas, no caso do dr P, era precisamente o córtex que fora danificado, o pré-requisito orgânico para todas as imagens pictóricas É interessante e típico o fato de ele não ter mais sonhos pictóricos — a ”mensagem” do sonho era transmitida em termos não visuais. Fim NR 31 hirto, imóvel na cadeira, com uma perplexidade indiferente e cega no rosto. Ele enxergava, mas já não via a mesa; já não a percebia como uma mesa abarrotada de bolos. A esposa pôs café em sua xícara: o cheiro excitou-lhe o olfato e o trouxe de volta à realidade. A melodia do comer recomeçou. Pensei comigo: como é que ele faz as coisas? O que acontece quando ele está se vestindo, lavando as mãos, tomando banho? Segui sua esposa até a cozinha e perguntei como, por exemplo, ele conseguia vestir-se. ”Do mesmo modo como ele come”, ela explicou. ”Eu deixo fora suas roupas de costume, em todos os lugares de costume, e ele se veste sem dificuldade, cantando para si mesmo. Faz tudo cantando para si mesmo. Mas, se for interrompido, ele perde o fio da meada, pára completamente, não reconhece suas roupas — nem seu corpo. Ele canta o tempo todo — canções de comer, canções de vestir, canções de banho, de tudo. Não consegue fazer uma coisa se não a transformar em uma canção.” Enquanto conversávamos, minha atenção foi atraída pelos quadros nas paredes. ”Sim”, disse a Srª. P, ”ele era um pintor talentoso além de cantor. A faculdade expunha seus quadros todo ano”. Examinei-os, curioso — estavam em ordem cronológica. Todas as suas obras iniciais eram naturalistas e realistas, vividas em espírito e atmosfera, mas finamente detalhadas e concretas. Anos depois, tornaram-se menos vividas menos concretas, menos realistas e naturalistas e muito mais abstratas, até mesmo geométricas e cubistas. Por fim, nas últimas pinturas, as telas eram absurdas, ou absurdas para mim: meras linhas caóticas e manchas de tinta. Comentei isso com a Srª. P. ”Ora, vocês médicos são uns filisteus!”, ela exclamou. ”Não consegue ver o desenvolvimento artístico — como ele renunciou ao realismo de sua juventude e avançou para a arte abstrata, não representativa”? ”Não, não é isso”, eu disse a mim mesmo (mas evitei mencioná-lo à pobre Srª. P.). Ele de fato passara do realismo à não-representação e ao abstrato, porém não se tratava do avanço do artista, e sim da patologia — avanço em direção à profunda agnosia visual, na qual todas as capacidades de representação e imaginação, todo o senso do concreto, todo o senso da realidade estavam sendo destruídos. 32 Aquela parede de quadros era uma trágica exposição patológica, que pertencia à neurologia e não à arte. E, contudo, refleti, ela não estaria em parte correta? Pois com freqüência existe uma luta, e, por vezes, o que é até mais interessante, uma combinação entre os poderes da patologia e os da criação. Talvez, no período cubista do dr. P, tenha havido o desenvolvimento artístico tanto quanto o patológico, combinando-se para engendrar uma forma original; pois, à medida que ele foi perdendo o concreto, talvez também tivesse ganho o abstrato, desenvolvendo uma sensibilidade maior para todos os elementos estruturais de linhas, limites, contornos — um poder quase como o de Picasso para ver, e igualmente representar, as organizações abstratas embutidas, e normalmente perdidas, no concreto. Embora eu receasse que nas últimas pinturas houvesse apenas casos de agnosia. Voltamos à grande sala de música, como Bõsendorfer no centro e o dr. P. cantarolando a última torta. ”Bem, doutor Sacks”, disse ele, ”o senhor me julga um caso interessante, posso perceber. Pode dizer-me o que vê de errado, fazer recomendações”? ”Não posso dizer o que vejo de errado”, respondi, ”mas lhe direi o que a meu ver está certo. O senhor é um músico magnífico, e a música é sua vida. O que eu prescreveria em um caso como o seu é uma vida que consista inteiramente em música. A música tem sido o centro, agora faça dela toda a sua vida”. Isso foi há quatro anos. Nunca mais o vi, mas com freqüência perguntei a mim mesmo como ele percebia o mundo, considerando aquela estranha perda da imagem, da visualidade e a perfeita preservação de uma grande musicalidade. Creio que a música, para ele, tomara o lugar da imagem. Ele não possuía imagem corporal, e sim música corporal; eis por que ele era capaz de mover-se e agir com fluência, mas parava todo confuso se a ”música interior” fosse interrompida. E o mesmo acontecia com o exterior, como mundo...* NR • Por exemplo, como depois me contou sua esposa, embora ele não conseguisse reconhecer seus alunos se eles se mantivessem sentados e quietos, se fossem meras ”imagens”, era capaz de reconhecê-los subitamente se eles se movessem ”Aquele é Karl”, bradava ”Conheço seus movimentos, sua música corporal”. 33 Em O mundo como vontade e representação, Schopenhauer afirma que a música é ”vontade pura”. Como ele se teria fascinado pelo dr. P, um homem que perdera por completo o mundo como representação mas o preservava inteiramente como música ou vontade! E isso, misericordiosamente, manteve-se até o fim— pois, apesar do avanço gradual de sua doença (um grande tumor ou processo degenerativo nas partes visuais do cérebro), o dr. P. viveu e lecionou música até os últimos dias de sua vida. PÓS-ESCRITO Como explicar a singular incapacidade do dr. P. para interpretar, para avaliar uma luva como uma luva? Manifestamente neste caso ele não conseguia fazer um julgamento cognitivo, embora fosse fértil na produção de hipóteses cognitivas. Um julgamento é intuitivo, pessoal, abrangente e concreto — nós ”vemos” como as coisas são em relação umas às outras e a si mesmas. Era precisamente essa disposição, esse estabelecimento de relações que faltava ao dr. P. (embora sua capacidade de julgamento, em todas as outras esferas, fosse imediata e normal). Seria isso devido à ausência de informações visuais ou a um processamento deficiente das informações visuais? (Esta teria sido a explicação dada por uma neurologia clássica, esquemática.) Ou haveria algo errado na atitude do dr. P., de modo que ele não conseguia relacionar consigo mesmo o que via? Essas explicações, ou modos de explicação, não são mutuamente excludentes — estando em modos diferentes, elas podem coexistir e ser ambas verdadeiras. E isso é reconhecido, implícita ou explicitamente, pela neurologia clássica: implicitamente por Macrae, quando ele julga inadequada a explicação dos esquemas deficientes, ou processamento e integração visual deficientes; explicitamente por Goldstein, quando fala em ”atitude abstrata”. Mas a atitude abstrata, que permite a ”categorização”, também não se aplica ao caso do dr. P. e, talvez, ao conceito de ”julgamento” de um modo geral. Pois o dr. P. tinha uma atitude abstrata — de fato, nada além dela. E era exatamente essa sua absurda abstração de atitudes — absurda porque não temperada por qualquer outra coisa 34 que o tornava incapaz de perceber a identidade ou as especificidades, que o tornava incapaz de julgamento. Curiosamente, a neurologia e a psicologia, embora tratem de tudo o mais, quase nunca versam sobre o ”julgamento”, a capacidade de discernir. No entanto, é precisamente a derrocada da capacidade de discernir (seja em esferas específicas, como no caso do dr. P., seja de um modo mais geral, como no caso de pacientes com a psicose de Korsakov ou com síndromes do lobo frontal — ver capítulos 12 e 13 deste livro) que constitui a essência de numerosos distúrbios neuropsicológicos. A capacidade de discernir e a identidade podem ser prejudicadas — mas a neuropsicologia não se ocupa delas. E, no entanto, seja no sentido filosófico (o de Kant) ou no sentido empírico e evolucionista, o discernimento é a faculdade mais importante que possuímos. Um animal, ou um homem pode sair-se bem sem ”atitude abstrata”, mas perecerá sem demora se privado do discernimento. Esta deve ser a primeira faculdade da vida superior ou mente, mas é menosprezada, ou mal interpretada, pela neurologia clássica (computista). E se tentarmos descobrir como pode dar-se um absurdo desses, encontramos a resposta nas suposições, ou na evolução, da própria neurologia. Pois a neurologia clássica (como a física clássica) sempre foi mecânica — das analogias mecânicas de Hughlings Jackson às analogias atuais com os computadores. Naturalmente, o cérebro é uma máquina e um computador — tudo o que afirma a neurologia clássica é correto. Mas nossos processos mentais, que constituem nosso ser e vida, não são apenas abstratos e mecânicos, mas também pessoais, e nisto envolvem não só classificar e categorizar, mas também continuamente julgar e sentir. Se estes dois últimos estão ausentes, nos tornamos semelhantes aos computadores, como era o dr. P. E, analogamente, se apagamos o sentimento e o discernimento, o pessoal, das ciências cognitivas, nós as reduzimos a algo tão defectivo quanto o dr. P. — e reduzimos igualmente nossa apreensão do concreto e real. Por uma espécie de analogia cômica e pavorosa, a neurologia e a psicologia cognitivas atuais lembram nada mais nada menos que o pobre dr. P.! Necessitamos do concreto e do real, como ele necessitava; e não conseguimos perceber isso, como ele também não percebia. Nossas ciências cognitivas estão, elas próprias, sofrendo de uma 35 agnosia essencialmente semelhante à do dr. P. Este, portanto, pode servir como um aviso e uma parábola do que acontece com uma ciência que se esquiva do apreciativo, do específico, do pessoal e se torna inteiramente abstrata e computista. Sempre lamentei muito que circunstâncias fora de meu controle não me tenham permitido continuar a acompanhar o caso do dr. P, tanto no tipo de observações e investigações mencionadas como na apuração da verdadeira patologia da doença. Existe sempre o receio de que um caso seja ”único”, especialmente quando apresenta características tão extraordinárias quanto as do dr. P. Por isso, foi com grande interesse e satisfação, e não sem alívio, que descobri, por mero acaso — folheando o periódico Brain de 1956 —, uma descrição pormenorizada de um caso quase comicamente semelhante (de fato, idêntico) em termos neuropsicológicos e fenomenológicos, embora a patologia básica (uma lesão aguda na cabeça) e todas as circunstâncias pessoais fossem totalmente diversas. Os autores mencionam seu caso como ”único na história documentada deste distúrbio” e evidentemente ficaram, como eu, espantados com suas próprias descobertas.* O leitor interessado pode consultar o artigo original, Macrae e Trolle [1956], do qual acrescento aqui uma breve paráfrase, com citações do original. Seu paciente, um homem de 32 anos, depois de um grave acidente de automóvel que o manteve inconsciente por três semanas, ”[...] queixava-se, exclusivamente, da incapacidade de reconhecer rostos, NR * Só depois de ter concluído este livro, descobri que na verdade existe uma vasta literatura sobre agnosia visual em geral e prosopagnosia em particular Recentemente, em especial, tive o grande prazer de conhecer o dr. Andrew Kertesz, que publicou alguns estudos pormenorizados sobre pacientes com agnosias desse tipo (ver, por exemplo, seu artigo sobre agnosia visual Kertesz, 1979) O dr Kertesz falou-me de um caso de que teve notícia um fazendeiro que manifestou prosopagnosia e, em conseqüência, não pôde mais distinguir (as feições de) suas vacas, outro caso que me descreveu foi o de um assistente do Museu de História Natural que confundiu seu próprio reflexo como diorama de um macaco Assim como ocorria com o dr P e como paciente de Macrae e Trolle, é especialmente o animado que o paciente percebe de maneira tão absurda. Os estudos mais importantes sobre agnosias desse tipo e sobre processamento visual em geral estão sendo empreendidos por A R e H. Damasio (ver artigo em Mesulam [1985], pp 259-88, ou P 95 deste livro). Fim NR 36 inclusive os da esposa e filhos”. Nenhum rosto lhe era ”familiar”, mas ele conseguia identificar os de três colegas de trabalho: um deles tinha um tique de piscar um olho, outro, uma grande verruga na bochecha, e o terceiro ”porque era tão alto e magro que ninguém se parecia com ele”. Cada um desses três homens, afirmam Macrae e Trolle, eram ”reconhecidos unicamente pela característica singular que os destacava”. Em geral (como o dr.P), esse paciente só reconhecia os parentes pela voz. Ele tinha dificuldade até para reconhecer a si mesmo no espelho, como descrevem em detalhes Macrae e Trolle: ”No início da fase de convalescença, ele com freqüência, em especial quando se barbeava, ficava em dúvida sobre se o rosto que o fitava era o seu próprio e, embora soubesse que fisicamente não podia ser nenhum outro, em várias ocasiões ele fez caretas ou botou a língua para fora, ’só para ter certeza’. Estudando atentamente seu rosto no espelho, ele pouco a pouco passou a reconhecê-lo, mas não ’de relance’, como antes — ele tomava por base os cabelos e o contorno facial, além de duas pequenas verrugas na face esquerda”. De um modo geral, ele não conseguia reconhecer os objetos ”de relance”; precisava procurar uma ou duas características e fazer suposições com base nelas; às vezes, as suposições eram absurdamente equivocadas. Em particular, observaram os autores, ele tinha dificuldade com o que era animado. Por outro lado, objetos esquemáticos simples — tesouras, relógio, chave etc. — não representavam dificuldades. Macrae e Trolle observam ainda que ”sua memória topográfica era estranha: havia o aparente paradoxo de que ele era capaz de encontrar o caminho de casa para o hospital e localizar-se nas proximidades deste, mas mesmo assim não conseguia saber o nome das ruas do caminho percorrido [diferentemente do dr. P, este paciente também apresentava uma certa afasia], nem parecia visualizar a topografia”. Também se evidenciou que suas recordações visuais de pessoas, mesmo as de muito tempo antes do acidente, foram seriamente prejudicadas: havia a lembrança da conduta, ou talvez de um maneirismo, mas não da aparência visual ou rosto. Analogamente, como se depreendeu quando ele foi minuciosamente questionado, ele não tinha mais imagens visuais em seus sonhos. Assim, como no caso do dr. P, não apenas a percepção visual, mas a imaginação e a 37 memória visual, as capacidades fundamentais de representação visual foram essencialmente danificadas neste paciente — pelo menos aquelas capacidades relacionadas ao pessoal, ao familiar, ao concreto. Uma cômica observação final: enquanto o dr. P. confundiu sua mulher com um chapéu, o paciente de Macrae, também incapaz de reconhecer a esposa, precisava que ela se identificasse com um marcador individual, que, neste caso, era ”[...] um artigo bem destacado de vestuário, como, por exemplo, um grande chapéu”. 38 2 O MARINHEIRO PERDIDO* É preciso começar a perder a memória, mesmo que a das pequenas coisas, para percebermos que é a memória que faz nossa vida. Vida sem memória não é vida [...] Nossa memória é nossa coerência, nossa razão, nosso sentimento, até mesmo nossa ação. Sem ela, somos nada [...] (Só posso esperar i pela amnésia final, a que pode apagar toda uma vida, como fez com a de minha mãe [...])! Luis Buñuell Esse trecho comovente e assustador das memórias recém-traduzidas de Buñuel suscita questões fundamentais — clínicas, práticas, existenciais, filosóficas. Que tipo de vida (se tanto), que tipo de mundo, que tipo de eu podem ser preservados em um homem NR *Depois de ter escrito e publicado esta história, iniciei, juntamente com o dr. Elkhonon Goldberg — aluno de Luria e responsável pela edição russa original de The neuropsychology of memory —, um estudo neuropsicológico rigoroso e sistemático desse paciente. O dr. Goldberg apresentou algumas das comprovações preliminares em conferências; esperamos vir a publicar um relato completo no momento oportuno. Um filme imensamente tocante e extraordinário sobre um paciente com amnésia profunda (Prixoner of consciousness) feito pelo dr. Jonathan Miller foi exibido na Inglaterra em setembro de 1986. Também foi feito um filme (por Hilary Lawson) com um paciente que sofre de prosopagnosia (apresentando diversas semelhanças com o caso do dr. P.). Filmes desse tipo são cruciais para auxiliar a imaginação: ”O que pode ser mostrado não pode ser dito”. Fim NR 39 que perdeu a maior parte de sua memória e, com ela, seu passado e seu ancoradouro no tempo? Isso me faz pensar imediatamente em um paciente meu para em essas questões se aplicam com precisão: o simpático, inteligente e desmemoriado Jimmie G., que foi internado no início de 1975 em nosso Lar de Idosos, nos arredores de Nova York, com uma enigmática carta de transferência informando: ”incapaz, demente, confuso e desorientado”. Jimmie era um homem vistoso, com uma basta cabeleira grisalha encaracolada, um homem saudável e bem-apessoado de 49 anos. Era alegre, cordial e generoso. ”Olá, doutor”, ele dizia. ”Que bela manhã! Posso me sentar nesta cadeira?” Era um sujeito jovial, ávido por conversar e responder às perguntas que eu lhe fazia. Informou seu nome e data de nascimento, o nome da cidadezinha em Connecticut onde nascera. Descreveu-a detalhadamente com carinho, chegando até a desenhar um mapa. Falou sobre as casas onde seus parentes tinham morado — ele ainda lembrava os números de seus telefones. Falou da escola e dos tempos de estudante, dos amigos que teve e da predileção por matemática e ciências. Discorreu com entusiasmo sobre seus tempos na Marinha - estava com dezessete anos, acabara de concluir o curso secundário quando foi convocado em 1943. com sua hábil mente de engenheiro, ele era ”talhado” para o rádio e a eletrônica e, depois de um curso intensivo no Texas, foi parar em um submarino, como operador-assistente de rádio. Ele se lembrava dos nomes dos vários submarinos onde servira, as missões de cada um, suas posições, os nomes dos colegas de bordo. Recordava-se do código morse e ainda era fluente na transmissão e recepção em morse e em datilografia sem olhar o teclado. Uma vida rica e interessante, lembrada vividamente e em detalhes, com carinho. Mas nesse ponto, por algum motivo, suas reminiscências cessavam. Ele recordava, e quase revivia, o tempo da guerra e do serviço militar, o fim da guerra e seus planos para o futuro. Acabara por gostar da Marinha, pensava em continuar como marinheiro. Mas como GI Bill, a lei de incentivo educacional e outros benefícios aos americanos que serviram nas forças armadas, ele julgou que seria mais vantajoso cursar a faculdade. Seu irmão mais Velho estava estudando contabilidade e era noivo de uma ”verdadeira beldade” do Oregon. 40 Ao recordar, reviver, Jimmie animava-se; não parecia estar falando do passado, mas do presente, e surpreendi-me com a mudança de tempo verbal em suas reminiscências quando ele passou de seus tempos de escola para a época em que esteve na Marinha. Usara primeiro o pretérito, passando depois a falar no presente e (pareceu-me) não só o presente formal ou fictício do relembrar, mas o tempo presente real, da experiência imediata. Uma suspeita repentina e improvável apoderou-se de mim. ”Em que ano estamos, senhor G.?”, perguntei, disfarçando minha perplexidade com um ar despreocupado. ”Quarenta e cinco, ora bolas. O que está querendo dizer?” E prosseguiu: ”Ganhamos a guerra, a Alemanha está morta, Truman está no comando. O futuro será brilhante”. ”E você, Jimmie, quantos anos tem”? De um jeito esquisito, incerto, ele hesitou por um momento, como se estivesse calculando. ”Bem, acho que tenho dezenove, doutor. Vou fazer vinte no próximo aniversário”. Olhando o homem grisalho à minha frente, tive um impulso pelo qual nunca me perdoei. Foi, ou teria sido, o cúmulo da crueldade se houvesse qualquer possibilidade de Jimmie lembrar-se do que sucedeu. ”Tome”, eu disse, e mostrei a ele um espelho. ”Olhese no espelho e me diga o que vê. É um rapaz de dezenove anos que está olhando no espelho”? Ele empalideceu subitamente e agarrou os braços da poltrona. ”Meu Deus!”, murmurou. ”Meu Deus, o que está acontecendo? O que houve comigo? Será um pesadelo? Estou louco? Isto é uma brincadeira” — e se descontrolou, entrou em pânico. ”Está tudo bem, Jimmie”, eu disse, tranqüilizador. ”É só um equívoco. Nada para se preocupar”.Conduzi-o até a janela. ”Olhe só! Não é um lindo dia de primavera? Está vendo os meninos jogando beisebol?” Ele recobrou a cor e começou a sorrir, e eu me esgueirei dali, levando comigo o espelho odioso. Dois minutos depois voltei à sala. Jimmie continuava olhando pela janela, observando com prazer os meninos jogando beisebol la embaixo. Virou-se quando abri a porta, e seu rosto assumiu expressão alegre. 41 ”Olá, doutor!”, disse ele. ”Que bela manhã! O senhor queria falar comigo — posso me sentar nesta poltrona?” Não havia sinal algum de reconhecimento em seu rosto franco, sincero. ”Já não nos vimos antes, senhor G.?”, perguntei displicentemente. ”Não, acho que não. O senhor tem uma barba e tanto. Eu não me esqueceria do senhor, doutor!” ”Por que me chama de ’doutor’?” ”Ora, o senhor é médico, não é?” ”Sim, mas você não me conhecia, como sabe quem sou?” ”O senhor falou como médico. Posso ver que é médico”. Pois tem razão, sou mesmo. “Sou o neurologista daqui.” ”Neurologista? Ei, há algo errado com meus nervos? E ’aqui’ — onde é ’aqui’ ? Que lugar é este, afinal?” ”Eu ia justamente perguntar isso a você — onde você pensa que está?” ”Vejo camas, e pacientes por toda parte. Parece uma espécie de hospital. Mas que diabos, o que é que eu estaria fazendo em um hospital — e com todos esses velhos, muito mais velhos do que eu? Eu me sinto bem, sou forte como um touro. Talvez eu trabalhe aqui... Eu trabalho? Qual é meu serviço?... Não, está balançando a cabeça, posso ver em seus olhos que não trabalho aqui. Se não trabalho aqui, fui posto aqui. Sou um paciente, estou doente e não sei, doutor? É estranho, dá medo... É algum tipo de brincadeira?” ”Você não sabe qual é o problema? Não sabe mesmo? Você se lembra de ter me contado sobre sua infância, que cresceu em Connecticut, foi operador de rádio em submarinos? E que seu irmão está noivo de uma moça do Oregon?” Ei, o senhor está certo. Mas eu não lhe contei isso, nunca o vi antes na vida. Deve ter lido a meu respeito na minha ficha”. Está bem”, eu disse. ”Vou contar uma história. Um homem foi ao médico queixando-se de lapsos de memória. O médico fez a ele algumas questões de rotina e depois perguntou: ’E quanto aos lapsos? ’Que lapsos?’, replicou o paciente.” “Então esse é o meu problema”, Jimmie riu. ”Eu mais ou menos achei que era. É