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Heinrich harrer Sete anos no tibeti.

Heinrich harrer Sete anos no tibeti.

 

HEINRICH HARRER - SETE ANOS NO TIBETE

A Minha Vida na Corte do Dalai Lama

 

Tradução de Marina Guaspari

 

EDIÇÕES MELHORAMENTOS

1963

 

Título do original alemão: SIEBEN JAHRE IN TIBET (1953)

 

Todos os direitos reservados pela

 

Comp. Melhoramentos de São Paulo, Indústrias de Papel

Caixa Postal 8120, São Paulo

 

 

 

 

Índice

 

 

 

PREFÁCIO.. 7

CAMPO DE INTERNAÇÃO E TENTATIVA DE FUGA.. 11

MARCHAR DE NOITE; ESCONDER-SE DE DIA.. 17

FADIGAS, PROVAÇÕES... TUDO EM VÃO.. 22

MASCARADA AUDACIOSA.. 27

O TIBETE NÃO QUER ESTRANGEIROS. 36

MAIS UMA VEZ, CLANDESTINOS ALÉM DA FRONTEIRA.. 42

EM GARTOK, SEDE DO VICE-REI 51

RECOMEÇA A DURA PEREGRINAÇÃO.. 54

UM MOSTEIRO VERMELHO, COM TELHADOS DOURADOS: TRADÜN.. 59

UMA CARTA NOS INDUZ A CONTINUAR.. 65

KYIRONG, ALDEIA DA BEM-AVENTURANÇA.. 68

O NOSSO PRIMEIRO ANO-BOM NO TIBETE. 71

PREOCUPAÇÕES SEM-FIM PELA PERMANÊNCIA.. 77

PARTIDA DRAMÁTICA DE KYIRONG.. 82

PELO PASSO DE TSHAKHYUNGLA, AO LAGO PELGU TSHO.. 84

UMA VISÃO INESQUECÍVEL: O MONTE EVEREST.. 88

TENTAÇÃO PERIGOSA: VER LHASA.. 91

ENTRE NÔMADES BONDOSOS. 96

ENCONTRO PERIGOSO COM OS KHAMPAS LADRÕES. 100

FOME E FRIO... E UM INESPERADO PRESENTE DE NATAL. 104

O SALVO-CONDUTO ABENÇOADO.. 112

FLÂMULAS COLORIDAS ORLAM O CAMINHO DO PEREGRINO.. 115

UM GRILHETA, COMPANHEIRO DE QUARTO.. 118

BRILHAM OS TELHADOS DE OURO DO POTALA.. 122

DOIS VAGABUNDOS PEDEM CASA E COMIDA.. 124

O ASSUNTO DO DIA EM LHASA.. 127

OS DOIS POBRES FORAGIDOS SÃO MIMADOS. 131

HOSPEDADOS NA CASA PATERNA DO DALAI LAMA.. 133

O MINISTÉRIO DO EXTERIOR DO TIBETE CONCEDE-NOS LIBERDADE DE MOVIMENTOS  137

VISITAS IMPORTANTES EM LHASA.. 140

A HOSPITALIDADE LIBERAL DE TSARONG.. 145

NO TIBETE NÃO SE CONHECE A PRESSA.. 149

AMEAÇADOS NOVAMENTE DE DEPORTAÇÃO.. 150

COMEÇA O ANO DO "CÃO DE FOGO". 154

UM DEUS ERGUE A MÃO, PARA ABENÇOAR.. 157

A NOSSA PRIMEIRA EMPREITADA.. 161

FESTA ESPORTIVA, ÀS PORTAS DE LHASA.. 163

A ORDEM DOS TSEDRUNGS. 171

O FILHO MAIS NOVO DA MÃE DIVINA.. 173

CAMARADAGEM COM LOBSANG SAMTEN.. 175

PROCISSÃO A NORBULINGKA.. 177

QUEREMOS VER O DALAI LAMA.. 179

ESTIAGEM E O ORÁCULO DE GADONG.. 186

A VIDA DE CADA DIA, EM LHASA.. 188

MÉDICOS, CURANDEIROS E ADIVINHOS. 191

O ORÁCULO OFICIAL. 194

OUTONO ALEGRE EM LHASA.. 198

A MINHA FESTA DE NATAL. 204

PERÍODO DE MUITO TRABALHO.. 205

OS ESTRANGEIROS E O SEU DESTINO NO TIBETE. 210

AUDIÊNCIA DO DALAI LAMA.. 213

VISITAMOS O POTALA.. 217

A CONSPIRAÇÃO DOS MONGES DE SERÁ.. 221

SOLENIDADES RELIGIOSAS, EM MEMÓRIA DE BUDA.. 224

PRIMEIRA ENCOMENDA OFICIAL. 226

TRABALHO E FESTAS, NO JARDIM DA PEDRA PRECIOSA.. 229

EM CASA PRÓPRIA — COM TODO O CONFORTO.. 231

AS VAGAS DA POLÍTICA INTERNACIONAL CHEGAM AO TIBETE. 235

A VIAGEM DO DALAI LAMA AOS CONVENTOS. 239

ACHADOS ARQUEOLÓGICOS DE AUFSCHNAITER.. 245

PROBLEMAS AGRÍCOLAS DO TIBETE. 246

ESPORTE NO GELO, EM LHASA.. 247

CAMERAMAN DO BUDA VIVO.. 248

A CATEDRAL DE LHASA.. 249

HOSPITALIDADE TIBETANA.. 251

REORGANIZAÇÃO DO EXÉRCITO E INTENSIFICAÇÃO DA RELIGIOSIDADE. 253

ESTABELECIMENTOS TIPOGRÁFICOS E LIVROS. 260

ASSUMO O ENCARGO DE CONSTRUIR UM CINEMA PARA O DALAI LAMA.. 263

PRIMEIRA ENTREVISTA COM KUNDÜN.. 273

"ÉS CABELUDO COMO UM MACACO, HENRIQUE!". 276

AMIGO E MESTRE DO DALAI LAMA.. 281

OS CHINESES VERMELHOS AMEAÇAM O TIBETE. 282

TERREMOTOS E OUTROS SINAIS AGOURENTOS. 285

DÊ-SE O PODER AO DALAI LAMA.. 288

A DÉCIMA QUARTA ENCARNAÇÃO DE TSHENRESI 291

PREPARATIVOS DA FUGA DO DALAI LAMA.. 295

DESPEÇO-ME DE LHASA.. 300

PANTSCHEN LAMA E DALAI LAMA.. 302

ROTEIRO DA FUGA DO REI-DEUS. 303

O JOVEM SOBERANO VÊ, PELA PRIMEIRA VEZ, O SEU REINO.. 305

OS MEUS ÚLTIMOS DIAS, NO TIBETE. 309

NUVENS AMEAÇADORAS SOBRE O POTALA.. 311

 

 

 

 

 

Índice das pranchas

 

 

 

Dalai Lama e Heinrich Harrer ......................................................................            10

Barco tibetano / Caravanas de iaques ...........................................................       15

Um "tschörten" .............................................................................................           16

Peregrino mendigo .......................................................................................            34

Edifício de granito  .......................................................................................            35

Criminosos algemados  ...................................................................................        44

Acampamento de nômades / Peregrinos de Lhasa  .......................................     45

Monge policial ...............................................................................................           46

Quatro monges / Banda de música dos monges ...........................................      47

Parada histórica anual / Banda dos monges .................................................       56

A grande liteira do Dalai Lama  ...................................................................           57

Lobsang Samten   .......................................................................................              75

A mãe do Dalai Lama  ..................................................................................            76

Monges com turíbulos ..................................................................................          92

O Dalai Lama segura um vaso de ouro .........................................................        93

Mosteiros na orla dos penhascos  ..................................................................      110

Estátua de ouro de Buda ................................................................................         111

O Potala / Residência da família do Dalai Lama ..........................................         129

Aufschnaiter e a irmã do Dalai Lama ........................................ ..................          130

Ministro do Exterior e secretários  ................................................................         147

Senhoras com adereços / Os três ministros principais ...............................        148

Bandeira de dimensões colossais / Casas de tufos de relva e barro ............    165

Bandeira de Tra Yerpa ..................................... .......................................                166

Nora de ministro com filho / Jogo de dados num piquenique .......................    183

Dança de monges bailarinos / Ministros e aristocratas .................................    184

Dança de monges...........................................................................................           202

Jovens aristocratas .........................................................................................         203

General Surkhang / Monte dos arredores de Lhasa .......................................    219

O irmão de Wangdüla / Patinando no gelo ....................................................      220

Wangdüla .......................................................................................................           237

Tambores e praças do exército .......................................................................        238

Tiro à distância / Soldados com armaduras e capacetes muçulmanos ........... 256

Camponeses com traje popular .................... .................................................        257

O oráculo do Estado .......................................................................................         266

 Torre sacrificial .............................................................................................           267 

O Dalai Lama e auxiliares ..............................................................................           268

Trashi-Lhünpo / Soldado khampa e o governador de Gyantse ......................  269

Soldados do exército indiano ........................................................................         278

O pendão do Dalai Lama / Entrada em Gyantse...........................................        279

A caravana do Dalai Lama ...........................................................................           296

Residência provisória ...................................................................................           298

Roteiro da viagem de Harrer (mapa) ...........................................................           313

PREFÁCIO

 

Todos os sonhos da vida começam na mocidade...

Já em criança, muito mais do que o saber escolar, me entusiasmavam os feitos heróicos do nosso tempo: os homens que se propõem explorar terras desconhecidas, ou marcam a si próprios o objetivo de medirem as suas forças, entre fadigas e privações, em competições esportivas; os conquistadores dos cumes do mundo... Esses eram os meus modelos; e não tinha limites o meu desejo de imitá-los!

Faltavam-me, porém o conselho e a orientação dos mais experientes. Decorreram assim muitos anos, antes que eu me compenetrasse da impossibilidade de visar simultaneamente a várias metas. Experimentara-me em quase todo gênero de esporte, sem colher resultados que me parecessem satisfatórios. Concentrei-me afinal em dois que, pela sua estreita afinidade com a natureza, eram os meus favoritos: esqui e alpinismo.

Eu já percorrera, em pequeno, a maior parte dos Alpes; mais tarde, mesmo estudando, todas as minhas folgas pertenciam, no verão, a escalar montanhas; no inverno, ao esqui.

Modestos sucessos estimularam-me, em breve, a ambição. Sujeitando-me a rigoroso treino, consegui usar em 1936 as cores da equipe olímpica da Áustria. Um ano depois, conquistei uma vitória, nas provas internacionais de esqui.

Nesta e noutras competições, a embriaguez da velocidade e a exaltação de ver triunfar a plenitude do esforço deram-me instantes de euforia. Não me bastava, no entanto, sobrepujar um adversário, ser proclamado vencedor. Só uma coisa valia aos meus olhos: medir as minhas energias com as montanhas.

Conseqüentemente, passei longos meses entre rochas e gelo, aclimatando-me a eles, a ponto de me parecer que já não haveria para mim paredes rochosas inacessíveis. Mas, como nada me caía do céu, caro me custou o aprendizado. Certa vez, caí de cinqüenta metros de altura e só por milagre sobrevivi à queda. Acidentes menos graves se sucediam, porém, a bem dizer a toda hora.

A volta às aulas era .naturalmente um imperativo penoso, embora eu não me devesse queixar, porque a cidade me oferecia ensejo de compulsar farto cabedal de literatura sobre alpinismo e viagens. À medida que eu devorava esses livros, na teia confusa das aspirações vagas cristalizava-se, mais e mais, o grande objetivo, o sonho de todo alpinista: tomar parte numa expedição ao Himalaia.

Podia, acaso, um rapaz desconhecido como eu esperar sequer na realização de sonhos tão audazes? O Himalaia! Para chegar lá, cumpria ser muito rico, ou pertencer à nação cujos filhos tinham — naquela época — a possibilidade de servir o seu governo na índia.

Ao homem que não era nem uma nem outra coisa, restava apenas um meio: praticar uma ação qualquer, que lhe valesse positivamente a atenção pública, a fim de — numa das raras oportunidades que também se oferecem aos "do lado de fora" — não ser desalojado simplesmente do lugar que lhe compete.

Mas que havia de ser? Não tinham sido escalados os picos, os espinhaços, as paredes dos Alpes, não raro em ações incrivelmente arrojadas? Não! Ainda restava uma parede, a mais alta e a mais difícil: o paredão setentrional do Eiger.

Nenhuma corda lhe tocara o cimo, à altitude de dois mil metros. Todas as tentativas falhavam, antes de alcançar a meta. E muitos tinham lá deixado a vida.

Em torno do enorme paredão rochoso, criara-se uma coroa de lendas. Finalmente o governo suíço exarara a proibição de galgar essa muralha.

Não havia dúvida: era a grande tarefa que eu procurava. Quebrar o encanto da vertente norte do Eiger seria habilitar-se para o Himalaia. Amadurecia lentamente em mim a resolução de tentar o que parecia quase irrealizável. Está descrito em vários livros o modo como consegui, em 1938, subir com os camaradas Fritz Kasparek, Anderl Heckmaier e Wiggerl Vorg, o temido paredão.

Aproveitei, porém, o outono desse ano, para treinar mais assiduamente, sempre tendo ante os olhos a esperança de ser convidado a participar da expedição alemã ao Nanga-Parbat, planejada para o verão de 1939. Mas tudo parecia destinado a ficar só na esperança, pois o inverno chegou, sem que nada estivesse combinado. Outros nomes foram escolhidos para uma viagem de reconhecimento aos montes fatídicos da região de Cachemira. Não me tocou senão o magro consolo de assinar o contrato que me obrigava a colaborar numa filmagem de esqui.

O argumento estava bem adiantado, quando me chegou um telefonema de longa distância. Era a convocação tão ardentemente esperada, para tomar parte na expedição ao Himalaia! Em quatro dias, devia estar tudo pronto. Não refleti um minuto. Rescindi, sem hesitar, o contrato de filmagem, corri a Graz, minha cidade natal; em vinte e quatro horas, terminei os meus preparativos e, já no dia seguinte, estava a caminho de Munique, para Antuérpia, com Peter Aufschnaiter, chefe da expedição alemã de reconhecimento ao Nanga-Parbat em 1939, e outros dois expedicionários: Lutz Chicken e Hans Lobenhoffer.

Até aí, haviam gorado quatro tentativas de alcançar os 8.114 metros de altitude do Nanga-Parbat; e tinham custado muitas vítimas. Decidira-se, portanto, experimentar outro caminho ascensional. Cabia-nos a tarefa de explorá-lo, porque já se projetava novo assalto ao pico, em 1940.

Na viagem ao Nanga-Parbat, sucumbi definitivamente à fascinação do Himalaia. A beleza dos seus montes ciclópicos, a amplidão desmesurada do panorama, a gente exótica da índia, tudo agia em mim, com um poder inexprimível.

Passaram-se, desde então, muitos anos. Eu, porém, nunca me desliguei da Ásia. Procurarei escrever aqui tudo o que ocorreu. Mas, como não tenho experiência de escritor, limitar-me-ei a expor nuamente os fatos.

 

 

 

Dois momentos: Harrer e o Dalai Lama, 1965 e 1992

 

 

Harrer e Dalai Lama: final dos anos 90.

 

 

CAMPO DE INTERNAÇÃO E TENTATIVA DE FUGA

 

Em fins de agosto de 1939, terminara a nossa viagem de reconhecimento. Descobríramos, de fato, um novo caminho ascensional e aguardávamos em Carachi o cargueiro que nos reconduziria à Europa. O navio estava muito atrasado; as nuvens da segunda guerra mundial se adensavam, mais e mais. Para escapar à rede que a polícia secreta já ia armando, Chicken, Lobenhoffer e eu decidimos esgueirar-nos, fosse por onde fosse. Só Aufschnaiter preferiu ficar em Carachi; justamente ele, que tomara parte na primeira grande guerra, não acreditava na possibilidade de haver a segunda... Nós, os três, tencionávamos alcançar a Pérsia e, dali, a pátria. Conseguimos — e até sem dificuldades — burlar a vigilância do nosso "observador", atravessando no nosso carro, um honrado calhambeque, algumas centenas de quilômetros de deserto; e chegamos a Las Bella, pequeno Estado dum marajá, a noroeste de Carachi. Mas ali nos alcançou o destino: sob o pretexto de que precisávamos de proteção individual, passamos a ter uma escolta de oito milicianos armados. Isto significava, nem mais nem menos, que éramos prisioneiros... embora entre a Alemanha e a Common wealth Britânica ainda não existisse estado de guerra.

Com essa escolta segura, não tardamos a estar de novo em Carachi, onde tornamos a ver Peter Aufschnaiter. Dois dias depois, a Inglaterra declarou-se efetivamente em guerra com a Alemanha. A partir daí, tudo se passou de enfiada: nem cinco minutos depois, vinte e cinco soldados hindus, armados até aos dentes, invadiram o jardim do restaurante — onde acabávamos de sentar-nos à mesa — para nos levarem... Um carro da polícia transportou-nos para um campo de concentração já pronto, com cerca de arame farpado. Era, porém, um "transit-camp". Quatorze dias depois fomos conduzidos ao grande campo de internamente de Ahmednagar, nos arredores de Bombaim.

Lá ficamos espremidos, encurralados, em tendas e barracas, em meio do eterno conflito de opiniões dos outros internados... Não; esse mundo destoava demais das alturas luminosas e solitárias do Himalaia. Nada havia, nesse acampamento, para o homem sequioso de liberdade! Tratei logo de arranjar trabalho voluntário, com o intuito de preparar o caminho e a oportunidade para uma tentativa de evasão.

Eu não era, naturalmente, o único internado que forjava planos dessa natureza. Com o auxílio desses companheiros de ideal, consegui em breve uma bússola, dinheiro, mapas, subtraídos ao controle. Arranjamos até luvas de couro e alicates para o arame farpado. O sumiço dado aos alicates do almoxarifado dos ingleses provocou um inquérito rigoroso, mas absolutamente sem resultado positivo.

Como todos nós acreditávamos no fim próximo da guerra, íamos protelando continuamente o nosso plano de fuga. Um belo dia, inesperadamente, fomos removidos para outro campo de concentração. Um verdadeiro comboio de caminhões ia transportar-nos para Deolali. Em cada veículo acomodaram-se dezoito presos, sob a guarda dum soldado de arma acorrentada ao cinto, para dissipar veleidades de tomá-la; à testa, no centro e à retaguarda da coluna, rodavam os bem guarnecidos carros de escolta.

Antes de abandonar o campo, Lobenhoffer e eu decidimos fugir, antes que, num novo acampamento, novas dificuldades ameaçassem os nossos projetos. Ocupamos, portanto, os dois últimos bancos de trás. Tínhamos, além disto, a sorte de ser a estrada toda em curvas; e, de quando em vez, nuvens de pó envolviam a coluna em marcha. Em tais condições, não nos faltaria ensejo de saltar, sem dar nas vistas. Era pouco provável que o "nosso" guarda desse pela nossa falta; a sua tarefa primordial consistia aparentemente em vigiar os caminhões que nos precediam. Só casualmente ele se voltava para nós. Em resumo, não nos parecendo a fuga muito difícil, arriscamo-nos a ficar até ao último. Escolhêramos para asilo um enclave português neutro; e ele estava justamente no nosso itinerário.

Chegou afinal o momento. Saltamos. Achei-me num matagal a uns vinte metros da estrada. De repente, percebi apavorado que a caravana parava. Apitos estridentes, gritos, correrias, não me deixaram dúvidas, acerca do que estava ocorrendo. Lobenhoffer fora descoberto; como ele levava a mochila, não me restava senão renunciar a evadir-me. Por sorte, no tumulto geral, consegui retomar o meu lugar no carro, sem atrair a atenção do guarda. Só os companheiros sabiam que eu me escapulira; mas esses, naturalmente, não falaram.

De súbito, vislumbrei Lobenhoffer, de mãos erguidas, diante duma fila de baionetas. Senti-me derreado; a decepção fora tremenda. Não podia culpar o meu amigo; sucedera apenas que, ao saltar com a pesada mochila, um ruído qualquer o atraiçoara. O guarda ouvira; e Lobenhoffer fora apanhado, antes de alcançar a selva protetora.

O incidente dera-nos uma lição dura, mas proveitosa: mesmo numa tentativa comum de evasão, cada um dos parceiros deve levar um equipamento individual completo.

Nesse mesmo ano, fomos transferidos para um terceiro acampamento. Um comboio ferroviário levou-nos ao maior campo de concentração da índia, às fraldas do Himalaia, a poucos quilômetros da cidade de Dehra Dun, em cujas alturas se erguia a estância de veraneio dos ingleses e dos hindus ricos, denominada "Hillstation". O nosso acampamento constava de sete grandes alas separadas, cada uma delas rodeada duma dupla cerca de arame farpado. Outra cerca dupla encerrava o campo todo e, no intervalo entre as duas, rondavam os guardas.

Era uma situação inteiramente nova. Enquanto estivéramos num campo situado na planície, os nossos planos de evasão sempre tinham por meta uma colônia portuguesa neutra. Nesse último, porém, diretamente acima de nós, torreava o Himalaia. Que idéia, para um alpinista, alcançar pelos desfiladeiros o Tibete. E dali, a meta definitiva: as linhas japonesas, na Birmânia, ou na China...

A nova modalidade de evasão exigia naturalmente uma preparação especial. Já então, não tínhamos esperança de que o fim da guerra não tardasse. Comecei, portanto, a organizar metodicamente a nova ação. Não era o caso de pensar em fugir através da índia superpovoada; para isso, eram condições quase indispensáveis muito dinheiro e domínio perfeito do idioma inglês. Compreende-se, pois que a minha escolha recaísse no Tibete pouco populoso, e no Himalaia! Mesmo no caso de gorar o meu plano, por um período, embora breve, de liberdade na montanha, valia a pena correr o risco.

Tratei, antes de tudo, se aprender um pouco de hindustani, de língua tibetana e japonesa. Depois, devorei os livros de viagem existentes na biblioteca do acampamento, para assimilar o que houvesse sobre a Ásia, especialmente sobre a região pela qual deveria correr o meu itinerário. Redigi resumos, copiei os mapas principais. Peter Aufschnaiter conservara os nossos livros e mapas da expedição. Trabalhava incansavelmente neles e, com desprendimento meritório, pôs à minha disposição todos os seus croquis. Tirei duas cópias de cada um; uma para a fuga, a outra para o caso de se perder o original.

Mas, dado justamente o itinerário da nossa evasão, importava conservar o meu corpo na melhor forma possível. Conseqüentemente, decidi dedicar, todos os dias, muitas horas ao esporte. Indiferente ao bom ou mau tempo, eu cumpria o programa que traçara a mim mesmo. Muitas noites passei em claro, espreitando os hábitos das sentinelas.

Mas o meu maior cuidado era uma dificuldade bem de outra espécie: eu tinha pouco dinheiro. Embora me desfizesse de tudo quanto podia dispensar, o produto da venda desses objetos não bastava para o mais modesto necessário no Tibete, sem contar as gorjetas e presentes que já não seria possível evitar na Ásia.

Nos primeiros tempos do meu internamento, eu não assumira compromissos do assim chamado santo-e-senha, para sair do campo, a fim de não me julgar ligado pela minha palavra de honra, no caso de se me deparar de repente uma oportunidade de me evadir. Em Dehra Dun, achei que podia e devia fazer isso; aliás, os "passeios" serviriam apenas para explorar os arredores do acampamento.

A princípio, eu tencionava fugir sozinho, para não ter de atender considerações que me pudessem estorvar os movimentos. Um dia, o meu amigo Rolf Magener falou-me dum general italiano que tinha as mesmas intenções. Eu já ouvira mencionar esse oficial. E, uma noite, pela cerca de arame, Magener e eu passamos à ala vizinha, onde se alojavam quarenta generais italianos.

O meu futuro companheiro, que devia andar pelos quarenta anos e se chamava Marchese, era no aspecto um italiano típico, esbelto, amável. O seu traje pareceu-me muito elegante, mas foi a sua constituição física o que me causou a impressão mais favorável.

Tivemos certa dificuldade em compreender-nos. Ele não falava alemão; eu não sabia italiano. Ambos detestávamos cordialmente o idioma inglês. Serviu-nos, pois, de intermediário um amigo que arranhava um pouco de francês. Marchese descreveu-me a guerra da Abissínia e uma tentativa de fuga do campo de internamento.

Felizmente para ele, que recebia um soldo de general inglês, o dinheiro não constituía problema. Marchese já tivera a possibilidade de se prover, para o caso duma fuga comum, de coisas em que nem em sonho eu me atreveria a pensar. Do que ele precisava era dum companheiro que tivesse algum conhecimento do Himalaia... Não tardamos a chegar a um acordo, na base de assumir eu a responsabilidade do plano de evasão, e ele a de obter dinheiro e equipamento.

Várias vezes na semana eu me enfiava de rastos na cerca de arame, para acertar com Marchese pormenores do plano, graças ao que me tornei perito em superar esse gênero de obstáculo. Havia, naturalmente, muitas possibilidades; no nosso caso, porém, uma prometia a meu ver o êxito mais seguro. Baseava-a na circunstância de existir, nas duas redes de arame farpado, que envolviam o acampamento, de oito em oito metros, um alpendre comum, coberto de palha, que resguardava as sentinelas, do escaldante sol indiano. Se conseguíssemos trepar num desses telheiros, sairíamos ao mesmo tempo das duas cercas.

Em maio de 1943, os nossos preparativos estavam terminados; tínhamos dinheiro, mantimentos, bússola, calçado e uma pequena barraca de alpinista.

 

Barco tibetano de couro de iaque, no Brahmaputra.

 

 

 

No Tibete, a importação e a exportação se fazem por meio das caravanas de iaques. Esta leva lã à índia.

 

Um "tschörten" esculpido na própria rocha.

 

Uma noite, decidimos tentar. Passei, como de costume à ala de Marchese. Estava ali uma pequena escada de mão que escamoteáramos, desde muito tempo, por ocasião dum princípio de incêndio no campo. Encostamos a escada à parede e esperamos à sombra duma barraca. Era quase meia-noite; dentro de dez minutos, mudariam as sentinelas. Entorpecidos, visivelmente ansiosos por que os viessem render, os guardas andavam dum lado a outro. Passaram-se mais alguns minutos. Justamente quando chegavam ao ponto escolhido por nós, a lua despontou lentamente, acima das plantações de chá. Os focos elétricos projetavam breves sombras duplas. Tinha de ser nesse momento, ou nunca!

As duas sentinelas alcançavam a maior distância possível do lugar onde nos encolhíamos. Endireitei-me; de escada na mão, corri à cerca, desci pelo outro lado e cortei as pontas do arame, que ainda poderiam estorvar, quando rastejasse no telheiro. Marchese apertou-as com o cabo dum forcado, e eu deslizei pela palha. Estava combinado que o italiano me seguiria imediatamente, enquanto eu afastaria, por meu turno os fios farpados. Mas o general hesitou uns segundos, julgando talvez que fosse demasiado tarde, que as sentinelas já se aproximassem... Eu cheguei de fato a ouvir-lhes os passos. Não perdi tempo em reflexões: agarrei o italiano numa braçada, e puxei-o para o telhado. Rastejamos os dois e, com uma queda um tanto pesada, mergulhamos na liberdade.

Tudo isto não correra liso como pode parecer. As sentinelas estavam alertadas. Mas, quando os primeiros tiros crepitaram na escuridão, já nos tragara a selva espessa.

O primeiro gesto de Marchese foi abraçar-me e beijar-me, com toda exuberância do seu temperamento meridional. O momento, porém, não se prestava para tais efusões. Foguetes luminosos estralejavam no alto e os apitos, próximos, revelavam que já tínhamos os perseguidores aos calcanhares. Tratava-se da nossa vida. Desatamos, pois, a correr em atalhos da mata, muito meus conhecidos, desde os meus passeios de exploração pelas vizinhanças do acampamento. Só raramente percorríamos a estrada real e, por boa medida de prudência, evitávamos os povoados. A princípio, nem sentíamos as mochilas. A pouco e pouco, porém, o seu peso começou a incomodar-nos.

Numa aldeia, os nativos puseram-se a tocar tambor; e a nossa fantasia imaginou logo um alarma. Há dificuldades que mal se concebem numa terra habitada só por brancos. Na Ásia, o "sahib" viaja sempre acompanhado dum séquito de servos; não leva pessoalmente a menor maleta. Como não haviam de dar nas vistas dois europeus, atravessando aqueles sítios, a pé e pesadamente carregados?

 

 

MARCHAR DE NOITE; ESCONDER-SE DE DIA

 

Decidimos, portanto, aproveitar as noites para a marcha, porque o hindu, depois do escurecer, não entra na selva... por causa dos animais ferozes. Nós também não deixávamos de ter certa apreensão; lêramos de sobra, em jornais esquecidos no acampamento, casos de pessoas estraçalhadas por tigres e panteras...

Quando, ao termo da primeira noite, raiou a madrugada, escondemo-nos, exaustos, num vale e ali, comendo e dormindo, passamos o dia tórrido, interminável, sem ver senão um único transeunte, e assim mesmo de longe: um vaqueiro que, por sorte, não reparou em nós. O pior era que, para todo aquele dia, a nossa provisão de água consistia apenas numa garrafa.

Não admira que, ao escurecer, entre debates e pausas de silêncio, mal pudéssemos dominar os nervos. Queríamos distanciar-nos, tão depressa quanto fosse possível, e só a noite parecia-nos espaço demasiado breve, para avançar com a presteza desejada. Devíamos chegar, pelo caminho mais curto ao Tibete, através do Himalaia; fosse como fosse, iam ser semanas de marchas esfalfantes, até podermos julgar-nos em segurança.

Ainda assim... galgamos a primeira encosta já na noite seguinte à nossa evasão. No alto, sentamo-nos, para um breve descanso. Mil metros abaixo, faiscavam as muitas luzes do acampamento. Às 22 horas, apagaram-se de golpe. Só os projetores, enquadrando o campo, davam uma idéia da sua enorme extensão.

Era, na minha vida, a primeira vez que eu sentia em toda a plenitude o que significa ser livre! Saboreávamos com deleite essa consciência, pensando com pesar nos dois mil prisioneiros que tinham de viver lá abaixo, atrás do arame farpado.

Muito tempo vaguearam os nossos pensamentos; mas ali nada havia a fazer. Tínhamos de continuar, de descer ao vale do Djemna, uma região completamente desconhecida. Num dos vales laterais, não nos foi possível ultrapassar um desfiladeiro estreito e não houve remédio senão aguardar a manhã seguinte. O sítio era tão deserto, que aproveitei a pausa, para tingir de preto os meus cabelos ruivos e os pêlos da minha barba. Também passei no rosto e nas mãos uma combinação de permanganato de cálcio, graxa e tinta preta, para adquirir um tom escuro. Assumi assim certo jeito de hindu; e isto era importante, porque em caso de sermos descobertos, tencionávamos impingir-nos por peregrinos a caminho das águas sagradas do Ganges. Quanto ao meu camarada, a natureza já o fizera suficientemente moreno para iludir, principalmente de longe. E está visto que não deveríamos deixar-nos examinar de perto.

Dessa vez, pusemo-nos a caminho, antes do escurecer. Não tardou muito que nos arrependêssemos da nossa resolução: após breve caminhada num terreno escabroso, vimo-nos de improviso diante dum grupo de plantadores de arroz. Patinhando, seminus, na água lodosa que lhes chegava aos joelhos, os camponeses miraram os dois brancos dobrados sob o peso das mochilas. Depois, apontaram no alto da encosta o que devia ser o seu povoado, como para dizer que era a única saída do desfiladeiro. Para evitar perguntas embaraçosas, marchamos imediatamente, com a máxima presteza, na direção indicada e, ao termo de horas de subidas e descidas, chegamos enfim ao Rio Djemna.

Entretanto, anoitecera. O nosso plano consistia em ir pela margem do Djemna até ao seu afluente Aglar e, costeando este rio, alcançar o divisor das águas. Dali não devia distar muito o Ganges, que nos conduziria à grande cadeia do Himalaia.

Na maior parte do caminho, que deixáramos para trás, não havia à margem do rio nem atalhos nem estradas; só ocasionalmente utilizávamos alguma vereda de pescador. Já de manhã, Marchese estava exausto. Preparei-lhe flocos de aveia, com água e açúcar e, cedendo à minha insistência, ele se alimentou um pouco. Infelizmente, o local não se prestava para acampar, infestado como era de formigas enormes que nos picavam profundamente a pele. E, como apesar do cansaço não conseguimos dormir, o dia pareceu-nos eterno.

No fim da tarde, o meu camarada parecia mais animado e eu criei nova esperança de que a, sua compleição robusta o ajudasse a refazer-se. Ele também mostrava-se mais confiante; resistiria, sem dúvida, às fadigas das próximas horas. Mas, pela meia-noite, faltaram-lhe completamente as forças. Marchese sucumbia simplesmente ao enorme esforço físico. Muito nos valeu então o meu rigoroso treino esportivo; de fato, mais duma vez tive de carregar a mochila do meu companheiro, afivelada à minha, as duas metidas nos sacos de juta, usados pelos hindus, porque as mochilas eram européias como nós e poderiam despertar suspeitas.

Nas duas noites seguintes continuamos, vagueando rio acima, vadeando o Aglar sempre que matagais ou rochedos bloqueassem o caminho. Uma vez, quando nos arrastávamos entre grandes pedras, no leito do rio, passaram por nós alguns pescadores, sem notar a nossa presença. Noutra ocasião, topando com outros pescadores, sem os poder evitar, pedimos no nosso arrevesado hindustani algumas trutas. As nossas roupas ainda deviam estar em bom estado, porque os homens nos venderam os peixes, sem desconfiança; e até os cozinharam para nós. Também nos foi possível responder às perguntas curiosas do grupo, sem provocar suspeitas. Os nossos pescadores fumavam os pequenos cigarros indianos, mal tolerados pelos europeus. Marchese que, antes da fuga, era grande fumante, não resistiu à tentação e quis experimentar um. Puxou algumas baforadas e, sem mais, caiu como um toco, desacordado.

Felizmente, logo voltou a si e pudemos continuar a marcha. Mais tarde, encontramos uns campônios que levavam manteiga à cidade. Como já íamos perdendo o receio, pedimos que nos vendessem um pouco da sua mercadoria. Um deles concordou. Mas, quando vimos o hindu passar com as mãos escuras e sujas, do seu pote para o nosso, a manteiga meio derretida pelo calor, quase vomitamos de nojo.

Afinal, o vale alargou-se e o caminho continuou entre campos de milho e arrozais. Ainda era difícil encontrar um bom esconderijo para o dia. Certa vez descobriram-nos logo de manhã; e como as perguntas dos campônios ameaçavam tornar-se demasiado indiscretas, pareceu-nos que a resposta melhor era afivelar os nossos sacos e seguir viagem.

Não arranjáramos ainda outro refúgio, quando topamos com oito indivíduos que, em altos brados, nos intimaram a parar. Era de crer que a sorte nos desamparava de vez! Às muitas inquirições do grupo, replicamos, como sempre, que éramos peregrinos duma província distante. Tivemos a surpresa de ver que nos saíamos bem da "prova", porque os hindus nos deixaram em paz. Mal podíamos acreditar; e por muito tempo, julgamos ouvir atrás de nós, o tropel dos nossos perseguidores...

Fora também idéia a de "retocar" no último esconderijo as minhas cores! Contudo, esse dia era mesmo aziago e os aborrecimentos pareciam não ter fim. O último deles foi a verificação de que tínhamos atravessado de fato um divisor de águas, mas continuávamos na bacia do Djemna, o que equivalia a um atraso de pelo menos dois dias.

Continuamos, encosta acima. Chegando a uma cerrada floresta de rododendros, o sítio nos pareceu tão deserto, que já contávamos com um dia sossegado. Afinal, íamos dormir um bom sono!... Pouco depois, começaram a aparecer vaqueiros, e tivemos de mudar de acampamento. Era uma vez o nosso bom sono...

Nas noites seguintes, atravessamos de novo territórios relativamente pouco povoados. Em breve, infelizmente, soubemos porque: não havia ali, a bem dizer, um fio d'água! A sede nos torturava, a ponto de me induzir a um erro que poderia ter graves conseqüências. Avistando no caminho o que me pareceu uma poça d'água, precipitei-me e comecei a beber sofregamente.

As conseqüências foram horrorosas. Era o charco onde os búfalos arnis se refugiam nas horas quentes; e a poça não era d'água, era de urina! Tive um acesso de tosse e quase deitei os bofes pela boca fora. Custou-me deveras refazer-me desse "refresco" asqueroso.

Pouco depois desse acidente, a sede obrigou-nos a interromper a marcha, embora ainda fosse noite fechada. Ao amanhecer, aventurei-me pelos declives íngremes em busca de água. Nos três dias e noites seguintes, a nossa situação não melhorou muito. Atravessávamos pinheirais secos, felizmente desertos, tanto que era muito raro topar com um hindu e correr o risco de sermos apanhados.

Chegou enfim, no duodécimo dia após a nossa evasão, o grande momento: estávamos à margem do Ganges! O hindu mais devoto não se sentiria mais impressionado do que nós, à vista do "rio sagrado", se bem que para nós a importância do grande curso d'água não fosse propriamente religiosa, mas prática. A partir dali, poderíamos seguir a estrada dos peregrinos, subir o Ganges até à nascente; e as fadigas da marcha diminuiriam, em medida considerável. Era, pelo menos o que pensávamos... Já que chegáramos tão longe, decidimos não nos expor mais a um risco que não era absolutamente inevitável: marcharíamos só de noite.

As nossas provisões de boca estavam uma miséria, os mantimentos já desfalcados, o pobre Marchese reduzido a pele e ossos. Ainda assim, fazia pelo melhor. Quanto a mim, felizmente, ainda conservava certa reserva de energias.

Todas as nossas esperanças concentravam-se nas casas de chá e de gêneros alimentícios, espalhadas em todo o percurso das peregrinações. Algumas delas ficavam abertas até tarde, assinaladas por um candeeiro de claridade opaca. Retoquei a minha maquilagem hindu e dirigi-me para uma delas... Mal entrei no armazém, correram-me a palavrões. Tomaram-me, sem dúvida por um ladrão. Por mais desagradável que fosse, o incidente teve o seu lado bom, para ocasiões futuras: certificou-me de que a minha caracterização era autêntica. Entrei noutra dessas casas de pasto primitivas, exibindo na mão todo o meu dinheiro, o que, aparentemente, causou boa impressão. Expliquei que estava fazendo compras para dez pessoas e assim consegui, sem provocar estranheza, quarenta libras de farinha, açúcar bruto e cebolas.

A gente do armazém cuidava mais de examinar as cédulas do que a minha pessoa, de modo que, pouco depois, pude sair, carregado de embrulhos. Passamos então um dia feliz; tínhamos enfim comida suficiente e a estrada dos peregrinos, depois do caminho que deixáramos para trás, parecia-nos um esplêndido passeio.

Mas a alegria não duraria muito. Já na parada seguinte, perturbou-nos um magote de gente que estava à procura de lenha. Atormentado pelo calor, Marchese andava quase nu; emagrecera tanto, que se lhe podiam contar as costelas. Causava de fato a impressão de pessoa muito doente.

Apesar de tudo, éramos suspeitos, porque não pernoitávamos nas estalagens habituais dos peregrinos. Os nativos nos convidavam a acompanhá-los às suas aldeias. Nós nos esquivávamos, pretextando o mau estado de saúde do meu companheiro.

Os hindus afastaram-se... Mas desgraçadamente voltaram. E, dessa vez, não havia dúvida, de que nos consideravam foragidos. Tentaram até extorquir-nos confissões. Falaram-nos dum inglês que andava com oito soldados, atrás de dois fugitivos e lhes prometera boa recompensa por qualquer notícia que lhe levassem a respeito deles. Se nós lhes déssemos dinheiro, eles se calariam... Eu fiquei firme; insisti em que era médico em Cachemira; como prova, mostrei a minha farmácia portátil.

Fossem os gemidos, infelizmente sinceros, de Marchese, fosse a farsa que eu lhes representara, os hindus deram-se por satisfeitos e sumiram. Passamos as próximas horas, receando continuamente que eles voltassem, possivelmente acompanhados dalguma personagem oficial. Mas ninguém nos incomodou.

Em tais condições, em vez de serem um descanso, os dias eram mais fatigantes do que as noites. Não para os músculos, mas para os nervos mantidos em tensão ininterrupta. De ordinário, ao meio-dia a nossa provisão de água estava esgotada; o resto do dia parecia interminável. Ao escurecer, Marchese punha-se heroicamente em marcha. Até à meia-noite, por muito que ele se ressentisse da perda de peso, tudo ia bem. Depois, porém, o meu companheiro precisava de umas duas horas de sono, para continuar. Ao alvorecer, acampávamos e, em geral, do nosso esconderijo dominávamos a grande estrada dos peregrinos, por onde transitavam, sem interrupção as caravanas de devotos — muitas vezes em trajes extravagantes — sem necessidade de se esconderem. Felizardos!... Todos os anos, durante os meses de verão, passam por essa estrada cerca de 60.000 romeiros. Nós o ouvíramos dizer no acampamento; já não nos custava acreditar.

 

 

FADIGAS, PROVAÇÕES... TUDO EM VÃO

 

Depois de muito andar, pela noite alcançamos Uttar Kashi, a cidade-templo, em cujas vielas estreitas perdemos em breve a orientação. Marchese sentou-se, portanto, com as mochilas, num canto escuro; eu, por minha conta, procurei orientar-me. Pelas portas abertas, avistava-se o interior dos templos resplandecentes de luzes acesas aos pés dos simulacros dos deuses; muitas vezes tive de recuar dum salto e esconder-me, porque os monges andavam dum a outro santuário. Perdemos uma hora, antes de reencontrar fora da cidade o caminho dos peregrinos.

Nos muitos livros de expedições, que tivera ensejo de ler, eu aprendera que, dentro em pouco, atravessaríamos a assim chamada "linha divisória interna", paralela à fronteira real da região, com um intervalo de cem a duzentos quilômetros entre as duas. Para entrar no território compreendido entre as duas linhas, excetuada a população estável, todos devem ter passaporte. Como não os tínhamos, tanto mais nos parecia aconselhável evitar os postos policiais e as suas patrulhas.

O vale, por onde subíamos, tornava-se cada vez menos povoado. De dia, não nos custava achar sítios apropriados para descansar. Não raro, eu deixava despreocupadamente o esconderijo, em busca de água. Uma vez, cheguei a acender uma fogueira, para cozinhar flocos de aveia — a nossa primeira refeição quente, nesses quatorze dias...

Devíamos estar a uns 2.000 metros de altitude. Durante a noite, costeávamos freqüentemente os acampamentos dos "buthias", negociantes tibetanos que, nos meses quentes, exploram o seu modesto comércio e, no inverno vão à índia. Muitos deles passam o verão aos três ou quatro mil metros de altitude, em povoados onde cultivam cevada. Os acampamentos, que vimos durante a noite, tinham uma particularidade muito desagradável: sempre que nos aproximávamos de um deles, forçoso era avir-se com os cães tibetanos, fortes e agressivos, uma raça de porte mediano e pêlo comprido, que vimos ali pela primeira vez.

Certa noite, entramos numa dessas aldeias habitadas só no verão. Dava uma impressão de intimidade, com as suas casas baixas, de telhados de ripas calçados com pedras. Fora do povoado, porém, aguardava-nos uma surpresa pouco aprazível: o terreno estava revolvido como depois duma enchente e no riacho, causa de toda aquela devastação, procuramos debalde uma ponte. Também nos pareceu absolutamente impossível vadear doutra maneira o curso d'água. Desistimos afinal e resolvemos observar o sítio, dum esconderijo; não podíamos acreditar que a estrada dos peregrinos se interrompesse bruscamente nesse ponto. Na manhã seguinte, recomeçou de fato a passagem dos romeiros e nos pasmamos de ver que eles atravessavam o regato justamente onde estivéramos nessa noite várias horas, procurando em vão uma passagem. Infelizmente não conseguimos averiguar onde acabava o vau, porque uma floresta nos impedia a vista. Igualmente estranho e inexplicável nos pareceu o fato de a torrente de peregrinos se interromper já às primeiras horas da manhã.

Na noite seguinte, tentamos de novo atravessar o riacho; e mais uma vez não nos foi possível. Finalmente ocorreu-me uma explicação: esse regato carreava, sem dúvida, as águas do degelo, em razão do que a sua correnteza atingia o nível máximo do meio-dia à madrugada. Nas primeiras horas da manhã, descia ao nível mínimo.

Era exatamente o que eu supunha. Ao alvorecer, quando voltamos ao nosso riacho, os troncos duma ponte primitiva apareciam acima da água. Equilibrando-nos prudentemente, seguimos por eles até à outra margem. Ali, porém apareceram novos braços de rio que tiveram de ser vadeados com a mesma dificuldade. Acabava eu de deixar para trás o último regueiro, quando Marchese resvalou e caiu n'água — por sorte, sobre os troncos; do contrário, a correnteza o arrastaria.

Quando, totalmente encharcado e exausto, Marchese se viu de novo ao meu lado, não teve ânimo para continuar. Debalde insisti em que fosse comigo até a um matagal próximo; ele estendeu a saca a enxugar e pôs-se a acender fogo. Pela primeira vez, me arrependi de não ter cedido aos seus reiterados pedidos para que o deixasse e continuasse sozinho. E sempre eu insistira em que persistíssemos juntos...

De súbito, surgiu diante de nós um hindu que, enviesando um olhar aos objetos europeus esparsos no chão, começou a interrogar-nos. Só então Marchese compreendeu o perigo da nossa situação. Juntou às pressas as suas coisas na saca; mal déramos, porém, dois passos, quando outro hindu mais majestoso se atravessou na nossa frente, acompanhado de dez robustos asseclas, e num inglês irrepreensível, pediu os nossos passaportes. Fizemos de conta que não entendíamos e tentamos impingir-nos como peregrinos de Cachemira. O hindu refletiu um instante e emitiu um parecer muito sagaz que, para nós, infelizmente, significava o fim. Na casa contígua, disse o hindu, estavam dois cidadãos de Cachemira. Se conseguíssemos entender-nos com eles, continuaríamos o nosso caminho. Que acaso diabólico trouxera justamente dois indivíduos de Cachemira àquele cafundó? Eu me valera desse pretexto, justamente porque, nesses lugares, gente de Cachemira era uma raridade.

Os dois homens, a que o hindu se referia, eram peritos em cálculos de prejuízos causados por inundações. Quando nos vimos diante deles, percebemos que chegara a hora em que seríamos desmascarados. Convicto de que isso já era fato consumado, falei a Marchese em francês. No mesmo instante e no mesmo idioma, o hindu convidou-nos a abrir as nossas mochilas. E, à vista da minha gramática anglo-tibetana, opinou que seria preferível darmo-nos a conhecer. Confessamos, pois, que éramos foragidos, sem revelar a nossa nacionalidade, falando inglês.

Embora pouco depois nos encontrássemos numa sala confortável, tomando chá, a minha decepção era imensa. Estávamos no décimo oitavo dia, depois da nossa fuga; suportáramos fadigas, privações, tudo em vão. O homem que nos interrogava era o diretor-geral da silvicultura do Estado de Theri-Gharwal. Estudara ciência florestal nas escolas superiores da Inglaterra, da França e da Alemanha, e dominava os três idiomas. A inundação — uma catástrofe que, havia um século não ocorria nessa província — obrigara-o a uma viagem de inspeção. O chefe lamentou sorrindo a sua presença. Mas, desde que fora chamado, tinha de cumprir o seu dever.

Hoje, quando me ponho a recapitular o conjunto de circunstâncias, que redundou na nossa prisão, devo admitir que foi mais do que azar o que nos reduziu à impotência. Apesar de tudo, nem um instante duvidei de que ainda dessa vez escaparia. Marchese, porém, caíra numa depressão tão profunda, que recusou acompanhar-me. Como bom camarada e sabendo os meus apuros monetários, deu-me a maior parte do seu dinheiro. Aproveitei o dia para comer o que houvesse, pois desde vários dias marchávamos sem mantimentos. O cozinheiro do diretor não tinha mãos a medir preparando comida a maior parte da qual desaparecia na minha mochila. Ainda era cedo, quando pedimos licença para deitar-nos, pretextando cansaço. A porta do nosso quarto foi fechada por fora e na varanda, ao pé da nossa janela, o diretor mandou fazer a sua cama, a fim de nos bloquear também esse caminho. Mal ele se ausentou um instante, Marchese e eu pusemos em prática o que tínhamos combinado exatamente pouco antes: fingimos uma discussão acalorada; mas, enquanto Marchese esbravejava alternadamente com voz grossa e voz fina, eu agarrei a mochila, deslizei da janela para a cama do diretor e corri ao extremo da varanda. Anoitecera já então completamente; esperei, uns segundos, que a patrulha virasse o canto da casa e aventurei-me a um salto de quatro metros de altura, com os quarenta quilos da mochila na mão. O terreno não era muito duro, e o choque não foi muito violento. Logo refeito da queda, pulei o muro do jardim e desapareci na floresta escura como breu.

Estava livre...

Em derredor, tudo quieto. Apesar da minha aflição, não pude conter o riso, lembrando-me de Marchese que talvez continuasse a esbravejar no quarto, e do diretor de silvicultura, de sentinela na cama armada na varanda...

Mas cumpria continuar. Desatei a correr e achei-me, atarantado, no meio dum rebanho de ovelhas adormecido. Antes que me fosse possível voltar atrás, um cão me abocanhou os fundi-lhos; e só os largou, depois de lhes arrancar um pedaço. Apavorado, barafustei pelo primeiro atalho; mas quase logo, percebi que ele se tornava demasiado íngreme. Não; por esse caminho, não poderia ir adiante. Recuei, pois, mais uma vez, procurando evitar o rebanho, a fim de tomar por outro lado. Pouco depois da meia-noite, verifiquei, no entanto, que me perdera outra vez. Novo recuo dalguns quilômetros, a passos agigantados! Nesse vaivém, perdera eu quatro horas e o céu já ia clareando. Ao dobrar uma curva do caminho, avistei, a uns vinte metros de distância, um urso que felizmente não deu pela minha presença. Com dia claro, tornei a esconder-me, se bem que não notasse nos arredores sinal algum de vida humana. Sabia, porém, que antes da fronteira tibetana, encontraria uma aldeia. Além dela, estaria finalmente a liberdade! Marchei toda a noite seguinte, e já devia achar-me a uns 3.000 metros de altitude. Aos poucos, comecei a estranhar que não me aparecesse a tal aldeia. Pelos meus apontamentos, ela deveria estar na margem oposta do rio, além da ponte. Acaso eu já a ultrapassara? Entretanto, uma aldeia não é coisa que possa passar despercebida. Recobrando ânimo, continuei a andar até ao amanhecer.

Foi a minha desgraça. Sim, porque de repente, ao dobrar um monte de entulho, ao pé duma ladeira pedregosa, vi-me defronte das casas da aldeia e dum ajuntamento alvorotado e gesticulante! A aldeia- estava mal assinalada no meu mapa; além disto, o tempo que eu perdera na primeira noite foi suficiente para que os meus perseguidores me alcançassem. Intimaram-me a entregar-me voluntariamente, e fiquei hospedado numa casa próxima.

Ali me encontrei, pela primeira vez, com autênticos nômades tibetanos que levam sal à índia, com os seus rebanhos de ovelhas e lá se suprem de cevada. Ofereceram-me ali, também pela primeira vez, o chá tibetano com manteiga e "tsampa", alimento principal daquele povo e do qual eu mesmo havia de viver anos mais tarde. Dessa primeira vez, porém, as minhas vísceras protestaram energicamente contra esse estranho manjar.

Passei duas noites na aldeia, que se chamava Nelang. Embora o meu cérebro andasse às voltas com outros planos de evasão e se me oferecessem até muitas possibilidades, eu estava pela primeira vez muito cansado e sem ânimo para os por em execução.

Comparada às fadigas, que eu suportara até aí, a volta foi uma excursão de recreio. Eu não tinha de carregar peso e era bem e regularmente alimentado. No percurso, tornei a encontrar-me com Marchese, ainda hóspede do bangalô privado do diretor florestal. Também fui convidado a ficar. E quem saberá descrever a minha surpresa dias depois, quando foram presos mais dois foragidos do nosso campo e num deles reconheci o meu ex-camarada de expedição Peter Aufschnaiter? O outro fujão era um eclesiástico, o padre Calenberg.

Entretanto, eu recomeçara a pensar noutra evasão. Travei amizade com um hindu da nossa escolta, que cozinhava para nós e me inspirava confiança. Entreguei-lhe os meus mapas, a bússola e o dinheiro, pois sabia que estava iminente uma perquirição e não me seria possível contrabandear de novo tais objetos para o campo de internamento. Prometi, portanto, ao hindu que viria buscá-los na próxima primavera. Ele pediria uma licença no mês de maio e esperaria por mim. O hindu prometeu solenemente. E partimos para o acampamento, marcha amargurada que eu só suportei, graças à minha esperança de fugir de novo e dentro em pouco.

Marchese continuava adoentado e só podia viajar a cavalo. Mais uma vez, houve uma pausa agradável: o marajá de Theri-Gharwal hospedou-nos fidalgamente. Depois, outra vez o arame farpado...

Mas esse episódio de fuga deixara em mim um rasto visível. Na viagem de volta, passamos por uma fonte termal. Quis tomar um banho e os cabelos me ficaram em tufos entre os dedos. A tinta, que eu empregara na minha caracterização hindu, era evidentemente nociva.

Após essa depilação involuntária, somada às fadigas das minhas marchas aventurosas, quando entrei no acampamento, muitos dos meus camaradas tiveram dificuldade em me reconhecer.

 

 

MASCARADA AUDACIOSA

 

— O senhor praticou uma evasão audaciosa — disse o coronel inglês que nos recebeu no acampamento. Lamento muito, mas tenho de lhe dar vinte e oito dias de detenção.

Eu gozara trinta e oito dias de liberdade; ia descontá-los com vinte e oito dias de prisão celular. Todavia, como os ingleses votam certo respeito cavalheiresco a uma "tentativa audaciosa de evasão", o castigo não foi tão rigoroso, como costumava ser. Ao terminar a penitência, fui informado de que Marchese sofrerá a mesma punição, noutro setor do campo. Mais tarde tivemos ensejo de rememorar o nosso empreendimento.

Marchese prometeu-me o seu auxílio, para a minha próxima fuga. Ele, porém, não se meteria noutra. Sem perder um dia sequer, comecei a desenhar novos mapas, a utilizar as experiências da fuga frustrada. Estava certo do êxito da minha futura tentativa; desta vez, iria sozinho.

Ocupado com os meus arranjos, achei que o inverno passava rapidamente. A nova "estação da fuga" encontrou-me bem preparado. Desta vez partiria cedo, a fim de atravessar a aldeia Nelang, enquanto estivesse desabitada. Não contando com a restituição dos objetos confiados ao hindu, tratei de arranjar de novo os que me pareciam mais importantes. Prova comovente da camaradagem reinante no campo eram os subsídios em dinheiro com que me ajudavam, se bem que a qualquer dos companheiros pudessem fazer falta esses parcos recursos.

Eu não era o único internado que tencionava escapulir. Os meus dois melhores amigos: Rolf Magener e Heins von Have também preparavam uma evasão. Ambos falavam correntemente inglês e pretendiam chegar, através da índia, à frente da Birmânia. Have já fugira duas vezes, com um camarada e chegara quase à Birmânia; ambos tinham sido apanhados perto da fronteira. Na segunda tentativa, o seu companheiro perecera num acidente. Outros internados — três ou quatro, pelo que me diziam — pretendiam evadir-se. No fim, éramos sete e resolvemos abandonar juntos o acampamento, porque várias tentativas individuais agravariam o estado de alarma e dificultariam a fuga dos que ficassem por último. Se a evasão tivesse êxito, lá fora cada qual poderia por em prática os seus próprios planos. Peter Aufschnaiter — que, desta vez tinha como parceiros o salzburguês Bruno Treipel e os berlinenses Hans Kopp e Sattler — queria, como eu, ir ao Tibete. A fuga estava marcada para o dia 29 de abril de 1944, depois do almoço. O nosso plano era conquistar a liberdade, disfarçados em encarregados de consertar as cercas de arame farpado. Esses grupos de trabalho eram um espetáculo comum, porque as formigas brancas solapavam os numerosos mourões que cercavam o acampamento, e as cercas necessitavam continuamente de reparações. Cada grupo constava dalguns hindus, sob a vigilância dum inglês. No momento aprazado, entramos numa barraquinha próxima dum setor do aramado que, segundo observáramos, costumava estar deserto; e um técnico em maquilagem, num relance transformou-nos em autênticos hindus. Have e Magener envergavam uniformes ingleses, fáceis de conseguir no acampamento. Os "hindus" rasparam a cabeça e cobriram-se com turbantes. Apesar da nossa situação crítica, vendo-nos uns aos outros, não podíamos deixar de rir. Parecíamos de fato um grupo de mascarados, para um baile de carnaval. Dois de nós carregavam uma escada, guardada desde a noite da véspera no corredor abandonado. Escamoteáramos também uma boa peça de arame farpado, que levávamos enrolada num mourão. Os nossos objetos de uso iam embrulhados, ou escondidos nas largas dobras do nosso vestuário de nativos. Não podiam causar estranheza, porque os hindus costumam levar consigo todas as suas coisas.

Muito convincentes eram os nossos dois oficiais ingleses. Traziam debaixo do braço rolos de plantas e tratavam com arrogância os seus "subordinados". Abríramos de antemão uma brecha na cerca e por ela nos esgueiramos em fila, no corredor não vigiado que separava as várias alas. Dali, eram ainda trezentos metros, até ao portão principal. Não despertamos absolutamente atenção; não paramos uma única vez; e os dois "oficiais" inspecionavam zelosamente a cerca, quando o primeiro sargento passou pelo portão, empoleirado na bicicleta. Nós também passamos, sem pestanejar, pela sentinela, que se dobrava em dois para saudar o superior e nem se dignou olhar o nosso grupo, de miseráveis "kulis". O sétimo conjurado, Sattler, atrasara-se um pouco. Apareceu, correndo, balançando um tanto drasticamente o seu balde de piche, lambuzado de preto. Só nos alcançou além do portão.

Mal nos vimos fora das vistas da guarda, despimos rapidamente o disfarce, debaixo do qual usávamos a roupa caqui, o nosso vestuário usual mesmo para os passeios. Despedimo-nos em poucas palavras. Have, Magener e eu ainda corremos algumas milhas juntos. Depois os nossos caminhos se separaram; eu preferia seguir o itinerário da minha fuga anterior. Apressei o passo; queria por, até à manhã seguinte, a máxima distância possível entre mim e o acampamento. Pretendia manter o meu propósito de marchar só de noite e esconder-me aos primeiros clarões do dia. Não; desta vez, não arriscaria nada! Os quatro camaradas, que também se dirigiam para o Tibete, iam juntos, utilizando afoitamente a estrada real de Mussoorie ao vale do Ganges. Eu não me atrevia a tanto; parecia-me melhor ir, como da outra vez pelos vales do Djemana e do Aglar. Nessa primeira noite, vadeei o Aglar, não menos de quarenta vezes. Apesar disto, ao alvorecer, acampei exatamente no mesmo lugar, onde um ano antes só chegáramos ao termo de quatro dias. Sozinho, avançara com muita presteza. Felizmente estava livre, satisfeito com o resultado do meu esforço, embora esfolado e contundido e, já nessa primeira etapa, desfalcado dum par novo de sapatos de tênis, gastos pela carga que levava.

Escolhi o local do meu primeiro bivaque, entre os seixos do leito do rio. Mal desembrulhara as minhas coisas, surgiu acima de mim um bando de macacos. Eles também me descobriram e puseram-se a apedrejar-me, guinchando. Distraído pela algazarra, não notei a aparição repentina duns trinta hindus que subiam correndo o rio; só os vi, quando estavam bem próximos do meu esconderijo. Até hoje, não sei se eram simples pescadores e passavam casualmente, ou se tinham visto de fato o nosso grupo de fugitivos. Seja como for, não acredito que não me vissem, de tão curta distância... Respirei; mas, alertado pelo incidente, resolvi ficar ali até à noite e só ao escurecer continuei a caminhada. Orientando-me toda a noite pelo curso do Aglar, avancei bastante. O bivaque seguinte passou, sem contratempos; consegui descansar e refazer-me. Ao entardecer, porém, ardendo de impaciência, reiniciei a marcha. Cedo demais, talvez. Efetivamente, mal percorrera uns cem metros, assustei uma hindu que apanhava água à fonte. A nativa rompeu em altos gritos, deixou cair a bilha de barro e correu às casas vizinhas. Eu também, não menos apreensivo, desviei-me da estrada e enveredei, correndo, para um vale lateral. O atalho era muito íngreme. Embora eu soubesse que, de qualquer maneira, chegaria ao meu destino, foi um rodeio penoso de muitas horas. A minha etapa seguinte era subir o Nag Tibba, de mais de 3.000 metros de altura, deserto na parte superior e coberto de matas.

Ao alvorecer, quando já ia bem cansado, vi-me pela primeira vez na minha vida, defronte duma pantera. Tive a sensação de que o meu coração parava e me faltavam as forças. A minha única arma era uma faca de cozinha, feita expressamente para mim pelo ferreiro do acampamento e enfiada num longo cabo de madeira. A pantera, sentada num galho reforçado e pronta para o bote, estava a uns cinco metros do chão. Refleti, com rapidez fulmínea no que me convinha fazer e, reprimindo o medo, continuei a andar. Nada aconteceu; mas, por muito tempo, senti um frio na espinha.

Até aí, eu seguira pela crista do Nag Tibba. Resolvi então voltar à estrada. Mal percorrera alguns quilômetros, outra surpresa: alguns homens roncavam, atravessados no caminho. Reconheci Peter Aufschnaiter, mais três camaradas do acampamento! acordei-os com um repelão, e pusemo-nos juntos à procura dum esconderijo onde trocamos impressões sobre as nossas aventuras e apreciamos o magnífico panorama que se descortinava do nosso bivaque. Estávamos em ótimas disposições e crentes de que chegaríamos ao Tibete. Depois desse dia de convívio com os meus amigos, custava-me prosseguir sozinho. Mas fiquei fiel ao meu propósito. Separei-me dos camaradas e, na mesma noite, cheguei ao Ganges. Era o quinto dia após a evasão.

Antes de entrar na cidade-templo de Uttar Kashi, que mencionei em relação à minha fuga anterior, tive mais uma vez de correr, pela minha liberdade. Duma casa, por onde eu acabava de passar, saíram dois homens e puseram-se no meu encalço. Encolhendo o pescoço entre os ombros, disparei entre campos e silvados, Ganges abaixo, e escondi-me entre montes de pedregulho. Nada se movia em torno; eu conseguira escapar aos meus perseguidores. Ainda assim, só ao cabo de muito tempo me atrevi a reaparecer à claridade do luar. Era um prazer seguir por um caminho conhecido; e a satisfação de progredir nele com presteza fazia-me esquecer o peso da mochila. Tinha os pés esfolados; mas o descanso aliviava-os. Não raro, eu dormia dez horas seguidas, sem acordar.

Cheguei afinal, sem incidentes, à aldeia do meu amigo hindu, a quem confiara um ano antes os meus objetos de uso e o meu dinheiro. Estávamos em maio; conforme combináramos, nesse mês ele deveria esperar-me todas as noites. Já intencionalmente eu decidira não entrar e, antes de tudo, escondi a mochila; porque uma traição estava sempre no domínio da possibilidade.

A lua iluminava em cheio a casa rústica. Encolhi-me à sombra da estrebaria e chamei duas vezes, em voz baixa, o nativo. A porta abriu-se de par em par; ele correu ao meu encontro, curvou-se até ao chão e beijou-me os pés. Lágrimas de alegria riscavam-lhe as faces.

O hindu conduziu-me a um quarto afastado, de cuja porta pendia um cadeado enorme. Alumiando-me com um archote de pinheiro, abriu uma arca. Ali estavam todas as minhas coisas, a roupa cuidadosamente serzida e guardada em sacos limpos de algodão. Comovido por essa prova de lealdade, juntei o que me pertencia, recompensei o meu hindu e aceitei a comida que ele me preparara. Pedi-lhe que, até à noite seguinte, me arranjasse comestíveis e um cobertor de lã. Ele prometeu; e fez-me presente dum par de calças de lã tecida a mão e dum chalé.

Passei o dia na floresta vizinha; ao anoitecer, fui buscar os meus objetos. O meu amigo hindu banqueteou-me mais regiamente e acompanhou-me em parte do caminho. Quis à força carregar os meus embrulhos; mas o coitado estava visivelmente subnutrido e não conseguia emparelhar-se com o meu passo desportivo. Roguei-lhe, pois, que voltasse à aldeia. Despedimo-nos cordialmente e, de novo, me vi sozinho.

Pouco depois da meia-noite, esbarrei com uma companhia absolutamente indesejável: um urso, sentado nas patas traseiras, rosnava no meio da vereda. O fragor do Ganges impedira que eu e o animal notássemos a nossa recíproca aproximação. Com a minha lança primitiva apontada para o coração da fera, fui recuando passo a passo. Protegido pela primeira curva do caminho, armei rapidamente uma fogueira, apanhei um toco de lenha aceso e, sacudindo-o adiante de mim, atrevi-me a voltar. Mas o caminho já estava desimpedido. Só mais tarde, no Tibete, soube dos camponeses que os ursos são agressivos de dia; de noite, eles mesmos têm medo.

Completava eu dez dias de marcha, quando tornei a ver a aldeia Nelang, que me fora tão fatal, no ano anterior. Desta vez eu chegava com um mês de antecedência e o lugarejo ainda estava desabitado. Mas quem descreverá a minha alegria, ao encontrar ali os meus quatro camaradas? Tinham-me alcançado, durante a minha permanência junto do meu amigo hindu. Estabelecemos o nosso quartel numa casa aberta e ali dormimos o nosso primeiro sono noturno depois da fuga. Infelizmente, Sattler fora acometido do mal da montanha; sentia-se muito fraco, incapaz de suportar qualquer esforço. Resolveu voltar atrás; prometeu, porém, que só iria entregar-se ao termo de dois dias, para não nos prejudicar. Kopp, que no ano anterior, chegara por esse caminho ao Tibete, em companhia do lutador Krämer, decidiu ir comigo.

Ainda faltavam, no entanto, sete longos dias de marcha, para alcançarmos o desfiladeiro que forma a fronteira entre a índia e o Tibete. A causa do atraso fora um erro deplorável que nos passara despercebido: do centro caravaneiro de Tirpani, continuáramos pelo mais oriental de três vales. Só depois verificamos que tínhamos errado o caminho. Para nos orientarmos, Aufschnaiter e eu subimos a um monte. Do cume, donde se abrangia com a vista um vasto panorama, vimos pela primeira vez, aos nossos pés, o Tibete. Estávamos, porém, muito cansados para gozar essa visão tão almejada. Também nos incomodava a escassez de oxigênio, porque nos encontrávamos a uns 5.600 metros de altitude. Foi grande a nossa decepção, quando nos compenetramos de que teríamos de voltar a Tirpani. O desfiladeiro estivera quase ao nosso alcance. O nosso erro fizera-nos perder três dias e isso não concorria de certo para nos incentivar. Descemos resmungando, à encruzilhada do vale. As nossas provisões eram escassas e receávamos não agüentar até à próxima povoação.

De Tirpani, o caminho subia lentamente, através de prados limpos de neve, costeando uma das nascentes do Ganges. Uma semana antes, ela era uma torrente caudalosa e precipitava-se no vale, com ruído ensurdecedor. Aí a tínhamos agora, manso regato serpeando entre as campinas onde já despontava a primavera. Dentro de poucos meses, tudo estaria verde; e os muitos acampamentos, reconhecíveis pelas pedras tintas de fuligem, reforçavam em nós a visão das caravanas que, na boa estação do ano, cruzavam os desfiladeiros da índia, em viagem para o Tibete. Uma manada de argalis cruzou o nosso caminho. Afastaram-se com saltos elegantes de camurças, sem dar pela nossa presença. Infelizmente afastavam-se também do nosso estômago. Com que prazer veríamos um deles na nossa panela, para nos saciar finalmente o apetite! Muito tempo depois de os animais terem desaparecido, a nossa imaginação ainda nos mostrava todas as possibilidades duma caçada.

Ao pé do desfiladeiro, armamos o nosso último acampamento na índia. Em vez da sonhada panela cheia de carne, assamos em pedras quentes os nossos frugais e últimos bolinhos de farinha e água. Fazia um calor tremendo; só um muro de pedras nos protegia contra o vento quente do Himalaia que varria o vale.

Era o dia 17 de maio de 1944, quando chegamos enfim ao passo de Tsangtshokla. Que dia de graças! Sabíamos pelos mapas que o desfiladeiro está a 5.300 metros de altitude. Alcançáramos, portanto, a tantas vezes sonhada fronteira entre a índia e o Tibete, onde inglês algum poderia prender-nos, onde pela primeira vez saboreamos um insólito sentimento de segurança. Ignorávamos como nos trataria o governo do Tibete. Todavia, não estando o Tibete em guerra com a nossa pátria, esperávamos confiantes uma acolhida hospitaleira.

O traçado do passo era assinalado por montes de pedras e flâmulas com orações, dedicadas por devotos budistas aos seus deuses. Embora fizesse muito frio, paramos para um longo descanso e passamos em revista a nossa situação. Tínhamos escasso ou nenhum conhecimento da língua local, pouco dinheiro; mas, acima de tudo, faltavam-nos mantimentos e precisávamos urgentemente encontrar uma aldeia habitada; mas, até onde a vista alcançava, não avistávamos senão vales e montes desertos. Nos nossos mapas havia apenas indícios vagos de que, nesse ponto, existiam também povoados. A nossa meta remota eram as linhas japonesas, distantes milhares de quilômetros. O itinerário previsto deveria levar-nos primeiro ao Kailas, o monte sagrado; dali, seguiríamos o curso do Brahmaputra, para chegar enfim ao Tibete oriental. De acordo com a experiência do nosso camarada Kopp, que após a sua fuga no ano precedente estivera no Tibete e fora expulso, as marcações dos mapas eram relativamente certas.

No alto duma encosta abrupta, alcançamos o curso do Optchu e fizemos alto, para o descanso do meio-dia. Muralhas alterosas limitavam o vale, dando-lhe um ar de "cañon". O local era totalmente desabitado; só um barrote atestava que passavam ali, de quando em quando, seres humanos. Encostas pedregosas formavam o outro lado do vale que ainda tínhamos de subir. Antes de atingirmos o planalto, anoiteceu; tivemos de armar mais um gélido bivaque. Nos últimos dias, o nosso combustível consistira apenas em cavacos de espinheiro. Nessa noite, nem isso tínhamos e só acendemos um fogo precário, depois de afanosa procura de bosta seca.

 

 

Peregrino mendigo. Usa um gorro de pele de urso c rosários de peças recortadas em ossos humanos. Da lança, que tem na mão esquerda, pendem amuletos mágicos. Quando o encontrei, fazia quinze anos que este homem estava a caminho.

 

Este edifício de cinco andares é de granito. Em cada pavimento, há numerosas capelas cuja entrada é visível e cujo interior é ornado de estátuas. Dentro do edifício, uma espécie de escada de caracol sobe até ao telhado.

 

 

O TIBETE NÃO QUER ESTRANGEIROS

 

Na manhã seguinte alcançamos a primeira aldeia tibetana: Kasapuling. Consistia em seis prédios aparentemente abandonados; e, quando lhes batemos às portas, não despertamos o menor sinal de vida. Averiguamos depois que os moradores trabalhavam assiduamente nos campos vizinhos, em plantações de cevada, semeando com presteza mecânica os seus cereais. À vista deles, sentimos o que decerto alvoroçou Colombo, na América, ao avistar os primeiros indígenas. Seríamos bem ou mal recebidos? No momento, não davam mostras de notar a nossa presença. Os gritos duma velha, muito parecida com uma bruxa, eram o único rumor que nos feria o ouvido. Aliás, essa algazarra não era provocada por nós e sim pelo bando de pombos bravos, dispostos a devorar a sementeira. Até ao escurecer, ninguém se dignou reparar em nós. Conseqüentemente, estabelecemos o nosso acampamento nas proximidades duma casa e, ao cair da noite, quando os aldeões voltaram dos campos, tentamos travar com eles relações de negócio, oferecendo-lhes dinheiro, em troca dum carneiro, ou duma cabra. A resposta foi peremptoriamente negativa. Como o Tibete não tinha postos de fronteira, toda a população recebia instrução defensiva contra os estrangeiros e, sob pena de severos castigos, nada lhes podia vender. Não nos restava alternativa senão crescer para os tibetanos e intimidá-los, porque não pretendíamos morrer de fome. Declaramos, pois, que não querendo eles dar-nos o animal a troco de dinheiro, nós o tomaríamos à força, sem pagar nada. As nossas quatro caras de poucos amigos obtiveram o êxito almejado. Já era noite fechada, quando conseguimos, por um preço descaradamente extorsivo, -o bode mais velho que lhes foi possível apanhar. Embora soubéssemos que éramos logrados, não tugimos; fazíamos questão de conquistar as boas graças daquela gente.

Matamos o nosso cabrão numa estrebaria; e, à meia-noite, nos atiramos, esfomeados, às primeiras postas de carne mal cozida.

No dia seguinte, aproveitamos a nossa pausa de repouso, para ver de perto as casas da aldeia. Eram de pedra, com telhados planos onde se punha a secar o combustível. Os tibetanos domiciliados nessa aldeia fronteiriça não se podiam comparar aos do interior do país que conhecemos mais tarde; eram uma comunidade corrompida pelo comércio com a índia, pelo contacto com as caravanas: indivíduos pouco asseados, de pele escura e olhos oblíquos de olhar arisco. Não notamos neles o mínimo indício da jovialidade que se atribui a esse povo. Entregavam-se com afinco ao trabalho cotidiano; talvez se houvessem estabelecido naqueles sítios inóspitos, só porque lhes ofereciam a facilidade de ganhar bom dinheiro, na estação das caravanas, com os produtos do solo. Vim a saber mais tarde que essas seis casas na fronteira eram provavelmente a única aldeia onde não havia nenhum convento.

Ao amanhecer do segundo dia, deixamos sem obstáculos o povoado pouco hospitaleiro. Estávamos um tanto refeitos e o humorismo berlinense de Kopp, que emudecera nos últimos tempos, conseguiu fazer-nos soltar de novo boas risadas.

Marchando através dos campos, chegamos a um pequeno vale e, na subida ao próximo planalto, pesou-nos como nunca a nossa carga. Essa fadiga física era simplesmente a reação aos desenganos que nos causara até aí essa terra tão desejada. Ainda nessa noite, tivemos de nos abrigar num buraco desconfortável que mal nos resguardava do vendaval.

Desde o princípio da nossa peregrinação, tínhamos repartido entre nós as várias obrigações; procurar água, fazer fogo, preparar chá, com aquele frio pungente, eram tarefas duras. Todas as noites esvaziávamos as mochilas e enfiávamos nelas os pés, para os aquecer. Nessa noite, ao sacudir a minha, provoquei uma pequena explosão: os meus fósforos incendiaram-se, pelo atrito — sinal de que já nos encontrávamos na atmosfera seca do planalto tibetano.

Às primeiras claridades do dia, pudemos ver melhor o nosso abrigo. Percebemos então que a toca do nosso bivaque fora fabricada por mãos humanas, porque era circular, com paredes verticais, provavelmente para servir de armadilha. Atrás de nós, torreava o Himalaia, com a pirâmide nevada e regular do Kamet; em frente, continuava o terreno acidentado da paisagem montesina; uma paisagem de loess, pela qual fomos subindo, para chegar pelo meio-dia à aldeia de Dushang, vilarejo de poucas casas, mas — exatamente como o primeiro povoado — muito pouco hospitaleiro. Nem com dinheiro, nem com bons modos obtivemos o que quer que fosse. Peter Aufschnaiter arranhou em vão o que sabia de anos de estudo da língua local; tão pouco deu resultado toda a nossa gesticulação.

Em compensação vimos, pela primeira vez, um autêntico mosteiro tibetano. Nos paredões de loess, diante de nós, havia buracos escuros e, no alto duma crista, viam-se os restos de construções gigantescas onde viveram provavelmente centenas de monges. Agora, uma casa de data recente abrigava apenas alguns, cujas caras não chegamos a enxergar. Num terraço fronteiro ao claustro alinhavam-se, tintos de vermelhão, muitos túmulos...

Um tanto desiludidos, voltamos à nossa tenda que era por assim dizer um pequeno lar, num mundo interessante, mas incompreensivelmente hostil.

Em Dishang, também não havia autoridades às quais pudéssemos pedir permissão de estadia, ou licença para viajar. Mas a queixa era prematura, porque as autoridades já nos vinham no encalço. Na manhã seguinte, quando nos preparávamos a reencetar a marcha, Aufschnaiter e Treipel atrás, Kopp e eu à vanguarda, ouvimos de repente um tinido de guizos. Dois homens armados, a cavalo, intimaram-nos na sua língua a voltar imediatamente, à índia, pelo caminho por onde viéramos. Sabíamos que, com palavras, não arranjaríamos grande coisa. Arredamos, pois, a poder de gestos enérgicos, os dois cavaleiros boquiabertos, que por sorte não fizeram uso das suas armas, talvez de medo de que nós também estivéssemos armados. Após umas tentativas hesitantes de nos cortarem o passo, eles retiraram-se e nós pudemos chegar, sem contratempos, à próxima povoação que era, já o sabíamos, sede de um governo distrital.

Na paisagem, que atravessávamos, seca e desolada, não se percebia sinal de vida. O centro do distrito, a cidadezinha de Tsaparang, só era habitada no inverno. Perguntamos pelo governador e soubemos que ele acabava de fazer as malas para a sua sede estiva, em Chang-Tse. Não foi pequena a nossa surpresa, ao reconhecer nele um dos dois cavaleiros armados que nos tinham intimado a voltar para trás. No segundo encontro, o dignitário manteve a mesma atitude rebarbativa: não houve rogos que o convencessem a fornecer-nos um pouco de farinha, em troca de medicamentos. A pequena farmácia que eu trazia na mochila ia ser, daí em diante, a nossa salvação e, mais tarde, me prestou ótimos serviços.

Finalmente, o governador nos designou uma espécie de toca, para pernoitarmos, exigindo mais uma vez que deixássemos a região pelo mesmo caminho. Se concordássemos, ele nos daria provisões e meios de transporte. Declinamos da oferta e tentamos explicar ao homem que o Tibete, como Estado neutro, teria de nos conceder asilo. Nem a sua inteligência, nem a sua competência estavam à altura de compreender esse argumento. Propusemos então submeter o caso à arbitragem duma autoridade superior, um monge domiciliado em Thuling, a oito quilômetros da aldeia.

Tsaparang era propriamente uma curiosidade. Eu lera, nos livros do acampamento, que essa localidade fora noutro tempo a sede da primeira missão católica do Tibete, fundada no ano de 1624 pelo padre jesuíta Antônio de Andrade que ali erigira também uma igreja. Debalde, porém, procuramos vestígios ou restos dessa casa de Deus. Encontramos apenas numerosas grutas que atestavam a grandeza passada de Tsaparang. Dadas as nossas experiências pessoais, não nos custava imaginar as dificuldades que os padres tiveram de superar, para se estabelecerem nesses sítios.

Na nossa viagem de descobrimento às ruínas, deparou-se-nos também uma porta de madeira que nos pareceu estranha. Mal a abrimos, recuamos sobressaltados pelos olhos enormes dum Buda superdimensional, fixos em nós, do fundo do nicho que encerrava a estátua dourada.

No outro dia, seguimos para Thuling, a fim de nos avistarmos com o funcionário do mosteiro. Tornamos a encontrar ali Treipel e Aufschnaiter que se haviam desviado do nosso itinerário. Juntos, procuramos o abade do convento, que era justamente o funcionário indicado pelo governador, mas ficou surdo aos nossos rogos de nos deixar seguir para leste. Consentiria em nos vender comestíveis, só se nos comprometêssemos a ir a Chang-tse que ficava no caminho da índia. Não nos restou, pois, senão aceitar a sua proposta, porque estávamos completamente desprovidos de mantimentos.

Além do abade, havia em Thuling um funcionário leigo com o qual tivemos, porém, menos sorte do que com o religioso: ele recusou, esbravejando, qualquer entendimento; e amotinou imediatamente contra nós toda a população. Pagamos muito caro um pouco de manteiga rançosa e uns punhados de farinha bichada; custou-nos uma rúpia um feixe de lenha. A única recordação agradável que trouxemos de Thuling foi a imagem do seu claustro, com os vértices dourados das suas coberturas brilhando ao sol, num terraço, sobre as águas do Satledsh. É o maior convento do Tibete ocidental; mas causou-nos uma impressão de abandono. Com efeito, dos seus duzentos e sessenta monges, só vinte estavam presentes.

Afinal, mediante compromisso de nos dirigirmos para Chang-tse, obtivemos quatro jumentos para carregarem a nossa bagagem. A princípio, estranhamos que nos deixassem ir, sem escolta, unicamente sob a guarda do arrieiro. Em breve nos compenetramos, porém, de que no Tibete se aplica o método de vigilância mais simples do mundo, isto é, o de vender mantimentos a estrangeiros, somente contra a apresentação duma licença.

Viajar com burros não é viagem de recreio: só para vadear o Satledsh levamos uma hora inteira, porque os animais recalcitravam. Tivemos de incitá-los continuamente, para chegar antes do anoitecer à aldeia vizinha, denominada Fiivang e habitada por poucos moradores. Mas, alongando o olhar às encostas, viam-se — como de Tsaparang — centenas de cavernas.

Ali passamos a noite. Chang-tse ficava ainda a uma jornada de marcha. O nosso percurso, no dia seguinte, valeu-nos uma visão magnífica do Himalaia, modesta compensação comparada à região desolada, por onde íamos impelindo os nossos jericos. Durante essa marcha, encontramos pela primeira vez um "kyang", o onagro, o burro selvagem da Ásia central, que encanta os viajantes, com a elegância dos seus movimentos. Tem o porte do burro comum; aproxima-se com curiosidade e afasta-se a trote, com uma viravolta rápida e airosa. Alimenta-se das ervas das estepes, e os homens o deixam em paz. Os lobos são os seus únicos inimigos. Desde que o vi, esse belo animal indômito é para mim o símbolo da liberdade.

Chang-tse era igualmente uma aldeia com umas seis casas, construídas com tijolos crus e tufos de relva. Não nos recebeu com mais cordialidade do que as aldeias precedentes. Topamos ali com o funcionário rebarbativo de Tsaparang, instalado para o verão. Por nenhum preço ele consentiu em deixar-nos penetrar no Tibete. Propôs-nos a opção entre Tsaparang e o caminho do oeste, pelo passo de Shipki, para voltar à índia. Só com esta condição nos forneceria provisões.

Era óbvio que escolheríamos o passo de Shipki, primeiro porque não o conhecíamos; secundariamente porque, no íntimo, ainda esperávamos encontrar uma escapatória. E assim conseguimos manteiga, farinha e carne, à vontade. Apesar disto, estávamos muito abatidos: a perspectiva de acabar outra vez atrás de cerca de arame farpado não era muito atraente. Treipel, que não achava nenhuma graça no Tibete já ia desistindo de qualquer nova tentativa de ficar lá.

De qualquer maneira, aproveitamos o dia para comer enfim até fartar-nos. Pus em ordem os meus apontamentos e tratei do meu tendão inflamado, conseqüência das nossas marchas forçadas noturnas. Estava decidido a arriscar tudo, para escapar ao acampamento; e Aufschnaiter devia ser da mesma opinião.

Na manhã seguinte, conheceríamos o verdadeiro aspecto do governador distrital. Cozinháramos carne numa panela de cobre e Aufschnaiter sofrerá provavelmente uma leve intoxicação, porque se queixava de forte mal-estar. O governador acolheu rispidamente o meu pedido de prorrogação da licença de estadia. Travei então violenta discussão com ele e consegui que se prontificasse a dar-nos dois iaques cargueiros e uma cavalgadura para o meu amigo indisposto.

Nessa ocasião, lidei pela primeira vez com o iaque, o típico animal de carga do Tibete. O iaque, espécie de bovino de pêlo comprido, só pode viver nas grandes altitudes e a sua domesticação exige muita habilidade. As fêmeas são menores do que os machos e dão um leite excelente.

O soldado, que nos escoltava desde Chang-tse, trazia um salvo-conduto, com o qual podíamos comprar em toda parte o que nos aprouvesse. Também estava previsto que, em toda estação de muda, poderíamos trocar grátis os nossos iaques.

O tempo mantinha-se bom, com dias frescos; as noites, pelo contrário, eram muito frias. Atravessamos numerosas aldeias e cavernas habitadas. Ninguém reparava em nós. O nosso guarda, natural de Lhasa, tratava-nos bem e gostava de entrar nas aldeias, onde assumia ares de importância. A população também se mostrava menos reservada, quando nos demorávamos, nalgum lugar, mais do que prescrevia o nosso salvo-conduto.

Atravessando o distrito de Rong-chung, jornadeamos alguns dias, nas pegadas de Sven Hedin. Como grande admirador que sou desse explorador ilustre, eu recordava nitidamente as suas descrições. O panorama não mudara muito; superávamos planalto após planalto; descíamos barrancos fundos, para do lado oposto escalar outra altura. Muitas vezes as voragens eram tão profundas e estreitas que a voz poderia ser ouvida na outra margem; mas, para chegar lá, gastavam-se muitas horas. Esse sobe-e-desce fatigante duplicava-nos o caminho, tornava-nos mal-humorados, soturnos. Apesar disto, avançávamos continuamente e não precisávamos preocupar-nos com os mantimentos. Quando nos assaltava a vontade de variar o cardápio, tentávamos a sorte com os peixes. Não conseguindo pescar com anzol, mergulhávamos nos regatos da montanha e procurávamos apanhar peixes com as mãos. Eles, porém, tinham mais a fazer do que acabar na nossa panela...

Estávamos cada vez mais próximos do Himalaia e, conseqüentemente — que tristeza! — da fronteira indiana. O clima tornara-se mais temperado, porque já não estávamos nas grandes altitudes. Justamente nesse ponto, o Satledsh interrompia o seu curso através do Himalaia. As aldeias assemelhavam-se a pequenos oásis e havia até casas cercadas de hortas e pomares.

Ao termo de onze dias, contados desde Chang-tse, chegamos à vila fronteiriça de Shipki. Era o dia 9 de junho. Andáramos três semanas no Tibete. Víramos muitas coisas; acima de tudo, porém, tínhamos adquirido a amarga experiência de que, sem permissão de estadia, não era possível viver nesse país.

Passamos mais uma noite no Tibete, acampados romanticamente num pomar, ao pé de abricoteiros cujos frutos infelizmente ainda não estavam maduros. Ali, pretextando a necessidade dum animal de carga para a viagem à índia, consegui por oitenta rúpias um burro que ninguém me quisera vender no interior do Tibete. Para a execução dos meus futuros planos era-me indispensável esse animal.

O arrieiro separou-se de nós e levou os seus animais. "Talvez nos tornemos a ver em Lhasa" — disse, rindo-se, à despedida. Gabara-nos muito as belas mulheres e a boa cerveja de Lhasa. O nosso caminho subia, serpeando, para o passo de Shipki. Era a fronteira. Não havia postos tibetanos nem hindus. Nada, senão os costumados montes de pedras, as flâmulas com preces. E o primeiro sinal da civilização: um marco miliar com o letreiro: "Simla — 200 milhas".

Estávamos de novo na índia.

Nenhum de nós tinha, no entanto, o propósito de se demorar muito, nessa "terra hospitaleira", onde nos aguardava um campo de concentração, com cercas de arame farpado.

 

 

MAIS UMA VEZ, CLANDESTINOS ALÉM DA FRONTEIRA

 

O meu plano era aproveitar a primeira oportunidade, para me introduzir novamente no Tibete, em companhia de Kopp. Estávamos convencidos de que aos funcionários inferiores, com que tínhamos topado, faltava competência para dirimir o nosso caso. Desta vez iríamos, portanto, à instância mais alta. Para isto deveríamos chegar a Gartok, capital do Tibete ocidental e sede do governador.

Descemos, pois, a grande e bem conservada estrada comercial, numa extensão dalgumas milhas, até ao primeiro povoado hindu.

A aldeia chamava-se Namgya. Podíamos demorar-nos ali, sem despertar suspeitas, porque vínhamos do Tibete e não das planícies da índia. Impingindo-nos por soldados americanos em viagem, compramos provisões frescas e pernoitamos numa estalagem. Depois, separamo-nos. Aufschnaiter e Treipel desceram a estrada real, ao longo do Satledsh. Kopp e eu levamos o nosso burrinho a um vale lateral que, em rumo norte, ia dar a uma passagem para o Tibete. Sabíamos pelos mapas que tínhamos de atravessar primeiro o vale habitado de Spiti. Eu alegrava-me de ter Kopp comigo, porque o meu companheiro era homem prático e inteligente, camarada alegre e prestativo. A sua jovialidade berlinense raramente estancava.

Subimos dois dias o curso do Rio Spiti. Depois, enveredamos por um vale paralelo que, dada a sua direção, deveria atravessar o Himalaia. Infelizmente, esse território não estava assinalado no nosso mapa. Alguns nativos informaram-nos de que já devíamos ter cruzado a fronteira, perto da ponte denominada Sangsam. Durante essa primeira peregrinação, tínhamos à direita o magnífico Riwo Phargyul, pico alteroso de quase 7.000 metros de altitude, na cumeada do Himalaia. Pisávamos o território tibetano, num dos poucos pontos onde esta região se sobrepõe à crista do Himalaia. Aí nos assaltou de novo a preocupação: até onde conseguiríamos avançar? Entretanto, ninguém nos conhecia; nenhuma autoridade hostil alertara contra nós a população. Dissemos, pois, que éramos peregrinos em romaria ao Kailas, o monte sagrado.

A primeira aldeia tibetana, que encontramos, chamava-se Kyurik e constava de duas casas. A seguinte, Dotso, já era muito maior. Topamos com muitos monges — mais duma centena — que vinham buscar ao povoado caules de choupos, para a construção dum mosteiro à beira do passo de Trashigang. Era o convento mais importante da província de Tsurubjin e o abade exercia ao mesmo tempo as funções da mais alta autoridade secular. Ele acompanhava os seus monges e nós começamos a temer que a nossa viagem terminasse prematuramente. Mas, interrogados pelo abade, declaramos que precedíamos um grande fidalgo europeu, o qual estava munido de salvo-conduto do governo central de Lhasa. Aparentemente, o abade deu-se por satisfeito; e nós, aliviados, continuamos o caminho.

Foi penosa a subida ao passo que os tibetanos denominaram Büd-Büd La, e que deve situar-se a 5.700 metros de altitude, porque a rarefação do ar se faz sentir desagradàvelmente e as faixas de gelo duma geleira próxima e sem nome serpeiam ainda passo abaixo.

No caminho, encontramos alguns butaneses que também se dirigiam para o interior do país; gente simpática e cordial que nos convidou para tomar lugar ao pé da sua fogueira e uma xícara de chá com manteiga rançosa. Como o nosso bivaque ficava pouco distante, à noite os butaneses nos mimosearam com um gostoso prato de espinafres.

Estávamos num território totalmente despovoado; nos oito dias de marcha seguintes, encontramos — se tanto — uma pequena caravana. Outro encontro se gravou indelèvelmente na minha memória: era um nômade, um moço embrulhado nas suas longas peles de carneiro; usava rabicho como todo tibetano que não seja monge. O rapaz levou-nos à sua tenda de pêlo preto de iaque, onde o aguardava a sua jovem esposa, uma criatura radiosa que era toda sorrisos. Na tenda, descobrimos um tesouro que nos fez vir água à boca: magnífico fiambre de carne de veação. O tibetano prontificou-se a vender-nos uma parte da sua caça, por um preço irrisório. Rogou-nos apenas que não contássemos a ninguém; do contrário, ele seria castigado. Matar seres vivos, sejam humanos ou animais, contraria as prescrições religiosas do budismo; a caça, portanto, é proibida. Sendo o Tibete regido por um sistema feudal, os homens, a terra e os animais pertencem ao Dalai Lama cujos preceitos são leis para todos os vassalos.

Consegui fazer-me entender perfeitamente pelo casal de nômades e alegrei-me do progresso dos meus conhecimentos lingüísticos. Combinamos uma caçada para o dia seguinte e fomos instalar-nos perto daquele par simpático — os únicos tibetanos alegres e hospitaleiros que tivemos ocasião de conhecer e que por muito tempo nos ficaram na lembrança.

Como remate da sua hospitalidade, o jovem nômade tirou dum canto da tenda um garrafão de madeira com cerveja fresca de cevada, uma bebida turva, leitosa, sem nenhuma semelhança com o que nós chamamos cerveja; mas produzia o mesmo efeito.

 

 

Dois criminosos algemados juntos. Podem, todos os anos, pedir esmolas no dia do nascimento de Buda,

 

Acampamento de nômades. ()s potes do chá aquecem ao fogo. Os cabelos da mulher do primeiro plano estão repartidos em 108 trancinhas.

 

 

Estes peregrinos de Lhasa medem milhares de quilômetros de percurso, com o comprimento do seu corpo. A sua única bagagem é o saco de "tsampa" amarrada à cintura.

 

Um monge policial empunhando a grande vara que é a insígnia do seu poder. É responsável pela paz e a ordem, durante as festas do Ano Novo. Tem na mão esquerda um chicote. Um rosário de coral cinge-lhe os quadris.

 

 

Quatro monges — em geral do claustro de Drebung, na atualidade — assumem anualmente o governo, por um período de vinte e uni dias. na época do Ano Novo.

 

 

Banda de música dos monges. São característicos os grandes tambores e os longos clarins dourados.

 

Na manhã seguinte saímos todos para a caçada. O tibetano tinha uma espingarda de vareta, antediluviana; e trazia no bolso do peito chumbo, pólvora e mecha. Mal avistamos um rebanho de carneiros bravos, o rapaz acendeu a mecha com uma pederneira. Nós estávamos ansiosos por ver como funcionaria aquela peça de museu. Reboou uma detonação trovejante: bum! bum! Quando a fumaça se dissipou, não havia mais carneiros à vista. Só ao longe vislumbramos o rebanho, em fuga desabalada; antes de desaparecer além duma crista rochosa, os animais olharam para trás, como para zombarem de nós. Não nos restava senão tomar o partido de rir. Para não voltar de mãos vazias, apanhamos as cebolas silvestres que medravam em toda a encosta e que dão um sabor delicioso à carne.

A esposa do nosso amigo caçador estava, pelo que parecia, habituada ao azar do marido. Quando nos viu voltar de mãos abanando, acolheu-nos com um acesso de hilaridade; de tanto rir, quase lhe desapareciam os olhinhos oblíquos. Preparara previdentemente um jantar, com a caça abatida nos dias anteriores; e dedicou-se zelosamente ao seu assado. Nós a víamos ocupada em cozinhar. De súbito, talvez porque a grande pele de carneiro, presa só à cintura por um cinto multicor, lhe estorvava os movimentos, a moça desceu-a dos ombros, sem a menor mostra de constrangimento e ficou com o busto descoberto. Mais tarde, observamos freqüentemente a mesma naturalidade. Separamo-nos, com pena, do jovem casal. Bem providos de carne fresca e completamente refeitos, reiniciamos a marcha.

No percurso, víamos a miúdo pontos negros que eram iaques bravios pastando nas encostas e que, infelizmente, comunicaram ao nosso burro pruridos de independência. O jerico empreendeu a fuga, ao vadear um largo arroio; antes que, o pudéssemos apanhar, arriara o seu último fardo. Recapturado o burro sob uma saraivada de pragas e de insultos, cuidávamos na praia de enxugar as nossas coisas, quando surgiram subitamente à vista dois vultos. Reconhecemos imediatamente o primeiro, pelo seu passo regular e calculado de alpinista. Era Peter Aufschnaiter, com um carregador contratado.., Semelhantes encontros naquele sítio solitário poderiam parecer inverossímeis. Todavia certos vales e passos são, há séculos, o caminho usual; e nós todos tínhamos escolhido o percurso mais freqüentado.

Após as primeiras efusões, Aufschnaiter começou a contar as suas aventuras. No dia 17 de junho, separara-se de Treipel que se fora, cavalgando soberbamente, como "inglês", em direção à índia. Comprara esse luxo com as suas últimas moedas. Aufschnaiter estivera doente; melhorando, pusera-se a seguir o nosso itinerário. No caminho, fora informado dos últimos acontecimentos da guerra e, embora vivêssemos ali a bem dizer fora do mundo, todos o escutamos com curiosidade.

A princípio, Aufschnaiter não concordava em ir a Gartok, receando que ali nos pegassem novamente; parecia-lhe mais acertado ir direito aos nômades do Tibete central. Por fim, decidimos continuar juntos. A partir daquele dia, nos anos seguintes, Aufschnaiter e eu não nos tornaríamos a separar.

Sabíamos que, se tudo nos corresse bem, dentro de cinco dias estaríamos em Gartok. Ainda teríamos de ultrapassar um passo chamado Bongrü La. Os bivaques, nessa época do ano, eram tudo, menos pausas aprazíveis. As noites costumavam ser muito frias, porque estávamos a mais de 5.000 metros de altitude. Ocorriam também pequenos incidentes: certa vez, ao vadear um rio, Kopp trazia debaixo do braço as calças e os sapatos. De súbito, um destes caiu-lhe na correnteza e, arrastado pelas águas, desapareceu para sempre, embora o dono se houvesse atirado ao rio, com a esperança de recuperá-lo. Eu nunca vira Kopp esbravejar assim contra o céu e o inferno! Sobrava-me em verdade um par de sapatos tibetanos que me apertavam um pouco, porque naquela terra não há calçado de medida adequada a pés europeus. Infelizmente, os pés de Kopp eram maiores do que os meus. Não tive remédio senão ceder-lhe o pé esquerdo do meu calçado militar e continuar manquejando, meio europeu e meio tibetano, a nossa marcha.

Ofereceu-nos uma bela diversão o espetáculo duma luta de onagros, batendo-se provavelmente pelo predomínio na manada de fêmeas. Voavam torrões arrelvados, a terra remoinhava sob os cascos dos rivais, tão entretidos no seu duelo, que nem davam pela presença de espectadores. As jumentas, sequiosas de sensação, saltitavam em torno; e não raro, uma nuvem de poeira envolvia todo o campo de batalha.

Transpostos os dois passos, o Himalaia estava novamente atrás de nós. Desta vez, separei-me dele sem saudade, porque nos tornávamos a avizinhar de regiões mais quentes. O nosso itinerário levara-nos justamente à província onde, um ano depois, pereceria Ludwig Schmaderer um dos maiores alpinistas alemães. Schmaderer evadiu-se, com o seu amigo Paidar, do mesmo campo onde nós estivéramos internados; tencionava seguir exatamente o nosso roteiro, mas foi assassinado covardemente pelas costas. Paidar escapou então à morte; morreu mais tarde, numa ascensão ao Grossglockner, da morte dos alpinistas.

A população do território, que atravessávamos, não é tipicamente tibetana nem tipicamente hindu. É, em parte, produto da mistura de muitas raças; vive segundo os usos lamaístas; comercialmente, porém, está mais ligada à índia.

Subindo o vale do Indo encontramos numerosas caravanas de iaques que levam lã à índia. Estranhávamos o aspecto desses animais possantes, de grande porte. Os caravaneiros também eram rapagões majestosos, acostumados a andar de peito nu, apesar do frio cortante. Homens e mulheres trazem as peles diretamente sobre o corpo e despem as mangas, para ter liberdade de movimentos. Com uma funda, os condutores mantêm os iaques no caminho certo e não os deixam fugir. Não deram mostras de se interessar pelos estrangeiros, que os observavam; e nós continuamos sossegadamente o nosso caminho.

Marchamos cinco dias, costeando o curso superior do Indo, para chegar a Gartok. Foi uma caminhada inesquecível. Andávamos muito além do limite de altitude, por serras de declives suaves; apesar de tudo, não havia monotonia na paisagem. Em certos pontos, era o colorido que deleitava a vista; e raramente me sucedeu ver todos os tons da paleta, em sucessão tão harmoniosa. Ao pé das águas límpidas do Indo, espraiavam-se campos amarelados de bórax; além deles, brotavam os verdes tenros da primavera que nestas paragens só principia em junho. Os luminosos cumes nevados das montanhas formavam o segundo plano. Justamente por ocasião da nossa passagem, um temporal distante no Himalaia desdobrava o encanto indescritível dos seus jogos de matizes.

A primeira aldeia além do Himalaia é Trashigang, um pequeno aglomerado de casas, em torno dum mosteiro com aspecto de fortaleza, rodeado de valos. Ali também a população nos acolheu com hostilidade — o que já então não nos surpreendia nem perturbava. Estávamos, desta vez, na estação do ano em que os comerciantes hindus afluem ao Tibete, para comprar lã. Deles podíamos obter provisões, sem dificuldade. Aufschnaiter tentou em vão converter em dinheiro o seu relógio de pulso de ouro. Essa transação o habilitaria a seguir diretamente para o interior do Tibete, sem tocar Gartok. Durante as marchas, encontrávamos freqüentemente cavaleiros tibetanos de boa aparência, que nos perguntavam o que tínhamos para vender. Como viajávamos sem servos, com o burro carregado, para essa gente só havia uma explicação: éramos negociantes. Tivemos ensejo de verificar que todo tibetano, pobre ou rico, é um comerciante nato; barganhar, regatear são as suas grandes paixões. Dois dias antes de chegar a Gartok, entramos com o coração aos pulos em Gargünsa, sede do governador' do Tibete ocidental, nos meses de inverno. Embora a experiência adquirida com as caravanas nos autorizasse a crer que ainda não encontraríamos o dignitário exercendo ali as suas funções, receávamos que a nossa peregrinação acabasse ali mesmo. Todavia, a nossa preocupação era infundada: a casa do governo, modesta, mas muito limpa, ainda estava vazia.

De quando em quando, nos associávamos a caravanas de iaques, que transportavam para Lhasa os abricós secos da província indiana de Ladakh. Esses comboios empregavam muitos meses no percurso e chegavam a Lhasa pouco antes do ano novo tibetano, grande festa celebrada umas oito semanas após o Ano-Bom do nosso calendário. As caravanas viajavam escoltadas por moços de Lhasa, bem armados para as protegerem contra os salteadores. Eram em geral transportes do governo que se encontravam no mesmo caminho; os chefes caravaneiros tinham salvo-condutos que lhes permitiam requisitar iaques e cavalos de sela. Indo a Gartok, traváramos amizade com um desses tibetanos e mirávamos com inveja o seu precioso documento, devidamente estampilhado com os grandes selos quadrados de Lhasa. Só, à vista dessas imponentes caravanas de iaques, tivemos plena consciência da nossa extrema pobreza. O nosso burrinho deitava-se às vezes com a carga e, para o tirar dali não adiantavam sequer as bordoadas. O jerico só tornava a levantar-se, quando lhe dava na veneta. Também acontecia que ele arriasse os fardos e se fizesse arrogantemente ao largo.

A pouca distância de Gartok, passamos uma noite "substanciosa", numa tenda aquecida. Um grupo de viajantes, que se dirigiam para Lhasa, entusiasmados pelos truques executados pelo meu camarada Kopp com o baralho, quiseram ver mais uma vez todo o repertório e, para esse fim, nos ofereceram hospitalidade.

Nesses encontros com as caravanas, adejava-me continuamente na imaginação a figura do Padre Desideri que, mais de duzentos anos antes, insinuando-se numa dessas caravanas, chegara sem estorvos até Lhasa.

Para nós, não havia de ser tão fácil.

 

 

EM GARTOK, SEDE DO VICE-REI

 

Lêramos, em obras literárias, que Gartok, "capital do Tibete ocidental, é a sede do vice-rei"; e aprendêramos em compêndios de geografia que é também considerada a cidade mais alta do mundo. Mas quando tivemos diante dos olhos essa localidade famosa, quase desatamos a rir. A princípio, vimos apenas algumas tendas de nômades espalhadas num prado enorme; depois foram aparecendo choças de barro e tufos de relva. Aquilo era Gartok. E, afora alguns cães, não se avistava um ser vivo.

Armamos a nossa pequena tenda, à margem do Gartang-chu, afluente do Indo. Afinal apareceram alguns curiosos; por eles soubemos que nenhuma das duas autoridades superiores se encontrava na cidade e só nos podia atender o administrador do segundo "vice-rei". Nesse mesmo dia, fomos tratar dos nossos interesses. Já para entrar na sede do governo, tivemos de nos curvar profundamente, porque não se entrava por uma porta, e sim por um buraco tapado por uma cortina sebosa. Encontramo-nos numa sala poeirenta, com janelas em que papel colado fazia as vezes de vidraça; quando os nossos olhos se habituaram à escuridão, vislumbramos diante de nós um homem de aspecto inteligente e distinto, sentado em atitude de Buda. Um brinco duns quinze centímetros de comprimento pendia-lhe da orelha esquerda, como distintivo da sua categoria. Além dele, estava presente uma senhora que, segundo apuramos mais tarde, era a esposa do dignitário ausente. Atrás de nós, premiam-se crianças e criados, ansiosos por verem de perto os estrangeiros.

Convidaram-nos cortesmente a sentar-nos à mesa e fomos logo obsequiados com carne seca, queijo, manteiga e chá. Confortou-nos intimamente essa atmosfera cordial; e, com o auxílio dum vocabulário anglo-tibetano, a conversação — reforçada com gestos — não ofereceu grandes dificuldades. As nossas esperanças subiam; ainda assim, pareceu-nos prudente não expor, logo na primeira visita, todas as nossas preocupações. Dissemos que éramos fugitivos alemães e pretendíamos solicitar o asilo hospitaleiro do Tibete neutral.

No dia seguinte, fui entregar ao administrador um pequeno presente de medicamentos, para lhe retribuir a cortesia. Ele mostrou-se muito lisonjeado; informou-se sobre a aplicação dos remédios e tomou nota das minhas explicações. Então animei-me a perguntar-lhe se não estaria disposto a dar-nos salvo-conduto, para continuarmos a viagem. Ele não rejeitou logo o nosso pedido; sugeriu que esperássemos o regresso do seu superior que fora em peregrinação ao monte Kailas; deveria voltar dentro de poucos dias.

No intervalo, estreitou-se cada vez mais a nossa amizade com o administrador. Fiz-lhe presente duma lente de aumento, objeto muito útil no Tibete. Não se fez esperar muito a retribuição usual: uma noite, entraram sorrateiramente na nossa tenda carregadores que nos traziam manteiga, carne e farinha, a mandado do administrador. No meio deles, com um séquito de criados, estava essa autoridade que vinha pagar-nos a visita. Ao ver como vivíamos, mal podia crer que europeus se adaptassem a uma existência tão primitiva.

À medida que se aproximava a data do regresso do seu chefe, o nosso amigo tibetano mostrava-se mais e mais retraído. Começava a pesar-lhe a responsabilidade. Em breve, chegou ao ponto de não nos quererfornecer mantimentos. Mas em Gartok também havia muitos negociantes hindus que, a troco de dinheiro, não se negavam a ajudar-nos.

Despontou finalmente o dia decisivo. Certa manhã, ouvimos sons de chocalhos: uma imensa caravana de mulas aproximava-se da aldeia. Abriam a marcha soldados a cavalo. Seguia-se um bando de servos e servas; atrás destes, vinham dignamente os membros da nobreza tibetana, que víamos pela primeira vez. Fazia o seu ingresso na sede do governo o primeiro dos dois vice-reis, chamado no Tibete "Garpön". Ele e a esposa vestiam trajes suntuosos de seda e traziam afivelados à cinta pistolas de valor precioso. A aldeia inteira acudiu a ver o espetáculo. Entrando na vila, o devoto "Garpön" dirigiu-se em cortejo solene ao claustro, a fim de agradecer aos deuses o seu feliz regresso da piedosa romaria.

O alvoroço geral também nos contagiara. Aufschnaiter redigiu uma breve carta solicitando uma audiência. Não obtendo resposta, não resistimos à impaciência e, à tardinha, saímos à procura do "Garpön".

A residência do primeiro vice-rei não diferia muito da casa do seu suplente, salvo na decoração interior, mais luxuosa e de estilo mais puro. O "Garpön", alto funcionário, desempenhava durante o seu tempo de serviço, funções da nobreza de quarta classe. Estavam-lhe subordinados cinco distritos administrados por nobres de quinta, sexta e sétima categorias. Nesse período, o vice-rei usava nos cabelos, presos com grampos, um amuleto de ouro que só lhe ornaria a cabeça, durante o seu período de governo em Gartok. Em Lhasa, esse dignitário pertencia à quinta classe. A nobreza tibetana divide-se em sete categorias, cabendo a primeira exclusivamente ao Dalai Lama. Os dignitários leigos trazem os cabelos grampeados; os monges são tosquiados; os tibetanos comuns usam rabicho.

Vimo-nos afinal em presença da poderosa personagem. Expusemos o nosso caso, com todos os pormenores. O vice-rei escutava com expressão bondosa; nem sempre conseguia reprimir um sorriso, ouvindo a nossa linguagem arrevesada, e o seu séquito ria-se alto. Isso contribuía, no entanto, para temperar a conversação e criar uma atmosfera de cordialidade. O dignitário prometeu tomar em consideração o nosso caso e conferenciar com o suplente do seu colega. Encerrado o assunto, fomos tratados com requintada cortesia e tomamos chá preparado à européia. Mais tarde, o vice-rei enviou presentes à nossa tenda, o que animou as nossas esperanças de sucesso.

A visita seguinte passou-se num ambiente um tanto formal, embora afável. O vice-rei, sentado no alto, tinha ao seu lado em plano inferior o suplente do segundo "Garpön". Mais abaixo, na mesa, havia um maço de cartas escritas em papel tibetano. O dignitário comunicou-nos que podia dar-nos salvo-condutos e meios de transporte para a província de Ngari. De modo algum poderíamos avançar mais a dentro, no Tibete. Discutimos rapidamente a proposta e replicamos, solicitando que nos fosse concedido passaporte até à fronteira do Nepal. Depois de breve hesitação, o vice-rei concordou e prometeu endereçar ao governo central, em Lhasa, uma carta na qual exporia os nossos desejos; preveniu-nos, porém, de que a resposta poderia tardar meses. Naturalmente não pretendíamos esperá-la em Gartok. Porque não desistíamos do nosso plano de prosseguir para leste; custasse o que custasse, continuaríamos a viagem. Sendo o Nepal país neutro e situado, além disto, na direção que nos convinha, podíamos dar-nos por satisfeitos com o êxito das negociações.

O "Garpön" ainda nos convidou amàvelmente a aproveitar mais uns dias a sua hospitalidade, enquanto nos arranjassem animais de carga e um guia. Três dias depois, tivemos o nosso passaporte, com itinerário traçado através das seguintes localidades: Ngakhyü, Sersok, Möntshe, Barka, Thoktshhen, Lhölung, Chamtchang, Trucsum, Gyabnak. O salvo-conduto dava-nos o direito de requisitar dois iaques. Mais importante era a cláusula que autorizava a população a vender-nos gêneros alimentícios aos preços locais; disporíamos, sem restrições, de combustível e fogareiro para as noites.

Estávamos bem contentes com o que tínhamos conseguido. O "Garpön" ofereceu-nos um jantar de despedida, durante o qual consegui vender-lhe o meu relógio. À partida, tivemos todos de nos comprometer, sob palavra de honra, a não tomar dali o caminho para Lhasa. No dia 13 de julho, quando saímos finalmente de Gartok, formávamos uma caravana reduzida, mas suficientemente decorosa: dois iaques, guiados por um nômade, levavam a nossa bagagem; atrás deles ia o meu burrinho, em veia de bom comportamento, carregado apenas com um caixote de chá. O guia, um jovem tibetano chamado Norbu, também ia montado. Nós, os europeus, andávamos pouco feudalmente a pé.

 

 

RECOMEÇA A DURA PEREGRINAÇÃO

 

Tínhamos pela frente semanas de marcha. Nos meses seguintes, não encontramos nenhuma povoação importante; só tendas de nômades e "tasam-houses" isoladas, que eram estações de parada das caravanas, onde se podia permutar certo número de iaques e obter pousada.

Numa dessas estalagens, consegui trocar o meu burrinho por um iaque. Orgulhava-me desta barganha que me parecera um bom negócio. Infelizmente, cedo esmoreceu a minha satisfação: o meu iaque revelava-se tão birrento, que eu de bom grado o destroçaria. Mais tarde o substituí de fato por outro, menos corpulento e mais novo. Mostrando-se este igualmente teimoso, não houve remédio senão enfiar-lhe no nariz, à moda daquelas terras, uma argola presa a uma corda; assim foi mais fácil trazer o animal à obediência. E pusemos-lhe o nome de Armin.

A paisagem, através da qual jornadeávamos desde dias, era duma beleza singular. Vastas planícies se alternavam a regiões colinosas, a pequenos desfiladeiros; não raro, tínhamos de vadear a correnteza fria e rápida dum arroio. Em Gartok, houvera ainda tempestades de granizo; já agora, os dias eram em geral radiosos e quentes. Crescera-nos a todos uma barba espessa que nos resguardava um pouco dos raios do sol. 'Fazia tempo que não víamos uma geleira. Mas, assim que nos aproximamos da aldeia de Barka, lá estava uma cordilheira autêntica, faiscando à luz solar. Predominava na paisagem o Gurla Mandhata, de 7.730 metros de altitude; muito menos soberbo, porém tanto mais famoso era o Kailas, o monte sagrado, de 6.700 metros. Erguia-se solitário, diante de nós, na sua beleza majestosa, isolado do resto da cordilheira do Himalaia. À vista da montanha sagrada, os nossos tibetanos prostraram-se e rezaram as suas orações. Para os budistas como para os hinduístas, o Kailas é o paraíso dos deuses; ir, ao menos uma vez na vida, em peregrinação ao Kailas é o maior desejo dos crentes dessas religiões. Não raro, os devotos percorrem milhares de quilômetros; muitos vencem as etapas arrastando-se no solo e ficam anos no caminho, vivendo de esmolas e da esperança de que o seu sacrifício seja recompensado com uma encarnação superior, na existência seguinte. Filas de romeiros convergem, de todos os pontos cardeais, para o monte mítico. No ponto donde o monte Kailas é visto pela primeira vez, há gigantescos montes de pedras, acumulados em centenas de anos e indício duma devoção pueril. Efetivamente, segundo um velho uso, o peregrino que vê pela primeira vez o Kailas lhe acrescenta algumas pedras. Nós também pretendíamos dar a volta ao monte, como costumam fazer os romeiros; mas a rebarbativa autoridade da aldeia negou-nos a permissão e obrigou-nos a continuar, afirmando que mais tarde não nos poderia garantir animais para o transporte.

Mais dois longos dias, nos deleitamos com a visão das geleiras. Como éramos alpinistas, atraía-nos, mais do que a montanha sagrada, o Gurla Mandhata, ainda intacto, espelhando-se em toda a sua majestade, nas águas do Lago Manasarovar. Acampamos à margem desse lago e pudemos assim contemplar à saciedade a imagem estupenda do pico de 7.730 metros que parecia nascer do seio das águas. É, sem dúvida, um dos panoramas mais belos do globo. O lago também é sagrado e lhe orlam as águas muitos pequenos mosteiros onde os peregrinos podem pedir pousada e fazer as suas devoções. Muitos deles vão de rastos ao lago e colhem a água em recipientes que levam para casa como relicários. Todos os romeiros costumam banhar-se naquelas águas gélidas. Nós os imitamos, embora não o fizéssemos por devoção; e esse banho por um triz não me custou caro: nadando afastei-me da margem e caí num atoleiro do qual só me livrei com esforço extremo, porque os meus camaradas não tinham notado absolutamente a minha luta com o lodaçal.

 

Um dos generais que comandam a parada histórica anual, realizada pelo Ano Novo. O cavalo é enfeitado com rosetas. Os palafreneiros e os servos usam roupa de brocado e chapéu com franjas vermelhas.

 

Os monges acompanham com a sua música impressionante as danças das cerimônias religiosas do Ano Novo.

 

 

A grande liteira do Dalai Lama, na qual ele participa das procissões solenes, em Lhasa. A liteira é levada por 36 carregadores e sombreada por um guarda sol de penas de pavão.

 

Como, nessa estação, saíamos mais cedo do que o grosso da torrente de peregrinos, encontrávamos de ordinário mais comerciantes e poucos romeiros. Víamos também muitos vultos suspeitos, porque essa região é mal-afamada como eldorado dos salteadores. As tentativas de assalto a negociantes, nas vizinhanças dos mercados, são mais freqüentes do que alhures. O maior mercado dos arredores denomina-se Gyanyima. Centenas de tendas formam ali um acampamento gigantesco, uma feira onde se regateiam preços e se fazem transações. As tendas dos hindus são de algodão barato; as dos tibetanos, pelo contrário, tecidas de pêlo de iaque, pesam muito e dois iaques não são demais, para as carregar.

Nas horas que passávamos andando em direção ao leste, à margem do lago, tínhamos a impressão de estar passeando ã beira do mar. Aguavam-nos a alegria, que nos vinha daquela esplêndida natureza, os mosquitos importunos dos quais só nos livrávamos, afastando-nos do lago.

No caminho de Thoktshhen, cruzamo-nos com uma caravana ilustre: o novo governador distrital de Tsaparang, viajava de Lhasa para a sua sede. Fomos detidos; o nosso guia tibetano — com o qual as nossas relações não eram muito cordiais — dobrou-se, estarrecido, em profunda reverência, descobriu-se e pôs a língua de fora, em sinal de saudação — uma imagem de submissão total. As armas prontas a ferir retraíram-se; e fomos agraciados com um punhado de frutos e nozes secos, retirados dos coldres.

Evidentemente, já não transparecia em nós o menor vestígio da superioridade senhoril do europeu. Vivíamos, aliás, quase como nômades; fazia três meses que dormíamos em geral ao relento; e o nosso padrão era inferior ao da população indígena. A nossa tenda estreita mal dava para deitar-nos; o fogo, o bivaque, tinham de ser ao ar livre, fosse qual fosse o tempo — enquanto os nômades podiam estar, quentes e abrigados, nas suas tendas.

Contudo, se a nossa aparência decaíra, a nossa inteligência não se embotara; continuava perenemente ativa. Raros europeus pisaram o solo da região que atravessávamos; e nós sabíamos que, mais tarde, qualquer observação poderia ser valiosa. Naqueles dias, acreditávamos que, dentro dum prazo previsível, voltaríamos a estar em contacto com a civilização. Os perigos e provações, que afrontáramos juntos, haviam criado entre nós laços sólidos; conhecíamos reciprocamente os nossos defeitos e as nossas qualidades; e mutuamente nos ajudávamos a superar os desalentos.

Mais abaixo, tivemos de atravessar outros passos, até chegarmos à nascente do Bramaputra, chamado em tibetano Tsangpo. Essa região não tem apenas importância religiosa, para os peregrinos asiáticos; também é sumamente interessante do ponto de vista geográfico, porque abrange as bacias do Indo, do Satledsh, do Carnali e do Bramaputra. Para os tibetanos, os nomes destes rios ligam-se a quatro animais sagrados: o leão, o elefante, o pavão e o cavalo, porque esse povo costuma dar a toda denominação um sentido simbólico religioso.

Nos quatorze dias seguintes, o Tsangpo foi o nosso norte. Este rio cresce a olhos vistos, graças aos grandes tributários que lhe vêm do Himalaia e do Transhimalaia; e, à medida que aumenta o seu volume de águas, mais plácido é o seu curso.

O tempo variava constantemente; no espaço de minutos, passava-se de um frio glacial a um calor escaldante. Ao granizo sucedia um aguaceiro; a este, um sol radioso. E, certa manhã, acordamos até com a tenda enterrada na neve que, horas depois, se derretia ao calor intenso do sol. A nossa indumentária européia não estava à altura dessas contínuas mudanças de tempo; e invejávamos aos tibetanos as suas práticas peles de carneiro, amarradas na cintura, com longas e largas mangas que dispensavam as luvas.

Embora nos incomodassem os saltos bruscos do tempo, íamos vivendo. As pausas da nossa marcha eram determinadas pelas "tasams". De quando em quando, avistávamos o Himalaia; e nenhuma das belezas naturais que eu conhecera até então me parecia comparável à vista daquela cadeia de picos. Os nossos encontros com os nômades se tornavam mais e mais raros; e os únicos seres vivos, que avistávamos à margem direita do Tsangpo, eram gazelas e onagros.

Já nos aproximávamos de Gyabnak, a última localidade mencionada no nosso salvo-conduto; ali terminava a jurisdição do nosso amigo de Gartok. Não tivemos ensejo de nos dar ao trabalho de decidir o que nos convinha fazer, porque, no terceiro dia da nossa estada nesse pouso, chegou de Tradün em carreira desabalada um mensageiro, para nos intimar a comparecermos quanto antes nessa localidade, onde dois altos funcionários de Lhasa desejavam falar-nos. Não nos doeu abandonar Gyabnak que nem merecia o nome de aldeia; embora fosse a sede dum dignitário religioso da província de Bongpa, tinha apenas uma casa, e o acampamento de nômades mais próximo distava dali mais duma hora. Pusemo-nos logo a caminho. Passamos a noite num lugar deserto, onde os únicos viventes eram onagros.

O dia seguinte se gravou na minha memória, como um dos mais belos da minha vida. Enquanto marchávamos, vimos despontar muito longe, as esguias torrinhas douradas dum mosteiro. Além delas avultavam, realmente grandiosas, cintilando ao sol da manhã, muralhas de gelo. A pouco e pouco, nos convencemos de que deviam ser os picos de oito mil metros de altitude da cadeia do Himalaia: o Dhaulagiri, o Annapurna, e o Manaslu. Essa visão fascinava-nos; o próprio Kopp, que não era alpinista, se deixou contagiar pelo nosso entusiasmo. Como Tradün e as suas torres claustrais filigranadas, ficavam no extremo oposto da planície, ainda por muitas horas pudemos deleitar-nos com a vista dos gigantes; nem sequer a necessidade de vadear as águas geladas do Rio Tsatchu nos turvou o bom humor.

 

 

UM MOSTEIRO VERMELHO, COM TELHADOS DOURADOS: TRADÜN

 

Entramos em Tradün ao anoitecer. Na colina banhada pelos derradeiros raios do sol poente, o claustro vermelho, de cobertura dourada, lembrava uma visão de contos de fadas. No declive oposto do morro, protegidas contra os ventos, aninhavam-se as casas da aldeia, feitas como de costume de tijolos de barro. A população, reunida, aguardava-nos em silêncio. Fomos conduzidos imediatamente a uma casa preparada para nós. Mal tínhamos largado a nossa bagagem, apareceram vários servos e convidaram-nos cortesmente a irmos à presença dos seus senhores. Vibrando de esperança, acompanhamos os emissários dos dois poderosos.

Atravessamos um ajuntamento murmurante de subalternos e entramos num recinto espaçoso, em cujo plano mais elevado se sentava um monge risonho e bem nutrido, tendo ao lado um segundo dignitário, o seu colega secular. Mais abaixo, estavam o abade, o funcionário religioso de Gyabnak, e um comerciante do Nepal, que engrolava um pouco de inglês e ia servir de intérprete. Fora-nos preparado um banco de almofadas, a fim de não sermos obrigados a sentar-nos nas pernas cruzadas, como os tibetanos. Insistiram em que tomássemos chá com bolacha e esgotaram o rol das perguntas amáveis. Finalmente pediram-nos que mostrássemos o nosso salvo-conduto. Este passou de mão em mão, e todos o examinaram cuidadosamente. Seguiu-se uma pausa, um silêncio um tanto opressivo, ao termo do qual os dois dignitários formularam lentamente as suas dúvidas: éramos de fato alemães? As duas autoridades simplesmente não podiam acreditar que tivéssemos fugido duma prisão britânica; julgavam-nos antes russos ou ingleses. Tivemos de mostrar a nossa bagagem que foi submetida, no pátio do prédio a uma vistoria meticulosa. A preocupação principal era averiguar se possuíamos algum aparelho de transmissão e armas; custou-nos convencê-los de que não tínhamos nada desse gênero. Os únicos objetos que os impressionaram, nas nossas coisas, foram uma gramática tibetana e um compêndio de história.

Constava do nosso salvo-conduto que desejávamos ir ao Nepal. É de crer que fosse do agrado das duas personalidades, porque elas prometeram-nos todo o auxílio. Opinaram que poderíamos partir já no dia seguinte. Se tomássemos o caminho do passo Korela, em dois dias estaríamos no Nepal. Não era bem esse, no entanto, o nosso propósito. Fazíamos todo empenho em ficar no Tibete e estávamos decididos a lutar por isto com a máxima energia. Estribados na declaração de neutralidade, aduzimos o direito de asilo, comparando a posição do Tibete à da Suíça. Os dois dignitários, embora muito amáveis, teimavam em ater-se aos termos do nosso salvo-conduto. Com a mesma obstinação, nós não cedíamos terreno. Nesses meses de permanência no Tibete, tínhamos chegado a conhecer a mentalidade asiática e sabíamos que nunca se deve ceder. A entrevista decorria nos melhores termos e, de taça em taça de chá os dois colegas foram-nos revelando que, em Lhasa, não eram tão importantes como parecia em Tradün, onde estavam em missão de cobrança de impostos. A verdade era que, viajando eles com vinte servos e numerosos animais de carga, tinha-se a impressão de que eram pelo menos ministros.

Despediram-nos, finalmente, declarando que deveríamos ficar mais uns dias em Tradün.

Na manhã seguinte, um dos servos nos transmitiu um convite dos "Bönpos" — assim se denominam no Tibete as personalidades importantes — para o almoço. Esperava-nos uma suculenta macarronada chinesa! Tínhamos, sem dúvida, aparência de esfomeados, porque nos serviram pratarrazes de massa. Mesmo que já não pudéssemos comer mais, os nossos anfitriões insistiam em nos encher o prato. Aprendemos nessa ocasião que é de bom-tom, no Tibete, dar-se por satisfeito, antes de ter comido à saciedade. Impressionou-nos a habilidade com que os nativos manejavam os pauzinhos; e a nossa admiração chegou ao auge, vendo-os juntarem com os ditos pauzinhos grãos isolados de arroz. Essa admiração recíproca criava um clima de cordialidade e provocou risadas gostosas, de parte a parte. A cerveja, servida ao almoço, também contribuía para melhorar as disposições. Observei, porém, que os monges não bebiam.

Pouco a pouco, vieram à baila os nossos problemas; soubemos assim que os dois dignitários tinham resolvido apoiar por escrito, junto do governo central de Lhasa, o nosso pedido de asilo e permissão de estadia no Tibete. Cumpria-nos redigir imediatamente em inglês a nossa petição, à qual eles acrescentariam a carta que nos recomendava. Assim fizemos, na mesma hora, e a carta foi anexada ao requerimento, em nossa presença. Selado com todas as cerimônias de praxe, o ofício foi entregue a um correio que partiu logo depois para Lhasa.

Mal podíamos imaginar que seríamos tratados tão cordialmente. Tivemos de ficar em Tradün, à espera da resposta de Lhasa. Como as nossas experiências com os funcionários de categoria inferior não eram as melhores, solicitamos que a licença para permanecer em Tradün nos fosse dada por escrito, o que também nos foi concedido. Contentes e satisfeitos ao extremo com o nosso sucesso, regressamos enfim ao nosso alojamento. Mal chegáramos, a porta abriu-se e entrou uma verdadeira procissão de servos, para nos entregar um saco de farinha, arroz, "tsampa" e quatro carneiros abatidos. Não compreendemos, a princípio, o que significava aquilo; o burgomestre, que acompanhava os portadores, explicou-nos que eram presentes dos dois dignitários. Como o agradecíamos, o funcionário esquivou-se modestamente; ninguém queria ser o doador. À despedida, o pacato burgomestre disse-nos algumas palavras, cuja sabedoria muito me havia de valer no Tibete. "Aqui — observou ele — a pressa do europeu não tem razão de ser. Aprendam, moços: para chegar a um fim, são precisos tempo e paciência".

Quando ficamos os três sozinhos, na nossa casa, mal podíamos acreditar que a nossa sorte houvesse mudado tanto para melhor: a nossa petição de asilo estava a caminho de Lhasa e, durante meses, teríamos subsistência garantida; acima de nós, em vez do abrigo frágil da tenda, havia um teto estável; e uma criada — que, infelizmente, não era jovem nem bonita — acendia o fogo e ia buscar água. Sentiamo-nos sinceramente agradecidos e faríamos de bom grado o que quer que fosse, para provar ao "Bönpos" a nossa gratidão. O mais que lhe podíamos oferecer eram alguns medicamentos, aguardando ocasião mais propícia para agradecê-lo melhor. Em Tradün, como em Gartok, tivéramos ensejo de conhecer bem a cortesia da nobreza de Lhasa acerca da qual eu lera, entre outras coisas, passagens enaltecedoras, em livros de Sir Charles Bell.

Presumindo que teríamos de esperar meses a resposta de Lhasa, tratamos de forjar planos que nos ajudassem a passar o tempo. Queríamos absolutamente fazer excursões aos territórios do Annapurna e do Dhaulagiri e às planícies setentrionais do Chang-tang. Ao termo de certo tempo, porém, procurou-nos o abade, ao qual recorrera o burgomestre local, para nos comunicar que a nossa permissão de estadia se subordinava à condição de não nos ausentarmos de Tradün senão pelo espaço de um dia. Podíamos excursionar quanto quiséssemos, contanto que à noite estivéssemos de volta. Se não, cumpríssemos essa condição, ele seria obrigado a participar o fato a Lhasa e, sem dúvida, isso não influiria favoravelmente na resposta.

Contentamo-nos, pois, com breves passeios nas montanhas dos arredores. Uma delas, um pico solitário de 7.065 metros de altitude, atraía-nos particularmente. Chamava-se Lungpo Kangri; e nós nos sentávamos freqüentemente numa das suas saliências, para fixar a sua forma extravagante, nos nossos cadernos de croquis. Esse cume desviava-se do Transhimalaia, como o Kailas e era por isso tanto mais impressionante.

Ao sul, das nossas colinas podíamos contemplar os gigantes do Himalaia, embora os seus cimos distassem de nós boas centenas de quilômetros. Um dia, a tentação de nos aproximarmos deles foi demasiado forte. Aufschnaiter e eu tínhamos escolhido como meta uma determinada altura, o monte Tarsangri. Para chegar a ele, devíamos antes atravessar o leito do Tsangpo, já bem largo nesse ponto. Havia, a falar verdade, um batelão com um bote de couro de iaque; mas os barqueiros tinham ordem de não nos trasladar para a outra margem. Só nos restava, portanto, ir a nado. Aufschnaiter por um triz ia perdendo a trouxa das suas roupas, que trazia na cabeça; eu continuei a nadar e consegui apanhá-la a tempo. Seria pena perder o nosso precioso vestuário! A ascensão realizou-se, sem dificuldade e, do alto do nosso monte, abrangíamos com a vista o vasto panorama dum mundo de montanhas cujos cimos eram para os alpinistas meros nomes. Como não tínhamos máquina fotográfica, só podíamos desenhá-los. Voltávamos continuamente àquele lugar, porque todos se alegravam de que não fugíssemos.

Sendo Tradün grande centro de transbordo, dava por vezes a idéia de certas estações de trens cargueiros. Amontoavam-se ali diariamente verdadeiras montanhas de chá, de sal, de lã, de frutos secos, de muitos outros artigos que, um ou dois dias depois, eram levados por outras caravanas. No transporte da carga, empregavam-se iaques, muares e carneiros. Circulavam continuamente na aldeia tipos novos que lhe quebravam a monotonia.

Durante o mês de agosto chovera muito — resíduo da monção na índia. Em setembro, o tempo melhorou e nós aproveitávamos freqüentemente os dias para pescar ou ir aos acampamentos dos nômades, a fim de nos provermos de queijo e manteiga.

A aldeia propriamente dita era um aglomerado dumas vinte casas, dominadas pelo claustro da colina, onde viviam só sete monges. As moradias comuns, embora muito próximas umas das outras tinham um pequeno pátio próprio, para depósito de mercadorias. A maior maravilha eram, para nós, alguns canteiros de salada, que não excediam uma área de dois metros quadrados. Por vezes, em troca de medicamentos, eu conseguia alguns molhos das preciosas folhas verdes. Os moradores da aldeia trabalhavam todos no comércio, ou nos transportes. Os verdadeiros nômades viviam espalhados na planície de Tradün. Também tivemos oportunidade de assistir a várias festas religiosas. A mais impressionante foi uma espécie de festa da colheita. Nós estávamos nos melhores termos com toda a população e, em geral, obtínhamos com os nossos remédios os gêneros alimentícios de que precisávamos. Simultaneamente éramos procurados como médicos, e nos saíamos muito bem no tratamento de feridas e de dores de estômago.

Visitas importantes quebravam de quando em quando a uniformidade de vida em Tradün. Ficou-me particularmente na lembrança a chegada do segundo "Garpön" que se dirigia para Gartok.

Muito antes que houvesse sinal dele e do seu séquito, um piquete de soldados anunciou-lhe a aproximação. Aos soldados seguiu-se o cozinheiro do ilustre viajante, que tratou imediatamente de preparar as refeições. Só no dia seguinte o "Garpön" apareceu com o grosso da caravana e uma comitiva de trinta servos e servas. A aldeia inteira acudiu a recebê-los e nós naturalmente, não éramos os menos curiosos. O hóspede importante e a sua família montavam mulas luxuosamente ajaezadas; anciãos da aldeia, ou servos, segurando o animal pelo freio, conduziam cada membro da família ao aposento que lhe fora preparado. A filha do "Garpön" interessava-nos mais do que o pai dignitário: era a primeira moça elegante que víamos, desde 1939; e pareceu-nos muito bonita. "Vestida de seda pura, com as unhas laqueadas de esmalte vermelho, talvez houvesse exagerado um pouco na aplicação do pó, do ruge e do batom. Mas tinha um perfume delicioso de limpeza e de frescura. Perguntamos-lhe se era a jovem mais linda de Lhasa. Ela protestou modestamente: não; havia outras muito mais belas. Lamentamos muito que essa companhia agradável partisse no dia seguinte.

Pouco depois, a nossa aldeia recebeu um novo hóspede, um funcionário do governo do Nepal; sob o pretexto duma peregrinação, ele vinha visitar-nos. Tivemos a impressão de que desejava convencer-nos a ir ao Nepal. Em Catmandu, a capital do reino, teríamos asilo e trabalho; o governo organizaria a nossa viagem ao reino e nos daria trezentas rúpias de ajuda de custo. Tudo isso era muito atraente; demais talvez, porque nós conhecíamos o poder dos ingleses na Ásia...

Ao termo de três meses, começamos a impacientar-nos; e dessa impaciência já se ressentiam as nossas relações mútuas. Kopp declarava a toda hora que estaria disposto a aceitar o convite do Nepal. Aufschnaiter, como era seu hábito, pôs em prática idéias próprias. Pretendia ir ao Changtang e comprou quatro carneiros para bestas de carga. Isso contrariava o nosso plano primitivo de aguardar a resposta de Lhasa. Todavia, já duvidávamos duma solução positiva.

Aufschnaiter foi o primeiro que perdeu a paciência; uma tarde pôs-se em marcha, com os seus carneiros carregados, e acampou alguns quilômetros fora da aldeia. Nós o ajudamos a levar lá as suas coisas e iríamos visitá-lo, no dia seguinte. Kopp também começou a arrumar a bagagem; as autoridades locais prometiam-lhe uma possibilidade de transporte, porque folgavam da sua resolução de se mudar para o Nepal. Agradava-lhes menos a atitude de Aufschnaiter; a partir desse dia, os guardas dormiram à nossa porta. Já na manhã seguinte, porém, tivemos a surpresa de ver voltar Aufschnaiter com os seus fardos. Durante a noite, os seus carneiros tinham caído nas garras dos lobos; dois deles haviam sido devorados com pele e tosão. O nosso amigo fora obrigado a voltar; estávamos, pois, reunidos mais uma vez, por uma noite.

No outro dia, Kopp fez as suas despedidas, com a presença de toda a aldeia. Dos sete que saíramos do campo, dos cinco que entráramos no Tibete, restávamos só Aufschnaiter e eu. Éramos os únicos alpinistas da turma e por isso talvez os mais bem treinados, física e moralmente, para a vida solitária e dura daquela região.

Entrara o mês de novembro; esmorecia o movimento, nas estradas caravaneiras. O dignitário religioso de Gyabnak mandou-nos alguns carneiros e doze fardos de estéreo de iaque, para queimar. Presente bem oportuno, pois a temperatura já descera a doze graus abaixo de zero.

 

 

UMA CARTA NOS INDUZ A CONTINUAR

 

Apesar do inverno, estávamos decididos, mais do que nunca, a deixar Tradün, com ou sem a resposta de Lhasa. Com este propósito, açambarcávamos provisões e compramos outro iaque. Mas, em meio dos nossos preparativos, veio o abade comunicar-nos que recebera uma carta. O que tanto receáramos em segredo acontecia: proibiam-nos a continuação da viagem ao interior do Tibete. A carta não nos foi entregue pessoalmente; disseram-nos apenas que não devíamos tomar o caminho direto e mais breve para o Nepal. Dentro do próprio território tibetano, iríamos a Kyirong; dali à fronteira do Nepal, eram oito milhas; e sete dias de marcha até Catmandu, a capital. Para esta viagem receberíamos servos e animais de carga. Aceitamos logo a proposta, porquanto o itinerário nos permitiria penetrar um pouco mais no Tibete; e, quanto mais estivéssemos sob asilo legal, tanto melhor para nós.

A 17 de dezembro, deixamos Tradün, a localidade que nos abrigara mais de quatro meses. O fato de não nos ser concedido ir a Lhasa, nunca nos indispusera com o Tibete. Sabemos todos como é difícil ao estrangeiro tomar pé num país onde entrou sem passaporte. E os tibetanos, obsequiando-nos continuamente com presentes e meios de transporte, provavam a sua hospitalidade muito além do que é costume noutras terras. Embora não os estimasse então como os prezo agora, Aufschnaiter e eu lhes éramos gratos, nem que fosse só por esses oito meses fora da cerca de arame farpado.

E estávamos de novo a caminho.

Desta vez, a nossa coluna era formada de Aufschnaiter e eu; mas acompanhados de dois servos. Um destes levava, bem acondicionada, a nossa salvaguarda, a carta do governo às autoridades distritais de Kyirong. íamos todos montados; e os dois iaques marchavam, conduzidos por um arrieiro. Já de longe, via-se que a nossa caravana era de gente distinta, muito diferente dos três vagabundos desclassificados que, meses antes, haviam atravessado o Himalaia em sentido inverso.

A marcha para Kyirong levou-nos novamente, pelo divisor de águas, para sueste. Quando o vadeamos, o Tsangpo já estava congelado; e, de noite, na tenda, fazia muito frio.

Ao termo duma semana de cavalgada, alcançamos Dzongka. A densa nuvem de fumaça, que pairava sobre as casas, indicava de longe uma povoação. Dzongka era finalmente uma localidade que merecia o nome de aldeia. À roda dum claustro, premiam-se umas cem casas de barro, cercadas de plantações. Dzongka situava-se na confluência de dois rios que brotam juntos do Himalaia, com o nome de Rio Kosi e correm para o Nepal. Baluartes duns dez metros de altura protegiam a colônia; atrás deles avultava, dominando tudo, a majestosa altitude de seis mil metros, que os nativos denominam Tshogulhari.

Estava-se justamente na véspera do Natal, o nosso primeiro Natal fora do acampamento. O alojamento, que nos destinavam, surpreendeu-nos pelo seu conforto. O limite de altitude estava a dois dias de viagem. A madeira não era, portanto, uma preciosidade; usava-se à vontade para construção e para quaisquer necessidades domésticas. Num recipiente de folha, adaptado ao fogão, crepitava a lenha de zimbro que nos aquecia agradavelmente o quarto. À noite, acendemos os candeeiros tibetanos de manteiga e, pouco depois, para festejar a data, uma perna de carneiro assava na nossa caçarola.

Em Dzongka, tal como nas demais localidades do Tibete, não há hospedadas públicas; as autoridades indicam aos forasteiros alojamentos em casas particulares. A distribuição é feita numa determinada ordem, a fim de evitar que a população lhe sinta demais o peso; e representa uma parte do imposto a ser pago ao Estado.

Embora não estivesse prevista uma permanência prolongada, as violentas nevascas retiveram-nos em Dzongka quase um mês. A vizinhança do Himalaia fazia cair neve na aldeia, dias a fio, em densos flocos, interrompendo completamente o tráfego. Nós saboreávamos o conforto do nosso quarto, com uma pausa aprazível de repouso. Assistíamos a certas cerimônias religiosas do claustro; e participávamos, como espectadores, dos espetáculos de um conjunto de bailarinos, recém-chegados de Nyenam.

Vivia em Dzongka bom número de dignitários nobres que, em breve, se tornaram nossos amigos. Já então, falávamos bem o idioma tibetano e travávamos longos debates que nos iam iniciando nos costumes do país. A noite de São Silvestre passou, sem festas e sem música; mas o nosso pensamento voava, como nunca, para a nossa pátria.

Sempre que fosse possível, aproveitávamos esses dias de espera, em passeios nos arredores. Havia ali numerosas grutas de arenito que eram para nós minas espirituais; descobríamos nelas imagens de divindades de madeira e barro, folhas esparsas de livros sacros tibetanos, provavelmente oferendas aos santos homens que viviam outrora nessas grutas.

A 19 de janeiro, as estradas já eram praticáveis em tal extensão, que pudemos partir, associando-nos a uma enorme caravana de iaques. Iam à frente iaques sem carga, lavrando a neve como charruas e, aparentemente, muito satisfeitos com isso. O vale convergiu em breve para um desfiladeiro, e só nos dois primeiros dias, contamos doze pontes sobre o rio. O meu iaque, originário de Chang-tang, antipatizava com elas, emperrava furiosamente à hora de atravessá-las. Portava-se realmente como "um boi diante da porta nova"; e só ajudados pelos caravaneiros, que o empurravam, enquanto nós o puxávamos da frente, conseguimos tirá-lo de lá. Já me tinham recomendado que não o levasse a Kyirong, porque o iaque não resistiria ao clima quente. Eu, porém, não queria separar-me dele, porque ainda não desistíramos dos nossos planos de fuga.

Em todo esse tempo, o meu termômetro marcara estàvelmente trinta graus abaixo de zero; e não descia mais, porque essa temperatura era o ponto terminal da escala.

Certa vez descobrimos, na parede rochosa dum desfiladeiro, uma inscrição chinesa que me interessou. Talvez fossem vestígios da campanha chinesa de 1792 contra o Nepal, quando um exército completo percorrera milhares de quilômetros, até às portas de Catmandu, e ali ditara as suas condições.

Impressionou-nos profundamente um claustro, nas vizinhanças de Longda. Duzentos metros acima do vale, o mosteiro vermelho e numerosas celas claustrais colavam-se ao rochedo, como ninhos de pássaros. Aufschnaiter e eu não resistimos à tentação de escalar aquelas encostas ameaçadas pelas avalanches, e tivemos mais uma visão grandiosa do Himalaia. Encontramos no claustro alguns monges e religiosas. Soubemos por eles que o convento era o mosteiro de Malrepa, o famoso santo e poeta tibetano que vivera ali no século XI. Compreende-se facilmente que a sua posição excepcional e o panorama estupendo pudessem induzir uma alma sensível a meditar e poetar. Custou-nos afastar dali. Prometemos a nós mesmos que havíamos de voltar.

A neve rareava dia a dia. Em breve, atingimos o limite de altitude e entramos numa região verdadeiramente tropical. Pesava-nos a roupa de inverno com que nos presenteara o governo. Alcançáramos Drothang, última etapa antes de Kyirong, uma pequena aldeia aninhada em prados verdes. Ainda me lembro de que todos os habitantes apresentavam papeiras volumosas, fenômeno que raramente se nota noutras regiões do Tibete.

Empregamos uma semana para chegar a Kyirong, uma distância que, estando o caminho em boas condições, não requer mais de três dias e que um correio pode percorrer numa única jornada.

 

 

KYIRONG, ALDEIA DA BEM-AVENTURANÇA

 

"Kyirong" significa literalmente "aldeia da bem-aventurança". E bem merece este nome. Nunca a esqueci; se pudesse escolher um lugar para terminar os meus dias, escolheria Kyirong. Levantaria a minha casa de lenho vermelho de cedro; desviaria para o meu jardim um dos inúmeros regatos que se despenham dos montes. No jardim, medrariam em breve quase todos os frutos, porque a localidade está situada a 2.770 metros de altitude, embora coincida quase com a latitude de vinte e oito graus.

Quando chegamos, em janeiro, a temperatura estava abaixo de zero; mas poderia descer mais nove graus. Ali é possível esquiar no Himalaia o ano inteiro; e, no verão, há possibilidade de escalar montanhas de seis e sete mil metros de altitude.

O povoado consta dumas oitenta casas; é sede de dois governadores distritais que têm sob a sua jurisdição trinta aldeias dos arredores. Pelo que nos disseram, éramos os primeiros europeus que chegavam a Kyirong. A população assistiu com surpresa ao ingresso da nossa caravana.

Destinaram-nos, dessa vez, alojamentos na residência dum rico lavrador. A casa tinha alicerces de alvenaria, sobre os quais assentava uma estrutura de madeira, com telhado de ripas, calçadas com pedras. Lembrava uma casa tirolesa e — como, aliás, a aldeia inteira — poderia estar nos Alpes europeus. Apenas, em vez de chaminés, as cumeeiras ostentavam flâmulas com orações. Essas bandeirolas eram sempre de cinco cores; cada uma destas representava um símbolo da vida tibetana. No rés-do-chão, alojavam-se as vacas e os cavalos. Uma espessa cobertura de madeira separava a estrebaria do primeiro andar, onde residia a família e ao qual só se chegava de fora, pela escada do pátio. Grossos colchões de palha, ladeados de mesinhas baixas, substituíam as cadeiras e as camas. Armários esmaltados de tons vivos guardavam as roupas domingueiras; no infalível altar de madeira entalhada, ardiam candeeiros alimentados com manteiga. A gigantesca lareira aberta, chamejante de lenha de carvalho, era no inverno o ponto de reunião da família. Sentavam-se todos em círculo, no soalho de tábuas, a tomar chá.

O quarto, que eu e Aufschnaiter ocupávamos, era um tanto estreito; tratei, pois, de me acomodar no celeiro contíguo. Enquanto o meu camarada se batia com ratazanas e percevejos, os meus inimigos eram camundongos e pulgas. Não consegui derrotá-los. Consolava-me uma soberba vista de geleiras, sobressaindo das florestas de rododrendos, a bem dizer ao alcance da mão.

Por questões de higiene, embora tivéssemos criados às ordens, cuidávamos, nós mesmos, de preparar a nossa comida. Tínhamos um fogareiro no quarto e lenha de graça. Dessa maneira, gastávamos muito pouco; a despesa com mantimentos, não excedia cem xelins mensais para cada um de nós. Mandei fazer um par de calças, e o alfaiate cobrou-me cinco xelins.

O prato principal dessa região tibetana é a tsampa. Em Kyirong, tivemos ensejo de ver como se prepara. Numa frigideira de ferro, aquece-se areia, a ponto de ficar em brasa e coloca-se sobre ela uma camada de grãos de cevada. Expostos a esse calor, os grãos rebentam, com um leve estalo. Numa peneira, separa-se a areia, dos grãos bem corados e estes dão uma farinha cheirosa que os tibetanos costumam comer, amassada com chá e manteiga; também pode ser misturada com cerveja e com leite. Os tibetanos são muito inventivos, na preparação de tsampa, que têm de por na mesa várias vezes por dia. Nós também nos habituamos a ela, menos à mistura com chá e manteiga, combinação que é, aos olhos dum europeu, um modo esquisito de preparar chá. Importa-se da China o chá bruto isto é — as hastes e o refugo, comprimidos em forma de tabletes — que é fervido horas a fio, com muito sal e um pouco de soda; côa-se a infusão numa batedeira e, conforme a quantidade e a qualidade do chá, acrescenta-se manteiga, reduzindo tudo a uma emulsão. Infelizmente, a manteiga nem sempre é fresca, pois a sua conservação durante meses, não raro anos, em recipientes de couro de iaque não é perfeita. Por isso, para o europeu, o gosto dessa beberagem é francamente repulsivo e bem me custou habituar-me a ele. Os tibetanos também prefeririam empregar manteiga fresca, em vez da rançosa, porque o chá com manteiga é a sua bebida nacional e eles o põem na mesa até seis vezes num dia. Além destes dois alimentos, consomem arroz, trigo mourisco, milho, batatas, nabos, cebolas, favas e rábanos. A carne é uma raridade. Efetivamente, como Kyirong é um lugar especialmente santificado, ali não se abatem animais; a carne só aparece na mesa, quando vem doutra localidade, ou quando — isto acontece freqüentemente — um urso, ou uma pantera, matam outro animal e enjeitam uma parte dos despojos. Não me parece compatível com esse modo de ver, o fato de, a cada outono, passarem pela aldeia umas quinze mil ovelhas, levadas ao matadouro do Nepal, e de Kyirong cobrar impostos sobre elas.

Logo no princípio da nossa estada, visitamos as autoridades distritais. O criado já lhes apresentara o nosso salvo-conduto, e os dignitários imaginavam que seguiríamos logo para o Nepal. Não era absolutamente a nossa intenção; e dissemos-lhes que estimaríamos passar algum tempo em Kyirong. Eles concordaram; e, a nosso pedido, prometeram comunicar a Lhasa nossa resolução. Visitamos igualmente o representante do Nepal, que nos fez um quadro maravilhoso da sua terra. Entretanto, sabíamos por experiência própria que o nosso camarada Kopp, após dias de permanência no Nepal, fora recapturado e conduzido ao campo de internamento na índia. Todas as promessas de termos lá à nossa disposição, automóvel, bicicleta, cinema, não nos causaram a menor impressão.

Em razão das estreitas relações comerciais com o Nepal, não havia na região de Kyirong dinheiro tibetano; a moeda dominante era o "khotrang". Na população, muito mesclada, os "katsaras" cruzamento de nepaleses e tibetanos, que nem de longe se pareciam com o tipo alegre e simpático do tibetano puro sangue, não eram tomados em consideração por nenhuma das duas raças.

Do governo de Lhasa não esperávamos absolutamente nenhuma permissão de estada. No Nepal, ameaçava-nos a expulsão. Decidimos, portanto, descansar temporariamente nessa aldeia de contos de fadas e contemporizar, enquanto não tivéssemos pronto um novo plano de fuga. Nessa ocasião, nem desconfiávamos de que teríamos de permanecer quase nove meses em Kyirong.

Não nos aborrecíamos. Preenchíamos grossos cadernos de apontamentos sobre usos e costumes dos tibetanos. Não passávamos a bem dizer um dia sem dar um passeio pelos arredores, próximos ou distantes. Aufschnaiter, que fora secretário do Instituto do Himalaia em Munique, aproveitando a oportunidade, desenhava ativamente mapas. Enquanto o nosso mapa especial da região trazia inscritos só três nomes, nós já coligíramos mais de duzentos. E assim, além de gozarmos a nossa liberdade, aproveitávamos utilmente o tempo.

Os nossos passeios, a princípio limitados aos arredores mais vizinhos, assumiram aos poucos caráter de excursões. A população habituara-se a ver-nos e ninguém nos hostilizava. Para nós, o maior ponto de atração eram naturalmente as montanhas e, depois delas, as fontes termais nas proximidades de Kyirong. Havia muitas; a mais quente brotava do centro dum matagal de bambus, perto do gélido Rio Kosi. A água jorrava, quase fervente, do solo; chegava à piscina, para onde era canalizada, ainda com a temperatura duns quarenta graus. Eu pude tomar verdadeiros banhos alternados, mergulhando sucessivamente na piscina e na água gelada do Kosi.

Na primavera, houve uma verdadeira estação de banhos nas termas. Os tibetanos afluíam em bandos; brotavam por assim dizer do chão cabanas e abrigos de bambu; e o sítio dantes tão solitário, a duas horas de distância da aldeia, encheu-se de animação. Homens e mulheres atiravam-se nus à piscina; e, como entre os ocidentais, havia grandes risadas, quando alguém se mostrava demasiado dengoso. A visita às fontes termais era, para certas famílias, um período de férias. Os veranistas chegavam, com todos os seus petrechos e tonéis de cerveja, a fim de passar uma semana, ou uma quinzena, nas choupanas de bambu. A aristocracia também freqüentava os banhos, com caravanas de criados. Mas a animação durava pouco; chegando o verão, na época do degelo, o rio absorvia as fontes.

Em Kyirong travei conhecimento com um monge que estudara na Faculdade de Medicina de Lhasa. Era muito estimado e sabia tirar o máximo proveito dos gêneros alimentícios que recebia como honorários. Os seus métodos de tratamento eram de várias espécies. Um deles consistia em premer um breve, na parte do corpo onde o paciente sentia dor. Dava resultado, em males nervosos. Em casos graves, o estranho médico abria buracos na pele do enfermo, com um ferro em brasa. Eu mesmo o vi uma vez despertar assim, duma síncope um quase agonizante. Não se saía tão bem com outros enfermos. Os mesmos processos drásticos eram aplicados aos animais domésticos. Como eu também sou meio médico e me interesso por tudo o que se refere à medicina, mantinha longas conversações com o monge. Ele explicou-me que conhecia exatamente os limites da sua ciência, por isso não quebrava a cabeça; e nunca tivera incidentes desagradáveis, porque mudava continuamente de domicílio. Com as suas curas duvidosas, custeava as suas peregrinações. Logo, estava em paz com a sua consciência.

 

 

O NOSSO PRIMEIRO ANO-BOM NO TIBETE

 

Em meado de fevereiro, assistimos ao nosso primeiro Ano Novo no Tibete. A contagem do tempo é feita ali segundo o calendário lunar; e os anos têm nomes duplos, relacionados com os animais e os elementos. A festa do Ano Novo, as datas do nascimento e da morte de Buda são os maiores acontecimentos do ano. Já durante a noite, ouvimos a vozeria dos mendigos cantores e dos monges peregrinos esmolando de casa em casa. Ao amanhecer, pinheiros recém-cortados, enfeitados com flâmulas e preces, alegraram o espigão das casas. Rezavam-se solenemente fórmulas religiosas e oferecia-se tsampa aos deuses. Em numerosos templos, atulhavam-se de manteiga enormes caldeirões de cobre. Acreditava-se que só assim se granjeavam a satisfação e a proteção divinas. Diante das estátuas de ouro, tocando-lhes os pés com a fronte, em sinal de veneração, os devotos depositavam véus de seda branca.

Pobres, ou ricos, todos acudiam com entusiasmo, sem dúvidas interiores, a sacrificar aos deuses, a impetrar-lhes as bênçãos. Nenhum povo depende, tão totalmente e sem exceções, duma religião; nenhum se empenha tanto em viver de acordo com os mandamentos da sua crença. Sempre invejei aos tibetanos a sua credulidade simples, porque tenho sido a vida inteira um pesquisador. Embora, na Ásia, tenha aprendido o caminho da meditação, ainda me é vedada a resposta suprema. Mas também aprendi, neste país, a encarar com calma os acontecimentos do mundo, a não permitir que eles me precipitem na dúvida.

Infelizmente, na nossa residência, as alegrias da festa iam ser muito perturbadas. Um dia, fui chamado ao quarto da irmã mais nova da nossa hospedeira. Estava escuro, e só quando ela me estendeu a mão branca, percebi que me encontrava ao lado da cama. Assim que os meus olhos se acostumaram à escuridão, recuei, com um horror que mal podia disfarçar. A menina, dois dias antes linda e cheia de vida, jazia diante de mim, completamente desfigurada. Mesmo um leigo veria logo que se tratava dum caso de varíola. Também a laringe e a língua estavam tomadas e só gaguejando a doente podia dizer que morreria. Confortei-a como pude e procurei afastar-me quanto antes, para um banho tão radical quanto possível. Já não havia remédio; só se podia rogar ao céu que não irrompesse uma epidemia. Aufschnaiter também visitou a enferma e confirmou o meu diagnóstico. Dois dias depois, a menina morreu.

Nessa ocasião, após as festividades, tivemos ensejo de assistir às cerimônias dum funeral tibetano. O pinheiro ornamentado — emblema da festa — foi arriado da cumeeira. Já ao alvorecer do dia seguinte, o cadáver foi amortalhado em panos brancos e um coveiro profissional, içando-o às costas, o retirou de casa. Mais tarde, seguimos o grupo, porque já então eram três homens. Fora da aldeia, numa elevação do terreno, reconhecível de longe pelos revoluteios de bandos de corvos e gralhas, um dos homens esquartejou o corpo a machado; o segundo sentou-se ao lado dele a murmurar preces, tocando um tamborim. O terceiro afugentava de quando em quando as aves cobiçosas e, de tempos a tempos, servia aos outros dois cerveja ou chá, para animá-los. Os ossos do cadáver foram triturados, para que as aves os devorassem e da defunta não restasse resíduo.

Por mais bárbaro que fosse o conjunto, a ação fundava-se em motivos profundamente religiosos. Os tibetanos desejam que do seu corpo — que, sem a alma não tem nenhum valor — após a morte desapareça todo vestígio. Os cadáveres dos nobres e dos lamas de alta categoria são incinerados; para o povo, porém, a forma de enterro usual é a trituração. Só os corpos dos indigentes, para os quais isso sairia muito caro, são lançados ao rio. Inumam-se os corpos dos pobres, vítimas de moléstias contagiosas. E o Estado paga os coveiros.

Felizmente não houve epidemia de varíola. Só alguns casos. Na casa onde morávamos, tomou-se luto por quarenta e nove dias. Depois, outra árvore com flâmulas e preces subiu à cumeeira. Durante esta cerimônia, numerosos monges oravam, com acompanhamento de músicas adequadas. Tudo isso, naturalmente, custava dinheiro. Os tibetanos venderam a maior parte das jóias e dos haveres da finada, para custear os ritos solenes dos monges e os muitos candeeiros de manteiga.

Entretanto, nós continuávamos os nossos passeios diários e as magníficas nevadas sugeriram-nos a idéia de fazer esquis. Aufschnaiter apanhou dois troncos de bétula, que mandamos alisar sumariamente e secamos à lareira. Eu comecei a fabricar bastões e correias; com a ajuda dum marceneiro, tiramos dos troncos esquis perfeitamente aceitáveis. Curvei-lhes as pontas ao fogo e já nos alegrávamos da bela aparência dos nossos patins e esperávamos, tensos, a primeira tentativa, quando nos caiu em cima, como um raio a intimação do "bönpos": era-nos proibido deixar Kyirong, salvo para breves passeios nas redondezas. Os nossos protestos enérgicos provocaram apenas uma argumentação estafada "...a Alemanha é um país poderoso. Se lhes acontecer alguma coisa nas montanhas, um protesto do governo alemão significaria para as autoridades de Kyirong um grave castigo..." Não nos foi possível demover os "bönpos"; e eles tentaram convencer-nos de que os ursos, as panteras, os cães bravios constituíam sério perigo para nós. Não acreditamos nessa solicitude; mais admissível nos pareceu o medo da população supersticiosa de que as nossas excursões às montanhas pudessem provocar a cólera dos espíritos bons daquelas paragens. No momento, porém, nada havia a fazer, senão ir-nos embora.

Nas semanas seguintes, procuramos conformar-nos; mas, com o tempo não resistimos ao desejo de estrear os nossos esquis. Declives gelados, brancos de neve, piscavam convidativos lá do alto. Um belo dia, imaginamos um ardil. Eu construíra para mim um alojamento provisório, perto duma das fontes termais, distante apenas meia hora. Retirando-se de lá as pessoas que o ocupavam na minha ausência, uma noite apanhei os esquis e fui-me à luz da lua, encosta acima. No dia seguinte, muito cedo, atravessei, com Aufschnaiter os limites de altitude e nos deleitamos, em pleno Himalaia com a neve gelada. Surpreendia-nos a facilidade com que esquiávamos, depois de tão prolongada abstenção. Não sendo descobertos, repetimos a tentativa. Só umavez, porém; depois quebramos os esquis e escondemos os destroços desses instrumentos tão temidos pelos tibetanos. Assim, a gente de Kyirong nunca soube que tínhamos "cavalgado" na neve, para usarmos a sua expressão.

Voltara, entrementes, a primavera. Começou o trabalho nos campos e a semeadura invernal já se expandia em vegetação dum verde magnífico. À semelhança do que se faz em países católicos, também no Tibete os sacerdotes abençoam as searas; em longa procissão, seguidos da população local, levam o centésimo oitavo volume da Bíblia tibetana a dar a volta à aldeia, os fiéis rezam; os monges tocam os seus instrumentos.

À medida que o calor aumentava, piorava o meu iaque. Tinha febre e o veterinário nativo opinava que só lhe poderia valer fel de urso. Mais para dar razão ao homem do que por estar convencido, comprei a droga bastante cara; não me admirou que o tratamento não desse nenhum resultado. Aconselharam-me então fel de cabra e almíscar. No meu subconsciente havia uma esperança vaga: a experiência, que os tibetanos forçosamente deviam ter adquirido em matéria de iaques, talvez salvasse o meu precioso animal. Mas, ao termo dalguns dias, não me restou senão mandar o pobre Armin ao matadouro, para lhe salvar ao menos a carne.

Para esses casos de necessidade, havia um magarefe que vivia, como um pária, fora da aldeia. Os ferreiros também moravam fora, porque exerciam um ofício reputado vil. O magarefe recebeu, em pagamento, os pés, a cabeça e a fressura do animal. O modo como ele o abateu foi rápido e pareceu-me mais humano do que o processo usado entre nós. O magarefe abriu, com um golpe fulmíneo, a barriga do iaque, enfiou a mão no talho e rasgou a aorta. O animal morreu logo. Como, por esse sistema, é abatido com as patas amarradas ao lombo, o sangue fica na cavidade abdominal e não é preciso esgotá-lo. Guardamos a carne, cortada e defumada sobre o nosso fogo, ao ar livre. Tínhamos novos projetos de fuga; era necessário armazenar provisões.

Em Dzongka, grassava nessa época uma epidemia que já matara muita gente. O nobre administrador distrital, que lá residia e tinha uma esposa encantadora e quatro filhos, tratara de por a salvo a família e acabava de chegar a Kyirong. Os sintomas da moléstia eram os duma espécie de disenteria. As crianças, pobrezinhas, já tinham em si o germe do mal e morriam, uma após outra. Restavam-me ainda algumas doses de yatren, considerado o melhor específico contra a disenteria. Ofereci-as à família, com a esperança de que adiantassem. Era um grande sacrifício para mim e para Aufschnaiter, porque reservávamos essas doses para a emergência de nós mesmos precisarmos delas. Infelizmente, o tratamento não surtiu efeito; três das crianças morreram. Deliberamos salvar a mais nova, que adoecera por último e não tomara yatren. Propusemos, portanto, aos pais que mandassem um mensageiro a Catmandu, com amostras de fezes, para que, feito o exame, viessem medicamentos adequados. Para esse fim, Aufschnaiter escreveu uma carta em inglês ao hospital. Por desgraça, o mensageiro nunca foi enviado; a criança continuou a ser tratada pelos monges e morreu, como as outras, ao termo de dez dias. Invocara-se até um lama desencarnado; tudo foi inútil. Por mais que nos entristecesse, esse fim foi para nós, de certo modo, uma justificação: se a criancinha se salvasse, seríamos olhados como assassinos das mais velhas.

 

 

Lobsang Samten, o irmão mais velho do Dalai lama. com quem o autor se encontrava freqüentemente e que falou dele ao rei-deus.

 

 

A mãe do Dalai Lama, que tem o título honroso de "Mãe Divina"

 

Adoeceram também os pais e várias outras pessoas adultas. Não morreram — talvez porque, embora enfermos, comiam abundantemente e ingeriam grande quantidade de álcool, ao passo que as crianças, recusando a alimentação, perdiam prontamente a resistência ao mal.

Ligava-nos aos pais dessas crianças uma amizade sincera e duradoura. Embora desolados pela perda das filhas, consolavam-se pensando, segundo a sua crença, na reencarnação. Ficaram ainda muito tempo em Kyirong, numa ermida e nós os visitávamos a miúdo. O pai, Wangdüla, era um homem liberal, de idéias modernas, desejoso de se instruir. Contamos-lhe muitas coisas do mundo; e, a seu pedido, Aufschnaiter lhe desenhou de memória um mapa-múndi. A mulher, uma beldade tibetana de vinte e dois anos, falava fluentemente hindi que aprendera na escola, na índia. Formavam os dois um par excelente.

Ao termo de anos, chegou-nos a notícia do seu fim realmente trágico: a esposa de Wangdüla ia ter finalmente outro filho. Morreu de parto, e o marido enlouqueceu de dor. Era um dos tibetanos mais simpáticos que tive ensejo de conhecer. O seu destino comoveu-me profundamente.

 

 

PREOCUPAÇÕES SEM-FIM PELA PERMANÊNCIA

 

Um dia, durante o verão, os "bönpos" nos mandaram chamar; e, dessa vez, para exigir energicamente que limitássemos a nossa permanência.

Entretanto, pelos jornais e por negociantes nepaleses, chegara-nos a notícia de que a guerra terminara. Sabíamos que, depois da primeira Grande Guerra, os ingleses só abriram os portões dos acampamentos de prisioneiros, ao termo de dois anos. Compreende-se que não tínhamos a menor disposição de perder a nossa liberdade. Estávamos firmemente decididos a fazer a tentativa temerária de penetrar no interior do país. O Tibete fascinava-nos cada vez mais e nós resolvemos arriscar tudo para o explorar. Já então, tínhamos bons conhecimentos lingüísticos e muita experiência... Que outro obstáculo nos retinha? Éramos ambos alpinistas; e aí estava uma oportunidade única de tomar apontamentos no Himalaia e na zona dos nômades. Perdêramos, havia muito, a esperança de voltar em breve à nossa terra. Tencionávamos alcançar a China, pelas planícies setentrionais do Tibete. Lá, talvez arranjássemos trabalho. A guerra acabara; o nosso propósito de chegar às linhas japonesas perdera todo o sentido.

Conseqüentemente, prometemos aos "bönpos" deixar a aldeia no outono, contanto que, em compensação, eles nos outorgassem de novo liberdade de movimentos. Isto nos foi concedido e, a partir daquele dia, os nossos passeios tiveram a finalidade de procurar nas montanhas nevadas um passo que, sem tocar Dzongka, nos permitisse atingir o planalto tibetano.

Nessas excursões estivas, chegamos a nos familiarizar com a fauna da região. Topamos com as mais diversas espécies animais, até com macacos, desgarrados do Nepal, através das barrancas do Rio Kosi. Por certo período, as panteras matavam todas as noites vacas e iaques. Estavam sendo caçadas. Cumpria-nos, pois, sermos precavidos, nas nossas correrias. De ordinário, eu levava no bolso uma cigarreira cheia de páprica, como arma defensiva contra os ursos que só de dia são perigosos, porque só em plena luz assaltam o homem. Vários lenhadores tinham cicatrizes fundas no rosto; a um deles um urso arrancara os olhos, com uma patada. De noite, um cavaco de lenha resinosa aceso, basta para afugentá-los.

Certa vez, à altura do limite de altitude transitável, descobri na neve pegadas fundas que não saberia explicar e que poderiam ser duma criatura humana. Outros, com mais imaginação do que eu, talvez as atribuíssem a um dos lendários homens das neves.

Eu nunca me descuidara de me manter fisicamente em forma. E ocupação não me faltava. Ajudava nas plantações, ou na debulha, cortava lenha, fazia archotes de pinheiro. Em conseqüência do clima e da sua faina rude, os tibetanos são resistentes, vigorosos e gostam de medir as suas forças em competições esportivas. Em Kyirong, realiza-se anualmente um verdadeiro festival de desportos, que se prolonga por vários dias. Corridas de cavalos, arremesso de flechas, salto em altura e largura são as provas principais. Para os de compleição atlética, reserva-se a de levantar do chão um pesado bloco de pedra e carregá-lo numa extensão determinada.

Eu participava, para alegria geral, dalgumas competições. E só não me sagrei campeão numa corrida, porque não contava com os sistemas locais. Na última etapa, a mais íngreme, um dos concorrentes alcançou-me e agarrou-me pelos fundilhos. Estaquei, estupefato, olhei em derredor, enquanto ele me ultrapassava e tocava antes de mim a meta. Eu não estava habituado a tais truques; em meio da hilaridade geral, obtive o segundo lugar.

O esporte no Tibete é só para homens. As mulheres não sabem o que é emancipação; contentam-se com organizar piqueniques e servir cerveja.

Em Kyirong também se faz comércio de permuta. Todos os dias, no verão, chegam caravanas. Terminada a colheita de arroz no Nepal, aparecem na aldeia homens e mulheres com cestos cheios desse produto que vêm trocar por sal. O sal é um dos principais artigos de exportação. É extraído dos lagos sem sangradouro de Chang-tang. Durante meses, iaques e ovelhas o transportam para a fronteira onde é trocado vantajosamente pelo arroz, gênero menos cotado.

O transporte de Kyirong para o Nepal só é possível com os cules, porque o caminho atravessa desfiladeiros estreitos, tendo-se muitas vezes de cavar escadas na rocha, para abrir uma passagem. A maior parte dos carregadores são mulheres do Nepal, que usam enfeites baratos, mas têm pernas grossas e musculosas, debaixo das saias curtas.

Assistimos certa vez a um espetáculo singular: a caça dos nepaleses aos favos de mel. Em razão duma proibição oficial do seu governo, os tibetanos não podem juntar mel, porque a sua religião não permite que se tire o alimento dos animais. Todavia, aqui como no resto do mundo, as leis são feitas para serem burladas; em conseqüência, mediante um pequeno tributo pago de bom grado aos "bönpos", os tibetanos cedem aos nepaleses o mel que lhes deveria caber e compram deles a apreciada guloseima.

A caça ao mel é uma empresa arriscada, porque as abelhas costumam esconder os favos nas saliências rochosas de barrancos profundos. Longas escadas de bambu tocam o fundo da voragem. Os caçadores sobem por elas, suspensos livremente no espaço, não raro ' sobre profundidades de setenta a oitenta metros. Abaixo deles, corre o Kosi; se a corda não agüentar, é morte certa. Jatos de fumaça afugentam as abelhas enfurecidas, enquanto os homens colhem os favos, que são puxados de cima, num recipiente atado a outra corda. Condição essencial para esse trabalho é uma boa articulação dos movimentos, porque os chamados, os sinais se perderiam no fragor do rio. Uma semana trabalharam onze homens no barranco; e o preço do mel nem de longe compensa o perigo a que eles se expõem. Muito lamentei não dispor do equipamento necessário, para filmar em cores essas cenas.

Passada a época dos aguaceiros de verão, começamos a explorar sistematicamente os vales. Muitas vezes nos ausentávamos por vários dias, levando a bússola, mantimentos e material de desenho. Vivíamos então nos prados, com os pastores que, exatamente como entre nós, no estio levam o seu gado às pastagens da montanha. Centenas de vacas e iaques fêmeas pastavam nos prados verdes, entre as geleiras. Eu ajudava freqüentemente a bater manteiga e regalava-me com a recompensa fresca e dourada que me davam. Para solidificar a manteiga mais depressa, apanhava-se nas geleiras próximas o gelo necessário para encher a tina.

Em todas as choupanas habitadas, encontrávamos cães agressivos, na maior parte acorrentados, que durante a noite com os seus latidos, protegiam os rebanhos contra o assalto das panteras, dos lobos e dos cães bravios. Fortes por natureza, os cães de guarda tiram da sua alimentação usual: leite e carne crua de vitela, um vigor tremendo que os torna excepcionalmente perigosos. Tive com eles vários maus encontros. Certa vez, percebendo que eu me aproximava, o cão rebentou a corrente e saltou-me ao pescoço. Tentei afastá-lo; ele abocanhou-me o braço e só o largou, após luta renhida. A minha roupa ficou em farrapos; mas o animal jazia, inerte, no chão. Com os restos da camisa pensei os ferimentos; estes deixaram-me até hoje cicatrizes fundas, embora sarassem depressa, graças a repetidos banhos nas águas das fontes termais, que naquela época do ano são freqüentadas, não só pelos tibetanos, mas também por serpentes. Contaram-me os pastores mais tarde, que o cão permanecera uma semana inteira deitado num canto, negando-se a comer. Durante os nossos passeios, víamos muitos morangos; justamente entre os mais viçosos, se escondiam mais sanguessugas. Eu lera nos livros que estes vermes são a praga de muitos vales do Himalaia. Em Kyirong, eu mesmo vi como eles castigam a população. Despencam das árvores sobre homens e animais, entram pela menor abertura da roupa, ou do calçado e põem-se a chupar. Arrancá-las causa mais perda de sangue do que deixá-las sugar à vontade e afastar-se espontaneamente. Em certos vales, as sanguessugas são tão numerosas, que não é possível livrar-se delas. Ignora-se que órgão dos sentidos as põe no encalço das vítimas; muitas vezes, porém, lhes escapei, desatando a correr. Os animais de sangue quente da região as trazem penduradas, às dúzias, em todas as cavidades do corpo. O melhor meio de afugentá-las é embeber as meias e as pernas das calças em água e sal.

O resultado dos nossos passeios era um copioso material de mapas e esboços. Não encontráramos, porém, nenhuma passagem aproveitável para a nossa fuga. Sem recursos técnicos, e com a carga que levaríamos, nenhuma era praticável. Nem podíamos embalar-nos com a esperança de retomar em Dzongka o caminho conhecido. Fizemos, pois, nova consulta ao Nepal, a fim de apurarmos, se pretendiam aceitar-nos ou não. Nunca recebemos resposta. Dispúnhamos ainda de dois meses, antes de se esgotar o nosso tempo de permanência em Kyirong, e empregávamos os dias em preparativos febris. Para multiplicar o nosso dinheiro, eu o emprestava aos juros usuais de trinta e três por cento, a um negociante. Mais tarde, havia de me arrepender, porque a devolução demorou e, por pouco, não impediu a nossa viagem de regresso.

O nosso contacto com aquele pequeno povo cordial e laborioso estreitara-se cada vez mais. Como os nossos camponeses, a gente de Kyirong não trabalhava fora de hora, mas aproveitava todo minuto da luz do dia. Faltava mão de obra nas plantações; a fome, a miséria eram desconhecidas. Os numerosos monges, que trabalhavam fora, e não só na cura de almas, eram subvencionados pela comunidade. Entre os camponeses, reinava verdadeira abastança; os seus baús guardavam a roupa limpa dos dias festivos, para toda a família. As mulheres teciam e cosiam em casa o seu vestuário.

Não havia propriamente polícia, na acepção ocidental; mas os criminosos sempre eram julgados publicamente. As penas podiam ser um tanto drásticas, adequadas, porém, ao conceito de justiça da mentalidade da população. Contaram-me a história dum homem que furtara um candeeiro de ouro, dum dos muitos templos de Kyirong. Convicto do seu crime, foi condenado a uma pena que nós acharíamos desumana: deceparam-lhe as mãos em público e costuraram-lhe o corpo vivo, mutilado, num couro de iaque, empapado d'água; deixaram o couro enxugar e arremessaram a trouxa a um precipício.

Nunca assistimos a execuções desse gênero. Com o tempo, é possível que os tibetanos tenham abrandado um pouco. Lembro-me, porém, dum castigo público que, na minha opinião pessoal, deveria ser mais rigoroso. Tratava-se duma religiosa da Igreja budista reformada, que prescreve severamente o celibato. Essa religiosa tivera um filho com um monge da mesma igreja e matara a criança, logo depois de a dar à luz. Ambos foram denunciados e expostos no pelourinho. Ouviram apregoar publicamente a sua vergonha, e a mãe criminosa foi condenada a cem golpes de azorrague. Já durante a execução, o público pedia clemência, com as costumadas ofertas de dinheiro aos executores. O suplício foi, portanto, abreviado; e, da multidão onde muitos choravam, partiram suspiros de alívio. O monge e a religiosa foram expulsos do distrito e despojados das suas insígnias. Singular e, para o nosso sentir, incompreensível, foi a manifestação de piedade da gente da aldeia: dinheiro, presentes, mantimentos, choviam copiosamente sobre os dois pecadores; e eles abandonaram o povoado com sacas bem recheadas, para uma peregrinação.

A seita reformada, a que pertenciam, ocupa posição dominante no Tibete. Justamente na nossa zona, havia outros claustros que observavam outras regras monásticas. Nesses, monges e monjas podem viver como família; os filhos ficam no claustro.

Esses monges cultivam campos próprios, mas nunca são indicados para cargos públicos. Estes cabem só aos reformados.

A soberania dos monges no Tibete é única e só comparável a uma rígida ditadura, vigilante e desconfiada de toda influência externa que lhe possa ameaçar o poder. Os que a exercem são bastante atilados, para não crer que as suas forças sejam ilimitadas; mas castigariam todo aquele que a este respeito, se atrevesse a expressar a menor dúvida. Em conseqüência, alguns monges não viam com bons olhos o contacto que tínhamos com a população. A falar verdade, a nossa atitude refratária a toda superstição devia dar que pensar aos tibetanos. Nós íamos de noite à floresta, e os demônios não nos castigavam; escalávamos os montes, sem acender fogueiras sacrificiais e, apesar disso, nada nos acontecia. Em vários lugares, chegamos a perceber um retraimento acentuado que só se podia atribuir à influência dos lamas. Por outro lado, eles também nos atribuíam poderes sobrenaturais; estavam convencidos de que tínhamos razões especiais para passear. Perguntavam continuamente o que queríamos dos riachos e dos pássaros, para nos entretermos tanto com eles — porque os tibetanos não dão um passo, sem uma intenção premeditada. E não encontravam, para as nossas caminhadas e as nossas estadas na mata, outra explicação.

 

 

PARTIDA DRAMÁTICA DE KYIRONG

 

Viera, entretanto, o outono; o nosso prazo de permanência estava prestes a expirar. Custava-nos perder aquele paraíso da natureza. Fazia ano e meio que estávamos fora do acampamento; a guerra terminara; e nós continuávamos na mesma situação, porque não conseguíamos uma permissão de residência. Do acampamento a Kyirong, tínhamos andado oitocentos km, sem contar as nossas excursões. Soara a hora de pensar a sério na partida. Sabendo, por experiência antiga, que o principal é uma reserva suficiente de provisões, organizamos um depósito a uns vinte quilômetros de distância, no caminho de Dzongk. Consistia ele, acima de tudo, em rações de tsampa, manteiga, carne seca, açúcar de cana e alho. Dessa vez, como na fuga do acampamento, só contávamos conosco mesmo para carregar peso.

As fortes nevadas, que prenunciavam um inverno prematuro, ameaçavam frustrar-nos os planos. Tínhamos pesado a nossa carga até às gramas e era forçoso acrescentar-lhe outro cobertor. A estação invernal é, naturalmente a menos própria para atravessar os planaltos do centro da Ásia; entretanto, não podíamos de maneira alguma ficar em Kyirong. Pensamos uns tempos em penetrar clandestinamente no norte do Nepal e esperar o fim do inverno. Afinal desistimos; dizia-se que os postos fronteiriços nepaleses dificilmente se deixam lograr.

Terminado o arranjo do nosso entreposto de víveres, cuidamos de fazer uma lanterna. Evidentemente já se notara que planejávamos alguma coisa, porque estávamos sob contínua vigilância; havia sempre espiões à nossa roda. Para trabalhar em sossego, só fazendo uma excursão a um monte. Com a encadernação do meu compêndio de história e papel do Tibete, fabriquei o envoltório; uma latinha de cigarros conteria a manteiga que havia de alimentar a pequena chama. Precisávamos de luz, embora fraca, pois enquanto estivéssemos em territórios habitados, teríamos de marchar só de noite. Eu esperava o meu dinheiro emprestado; como a devolução fora aprazada para os próximos dias, decidimos agir.

Por motivos táticos, Aufschnaiter iria adiante, simulando uma excursão. Deixou de fato a aldeia, em pleno dia, com o cesto cheio e o meu cão, presente dum nobre de Lhasa, um cachorro de raça tibetana, porte médio e pêlo comprido, ao qual estávamos ambos habituados. Entretanto, eu procurava reaver o meu dinheiro; mas com pouca sorte, porque a desconfiança aumentava e exigiam que eu fizesse Aufschnaiter voltar à aldeia. Nem era de estranhar que nos atribuíssem propósitos de fuga. O nosso prazo de permanência estava vencido e, se pretendêssemos ir ao Nepal, não haveria necessidade de tantos mistérios. Os "bönpos", receando que Lhasa os responsabilizasse por termos penetrado no interior do país, açulavam a população contra nós. O povo, por seu turno, vivia em contínuo temor das autoridades locais.

Começou uma caça febril a Aufschnaiter e eu tive de suportar vários interrogatórios, para explicar porque ele se ausentara. As minhas tímidas tentativas de dar à sua ausência o caráter inofensivo de passeio não mereciam muito crédito. Fiquei um dia mais, para reaver pelo menos uma parte do meu dinheiro. Sacrifiquei o resto, pois não havia esperança de conseguir o que quer que fosse, sem a volta de Aufschnaiter.

Na noite de 8 de novembro, eu estava decidido a partir, com ou sem emprego de violência, porque já então todos os meus passos eram vigiados. Dentro e fora de casa, os espiões não me perdiam de vista. Na expectativa de que eles se resolvessem a deitar-se, esperei até às dez horas da noite. Como não dessem mostras de levantar o cerco, recorri à astúcia. Simulando uma crise de nervos, desatei a gritar que esse procedimento me aguava o prazer de estar ali e que, portanto iria pernoitar na floresta. E, sob os olhos de todos, comecei a fazer as minhas trouxas. A minha hospedeira e a mãe acudiram, aflitas. Percebendo o que ia acontecer, ajoelharam aos meus pés, suplicaram que não partisse; do contrário, elas seriam açoitadas, perderiam a casa e a cidadania; não mereciam que eu lhes fizesse isso. A velha apresentou-me, em sinal de veneração e de súplica, um véu branco. Vendo que nada me abrandava o coração, perguntaram-me as duas se queria dinheiro. Não havia nisso uma intenção ofensiva; no Tibete, o suborno é, em todos os ambientes, o meio usual de se obter alguma coisa. Tive pena das duas mulheres. Falei pacientemente, procurando convencê-las de que da minha partida não lhes adviria nenhum mal. Entretanto, porém, os seus gritos e lamentações despertavam a aldeia inteira. Eu tinha de agir, para que não fosse definitivamente demasiado tarde.

Ainda vejo aquelas caras mongólicas, lambuzadas de manteiga, à luz dos archotes, de olhos fitos na minha janela; e os dois burgomestres arquejantes, a gritar um recado dos "bönpos": que eu esperasse até ao alvorecer; depois iria aonde quisesse. Eu sabia que era um ardil e fiz ouvidos moucos. E os dois homens saíram correndo, à procura dos seus superiores. A minha hospedeira tornou a agarrar-se a mim, chorando, clamando que eu sempre fora para ela um filho e não lhe devia causar esse desgosto.

Com os nervos tensos ao extremo, senti que devia tomar uma resolução. Icei o meu saco aos ombros e saí. Estranhei que o ajuntamento à porta não me opusesse resistência. Um coro surdo murmurava: "Ele vai-se embora, ele vai-se embora!" Mas ninguém me tocou. Compreendiam decerto que eu poderia recorrer à violência. Alguns sujeitos proclamavam em brados que iam deter-me. Tudo ficou em palavras. Atravessei a aglomeração que se retraía diante de mim.

Apesar disto, dei-me por muito feliz, quando saí do círculo de luzes para a escuridão. Enveredei a largos passos pelo caminho do Nepal, com o intuito de despistar eventuais perseguidores. Depois, dando uma larga volta em torno da aldeia, cheguei ao alvorecer ao ponto de encontro, distante uns vinte quilômetros. Aufschnaiter esperava-me, sentado à beira da estrada; o meu cão recebeu-me com festas. Andamos os três um pouco mais, a fim de encontrar um bom esconderijo para o dia.

 

 

PELO PASSO DE TSHAKHYUNGLA, AO LAGO PELGU TSHO

 

Pela última vez em longos anos, acampamos numa floresta. Descobríramos um bom abrigo; acomodamo-nos nele e passamos confortàvelmente outro "primeiro dia" da fuga.

Já na noite seguinte, marchamos vale acima, muito além do limite de altitude. Graças aos nossos numerosos passeios, conhecíamos bem as veredas da montanha; e a nossa lanterna também fazia a sua obrigação; assim mesmo, perdemo-nos mais duma vez. Noutra ocasião, Aufschnaiter caiu no gelo — por sorte, sem se machucar. Cautela especial exigia a travessia das pinguelas lançadas sobre o rio, revestidas duma capa de gelo, onde nos equilibrávamos como funâmbulos na corda bamba. Já então, marchávamos com presteza, embora cada um de nós rebocasse uns quarenta quilos. De dia, sempre encontrávamos abrigos adequados; mas o frio intenso nos estragava o bivaque. O vale era tão estreito, que mal se coavam nele alguns raios quentes do sol; por isto esperávamos ansiosamente a noite para desenferrujar as pernas encarangadas.

Mas, um belo dia, tivemos de parar. Estávamos diante duma parede rochosa que desafiava qualquer tentativa de ascensão. Que havíamos de fazer? Tentar a escalada, a pique sobre o rio, com aquele peso às costas? Decidimos dar volta e passar a vau, nesse ponto onde o curso d'água se ramificava em vários braços. Infelizmente, não era bom alvitre, nessa estação. A temperatura, nessa manhã, estava mais de quinze graus abaixo de zero; fazia tanto frio, que a terra e as pedras nos gelaram os pés, mal nos descalçamos para atravessar o rio. O que sofremos, antes de calçar de novo os sapatos!... As nossas solas pegavam-se a tudo; e lá adiante, era um nunca acabar de braços de rio! Pareceu-nos inútil insistir. Estávamos diante dum enigma: seria possível que o caminho acabasse tão de repente? Decidimos passar a noite ali mesmo; na manhã seguinte, do nosso esconderijo, veríamos como as caravanas se saíam, naquela passagem escabrosa. Realmente, pouco depois do nascer do sol, uma caravana aproximou-se, parou ao pé do rochedo e... mal podíamos dar crédito aos nossos olhos!... os cules, pesadamente carregados, treparam monte acima, no mesmo monte diante do qual nós, alpinistas fervorosos, nos acobardáramos! E os iaques, com os seus pelegos lanudos e o vaqueiro escarranchado no lombo, vadearam a trote os riachos gelados. Tudo correu na mais perfeita ordem.

Já então, fervíamos da impaciência de fazer a mesma tentativa. O dia, a nosso ver, passava muito devagar e a isto se juntava um desagradável vento frio. Anoiteceu afinal; e a lua apareceu. Sempre nos alumiaria melhor do que a nossa lanterna, nessa subida temerária. Apesar de tudo, foi um esforço rude. Se não víssemos como tinham subido os cules, desistiríamos decerto pela segunda vez.

Daí em diante, continuamos sem dificuldades, esquivando-nos apenas das caravanas em repouso e das hospedarias do caminho. Por vezes, alguém nos chamava; nessas ocasiões apressávamos o passo e não dávamos resposta. Certa vez, dois tibetanos apareceram, rezando, no caminho; mas, aparentemente, eles tinham mais medo de nós do que nós deles, porque se distanciaram logo, a toda a velocidade.

Ao termo de duas marchas noturnas, chegamos a Dzongka e saímos do terreno conhecido. Daí em diante, o Bramaputra seria a nossa primeira meta e, ao mesmo tempo, o grande ponto de interrogação do nosso plano ulterior de viagem. Onde conviria atravessá-lo? Prouvesse ao céu que já estivesse congelado! Do caminho para o rio tínhamos apenas uma vaga idéia, e fazíamos votos para que não houvesse maiores obstáculos. O essencial era ganhar terreno quanto fosse possível, evitando todas as localidades onde nos arriscássemos a topar com um funcionário do governo.

De conformidade com isto, escolhemos, pouco abaixo de Dzongka uma gruta, para passar esse dia; e descobrimos nela milhares de figurinhas de barro cru, que eram outros tantos simulacros dos deuses. O nosso bivaque era uma antiga ermida!

Na noite seguinte, continuamos a subir ao encontro dum passo. Sobreestimávamos, porém, as nossas forças e tivemos de parar no percurso, para um descanso. Não admira que estivéssemos exaustos: à fadiga da marcha aliava-se a ânsia do ar rarefeito duma altitude de mais de cinco mil metros. Chegávamos mais uma vez às proximidades do divisor de águas do Himalaia.

No ponto terminal da máxima altitude transitável, encontramos os montes de pedras e as flâmulas com orações, símbolos da crença tibetana; e vimos pela primeira vez um tschorte, ou túmulo dum lama venerado como santo. O monumento sobressaía, à guisa de advertência severa, da monotonia da imensa paisagem nevada.

Infelizmente, afagáramos até aí uma esperança vã. O passo, engastado entre montanhas, não permitia enxergar muito longe. Poderíamos, em verdade orgulhar-nos de sermos os primeiros europeus que atravessaram esse passo, denominado Tschakhyungla pelos tibetanos; mas, com o frio que sentíamos, não se coadunavam nem alegria nem orgulho.

Nesse deserto nevado, onde raramente se aventurava um ser humano, atrevemo-nos a marchar também de dia. E, se no bivaque dessa noite gelávamos horrivelmente, a manhã nos recompensou com uma vista grandiosa: diante de nós, espraiavam-se as águas cor de anil do grande lago Pelgu Tsho; em segundo plano, erguiam-se as rochas avermelhadas de montes isolados, limpos de neve. Uma cadeia de geleiras emoldurava o planalto inteiro. E nós nos envaidecíamos de saber os nomes de dois picos: o Gosasainthan, de oito mil e treze metros de altitude, e o Laptschi Kang, menos elevado. Ambos aguardavam ainda os seus conquistadores, como outros muitos gigantes do Himalaia. Embora tivéssemos os dedos duros de frio, apanhamos os nossos cadernos de croquis e, em traços rápidos, lhes esboçamos a forma. Aufschnaiter determinou a direção com a minha bússola e notou os números. Talvez precisássemos disso mais tarde.

Depois, continuamos a andar nessa fantástica paisagem invernal, pela margem do lago. Encontramos um caravançará em ruínas e, mais uma vez, tivemos de pernoitar na neve.

Nos mesmos estranhávamos a nossa perfeita aclimação aquelas alturas e a velocidade da nossa marcha, a despeito da nossa carga. Só o nosso cão sofria. Emparelhava corajosamente o seu passo com o nosso, embora estivesse sempre meio esfomeado

— o seu único alimento eram as nossas fezes — e, de noite, deitava-se fielmente aos nossos pés, para seu e nosso bem, porque lá acima o termômetro marcava vinte e dois graus abaixo de zero.

Que alegria, a nossa; no dia seguinte, ao darmos enfim com um sinal de vida! Um rebanho de ovinos vinha lentamente ao nosso encontro. Atrás marchavam os pastores, embuçados em grossas peles. Apontaram-nos a direção em que iríamos encontrar o próximo povoado. Na mesma noite, entramos na aldeia de Trakchen, um tanto afastada da estrada caravaneira. Era mais do que tempo de voltarmos ao convívio dos nossos semelhantes, porque das nossas provisões não nos restava migalha. Mesmo a custo de nos prenderem...

A pequena povoação fazia jus ao título de aldeia. Eram umas quarenta casas, construídas como de hábito ao abrigo do vento, ao pé dum morro, e dominadas pelo claustro. O povoado parecia-se com Gartok, mas ficava uns cem metros mais acima. Descobríramos, pois, a mais alta localidade de população permanente — a mais alta da Ásia, senão de todo o mundo.

Ali também tomaram-nos por hindus e não puseram restrições a vender-nos mantimentos. Fomos até acolhidos como hóspedes numa casa e, após as longas marchas na neve, expostos à ventania, saboreamos o conforto dum ambiente aquecido. Descansamos um dia e uma noite, comemos bem e fartamos o nosso cão. Esquivamos sem muito esforço um encontro com as autoridades locais. O "bönpo" fechara-se no seu "palácio" e não tomara conhecimento da nossa presença. Talvez para se eximir de responsabilidade... Por bem ou por mal, tínhamos de arranjar uma pele de carneiro, porque o nosso vestuário europeu não se prestava para o inverno tibetano. Depois de longos e gozados regateios com os nossos hospedeiros, obtivemos até um iaque. Era o nosso Armin número quatro; só se distinguiria dos seus antecessores por um comportamento ainda pior.

E vimo-nos de novo, andando através de zonas despovoadas da bacia do Pelgu Tsho ao passo Yagula. Ninguém nos cruzava o caminho e nos folgávamos de poder marchar, sem sermos molestados. Ao termo de três dias, entramos num território cultivado. Esses campos pertenciam a uma grande aldeia: Menkhap Me. Apresentamo-nos mais uma vez como "hindus", porque assim tínhamos colhido até aí os melhores resultados. Compramos forragem para o nosso iaque e tsampa para nosso uso. A gente da aldeia levava uma vida dura. As suas plantações de ervilhas e de cevada estavam semeadas de pedras e davam magras colheitas. Apesar disso, todos eram comunicativos e alegres. À noite, íamos sentar-nos na roda dos aldeões e com eles tomávamos "tschang", a cerveja do Tibete. Nas encostas circunstantes, havia conventos. Os moradores da aldeia os ajudavam com devoção e caridade, apesar das suas difíceis condições de existência. Descobrimos em toda parte ruínas de dimensões surpreendentes, testemunhos de que esta região viu tempos melhores. Não conseguimos apurar se a decadência se originara de guerras ou de mudança de clima.

 

 

UMA VISÃO INESQUECÍVEL: O MONTE EVEREST

 

Fazia uma hora que partíramos, quando avistamos a grande planície de Tingri; e, além dela... ficamos de fôlego suspenso... além dela, na manhã luminosa, avultava o monte mais alto do mundo, o monte Everest. Surpresos, entusiasmados, paramos diante dele, com o respeitoso temor que sentimos, diante de toda grandeza. Pensamos nas numerosas expedições que arriscaram a vida, para lhe alcançar o cimo. E nenhuma o conquistara! A despeito da emoção, não nos esquecemos de desenhar alguns esboços do monte, porque ninguém o vira ainda, da posição onde estávamos.

Custou-nos afastar-nos daquela visão grandiosa. A nossa meta seguinte era o passo Körala, ao norte, quase aos 5.600 metros de altitude. Antes de iniciar a ascensão, pernoitamos na pequena povoação de Khargyu, ao sopé do monte. Desta vez, não poderíamos impingir-nos, sem mais por hindus, pois a gente do povoado já vira muitos europeus. Nas vizinhanças, ficava a localidade de Tingri, onde todas as expedições inglesas ao monte Everest contratavam os seus carregadores. Mediram-nos prudentemente da cabeça aos pés e a primeira pergunta foi se já estivéramos com o "bönpo" de Sutso. Lembramo-nos então do grande prédio, que víramos fora da aldeia; era, sem dúvida, a sede duma autoridade. Causara-nos estranheza a sua posição elevada, no alto do morro, com vista para quase toda a região circunstante. Por sorte, passáramos despercebidos!

Cumpria ter cautela! Em vez de responder a mais perguntas, fomos desfiando a lorota da peregrinação. Os desconfiados aquietaram-se e ensinaram-nos amistosamente o caminho, informando até que era bem freqüentado.

Ao cair da tarde, chegávamos à crista do monte. Dali começaria enfim uma descida. Interrompia-se um instante a escalada penosa. Estávamos muito contentes, mas o nosso iaque não era do mesmo parecer; com um salto absolutamente imprevisto, enveredou pelo caminho do passo. E nós atrás dele! Mas custava-nos galopar naquele ar rarefeito, enquanto o iaque parecia estar muito à vontade, apesar dos oitenta quilos de carga que levava. Alcançamos enfim o passo e avistamos o animal, muito abaixo, pastando tranqüilamente. Amaldiçoando todos os iaques do mundo, apressei-me a descer e, com muita astúcia e um feixe de capim, peguei o fujão. Ele seguiu-me voluntariamente encosta acima. Empacou, porém, pouco antes do limite de altura transitável; e negou-se peremptòriamente a dar um passo mais. Que havíamos de fazer? O que ele fizera. Resignamo-nos, resmungando, a passar a noite num desvão desabrigado e incômodo. Não era possível fazer fogo; a nossa ceia constou de farinha de tsampa enxuta e carne crua. O nosso único consolo era o monte Everest, acenando-nos lá acima, na luz avermelhada do ocaso.

Na manhã seguinte, o iaque repetiu a escapada. Enrolamos então uma corda nos chifres do animal e assim o arrastamos ao passo. Ele não estava em veia de docilidade; vendo que não lhe valia firmar-se nos cascos, arremeteu com tamanha fúria que, antes de darmos pelo que ocorria, ambos aterrávamos entre os seus chavelhos. Estávamos fartos de Armin IV. Resolvemos trocá-lo por outro animal, na primeira oportunidade.

E a boa ocasião se nos ofereceu logo à entrada do povoado. Mediante uma pequena sobrepaga, tornei-me dono dum cavalo, antes magro do que gordo. E fomos andando, contentes como uns felizardos.

No sétimo dia, entramos num vale amplo, banhado por um curso de água esverdeada, onde sobrenadavam pedras de gelo. Era o Tsangpo. Mas, como na outra vez, gorava a nossa esperança de chegar à outra margem, andando sobre gelo resistente. Nem por isso nos venceu o desalento: avistávamos na margem oposta claustros e muitas casas; devia existir, portanto, uma possibilidade de transporte, possivelmente um batelão.

Refletindo e procurando, fomos indo na praia. De repente, descobrimos os pilares duma ponte pênsil. Era um sinal da Providência! Chegando mais perto, porém, verificamos que a ponte podia servir para nós; não para o nosso cavalo. Os animais tinham de atravessar o rio a nado; só os burros eram levados às costas pelos cules. Não houve meio de induzir o cavalo a um mergulho. Não adiantaram boas palavras nem pancadas. Dei volta, suspirando, para desmanchar a troca e reaver o nosso birrento Armin. Custou-me dinheiro e ameaças; e o iaque nem se dignou manifestar se estimava ou não, tornar a ver-me.

Escurecia, quando cheguei com Armin ao pé da ponte; já era muito tarde para tentar a travessia; amarrei o iaque a um poste. Entretanto, Aufschnaiter arranjara um alojamento; passamos, pois, uma noite agradável, sem sofrer frio. A população, acostumada aos comerciantes e forasteiros de passagem, não nos estranhou.

Na manhã seguinte, perdoei a Armin todos os seus delitos. Mal se viu diante da água, o iaque revelou-se ótimo nadador: as ondas que lhe passavam sobre a cabeça, a correnteza que o repelia, nada lhe alterou a impassibilidade. Armin nadava imperturbàvelmente. Chegado à outra margem, subiu a ribanceira, espirrou e sacudiu a água do pelego. Passamos o resto do dia, na interessantíssima aldeia de Tchung Riwotche. Um claustro famoso, com muitos templos, sobre cujos portais se lêem inscrições chinesas, ergue-se na encosta rochosa, quase a prumo sobre o rio. Altos baluartes cingem o convento e a aldeia. Margeiam o rio salgueiros veneráveis; no verão, quando os seus galhos verdes descem a roçar o rio, a paisagem deve ser um idílio. Nesse momento, porém, outra coisa nos absorveu a atenção: um "tschorten" colossal, duns vinte metros de altura, indicava o caráter sacro da aldeia. Ao redor do monumento, funcionavam em grande número — cheguei a contar oitocentas — as moendas de orações que, rodando incessantemente as suas fitas com fórmulas de preces, invocam sem cessar as bênçãos divinas. O importante é que elas estejam sempre em movimento; eu vi o cuidado com que um monge lhes lubrificava o eixo. Nenhum crente passa por elas sem lhes dar um impulso. Velhos de ambos os sexos passam por vezes o dia inteiro, diante desses cilindros gigantescos, de vários metros de altura, fazendo-os rodarem com fervor e pedindo para si e para os seus amos uma reencarnação melhor. Outros fiéis levam consigo, nas peregrinações, moendas de preces de tamanho reduzido. Os moinhos de orações também se colocam nos telhados; esses são movidos pelo vento; a água é posta, da mesma maneira, ao serviço da devoção. Os moinhos de orações e as fórmulas ingênuas das preces, que eles moem continuamente, são característicos do Tibete, tanto quanto os montes de pedras e as flâmulas com rezas devotas que encontramos em todos os passos das montanhas.

Deram-nos, para essa noite, um bom alojamento; e nós nos enlevávamos em tudo o que fosse para nós novo e cativante. Resolvemos, portanto, ficar mais uma noite. E valeu a pena, porque recebemos a visita, interessantíssima, dum tibetano que vivera vinte e dois anos numa missão cristã da índia e estava agora a caminho da sua terra. Como nós, atravessara sozinho os passos da cordilheira — unindo-se, porém, às caravanas, sempre que podia. Mostrou-nos jornais ilustrados ingleses, onde vimos pela primeira vez fotografias de cidades bombardeadas e lemos pormenores sobre o fim da guerra. Foram momentos comoventes, e nós bem quiséramos saber mais. Apesar das notícias desoladoras, folgávamos de que alguém nos tivesse trazido um sopro do mundo que fora nosso. Essas informações fortaleceram em nós o propósito de continuar a viagem pelo interior da Ásia. Gostaríamos de propor ao tibetano que nos acompanhasse, mas não lhe podíamos oferecer nem proteção nem conforto. Limitamo-nos, pois, a comprar dele papel e lápis para os nossos apontamentos; e despedimo-nos. Continuaríamos sozinhos.

 

 

TENTAÇÃO PERIGOSA: VER LHASA

 

A partir do Tsangpo, o nosso caminho ramificou-se. Mais uma vez, atravessamos um passo e, dois dias depois, chegamos a Sangsang Gewu. Estávamos de novo na estrada caravaneira de Gartok a Lhasa donde, exatamente um ano antes, partíramos para Kyirong. Em Sangsang Gewu, também havia um "bönpo", mas acabava de se recolher a um convento vizinho, para meditar. O seu substituto fez-nos muitas perguntas; o bom tratamento, que recebêramos das autoridades de Tradün devia ter transpirado ali e o "bönpo" norteava-se por esse exemplo. Por sorte, ele nem suspeitou de que estávamos clandestinamente na sua jurisdição.

Foi bom que ele não nos aumentasse as dificuldades, porque tínhamos a cabeça cheia de preocupações. Precisávamos tomar uma resolução. Restavam-nos, do nosso dinheiro, apenas oitenta rúpias e uma pequena quantia em ouro, porque tivéramos de nos abastecer de mantimentos e de comprar o quinto Armin. À medida que nos aproximávamos das cidades, os preços aumentavam. Com o nosso mesquinho pecúlio, não nos seria possível chegar à fronteira chinesa, distante milhares de quilômetros. Mas... mas, até Lhasa, os nossos recursos seriam suficientes! Surgia de novo o nome da "cidade vedada". E a possibilidade de conhecê-la nunca estivera tão próxima. Apoderou-se de nós um desejo irreprimível de ver Lhasa; e esta nova meta pareceu-nos digna de qualquer sacrifício.

Já no acampamento, devorávamos toda a literatura que nos vinha às mãos, sobre a capital do Tibete. Eram poucos livros e de autores ingleses. Em 1904, uma expedição punitiva inglesa, acompanhada dum pequeno exército, entrara pela primeira vez em Lhasa; desde então, pelo menos superficialmente, o mundo tomara conhecimento da existência dessa cidade. Nos últimos decênios, vários europeus conseguiram visitá-la; mas, para qualquer explorador, ainda era finalidade tentadora conhecer a capital do Dalai Lama. E nós, tão perto dela, não tentaríamos? Que adiantava termos chegado até aí, à custa de tantos truques e espertezas? Para que suportáramos tudo o que tínhamos sofrido, para que aprendêramos a língua do país? Quanto mais refletíamos, tanto mais se firmava a resolução de ir a Lhasa. Paraiva-me sempre ante os olhos, como visão luminosa, o episódio do Padre Johann Grueber, o primeiro branco que viu a capital do Tibete. O Padre Grueber uniu-se a uma caravana; entrou clandestinamente na cidade de Lhasa e teve ali um acolhimento cordial!

A meta estava fixada... o itinerário, ainda não. O mais atraente era a estrada de Tasam, com as suas hospedarias e o seu tráfego intenso. Por ela, alcançaríamos Lhasa em poucas semanas. Mas correríamos o risco de ser descobertos e presos. Embora contornássemos Shigatse, a segunda cidade do Tibete, ainda havia muitas administrações distritais no caminho; qualquer delas podia ser a nossa desgraça. O risco era demasiado grave. Decidimos, em conseqüência, percorrer as planícies setentrionais, o Chang-tang. Ali só havia nômades e com eles chegaríamos a entender-nos. Ocorreu-nos que também poderíamos chegar a Lhasa, tomando o rumo de nordeste. Dali não se esperava que viessem forasteiros, e seria fácil introduzir-nos na cidade. Há quarenta anos, Sven Hedin tinha o mesmo plano; frustrou-lhe a tentativa o excesso de zelo dum funcionário local. Mas, para ele pessoalmente, seria talvez um grave revés conduzir a exploração, partindo de regiões ainda desconhecidas. A nossa situação era, naquele momento, a mesma. Não existiam mapas nem relatórios sobre o caminho que íamos percorrer. Tínhamos de avançar no desconhecido, cuidando ao mesmo tempo de manter o nosso rumo de noroeste. Provavelmente, cá e lá no percurso, encontraríamos nômades que nos informariam sobre a orientação e a distância até Lhasa.

 

Jovens monges aguardam, com turíbulos, a procissão do Dalai-Lama.

 

 

O Dalai lama tem nas mãos um vaso de ouro, em forma de "tschörten", que contém, como relíquia preciosa, uma lasca de osso de Buda.

 

Em Sangsang, naturalmente, não dissemos palavra acerca dos nossos planos; declaramos que nos dirigíamos para as minas de sal do norte. Esta declaração era acolhida com espanto, e todos nos aconselhavam a desistir. Aqueles sítios eram tão inóspitos, que o nosso propósito parecia uma insensatez. Mas, com essa mentira, alcançamos a nossa finalidade: desviávamos as atenções e ninguém suspeitava de que pretendíamos ir a Lhasa. No fundo, o nosso plano não deixava de ter os seus riscos e, já em Sangsang, as gélidas tormentas de neve davam-nos o antegosto do que nos esperava.

A 2 de dezembro de 1945, partimos apesar de tudo. Traváramos amizade com alguns "sherpas", tibetanos domiciliados na sua maioria no Nepal, conhecidos como guias e carregadores, na região do Himalaia e cognominados também "tigres do Himalaia". Os "sherpas" deram-nos ótimos conselhos, durante os nossos preparativos e ajudaram-nos a comprar um novo Armin, negócio em que sempre fôramos logrados. Mal nos pusemos em marcha, pudemos verificar o bom comportamento do nosso novo iaque. Era um vigoroso macho preto, malhado de branco; o seu pêlo espesso e comprido roçava quase o chão. Já em tenra idade tinham-lhe cerceado os chifres, o que lhe atenuara a selvajaria, sem lhe afetar o vigor. A argola, que trazia enfiada nas narinas, permitia guiá-lo; e bastava um leve estímulo, para que ele acelerasse a sua velocidade média de três quilômetros por hora. O pobre animal ia muito carregado, pois levávamos, por princípio, provisões pelo menos para oito dias.

Mais uma vez causava-nos sérias preocupações a próxima travessia dum rio, o Raga Tsangpo. Mas, quando lá chegamos, as águas estavam congeladas e agüentaram o próprio Armin. Haveria alguém mais feliz do que nós? Passou assim, sem contratempos, a primeira jornada. O caminho em ligeira subida, corria através dum vale. À hora do ocaso, quando o frio cortante nos entrava na roupa, apareceu-nos como de encomenda uma tenda escura de nômades, atrás da proteção costumada, um muro baixo de pedra. Era uma "lhega", espécie de recinto espalhado em todo o Tibete, porque os nômades que o levantam em torno das suas tendas, mudam constantemente de lugar. As lhegas são, também para os animais, uma defesa eficaz contra o frio e o assalto dos lobos.

Mal nos aproximamos da tenda, acudiram ladrando dois mastins. O meu pobre cão, muito menor do que eles, fez-me pena, querendo bancar o herói. Mas afastou de nós os dois cães ferozes e envolveu-os numa briga em que, desde o princípio, levou a pior. Atraído pelo barulho, um nômade saiu da tenda. Não se mostrou muito disposto a atender o nosso pedido de pousada para uma noite. Em vez de nos franquear a entrada, deu-nos estéreo de iaque para fazer fogo. Acampamos, pois, ao ar livre. Mais tarde, com uma boa provisão de lenha de zimbro, apanhada na encosta, pudemos manter acesa uma boa fogueira; e passamos agradàvelmente a noite.

Apesar de tudo, não consegui adormecer. Sentia, na boca do estômago, a sensação vaga que me afligira antes de escalar a parede norte do Eiger, ou ao ver pela primeira vez o Nanga Parbat. Em momentos como esses perguntamos a nós mesmos se não sobreestimamos absurdamente as nossas forças. E só recobramos o sangue frio quando, transposto o ponto morto, começamos a agir.

Não há dúvida: é bom que o homem não saiba o que o futuro lhe reserva. Se tivéssemos a mais vaga idéia do que nos esperava, voltaríamos atrás. Mas estávamos à vista da terra nova que ninguém conhecia; e também nos croquis dos mapas dessa região, o nosso roteiro atravessava zonas inteiramente em branco.

No dia seguinte, chegamos à máxima altura transitável e tivemos a surpresa de nos ver diante, não dum declive, mas dum planalto. Alcançáramos, portanto, em linguagem figurada, o último andar da Ásia, para quem parte da índia. O passo formava igualmente o divisor de águas do Transhimalaia que, visto dali, não passava duma serra sem grande significação. Uma vista de olhos ao planalto desalentava. Tinha-se a impressão de estar diante do infinito. Seriam precisos meses de marcha, para atingir o outro extremo. Encontrávamo-nos pelo menos a 5.400 metros de altitude; uma alta camada de neve escondia a paisagem, varrida por um vento glacial. Em toda a extensão, nenhum sinal de vida. Mas tive uma sensação de conforto, ao descobrir um dos habituais montes de pedras. Logo, no verão, chegavam até ali as caravanas, a caminho dos lagos salgados. Esses montículos de pedras estendiam um fio dum a outro peregrino; e clamavam aos deuses, contra a solidão desse imenso território...

Nas noites seguintes, pernoitamos em lhegas abandonadas e sempre encontramos estéreo de iaque para queimar. Havia, portanto uma época em que ali viviam nômades e descansavam caravanas: o verão, quando verdejassem os prados então cobertos de neve. E tudo nos recordava que o inverno era a estação mais desfavorável que poderíamos escolher para essa viagem.

Mais uma vez, despontou para nós um dia propício. Topamos com uma tenda e ali nos acolheram cordialmente um velho casal nômade e o seu filho. Acampavam nesse ponto desde meses, lutando com as intempéries. Desde as fortes nevascas de oito semanas antes, não saíam da tenda. A neve alta, a falta de pasto matavam-lhes muitos iaques e muitas ovelhas. Restos do rebanho agrupavam-se, apáticos, à roda da tenda, ou esgaravatavam o chão, à procura de capim. No clima seco da Ásia central, nevadas de tais proporções são raridade — verdadeira catástrofe inesperada.

Tivemos a impressão de que os nossos hospedeiros se alegravam de tornar a ver fisionomias humanas. Era a primeira vez que nos acolhiam assim numa tenda de nômades e nos convidavam a pernoitar ali. Julgavam-nos hindus e não desconfiavam de nós. Tinham carne em abundância, porque houvera necessidade de abater muitos animais. Por uma quantia irrisória, compramos uma perna de iaque e assamos uma porção enorme. Depois, pusemo-nos à vontade e saboreamos aquele momento de conforto. Quando dissemos aonde pretendíamos ir, os dois velhos se horrorizaram. Aconselharam-nos a desistir. Mas, continuando a palestra, soubemos que encontraríamos no caminho outros acampamentos de nômades e essa informação fortaleceu a nossa resolução de perseverar.

Continuando a marcha, no dia seguinte, caímos em plena queda de neve. Caminhar tornou-se um tormento; ora afundávamos na neve, ora vadeávamos cursos d'água que não víamos, mas que nos encharcavam as calças e os sapatos. Foi um dia cansativo, durante o qual percorremos apenas alguns quilômetros. E ao escurecer, com que alegria avistamos uma tenda de nômades! Não nos admitiram nela, mas armaram para nós outro abrigo, com um couro de iaque. Descalcei-me com uma sensação de alívio e, com uma vigorosa massagem, restabeleci a circulação, nos dedos dos pés, ameaçados de congelamento.

Esta ameaça, as dificuldades desse dia, davam-nos que pensar. Nessa noite, conversei seriamente com Aufschnaiter. Ainda estávamos a tempo de voltar. Preocupava-nos particularmente o nosso iaque. Fazia dias que a bem dizer não comia nada e podíamos contar nos dedos quanto tempo resistiria, nessas condições. Sem ele, nem poderíamos pensar em ir adiante. Depois de muito argumentar, chegamos enfim a um compromisso: continuaríamos a avançar um dia mais; a nossa resolução dependeria do estado da neve.

Na manhã seguinte, enveredamos por um terreno levemente ondulado e chegamos a um passo. Atravessamos o desfiladeiro e... quem saberá exprimir a nossa surpresa?... do outro lado não havia sinal de neve! A Providência decidira.

 

 

ENTRE NÔMADES BONDOSOS

 

Não tardamos a encontrar uma tenda  de nômades. Fomos bem acolhidos, e o nosso iaque pôde pastar à vontade. Desta vez, a nossa hospedeira era jovem. Ofereceu-nos uma taça de chá com manteiga fumegante; pela primeira vez, essa beber agem soube-me bem. E animou-nos esplendidamente o corpo gelado. Daí em diante, só tivemos olhos para a figura pitoresca da jovem dona da casa. Uma pele de carneiro envolvia-lhe o corpo nu. Nas suas longas trancas, entrelaçavam-se conchas, moedas de prata e outros enfeites baratos de procedência estrangeira. Ela informou-nos de que os seus dois maridos andavam lá fora, recolhendo o rebanho — um rebanho de mil e quinhentas ovelhas e muitos, muitos iaques. Entreolhamo-nos, surpresos. Existiria entre os nômades também a poliandria? Só muito mais tarde, em Lhasa, saberíamos todas as razões e complicações, em virtude das quais, no Tibete, a poligamia e a poliandria andam par a par.

Vieram os dois homens e saudaram-nos cordialmente como a mulher. Fomos obsequiados com uma ceia suculenta, à qual não faltou sequer coalhada, iguaria com que não nos regalávamos desde os banquetes de Kyirong. Passamos também muito tempo sentados ao pé do fogo e esquecemos os sofrimentos passados. Dissemos piadas, rimo-nos muito e não faltaram indiretas maliciosas, como sói acontecer, quando uma mulher jovem e bela enfrenta sozinha vários homens.

Na manhã seguinte, partimos refeitos e contentes com deixarmos enfim para trás a solidão dos campos de neve e entrarmos novamente na pista da vida. Bandos de antílopes povoavam as encostas, por vezes tão próximos que, se tivéssemos uma pistola, poderíamos contar com um bom assado. Infelizmente, não tínhamos armas.

Atravessamos mais um passo e, a seguir, um vale acidentado e agreste, ponteado de cavernas naturais. Mas o vento gelado tirou-nos toda veleidade de explorá-las. Estragou-nos até o prazer do belo panorama que se descortinava ao oeste. Além do planalto, avultavam algumas geleiras imponentes, análogas ao Kailas e ao Lungpo Kangri. Essa vista consolou-nos da uniformidade que nos rodeava outra vez. Alegramo-nos, portanto, de encontrar outros nômades ao anoitecer, gente muito cordial que reteve até os seus cães, quando nos viu chegar. Isto pareceu-nos bom sinal; resolvemos, pois, pedir pousada e licença para o nosso iaque pastar ali.

Os moradores da tenda eram um jovem casal, com quatro crianças de faces rosadas. Embora o espaço já fosse pouco para eles, arranjaram-nos o melhor lugar junto do fogo. Travamos logo amizade com os garotinhos e, durante um dia inteiro, tivemos ensejo de observar a vida e as ocupações dos nômades.

No inverno, os homens não têm muito que fazer. Ajudam em vários trabalhos caseiros, solam os calçados, cortam correias e, por sua alta recriação, vão à caça com velhas espingardas de vareta. As mulheres juntam estéreo de iaque e, nessa faina, arrastam muitas vezes os filhos embrulhados em mantas. À noite, recolhe-se o rebanho e o leite da ordenha dos iaques fêmeas, escasso no inverno. A cozinha dos nômades é obviamente muito simples. Na estação fria, consta quase só de pratos de carne, preparados com muita gordura. Os nômades nada sabem acerca de processos de combustão e de calorias; mas um são instinto os faz procurar a alimentação de que precisam, para afrontar o inverno e o frio. Também preparam várias sopas, porque a tsampa, alimento principal nas zonas agrícolas, nesta região é raridade.

Toda a vida dos nômades se orienta no sentido de tirar o máximo proveito dos recursos brutos que a natureza lhes oferece. Conseqüentemente, até no sono adotam uma postura que lhes poupa calor: agacham-se no chão forrado de peles, despem as mangas da sua pele de carneiro e servem-se dela como cobertor. De manhã cedo, antes de se levantarem, sopram com um fole o braseiro quase apagado e começam logo a preparar o chá. O fogareiro é o centro do alojamento e nunca se apaga. A fumaça esvai-se pela abertura do vértice da tenda. Como em toda casa de camponeses, também na tenda do nômade há sempre um pequeno altar, na maior parte dos casos, muito primitivo: um caixote com um amuleto, ou uma estatueta de Buda. O retrato do Dalai Lama não falta em parte alguma. Nesse altar, bruxuleia um pequeno candeeiro de manteiga; no inverno, o frio e a falta de oxigênio não deixam ver a chama.

O grande acontecimento do calendário do nômade é a feira anual de Gyanyima. Ele leva para lá o seu rebanho, vende uma parte das suas ovelhas, em troca de cevada. Depois, é a vez dos objetos caseiros necessários, das agulhas para coser, do vasilhame de alumínio, dos enfeites vistosos para a mulher...

Foi com pena que nos despedimos dessa família simpática, dos seus meigos pequeninos. Como sempre, procuramos desobrigar-nos da hospitalidade recebida; não sendo, como neste caso, aceito o dinheiro, damos linha de cor, ou um pouco de páprica.

As nossas jornadas seguintes oscilaram entre vinte e trinta quilômetros de marcha, conforme encontrássemos ou não uma tenda hospitaleira. Não raro, pernoitávamos ao ar livre; então a faina de juntar estéreo de iaque e arranjar água absorvia toda a nossa energia; e toda palavra nos parecia supérflua. O que mais nos fazia sofrer eram as mãos, sempre inteiriçadas de frio, porque não tínhamos luvas e as protegíamos com um par de meias. Para trabalhar, naturalmente, éramos obrigados a descalçá-las. Cozinhávamos carne diariamente e tomávamos a sopa, às colheradas, da própria panela fervente. Naquela altitude, o ponto de ebulição é tão baixo e a temperatura exterior esfria tanto, que é possível tomar o caldo fervendo, sem queimar a língua. Cozinhávamos habitualmente de noite; de manhã, esquentávamos as sobras. No caminho, não costumávamos interromper a marcha.

Inesquecíveis são as noites intermináveis, desoladoras, que lá vivemos. Passávamos às vezes horas inteiras, sem poder dormir, aconchegando-nos um ao outro, enrolados no mesmo cobertor, para não gelar; estendíamos a nossa pequena tenda sobre os pés, porque o vento era por vezes tão forte, que não a podíamos manter armada e assim ela nos dava mais calor. Enrodilhado nas suas dobras, dormia o nosso cãozinho. Só o iaque pouco se preocupava com o frio e continuava a pastar tranqüilamente, nas vizinhanças do nosso bivaque. Aí começava outro capítulo! Mal nos aquecíamos um pouco, despertavam os inúmeros insetos nossos hóspedes, que se multiplicavam de maneira assustadora. Era um tormento! Sugavam-nos impiedosamente o sangue e não podíamos alijá-los, porque não era possível despir-se com aquela temperatura. De madrugada, já fartos, davam-nos um pouco de sossego. Adormecíamos finalmente. Mas, ao termo de poucas horas, já o frio do alvorecer vinha arrancar-nos ao sono da exaustão. Conchegados um ao outro, tiritando, fazíamos votos por que o sol aparecesse. Quando havia o menor vislumbre dum dia de bom tempo, esperávamos que os raios do sol chegassem ao nosso refúgio.

A 13 de dezembro, alcançamos Labrang Trowa, uma "colônia" que consistia propriamente apenas numa casa cujos donos a utilizavam só para depósito; mantinham a tenda armada ao lado. Perguntamos porquê; responderam-nos: "A tenda é muito mais quente". Conversando com essa gente, apuramos que caíramos em casa dum "bönpo". Ele estava ausente; representava-o um irmão. Interrogou-nos, naturalmente; e deu-se por satisfeito, com a história da nossa romaria. Pela primeira vez, confessamos que pretendíamos ir a Lhasa. Já agora, estávamos bem longe da estrada de Tasam. O tibetano meneou a cabeça, meio escandalizado, e tentou fazer-nos entender que o caminho mais breve para Lhasa era atravessar Shigatse. Eu, porém, já tinha a resposta pronta: escolhêramos o itinerário mais difícil, para tornar maior o sacrifício da peregrinação. Aparentemente, isso não o persuadiu; não o inibiu, no entanto, de nos dar bons conselhos.

Eram duas as possibilidades: uma nos obrigaria a marchas penosas, através de muitos passos e de territórios desertos; a outra, mais fácil, tinha o inconveniente de passar pela terra dos "khampas". Outra vez a denominação que já ouvíramos de muitos nômades, sempre pronunciada num tom de mistério! "Khampa" devia ser "kham", habitante do Tibete oriental. Mas nunca essa palavra era dita sem uma inflexão de medo e de aviso. Afinal compreendemos: essa palavra é sinônimo de "ladrão".

Infelizmente, não demos o devido peso à advertência e escolhemos o caminho mais fácil.

Passamos duas noites com a família do "bönpo" — não na tenda, porque éramos para esses altivos tibetanos míseros párias hindus, indignos dessa honra. O irmão do "bönpo" era de fato um homem e causou-nos funda impressão. Muito sério, de poucas palavras; mas tudo o que dizia tinha pés e cabeça. Também repartia a mulher com o irmão e vivia dos seus rebanhos. A família parecia abastada; a própria tenda era muito maior do que -as tendas comuns. Completamos ali as nossas provisões e o pagamento em moeda corrente foi aceito, com a máxima compreensão.

 

 

ENCONTRO PERIGOSO COM OS KHAMPAS LADRÕES

 

Estávamos a caminho desde certo tempo, quando se adiantou ao nosso encontro um homem que logo nos despertou a atenção, pelo seu estranho vestuário. Também falava um dialeto diferente da linguagem dos nômades dessa região. Fez-nos muitas perguntas, com visível curiosidade; e nós repetimos a história da nossa peregrinação. Ele não insistiu. Retirou-se; e nós compreendemos que tínhamos travado conhecimento com o primeiro "khampa". Horas depois, avistamos longe dois homens montados em pôneis, e trajados como o que nos interrogara. Aos poucos, aquilo nos causou um curioso mal-estar e nós fingimos dar volta. Só muito depois do escurecer, encontramos outra tenda, cujos moradores eram, felizmente, uma honrada família nômade. Fomos muito bem acolhidos, e os donos da casa emprestaram-nos até um fogareiro. Também nos venderam carne, sem restrições. Mais tarde, soubemos que uma e a outra coisa correspondem a uma superstição: o nômade, na sua tenda, só quer carne do seu rebanho; dá um fogareiro ao estranho, mas, em caso algum lhe oferece leite. Naturalmente, ali como em toda parte, uns se atem mais, outros menos, às superstições.

À noite, falamos dos salteadores que são uma verdadeira praga nesta região. O nosso hospedeiro vivera ali bastante, para discorrer com proficiência sobre o assunto. Mostrou-nos com orgulho uma espingarda Mannlicher pela qual pagara a um khampa uma fortuna: quinhentas ovelhas! Mas o bando de ladrões dos arredores considerara esse preço fabuloso uma espécie de tributo e, desde então, o deixava em paz.

Soubemos também alguns pormenores sobre a vida dos ladrões. Estes costumam formar grupos de três ou quatro tendas e, desse ponto de apoio, empreendem as suas incursões. O processo é este: armados de espingardas e sabres, os salteadores chegam à tenda dum nômade e exigem pousada e mesa farta. O nômade, intimidado, traz-lhe tudo o que tem; os malfeitores atulham o estômago e os bolsos, levam uma ou duas cabeças de gado e desaparecem. A façanha repete-se diariamente noutras tendas, até esgotar os recursos duma região. Aí, os ladrões armam outro quartel-general e recomeçam o jogo. Os nômades resignam-se ao seu destino, porque estão na maior parte dos casos desarmados diante de maior número; e, nessas regiões longínquas, o governo é impotente. Todavia, a autoridade que lograsse deitar a rede a esses bandidos não perderia com isso: toda a presa confiscada passaria a pertencer-lhe. E o castigo dos ladrões seria desumano. Em geral, a pena é a amputação dos braços. Nem por isso os khampas se deixam demover do seu ofício. E vêm à tona casos em que os khampas assassinaram as suas vítimas. Não poupam sequer os peregrinos ou os monges e as religiosas itinerantes. Aos poucos, voltava o nosso vago mal-estar. Quem nos dera poder comprar a espingarda Mannlicher! Mas nem para a mais primitiva das armas chegava o nosso dinheiro; e dos paus da nossa tenda nem os cães tinham respeito...

Não nos sentíamos muito à vontade /na manhã seguinte, ao continuar a marcha. A nossa desconfiança aumentou, quando descobrimos à nossa frente um homem armado de espingarda, que procurava esconder-se atrás duma elevação do terreno. Mas fomos andando na nossa direção e, afinal, o perdemos de vista. Ao anoitecer, encontramos outras tendas; primeiro isoladas, depois em grupo. Batemos à porta da primeira. Apareceu uma família de nômades visivelmente contrariada pela nossa pretensão de entrar, e apontou-nos as outras tendas. Só nos restava seguir a indicação. Surpreendeu-nos bastante o acolhimento que tivemos na tenda seguinte. Os moradores saíram todos ao ar livre, puseram-se a apalpar as nossas sacas, ajudaram-nos a descarregá-las, coisas que os nômades nunca tinham feito. De repente, tivemos uma iluminação: eram os khampas! Caíramos na ratoeira. Estavam na tenda dois homens, uma mulher e um garoto. Não havia remédio senão mostrar boa cara à má conjuntura. Fosse como fosse, estávamos alerta e, com jeito, cautela e diplomacia, esperávamos sair dessa situação constrangedora.

Mal nos sentamos ao pé do fogo, a tenda começou a encher-se. Vinham das tendas vizinhas homens, mulheres, crianças e cães, curiosos de ver os estrangeiros. Muito nos custava manter intacta a nossa bagagem. Aquela gente era importuna e indiscreta como os ciganos. Assim que ouviram a história da nossa peregrinação, propuseram-nos um dos seus homens, para nos guiar até Lhasa. Ele nos ensinaria um caminho mais praticável, um tanto ao sul do nosso itinerário. Trocamos rapidamente um olhar. O pretenso guia era corpulento, atarracado; trazia enfiado no cinto um sabre enorme. Não era tipo para inspirar confiança. Apesar disto, aceitamos a proposta e combinamos uma remuneração. Nem podíamos fazer outra coisa; porque, se eles tivessem más intenções a nosso respeito, poderiam passar-nos logo pela faca.

A pouco e pouco, os visitantes foram saindo, e nós nos preparamos para dormir. Um dos donos da tenda queria a todo custo a minha mochila, para lhe servir de travesseiro; e não foi fácil impedir que a tomasse. Talvez imaginasse que ela escondia uma pistola. Pressentindo essa suspeita, achei conveniente aumentá-la com a minha atitude. Afinal o homem sossegou. Nós continuávamos vigilantes e passamos a noite acordados. Embora estivéssemos mortos de cansaço, não nos custava manter os olhos abertos, pois a mulher do khampa murmurava continuamente orações de si para si. Imaginei que já estivesse pedindo perdão pelos crimes que o marido se dispunha a praticar, na manhã seguinte, em nosso detrimento. De qualquer maneira, demos graças ao céu, quando o dia despontou. Em troca dum espelho de bolso, deram-nos os miolos dum iaque; nós os preparamos logo para o primeiro almoço. Depois, começamos a arrumar-nos para partir. Os donos da tenda espreitavam os nossos movimentos; tornaram-se quase agressivos, quando eu quis dar a nossa bagagem a Aufschnaiter, fora da tenda. Nós os repelimos e carregamos o nosso iaque. Procuramos o nosso "guia" e, com grande alívio, não conseguimos encontrá-lo. A família khampa ainda nos recomendou que escolhêssemos o caminho do sul; ali, no dizer deles, encontraríamos em breve nômades fazendo como nós uma peregrinação a Lhasa. Prometemos seguir o conselho e afastamo-nos a passos largos.

Ao termo de poucos metros, dei pela falta do meu cão. Enquanto o procurávamos, notamos que os três homens vinham atrás de nós e não tardaram a alcançar-nos. Também iam ao acampamento dos peregrinos — explicaram, apontando ao longe uma coluna de fumaça. Aquilo pareceu-nos suspeito. Nunca víramos sair das tendas tanta fumaça. Perguntamos pelo cão. Responderam que ficara na tenda. Qualquer de nós podia ir buscá-lo. Já então, o plano era evidente: tratava-se da nossa vida. Eles retinham o animal, para me separar de Aufschnaiter, porque não se atreviam a atacar-nos juntos. Provavelmente, lá onde subia ao ar aquela fumarada, aguardavam os seus cúmplices. Eles seriam então superiores em número e nos liquidariam facilmente.

Ninguém chegaria a saber do nosso desaparecimento. Arrependemo-nos, nesse instante, de não termos tomado a sério os muitos avisos bem intencionados dos nômades. Como se não desconfiássemos de coisa alguma, andamos um pouco na mesma direção, combinando rapidamente o nosso modo de agir. Os dois homens nos ladeavam; e o garoto, já taludo, vinha atrás de nós. Com uma rápida vista de olhos para os lados, avaliamos as nossas probabilidades. Os salteadores embrulhavam-se, como é seu costume, numa dupla capa de peles que os resguardava de pancadas e golpes de arma branca; traziam à cinta sabres descomunais; e as caras eram tudo, menos de cordeiros.

Alguma coisa tinha de acontecer. Aufschnaiter alvitrou que mudássemos de rumo, para não cair cegamente na armadilha. Dito e feito. Já enquanto falávamos, operamos uma súbita conversão. Os khampas ficaram desconcertados; mas logo se refizeram. Cortaram-nos o passo e, com gestos nada amistosos, perguntaram aonde queríamos ir. "Vamos buscar o cão!" replicamos, seca e energicamente. Eles murcharam um tanto; percebiam que éramos capazes de chegar aos extremos. Hesitaram um instante, olharam-nos e continuaram o caminho, provavelmente para informar quanto antes os seus asseclas.

Nas vizinhanças da tenda, a mulher veio-nos ao encontro, com o cão preso a uma corda. Despedimo-nos alegremente e fingimos retomar o mesmo rumo. Pois sim! O que íamos fazer era arrepiar carreira! Avançar mais, desarmados como estávamos, era a morte certa. Após um dia de marcha forçada, alcançamos ao anoitecer a tenda da honrada família com que pernoitáramos dias antes. Não os surpreendeu a nossa aventura; contaram-nos que o acampamento dos khampas, conhecido como Gyak Bongra, era muito temido nas redondezas. Depois dessas peripécias, prezamos duplamente a possibilidade de dormir um bom sono em segurança...

Na manhã seguinte, traçamos o nosso novo roteiro. Só nos restava escolher o caminho difícil, através de zonas desabitadas. Compramos mais carne dos nômades — toda a que podíamos levar, porque talvez passássemos uma semana, sem encontrar alma viva.

Para não ter de voltar a Labrang Trowa, com o intuito de encurtar o caminho, arriscamo-nos a uma ascensão abrupta e difícil. Desembocaríamos diretamente no nosso itinerário. No meio da subida, voltamo-nos para contemplar a paisagem e verificamos, horrorizados que, embora ainda muito distantes, dois homens vinham no nosso encalço. Não havia dúvida: eram os khampas! Provavelmente se haviam inteirado do nosso roteiro, visitando a família nômade; não tardariam a descobrir-nos, porque no ar transparente do Chang-tang, a vista alcança grandes distâncias.

Que devíamos fazer? Não dissemos palavra. Mais tarde, confessamos a idéia que nos ocorrera: ambos tínhamos pensado em vender a nossa vida, tão caro quanto fosse possível. A princípio, quisemos acelerar a marcha. Mas estávamos atados ao andamento do nosso iaque e, embora o aguilhoássemos constantemente, ele vinha a passo de caracol. Olhávamos de quando em quando para trás; era difícil averiguar se a distância diminuía. Mais uma vez, sentimos dolorosamente o que significa não dispor duma arma. Nós podíamos, se tanto, defender-nos a pauladas e pedradas; os adversários manejavam sabres afiadíssimos. O essencial seria ação conjunta e auxílio mútuo. Estávamos decididos: o recontro ia ser vida por vida. Continuamos em marcha forçada uma hora interminável, arfando de cansaço, do esforço de voltar a cabeça a todo instante. Notamos então que os dois homens se haviam sentado. Dobrando o passo, para alcançar duma vez o espinhaço da serra, corríamos ao mesmo tempo os olhos em torno, à procura dum esconderijo que, em caso de necessidade, servisse de campo de batalha. Os homens já estavam de pé, aparentemente deliberando; de súbito, recomeçaram a andar em sentido inverso. Respiramos enfim e acicatamos o nosso iaque, para desaparecer quanto antes do outro lado da serra. Chegados à crista do monte, compreendemos, porque os homens tinham preferido voltar: diante de nós se estendia a paisagem mais desolada que já me sucedera ver: um mar onduloso de picos nevados, de ladeiras e declives, que se prolongava até ao infinito... Ao longe, perfilava-se o Trans-himalaia onde distinguíamos nitidamente, como um lacuna numa dentadura, o passo que escolhêramos para uma possibilidade de retirada. Este passo — conhecido, graças a Sven Hedin, que lhe divulgou o nome: passo Selala — leva diretamente a Shigatse.

Teriam os khampas desistido de fato de nos perseguir? Por medida de segurança, continuamos a marcha pela noite adentro — por sorte, noite de luar. A neve brilhava à luz da lua; e a claridade era tão intensa, que permitia enxergar as cordilheiras distantes.

 

 

FOME E FRIO... E UM INESPERADO PRESENTE DE NATAL

 

Nunca hei de esquecer essa marcha noturna. Foi a mais rude fadiga física e moral que suportei. À circunstância de ser aquela região tão inóspita devíamos a sorte de ter escapado aos khampas; mas também nos propunha novos problemas. Era bom que eu tivesse jogado fora, havia muito o meu termômetro; naquele mar de neve, ele desceria decerto a trinta graus abaixo de zero. Não poderia descer mais, porque era o seu ponto terminal; mas essa temperatura não corresponderia ao frio que ali reinava. Viajando por essa época do ano, nessa mesma zona, Sven Hedin também medira quarenta graus abaixo de zero.

Trotamos horas a fio, na neve intacta, enquanto a nossa imaginação se soltava a vaguear por conta própria. E as visões começaram a torturar-me: um quarto confortàvelmente aquecido... comida quente à escolha... bebidas fumegantes... Fato curioso: a visão que quase me desvairava ali era a recordação dum banal buffet automático, do meu tempo de estudante em Gratz.

Os pensamentos de Aufschnaiter seguiam outro rumo. O meu camarada urdia planos sinistros de vingança. Já se via voltando, para tirar uma desforra à mão armada. Então, ai de toda a raça dos khampas!

Assim, cada um de nós a seu modo, tentava superar a profunda depressão. Ainda essa vez, perdêramos tempo e a meta estava cada vez mais distante. Se pudéssemos seguir sem impedimento o nosso caminho, já estaríamos ao norte da estrada de Tasan. Devia andar pela meia-noite — os nossos relógios, desde muito tempo se haviam convertido em carne e tsampa — quando nos sentamos afinal. Em toda essa longa marcha, não avistáramos uma criatura viva, nem sequer um ágil leopardo da neve. Nenhum rasto de ser humano ou de animal, nenhum vestígio de vegetação, nenhuma esperança de encontrar material para combustível. Nem teríamos energia para fazer fogo, porque é uma arte especial armar uma boa fogueira com estéreo de iaque. Conseqüentemente, descarregamos o nosso Armin e encolhemo-nos imediatamente debaixo das cobertas. O saco de tsampa e uma perna de carneiro crua estavam no chão entre nós; atiramo-nos a eles como esfaimados. Mal tínhamos chegado à boca a farinha seca, o frio colou-nos a colher à língua e aos lábios. Despegá-la custou-nos alguns retalhos de pele. E lá se fora o apetite! Embrulhamo-nos os dois e, a despeito do frio cortante, caímos no sono de chumbo do esgotamento.

Pouco alívio nos trouxe a manhã. O nosso iaque procurara em vão, a noite inteira, uns fios de capim; nesse momento, devorava desesperadamente neve; porque, em todo o dia anterior, também não acháramos uma gota d'água. As nascentes, que encontrávamos no caminho, eram curiosas cascatas de gelo.

Marchávamos penosamente, nas pegadas do nosso bravo iaque, sem sequer levantar os olhos. Por isto, depois do meio-dia, julgamos estar vendo uma Fada Morgana, quando avistamos, longe no horizonte, mas com absoluta nitidez, nada menos de três caravanas de iaques, trilhando o campo de neve, ora avançando muito devagar, ora parecendo paradas; mas não desapareciam. Logo, eram caravanas de verdade! Esta convicção infundiu-nos nova vida. Reunindo todas as nossas energias, impelimos o nosso iaque e, três horas depois, estávamos no acampamento dos caravaneiros. Eram umas quinze pessoas, homens e mulheres e já tinham armado as tendas. A nossa aparição surpreendeu-os bastante; ainda assim, acolheram-nos com cordialidade e convidaram-nos a chegar ao fogo. Soubemos então que a comitiva, depois duma viagem de negócio e de peregrinação ao monte Kailas, regressava à sua terra, à margem do lago Namtsho. Também tinham sido avisados pelas autoridades distritais. Optaram por esse itinerário eriçado de dificuldades, a fim de evitar o caminho infestado pelos khampas. Voltavam com cinqüenta iaques e duzentas ovelhas. A maior parte do seu rebanho fora trocada por mercadorias que seriam presa de valor para os salteadores. Por esse motivo os viajantes se dividiam em três grupos; e convidaram-nos a acompanhá-los, porque todo reforço era uma vantagem sobre os khampas.

Que gozo requintado, estar ao pé do fogo e saborear uma sopa quente! Esse encontro se nos afigurava uma disposição do destino. Não esquecíamos por isto o nosso valente Armin; sabíamos o que lhe devíamos. Pedimos, pois, ao chefe da caravana que, mediante certa remuneração diária, nos permitisse transferir a nossa carga a um dos seus iaques não aproveitados. Daí em diante, o nosso Armin pôde pavonear-se em paz.

Viajamos assim dias e dias com os nômades e, nas pousadas, armávamos a nossa pequena tenda de alpinistas ao lado deles. Isto era sempre um problema. O vendaval arrebatava-nos a tenda das mãos e nós ficávamos, em plena noite, expostos às intempéries, porque as cordas rebentavam e os varais saíam pelo vértice da tenda. Só as de pele de iaque resistem a esses temporais; são, porém, tão pesadas, que por si sós constituem carga para um iaque. Se alguma vez tivéssemos de nos arrastar de novo pelo Chang-tang, dizíamos conosco, trataríamos de ter outro equipamento! Três iaques, um arrieiro, uma tenda de nômade, um bom sabre... Até lá, o remédio era conformar-nos com a triste realidade. E alegrar-nos da boa acolhida dos nossos amigos nômades. A única coisa que nos aborrecia era progredirmos tão devagar; comparado às nossas marchas, esse andamento era simples passeio. Os nômades saíam cedo; percorridos de quatro a seis quilômetros, acampavam e deixavam o gado pastar. Ao escurecer, prevenindo assaltos dos lobos, agrupavam-se os animais nas vizinhanças das tendas; e eles continuavam a ruminar a noite inteira.

Só então compreendemos o que exigíramos do nosso pobre Armin. Ele devia considerar-nos ímpios, como nos julgavam os tibetanos, quando andávamos em correrias pelos montes de Kyirong. Durante as longas paradas, dedicamo-nos outra vez aos nossos Diários, um tanto negligenciados nos últimos tempos; depois, começamos metòdicamente a sondar os membros da caravana, sobre o caminho de Lhasa. Fazíamos as consultas separadamente e, das respostas, colhemos aos poucos um determinado número de nomes de localidades, conhecimento muito valioso para nós, no caso de termos de pedir orientação. Estávamos de acordo em que não podíamos embalar-nos mais tempo nesse ritmo de passeantes. Combinamos, pois, que nos próximos dias nos separaríamos da caravana.

Era justamente o dia 24 de dezembro, quando nos despedimos para continuar sozinhos. Refeitos e descansados, marchamos por montes e vales, percorrendo nessa primeira jornada mais de vinte quilômetros. À noite, encontramo-nos numa vasta planície onde se viam várias tendas dispersas. Os seus moradores estavam aparentemente alerta. Com efeito, antes que chegássemos à primeira tenda, saíram-nos ao encontro alguns homens mal encarados, armados até aos dentes e intimaram-nos com rispidez a ir quanto antes para o inferno. Sem nos alterar, levantamos as mãos vazias, para exprimir que não tínhamos armas e declaramos a nossa qualidade de inofensivos peregrinos. Apesar dos nossos dias de repouso talvez tivéssemos ainda caras de fazer dó. O certo é que, após breve conferência, o dono da tenda maior nos convidou a pernoitar ali. Pudemos aquecer-nos; deram a cada um de nós uma taça de chá com manteiga fumegante e uma rara preciosidade: um pãozinho branco. Não era pão fresco; mas assim duro como pedra, significou para nós, nessa véspera de Natal, muito mais do que o mais suntuoso bolo festivo. E comoveu-nos tanto, que o guardamos no bolso. Só dias depois, numa jornada de marcha especialmente penosa, partimos o pãozinho; e haurimos coragem e conforto do inesperado presente de Natal daquela boa gente.

Antes, porém, tivéramos de nos avir com a casca rude do nosso hospedeiro. Quando declaramos ao dispensador de pãezinhos o caminho que pretendíamos seguir para ir a Lhasa, ele objetou secamente que, se até aí não fôramos assassinados, talvez não tivéssemos a mesma sorte nos próximos dias; a região estava cheia de khampas e nós, desarmados, seríamos vítimas voluntárias. Tudo isto, dito num tom fatalista de quem fala de coisa muito natural. Um tanto murchos, pedimos-lhe um bom conselho. O nômade recomendou-nos de novo o caminho de Shigatse, aonde poderíamos chegar numa semana... Não nos mostramos muito inclinados a adotar o alvitre. O nômade pensou um pouco e aconselhou-nos a procurar o "bönpo" daquela zona, cuja tenda ficava a poucas milhas de distância, em rumo sul. O "bönpo" tinha poderes para nos dar uma escolta segura, se insistíssemos em atravessar a terra dos ladrões.

Nessa noite, deitamo-nos cedo; e tínhamos tanto em que pensar, que não sobrou vaza para as recordações saudosas duma véspera de Natal na pátria. Finalmente concordamos em que podíamos arriscar-nos a procurar o "bönpo". Até à tenda dessa autoridade, eram poucas horas de caminho. Tomamos por bom presságio o seu acolhimento amistoso e a cortesia com que o "bönpo" pôs uma tenda à nossa disposição. Depois mandou chamar o seu colega e conferenciamos os quatro. Ali não vinha ao caso a história de sermos romeiros hindus. Demo-nos a conhecer como europeus e reclamamos energicamente proteção contra os salteadores. Naturalmente, viajávamos com permissão do governo. E, com a cara mais estanhada, puxei do bolso o velho salvo-conduto que obtivéramos do "Garpön" em Gartok. Esse documento já tinha, aliás, uma história. Naquele tempo, o sorteáramos entre nós. Coubera a Kopp. Quando este deixou o nosso grupo, eu tive a boa idéia de comprar o salvo-conduto. Chegara a hora de aproveitá-lo.

Os dois funcionários examinaram o selo; o velho documento impressionava-os visivelmente; convenceu-os de que estávamos de fato legalmente no país. Só fizeram uma pergunta: que era feito do terceiro homem? Explicamos com toda a seriedade: adoecera em Tradün e voltara à índia. Nós mesmos nos admiramos da facilidade com que eram aceitos os nossos blefes. Os "bönpos" estavam em paz com a sua consciência. Prometeram-nos uma escolta; ela se manteria sempre a certa distância e nos deixaria no limite norte da estrada de Tasam.

Foi para nós uma verdadeira mensagem de Natal! Podíamos, em verdade celebrar a festa. Tínhamos guardado para a noite de Natal um pouco de arroz de Kyirong. Preparamos o quitute e convidamos os dois "bönpos" à nossa tenda. Eles aceitaram; trouxeram mesmo outros comestíveis e, assim passamos uma noite muito alegre.

Na manhã seguinte, um nômade mandou-nos mudar para a tenda próxima. Era como numa corrida de estafetas: faziam-nos avançar um pedaço, rendiam-nos e mandavam voltar para trás. Partimos com a nova escolta e avançamos admiràvelmente, apesar da impossibilidade de orientação. Foi quando percebemos o que significa ir com um guia conhecedor do caminho! Ainda que ele não represente uma garantia de vida contra os salteadores...

Nossa escolta constante eram o frio e o vento. Tínhamos a impressão de não haver já no mundo senão tufões e temperaturas inferiores a trinta graus abaixo de zero. Fazia-nos sofrer o nosso vestuário absolutamente inadequado. Eu ainda tivera a sorte de conseguir do morador duma tenda uma velha pele de carneiro. Ficava-me apertada, faltava-lhe uma das mangas; mas, por fim de contas, custara só duas rúpias. O pior era o calçado que se encaminhava visivelmente para o fim. E não tínhamos luvas. Aufschnaiter já sofrerá de congelamento nas mãos; eu andava continuamente às voltas com os meus pés. Suportávamos os nossos padecimentos, com uma resignação apática; e fazia-se precisa muita energia, para dar conta da marcha cotidiana. Como seria bom descansar alguns dias, numa tenda de nômade bem aquecida! A própria vida dessas criaturas errantes, tão dura e tão primitiva, nos aparecia já então sob uma luz convidativa. Nós, porém, não devíamos parar, se quiséssemos chegar a Lhasa com os nossos meios. E depois? Preferíamos nem pensar nesse "depois"...

Avistávamos freqüentemente — por sorte, muito longe — homens a cavalo, acompanhados de cães que logo os identificavam como khampas. Esses cães têm o pêlo menos espesso do que o comum das raças tibetanas; são magros, ligeiros como o vento, indizivelmente ferozes. Demos graças a Deus que nos poupava o encontro com eles e com os seus donos.

Nessa etapa da viagem, também fizemos um descobrimento: chegamos a um lago gelado, que mais tarde não conseguimos encontrar em nenhum mapa. Aufschnaiter desenhou-o logo nos nossos croquis. Os aborígines o denominam Yötshabtsho, isto é "água do sacrifício". Está maravilhosamente situado às fraldas duma cadeia de geleiras, para a qual nos dirigíamos havia uma semana, descrevendo um amplo arco. Ali também o pico mais alto era um "trono dos deuses"; e recebera o nome duma divindade particularmente poderosa: "Jo Gya Kang".

Antes de chegarmos à estrada de Tasam, ainda tivemos um encontro com salteadores armados com boas armas européias; ter coragem não nos valeria muito. Eles deixaram-nos em paz... evidentemente porque nos acharam muito pobres e deserdados. Sim, às vezes até a miséria visível tem as suas vantagens.

Ao termo de cinco dias, chegamos finalmente à mui famosa estrada de Tasam. Sempre a imagináramos como uma verdadeira estrada que poria fim às nossas provações. Quem saberá exprimir a nossa decepção, não vendo lá nem sinal de estrada, na acepção ocidental! A paisagem não se diferençava da que vínhamos atravessando nas últimas semanas. Algumas tendas vazias, que podiam oferecer pousada às caravanas; e nada mais. Nem sombra de qualquer organização.

Na última etapa, acompanhamos duas vigorosas amazonas que, depois de nos deixarem na estrada de Tasam, se despediram, comovidas. Ocupamos, resignados, uma tenda vazia, fizemos fogo e procuramos encarar a nossa situação dum ponto de vista positivo. Por fim de contas, podíamos dar-nos por muito satisfeitos! Deixáramos para trás a parte mais difícil da viagem e estávamos numa estrada de movimento intenso, que nos levaria diretamente a Lhasa. Em quinze dias de marcha, poderíamos alcançar a capital. Mas que era da alegria de estarmos tão perto da meta?

Sim, as muitas provações nos tinham reduzido a tal estado de prostração, que já éramos incapazes de belos sentimentos. Membros congelados, escassez de dinheiro, falta de víveres... Tudo isto nos atormentava; e o que mais nos fazia pena eram os nossos animais. O meu cão fiel era só pele e ossos; não havendo para nós, pouco sobrava para ele. Tinha as patas lanha das e, não raro, arrastava-se tão devagar, que nos prendia no mesmo lugar horas a fio.

O iaque não passava muito melhor. Fazia semanas que não encontrava pasto e emagrecera assustadoramente. Estávamos, desde o lago Yötshabsho, fora da zona nevada;"mas a erva era escassa e seca; pouco o tempo para pastar. E as nossas marchas forçadas não constituíam propriamente uma cura de engorda.

 

No Tibete, encontram-se por toda parte mosteiros construídos nas orlas de penhascos abruptos, quase inacessíveis.

 

Estátua de ouro de Buda, num dos números monastérios do Tibete. Está envolta num manto multicor de seda e enfeitada de jóias.

 

Apesar de tudo isto, cada manhã reiniciávamos a jornada. Moralmente, era um estímulo, o fato de estarmos percorrendo uma estrada caravaneira; já não havia motivo para nos julgarmos na situação de Marco Polo.

A estrada de Tasam, onde nos encontrávamos, fora traçada, a princípio, pelo governo, para o transporte do ouro do Tibete ocidental. Mais tarde, intensificando-se o comércio em todo o Tibete, a estrada de Tasam passara a ser um considerável desafogo, para a estrada do sul, paralela ao Tsangpo.

A nossa primeira jornada na estrada de Tasam, não se diferençou absolutamente das nossas piores etapas, em zonas desabitadas. Não encontrávamos uma alma. Uma tormenta furiosa espalhava rajadas de neve e nuvens de neblina, tornando-nos a marcha um inferno. E ainda tínhamos sorte: o vento vinha de trás e impelia-nos; se o tivéssemos de frente, não conseguiríamos dar um passo. O nosso pobre Armin chegara ao extremo das suas forças; e todos quatro nos consolávamos, pensando em que à noite descansaríamos na estalagem mais vizinha.

Assinalei esse dia, no meu Diário, com as linhas seguintes:

"Violenta borrasca de neve, com cerração — a primeira cerração, no Tibete. Temperatura: 30 graus Celsius... o dia mais penoso da nossa viagem... As mãos quase geladas negavam-se a carregar peso... chegamos a extraviar-nos. Depois de andar dois quilômetros, percebemos o nosso erro e voltamos. Ao escurecer, alcançamos o acampamento de Nyatsang, formado por oito tendas. Numa delas mora o "bönpo" de Tasam, com a família... Fomos acolhidos cordialmente."

 

 

O SALVO-CONDUTO ABENÇOADO

 

A nossa segunda noite de São Silvestre, no Tibete! Pensando no que pudéramos conseguir até aí, era de se perder a coragem. Continuávamos "ilegalmente" no país, como dois vagabundos desclassificados, meio famintos, obrigados a esquivar às autoridades; e Lhasa continuava a ser,meta ilusória, a "cidade vedada". Nessas ocasiões, sucedia-nos deixar-nos induzir a deitar sentimentalmente um olhar ao passado. Os pensamentos voavam para longe... A pátria, a família, eram inesquecíveis. Todavia a luta rude pela vida absorvia-nos todas as energias, psíquicas e físicas. Ao pé dela, não havia lugar para nada mais. Uma noite numa tenda aquecida tinha mais valor do que os carros de corrida tão almejados, que poderíamos receber de presente, lá em casa.

Festejamos, portanto, o nosso São Silvestre. Pretendíamos permanecer um pouco mais no acampamento, refazer-nos e conceder um dia de descanso aos nossos animais. O velho salvo-conduto fizera mais uma vez a sua obrigação. Os funcionários de Tasam logo nos trataram com deferência, puseram-nos um criado à disposição, mandaram-nos água e estéreo de iaque para o fogo. Tratamo-nos bem, dormimos muito tempo. Passava do meio-dia e pensávamos num cozinheiro para o almoço, quando ele nos apareceu, vivo, à entrada da tenda, sob forma do cozinheiro dum "bönpo" que vinha anunciar a chegada do seu "alto senhor" e preparar tudo para o receber. E pôs-se a andar dum lado a outro, azafamado, com ares de importância. Cobria a cabeça com uma pele inteira de raposa.

A chegada duma autoridade mesmo na nossa terra podia ser um acontecimento. Estivéramos, porém, na Ásia o tempo suficiente para saber que "alto senhor" é um conceito muito relativo; não saímos, pois, dos nossos cuidados, que o caso não era para tanto. O "bönpo" chegou pouco depois, a cavalo, no meio dum bando de servos. Era um comerciante, ao serviço do governo, a caminho de Lhasa, com várias centenas de carregamentos de açúcar de cana e tecidos de algodão. Naturalmente não dispensou o nosso interrogatório; e nós, com caras de santo, lhe apresentamos o salvo-conduto que, ainda essa vez, produziu o seu efeito. A severa catadura oficial abrandou logo e o "bönpo" convidou-nos até a viajar com a sua comitiva. Quem o diria! Por essa oportunidade, renunciamos de bom grado ao dia de descanso e começamos logo a arrumar as trouxas, pois a caravana pretendia demorar-se poucas horas.

Um dos almocreves sacudiu a cabeça, à vista do nosso escanifrado Armin. E propôs passar a carga do nosso iaque a um dos seus animais de posta, mediante o pagamento duma pequena contribuição. Tivemos muito gosto em proporcionar a Armin esse alívio. Íamos com pressa. O dignitário e os seus servos trocaram de montaria; os iaques foram substituídos e os animais recém-carregados puseram-se a caminho. Nós seguíamos a caravana. Só o "bönpo" se demoraria mais; porque, montado, não tardaria a alcançar-nos.

Derreados como estávamos, custou-nos bastante marchar vinte quilômetros, até à estação seguinte. Pensávamos com saudade no nosso dia de folga e também no nosso cão. Por mais que eu o chamasse, assobiasse, ele mal abanava o rabo. Chegara ao extremo da resistência. Mal alimentado, com as patas em carne viva, que ia ser dele? De bom grado eu o entregaria, já que devíamos separar-nos, a uma pessoa que o tratasse bem. Custava-me deixá-lo numa povoação. Naquele estado e como intruso, ver-se-ia mal com os outros cães. Mas, de qualquer maneira, teria de ficar no caminho.

Sob a proteção da caravana, percorremos diariamente grandes extensões. Valeu-nos muito o prestígio do "bönpo", porque éramos bem recebidos em toda parte. Só em Lhölan um funcionário da estrada nos achou suspeitos. Tratou-nos rispidamente, negou-nos combustível e exigiu teimosamente um salvo-conduto de Lhasa. Infelizmente não o podíamos obter. Mas tínhamos pelo menos um telhado sobre a cabeça; e isto bastava para nos alegrar. Com efeito, logo após a chegada, notáramos uns vultos equívocos rondando as tendas. Conhecíamos essa corja: eram khampas. Estávamos muito cansados, para nos preocuparmos com isso. Cuidassem deles os outros; nós nada tínhamos que pudesse tentar ladrões. Só quando eles assomaram à nossa tenda, com a pretensão de pernoitar nela, falamos em tom enérgico; e eles sumiram-se imediatamente.

Na manhã seguinte, verificamos com espanto, que o nosso iaque desaparecera. Entretanto, na véspera o deixáramos amarrado ali perto. Talvez estivesse pastando. Mas qual! Por mais que o procurássemos, não apareceu. E o fato de não haver sinal da corja, que andara ali na noite anterior, não nos deixou dúvidas: o nosso iaque fora roubado; e isso importava numa perda sensível para nós.

Corremos à tenda do funcionário da estrada e eu, num acesso de raiva, atirei-lhe aos pés a sela e a manta. Ele, com a sua teimosia intratável, era culpado de termos perdido o animal! Essa perda desolava-nos. O nosso Armin V era o representante mais decente da sua raça. Nós o prezávamos. Devíamos-lhe a possibilidade de superar os trechos mais difíceis da nossa viagem. Bom Armin! Para ele, a mudança de sorte nada tinha de mau. Durante meses, pastaria sossegadamente num prado; recobraria o vigor; e o seu cérebro iaquiano esqueceria as provações passadas.

Não nos sobrava lazer para o chorar. A nossa carga já estava, desde horas, a caminho; porque, para se emparelhar com o "bönpo", a caravana tinha de se por em marcha ao alvorecer. Apesar da nossa contrariedade, acabamos por sentir-nos muito satisfeitos com podermos viajar, livres da preocupação dos animais, da eterna obrigação de arrumar a carga.

Desde alguns dias, marchávamos numa enorme cadeia de montanhas, a serra de Nyentshenthanglha, na qual um único passo levava diretamente a Lhasa. A paisagem era amena, ondulada e bem solitária. O tempo melhorara muito; os dias amanheciam claros e a visibilidade era tão boa, que víamos, como se a tivéssemos ao alcance da mão, a nossa meta, distante ainda uns dez quilômetros.

Nesses dias, o nosso cansaço extremo já era bem visível. Tínhamos a sensação de estar gastando as nossas últimas reservas. Chegávamos ao fim do dia simplesmente extenuados.

A estação da estrada de Tasam, onde acabávamos de parar, chamava-se Tokar. Começava ali a subida às montanhas. Só dentro de cinco dias, chegaríamos à estação seguinte. Não nos atrevíamos a pensar em como agüentaríamos esse estirão. Em todo caso, tratamos de nos abastecer de carne para esse intervalo.

Os dias seguintes foram intermináveis; e mais compridas nos pareciam as noites. Atravessávamos uma região fantàsticamente bela. Chegávamos a um dos maiores lagos do globo: o Nam Tsho, ou Tengri Nor. Para lhe dar a volta seriam necessários onze dias. Mas nós nem o vimos. Sempre desejáramos tanto ver um dos grandes lagos sem sangradouro do Chang-tang. O lago estava enfim diante de nós... e nada conseguiria arrancar-nos à nossa apatia.

A subida, na atmosfera rarefeita, esgotara-nos; a altitude de seis mil metros oprimia-nos, paralisava-nos a faculdade de pensar. De quando em quando, deitávamos um olhar admirado aos picos ainda mais elevados das redondezas. Atingimos finalmente o limite de altitude transitável o passo Guring La. O inglês Littledale foi o primeiro europeu — e o único antes de nós — que o atravessou, em 1895. E Sven Hedin o assinalou nos mapas, com 5.972 metros de altitude, como a passagem mais alta do Transhimalaia. Creio que não erro, dizendo que o Guring La é, dos passos praticáveis em toda estação do ano, o mais elevado do globo terrestre.

 

 

FLÂMULAS COLORIDAS ORLAM O CAMINHO DO PEREGRINO

 

Tornamos a encontrar os típicos montes de pedra e, logo a seguir, as mais vistosas flâmulas de orações que me sucedera ver. Ao lado disso, havia uma fila de preces gravadas em lousas — expressão, tornada imperecível, do júbilo de muitos milhares de peregrinos quando, ao termo de muitas fadigas, esse passo lhes abre o caminho da mais sagrada das cidades.

E de lá nos vinham já ao encontro, em número assombroso, os que acabavam de pousar os olhos na meta das suas aspirações e reencetavam a marcha para as suas pátrias distantes. Quantas vezes não ouvira esse caminho o "Om mani padme hum", a fórmula tradicional, a mais usual das orações budistas, que os peregrinos vão murmurando, sem interrupção, e pela qual se julgam protegidos simultaneamente contra os "gases venéficos" que assim denominam os tibetanos a falta de oxigênio da sua atmosfera. Medida mais prudente seria conservarem a boca fechada! Víamos a todo momento, muito abaixo de nós, as ossadas brancas de animais das caravanas, testemunhos dos perigos inerentes à travessia desse passo. Contavam os arrieiros que, em quase todo inverno, ali perecem peregrinos, em aterradoras tormentas de neve. Agradecemos a Deus o bom tempo reinante, pois já no primeiro dia tivemos de superar cerca de dois mil metros de diferença de altitude.

Mal transpusemos a crista da serra, tivemos diante de nós muito outro panorama. Já não havia sinal dos declives amenos do Chang-tang. Durante as nossas marchas penosas, quantas vezes imagináramos como seria fácil andar neles de jipe. Já agora não haveria possibilidade duma viagem desse gênero. As montanhas erguiam-se contra o céu, íngremes, escarpadas; nos desfiladeiros, recortados profundamente, rumorejava a água, fluindo para a planície de Lhasa. Os condutores de iaques disseram-nos que, de certo ponto dos arredores da capital se vêem os picos gelados por onde andávamos naquela ocasião. Tão próxima estava a "cidade proibida!"

A primeira parte da subida levava a uma geleira. Mais uma vez os iaques fizeram jus à minha admiração, pela segurança incrível com que pisam no gelo. Nas nossas caminhadas fatigantes, ocorreu-me involuntariamente a idéia de como seria fácil deslizar naqueles campos de neve, ideais, sem uma greta. Aufschnaiter e eu seríamos os primeiros esquiadores do caminho dos peregrinos... Também, lá das alturas, bom número de seis mil metros tentava as nossas almas de alpinistas cansados. E nós lamentávamos não possuir picaretas para gelo; seria muito fácil subir a qualquer deles.

Nessa marcha, alcançou-nos um jovem casal. Também vinham de longe e, como nós, queriam ver Lhasa. Juntamo-nos com prazer à caravana; e, como sói acontecer em casos desses, mantivemos conversação. A história do jovem casal era uma história maravilhosa, uma história de Romeu e Julieta em verão tibetano. A bela jovem de faces rosadas e grossas trancas negras vivia numa tenda de nômades do Chang-tang e governava o lar dos seus três maridos — três irmãos. Certa noite, um jovem estrangeiro pedira pousada àquela tenda. A partir daquele momento, tudo mudara — fora decerto o famoso amor à primeira vista. O certo é que os dois se entenderam e, já na manhã seguinte abalaram juntos, de todo indiferentes aos perigos, através das planícies invernais. Tendo chegado sãos e salvos até ali, pretendiam recomeçar a vida em Lhasa.

Essa jovem tibetana ficou-me na memória como um lampejo de esperança, naqueles dias sombrios. Durante um bivaque, ela mexeu no bolso do peito e deu-nos, sorrindo, um abricó seco. Essa pequena dádiva foi, para nós, tão preciosa, como o pãozinho do nômade, na noite da véspera de Natal.

Na continuação da marcha, tive ensejo de me compenetrar da energia e da resistência das mulheres do Tibete. A jovem nômade emparelhava, sem esforço, o seu passo com o nosso e carregava a sua trouxa como um homem. Não havia necessidade de dar tratos à imaginação, para lhe adivinhar o futuro: em Lhasa, ela se empregaria nalgum trabalho braçal e, com a sua robusta saúde de nômade, não lhe custaria ganhar a sua subsistência.

Marchamos três dias, sem encontrar acampamentos. Uma vez, vimos subir ao céu, muito longe, uma enorme coluna de fumaça, Proviria ela duma povoação humana ou dum incêndio? Não nos parecia muito provável. Quando nos aproximamos mais, tivemos a solução do enigma: era uma coluna de vapor de fontes termais. Em breve, se nos deparou uma forma inesperada do belo na natureza. Várias nascentes jorravam do solo; no meio das nuvens de vapor, que as envolviam, um gêiser soberbo lançava ao ar o seu jacto de quatro metros de altura. Um pensamento prosaico sucedeu à admiração: um banho! O nosso casalzinho não se interessava nem por uma nem pela outra dessas coisas; e a proposta dum banho despertou a indignação da senhora. Nós não nos deixamos dissuadir. A água jorrava do solo, fervendo; mas a temperatura exterior duns 10 graus abaixo de zero a tornava suportável. Alargamos uma poça até formar uma bacia confortável. Que delícia! Desde as fontes termais de Kyirong não podíamos lavar-nos; muito menos tomar um banho. E, em conseqüência da baixa temperatura do ar, tínhamos os cabelos e a barba gelados.

Brincávamos, regalados, no sangradouro morno das fontes, como peixes de grande tamanho. Pungidos pela fome, refletimos em que, se apanhássemos um, teríamos à mão água fervendo, para cozinhá-lo... Mas o petisco ficou só na imaginação. O banho reanimara-nos. Retomamos o caminho, para alcançar a caravana.

Passamos a noite na tenda com os arrieiros dos iaques. E, nessa ocasião, tive um ataque severo de ciática. Eu sempre considerara essa dolorosa enfermidade um fenômeno da velhice e iludia-me de que tão cedo não travaria conhecimento com ela. Resfriara-me, provavelmente, dormindo tanto tempo no chão gelado.

Uma bela manhã, não pude levantar-me. Sofria dores terríveis. Um calafrio percorreu-me o corpo: que ia ser de mim? Não podia permanecer onde me encontrava... Cerrei os dentes, levantei-me e dei alguns passos. Melhorei, com o movimento. Daí em diante, todas as manhãs, os primeiros quilômetros eram particularmente penosos para mim.

Quatro dias depois de atravessarmos o passo, saímos do vale estreito para uma vasta planície. À noite, meio mortos de cansaço, chegamos ao posto Tasam de Samsar. Tornávamos finalmente a ver uma povoação, casas sólidas, um claustro, um distrito. E uma das principais encruzilhadas do Tibete. Encontram-se ali cinco estradas movimentadíssimas: chegam e partem caravanas; as hospedarias vivem superlotadas; trocam-se animais de carga e de sela... Em suma, a vida tumultuosa dum caravançará.

O nosso "bönpo" chegara dois dias antes. Embora fosse representante do governo, teve de esperar cinco dias a muda dos seus iaques. Arranjou-nos alojamento, combustível, um fogareiro. Mais uma vez se impunha à nossa admiração uma organização que não seria de esperar nessa vasta região impraticável. Transitam anualmente centenas de milhares de fardos, transportados pelos iaques; percorrem-se muitos milhares de quilômetros; e os serviços sempre funcionam: sempre há animais descansados, possibilidades de hospedagem.

Pelo que parece, o movimento é intenso; temos de preparar-nos para uma permanência mais prolongada. Não dispondo já dum iaque, não podemos viajar sozinhos. Aproveitamos o dia para um passeio. Não longe de Samsar, nuvens de vapor esbranquiçado sobem ao céu: aqui também, há fontes termais. Elas nos atraem. Caminhamos na sua direção, com toda a calma, através de terrenos incultos, indícios de que a população se transferiu inteiramente da agricultura para o comércio e o serviço de transportes.

As fontes termais se nos revelam como uma maravilha singular da natureza: espraia-se, diante de nós, um verdadeiro lago de águas aparentemente negras que, fluindo para um sangradouro, são no entanto perfeitamente límpidas. Pudemos escolher a temperatura do nosso banho termal. Entramos no regato, onde ela era mais agradável e fomos descendo para o lago. A água aquecia cada vez mais. Aufschnaiter desistiu primeiro. Eu resistia, porque pretendia curar a minha ciática; regalava-me na água quente. Tinha comigo o último sabonete trazido de Kyirong; pousei-o ao alcance da mão, na margem, a menos dum metro de distância. Uma boa ensaboadura devia constituir o clímax do banho. Infelizmente, eu não notara que uma gralha me observara com atenção, o tempo todo. De súbito, ela deu o bote fulmíneo... e lá se foi o meu tesouro! Corri, praguejando, para a margem; mas o ar frio obrigou-me a pular dentro d'água, rilhando os dentes. As gralhas são, no Tibete, tão ladras como as pegas na nossa terra. Já me sucedera um caso análogo em Kyirong.

Na volta, vimos pela primeira vez um regimento tibetano; eram quinhentos soldados executando evoluções. De ordinário, a população não se entusiasma pelas manobras, porque os soldados têm o direito de fazer requisições. Estavam aquartelados em tendas dispostas em fila;' não há, portanto, aboletamento propriamente dito, mas a população local tem de por à disposição do regimento todos os animais de carga e até os cavalos de sela.

 

 

UM GRILHETA, COMPANHEIRO DE QUARTO

 

Na hospedaria, aguardava-nos uma surpresa: um companheiro de quarto, com grilhetas soldadas nos tornozelos, o que só lhe permitia dar passos muito curtos.

Sorrindo e com a máxima naturalidade, ele apresentou-se como assassino, punido em Lhasa com duzentas vergastadas e condenado a usar até ao fim da vida aqueles ferros nos pés. Sentimos um arrepio na espinha. Acaso, nessa terra nos consideravam assassinos? Mas, dentro em pouco, apuramos que no Tibete um condenado não é um pária. Socialmente, não sofre desvantagens; é admitido a participar de todas as diversões e vive de esmolas. E não vive mal. Murmura continuamente as suas rezas, não como penitência, mas para inspirar compaixão.

Espalhou-se em breve que éramos europeus, e não têm conta os curiosos que acudiam a ver-nos. Entre eles, veio também um monge jovem e simpático. Chefe dum transporte para o convento de Drebung, tinha de viajar nó dia seguinte. Informado de que tínhamos só uma carga e estávamos ansiosos de continuar a marcha, ofereceu-nos um iaque livre da sua caravana. Não exigiu que lhe mostrássemos salvo-conduto. Exatamente como pensávamos: quanto mais nos aproximássemos da capital, tanto menores seriam os obstáculos; presumia-se que, tendo viajado tão adentro no país, devíamos forçosamente estar munidos de salvo-conduto. Apesar disto, procuramos aviar-nos tanto quanto fosse possível, porque não convinha ficar muito tempo no mesmo lugar. Do contrário, poderia ocorrer a alguém a idéia de examinar os nossos papéis...

Por isto, aceitamos imediatamente a oferta do monge. Despedimo-nos, com muitos agradecimentos, do nosso "bönpo"; e partimos em densa escuridão, pouco depois da meia-noite. Atravessando a região de Yang-pa-chen, chegamos a um vale lateral que já desemboca na planície de Lhasa — o vale de Tölung, donde um cavaleiro, com um bom cavalo, pode alcançar num dia a capital.

Tão perto de Lhasa! Vibrávamos de emoção, sempre que ouvíamos pronunciar esse nome. Nas marchas penosas, nas noites glaciais, agarrávamo-nos a essa palavra, e dela hauríamos nova força. Nenhum peregrino de província remota suspirava mais do que nós por ver a cidade santa. Já então, estávamos mais perto de Lhasa do que Sven Hedin. Ele fez duas vezes, quase na mesma região, a mesma tentativa; e sempre foi detido, ainda no Chang-tang, diante dos muros do Nyentchentanglha. Nós, dois míseros peregrinos, éramos muito mais modestos do que a sua caravana. Mas, a nossa esperteza e, não menos, o nosso conhecimento da língua local, ajudavam-nos a ir adiante. Ainda tínhamos pela frente cinco dias de marcha; e não sabíamos se nos deixariam entrar na cidade.

As primeiras horas da manhã, a nossa caravana já estava chegando ao povoado vizinho, onde permaneceria o dia todo — uma perspectiva desagradável para nós. Dois nobres funcionários distritais residiam em Detschen; não cairiam no blefe dos nossos velhos documentos...

O nosso amigo monge ainda não aparecera; passara talvez uma noite sossegada; estava provavelmente cuidando do cavalo. Chegamo-nos cautelosamente ao acampamento militar; e ali tivemos uma sorte incrível: conhecemos um jovem tenente, muito prestativo, que nos ofereceu o seu alojamento, porque partia ao meio-dia. Andara cobrando nos arredores o resgate com que os recrutas convocados se isentam, no Tibete, do serviço militar. Arriscamos uma pergunta: não consentiria ele em acrescentar a carga do nosso iaque ao seu carregamento de dinheiro? Pagaríamos o que fosse preciso. O militar aceitou imediatamente; horas depois, com o coração aliviado, deixávamos a aldeia, atrás da caravana.

Alívio prematuro, o nosso! Custeávamos as últimas casas, quando alguém nos chamou. Voltamo-nos; e vimo-nos cara a cara com um homem de aparência distinta e ricas vestes de seda: o inconfundível "bönpo"! Perguntou-nos muito cortesmente, mas em tom categórico, donde vínhamos e aonde íamos. Já agora só nos podia salvar a presença de espírito: tínhamos saído para uma breve excursão; não trazíamos os papéis conosco. Trataríamos de mandar buscá-los, para dar satisfação a Sua Excelência. Este pequeno expediente serviu-nos; graças a ele, conseguimos safar-nos, sem impedimentos.

Foi então um passeio ao encontro da primavera. Os prados, cuidadosamente aparados, reverdeciam mais e mais, à medida que avançávamos. Os pássaros gorjeavam nas plantações; já sentíamos calor, nas nossas peles. E ainda estávamos em meado de janeiro!

A três dias de Lhasa! Até lá, ainda aconteceria alguma coisa? De dia, Aufschnaiter e eu andávamos sozinhos; à noite, tornávamos a encontrar o tenente e a sua reduzida caravana. Nos transportes, com que nos cruzávamos na região, havia toda sorte de animais: burros, cavalos, vacas, bois. Iaques, só nas caravanas de passagem, porque os camponeses não dispunham de terreno suficiente, para manter rebanhos destes animais. Por toda parte, víamos gente ocupada em canalizar água para os campos, já que não tardariam os temporais da primavera. O precioso humo não devia secar; do contrário, os ventos o varreriam. O trabalho de torná-lo produtivo exigira o espaço de gerações e irrigação contínua. Ali a neve é rara; não se formam capas de neve sobre a semeadura invernal. Só por'isso, os lavradores podem contar com colheitas. A altitude desempenha naturalmente um papel de relevo na agricultura. Ainda se encontram plantios, aos cinco mil metros; mas ali só dá a cevada e os lavradores são semi-nômades. Por outro lado, há sítios onde a cevada amadurece em dezesseis dias para a aceifa. O vale de Tölung, que acabávamos de atravessar, ficava a quatro mil metros de altitude; medravam ali os nabos, as batatas, a mostarda.

Passamos a noite da véspera da chegada a Lhasa numa casa de camponeses. Não era tão bonita como as construções estilizadas de madeira, em Kyirong. Nestas paragens, a madeira é rara. Nenhum móvel, salvo mesinhas e cadeiras; as casas, feitas de barro, ou de tijolos de erva, não têm janelas; recebem luz pelas portas, ou pela abertura do telhado, por onde se esvai a fumaça.

Os nossos hospedeiros pertenciam às famílias abastadas da região. Viviam, como em regime feudal, administrando só os bens do senhor; e dependia deles fazer a terra dar para os impostos e para algumas economias. Dos três filhos, dois trabalhavam na lavoura; o terceiro destinava-se ao convento. A família possuía vacas, cavalos, algumas galinhas. E porcos, que víamos pela primeira vez no Tibete. Aparentemente, porém, não se atribuía grande importância à sua criação. Não lhes davam forragem; e eles viviam de restos e do que escavavam nos campos.

Nessa casa de campônios, passamos uma noite agitada. O dia seguinte traria a grande decisão. Examinávamos continuamente as nossas esperanças sob todos os aspectos; e as nossas conversações versavam sobre um tema único: Lhasa! Podíamos dar-nos por satisfeitos, com os resultados colhidos até aí. Todavia, não estava por vir o principal? Ainda que pudéssemos entrar clandestinamente na cidade, conseguiríamos manter-nos ali? Já não tínhamos dinheiro. De que viveríamos? E a nossa aparência! Lembrava mais os salteadores do Chang-tang do que homens europeus. Sobre as calças de lã, sarapintadas de nódoas, e a camisa rasgada, usávamos peles ensebadas de carneiro que revelavam de longe os maus tratos suportados. O nosso calçado estava reduzido a farrapos. Aufschnaiter trazia nos pés os restos d uns sapatos militares indianos; mas, para dizer tudo, estávamos ambos mais descalços do que calçados. Não; o nosso aspecto não nos recomendava. E havia mais, o mais sensacional: a barba. À semelhança dos mongóis, os tibetanos são quase imberbes. Nós trazíamos na cara uma floresta escabelada e hirsuta. Por isto nos confundiam freqüentemente com kazaques, ou membros duma tribo da Ásia Central que, durante a guerra emigrara em bandos, da Rússia soviética para o Tibete, arrastando após si a família e os rebanhos, saqueando de passagem a região. O exército tibetano tivera bastante dificuldade em recambiá-los para a índia. Os kazaques têm a pele e os olhos em geral claros e a barba normal. Admira que nos tomassem por eles e nos negassem pousada em muitas tendas?

Não havia possibilidade de mudar o nosso aspecto, de nos "aformosearmos" para Lhasa. Embora tivéssemos dinheiro, não havia roupas para comprar. Mas escapáramos a tantos perigos, que nada mais nos amedrontava. Desde Nang-tse — assim se chamava a aldeia — decidimos entregar-nos à nossa sorte. O tenente viera conosco até Lhasa. Combinamos então, com o nosso hospedeiro, o transporte da nossa carga até à aldeia vizinha. Ele pôs à nossa disposição uma vaca e um servente. Depois de pagarmos o preço ajustado, restaram-nos uma rúpia e meia e uma moeda de ouro. Se não conseguíssemos transportar fosse como fosse a nossa bagagem, abandonaríamos tudo. Excetuados os nossos Diários e apontamentos, não havia nela nada de valor. A partir daquele instante, nada mais nos deteria!

 

 

BRILHAM OS TELHADOS DE OURO DO POTALA

 

Foi no dia 15 de janeiro de 1946 que partimos para a última etapa. Passamos da região de Tölung ao largo vale de Kyitschu. Contornamos uma curva... e, ao longe, lampejaram os telhados de ouro do Potala! A sede invernal do Dalai Lama, o símbolo famoso de Lhasa! Esse instante compensou muitas coisas. A partir de Kyirong, percorrêramos quase mil quilômetros, com a imagem da cidade lendária diante dos olhos. Marcháramos setenta dias, entremeados apenas de cinco dias de descanso, o que dava a média diária de quinze quilômetros. Só a travessia do Chang-tang exigira quarenta e cinco dias, com a sua azáfama dolorosa, a luta com a fome, o frio e os perigos. Que importava tudo isso, à vista daqueles pináculos de ouro! A angústia, a fadiga, tudo estava esquecido. Mais dez quilômetros, e alcançaríamos a meta grandiosa.

Sentamo-nos ao lado dum dos montes de pedras que os peregrinos levantaram no ponto donde se avista pela primeira vez a cidade santa. O nosso arrieiro rezou as suas orações, porque Lhasa é para os tibetanos o que é Roma para os fiéis católicos. Pouco depois, chegamos a Schingdonka, a última aldeia antes de Lhasa. O nosso vaqueiro negou-se a ir mais longe. Quanto a nós, nada mais nos poderia demover. Procuramos afoitamente o "bönpo" e apresentamo-nos como a vanguarda duma personalidade ilustre e poderosa; precisávamos estar quanto antes em Lhasa, para lhe preparar os aposentos. O "bönpo" caiu prontamente na esparrela e deu-nos logo um burro e um almocreve. Ainda anos depois, quando se divulgou, esta anedota suscitava hilaridade nas reuniões elegantes, até entre os ministros. Os tibetanos orgulham-se sumamente do sistema com que mantêm ao largo os estrangeiros. O modo como furáramos o bloqueio era único; e, além de nos granjear apreço, agradou pelo seu cunho humorístico. Isto sagrava-nos vencedores, porque a gente de Lhasa gosta de rir. Percorremos os últimos dez quilômetros com um rio de peregrinos e de caravanas. Nos pontos principais do percurso, havia tendas onde se vendiam iguarias de fazer vir água à boca: doces, pãezinhos brancos com manteiga... Mas nós não tínhamos dinheiro; a última rúpia e meia pertencia ao almocreve.

E já íamos reconhecendo na cidade verdadeira, a cidade que tantas vezes admiráramos nos livros, sem sonhar sequer que lá estaríamos um dia. Aquele monte devia ser o Tchagpori, o monte onde se ergue uma das duas famosas escolas de medicina. E isso, diante de nós, era sem dúvida Drebung, o maior convento do mundo, onde vivem cerca de dez mil monges — uma verdadeira cidade, com muitas casas de pedra e centenas de pináculos dourados, encimando os locais do culto. Estávamos ainda a dois quilômetros do claustro e, pelo espaço duma hora, o tivemos no nosso campo visual. Mais abaixo, viam-se os terraços do mosteiro de Netchung que abriga, há séculos, o maior mistério do Tibete. Tem ali a sua sede a manifestação dum deus protetor budista e o seu oráculo secreto, que dirige o destino do Estado e ao qual, antes de todo grande acontecimento, o governo vem pedir conselho.

Mais oito quilômetros... e, a cada passo, novas sensações. Ali estão vastas pastagens, numa moldura verdejante de salgueiros: o sítio predileto dos cavalos do Dalai Lama.

E agora, uma extensa muralha de pedra acompanha quase uma hora o nosso caminho. Informam-nos de que, atrás dela está o palácio do rei-deus. Chegamos depois à sede da representação diplomática britânica que se esconde na periferia da cidade, além duma cortina de salgueiros. Pensamos seriamente um instante em nos dirigir aos ingleses. Era demasiado grande a nossa saudade da civilização, a ânsia de tornar a falar a europeus. Não esquecêramos, porém, o campo de internamento; e, no Tibete, talvez fosse mais prudente pedir asilo aos tibetanos.

Estranhávamos que ninguém nos detivesse. A verdade é que ninguém se preocupava conosco. Avistávamos, de quando em quando, atrás de nós, um cavaleiro trajado com luxo, montando um belo ginete ricamente ajaezado, diferente dos cavalinhos do Tibete ocidental. Mais tarde, tivemos a explicação do mistério: em Lhasa ninguém é suspeito, embora seja como nós reconhecidamente europeu; não se concebe que alguém possa chegar tão longe, sem salvo-conduto.

O Potala avultava diante de nós, mais e mais alteroso. Ainda não víamos a capital; ela se espraia, escondida, além das alturas onde se erguem a Potala e a Escola de Medicina. De repente... Um portal, encimado de três "tshortens", ligando os dois montes, forma a entrada da cidade. A nossa tensão chega ao auge. É agora que tudo vai decidir-se! Quase todo livro sobre Lhasa refere que ali há postos de vigilância da guarda da cidade santa. Avançamos, com o coração aos saltos. Nada! Alguns mendigos, que estendem as mãos às esmolas; nem soldados, nem fiscalização. Insinuando-nos num grupo de transeuntes, transpomos o portal e entramos numa larga avenida. O almocreve explica-nos: aquele casario, à nossa esquerda, é apenas um arrabalde de Lhasa. Continuamos entre terrenos baldios, aproximando-nos cada vez mais do centro, sem trocar uma palavra, limitando-nos a olhar, a olhar, mal acreditando que estamos na "cidade vedada". Já hoje não consigo encontrar palavras adequadas para exprimir o que então vi e senti. Estávamos subjugados. Exaustos de fadiga, com os sentidos tensos até à hipersensibilidade, éramos incapazes de analisar as impressões que nos assaltavam de todos os lados.

 

 

DOIS VAGABUNDOS PEDEM CASA E COMIDA

 

Estávamos, nesse momento, diante da ponte de teto de turquesa e víamos pela primeira vez o pináculo dourado da catedral de Lhasa. O sol declinava lentamente, envolvendo o quadro numa luz irreal. O ar gélido da noite induziu-nos a procurar pousada. Em Lhasa, porém, não era tão fácil entrar numa casa, como se entrava em Chang-tang, numa tenda. Talvez fôssemos denunciados imediatamente. Ali não havia estalagens nem postos Tasam. Na primeira casa, topamos com um criado mudo que não nos deu atenção. Tentamos no prédio seguinte. Aí foi uma criada que chamou em gritos a senhora da casa; e esta nos rogou, de mãos juntas, que nos retirássemos; se nos hospedasse, ela seria fustigada. Embora não nos parecessem tão rigorosas as instruções governamentais, não quisemos expor a mulher a tal vexame. Fomos adiante. Vagueando em várias vielas, chegamos quase ao outro extremo da cidade. Deparou-se-nos um prédio — maior e mais elegante do que as construções que víramos até aí — em cujo pátio havia até alpendre para os cavalos. Cobrando ânimo, entramos de arrancada. Ali também havia lacaios; e tentaram rechaçar-nos a poder de berros e de injúrias. Nós, porém, impassíveis, descarregávamos o nosso jumento. O almocreve, desconfiado, tinha pressa; farejara, havia muito, uma irregularidade. Recebeu o seu dinheiro e foi-se, evidentemente aliviado.

A criadagem compenetrava-se, aflita, da nossa resolução de nos instalar. Gemiam, pediam, imploravam; como os castigaria o seu "bönpo", quando chegasse e visse aquela barbaridade... Nós íamos percebendo que não nos sairíamos bem de coagi-los a dar-nos hospitalidade à força; mas íamos ficando. Acudiam continuamente novos curiosos, atraídos pela vozearia; a cena lembrava quase a minha despedida de Kyirong. Mas permanecíamos surdos a tudo. Mortos de cansaço, esfomeados, sentamo-nos no chão, ao lado da nossa mísera trouxa. Sucedesse o que sucedesse, tudo nos era indiferente. Só queríamos sentar-nos... descansar... dormir.

A gritaria furiosa cessou, quando aquela gente viu os nossos pés inchados e feridos. A compaixão acordou, naquelas, criaturas sinceras e generosas. Deu o sinal uma mulher — a mesma que nos exortara a deixá-la em paz. Trazia um bule de chá com manteiga. As outras todas imitaram-lhe o exemplo, arranjando tsampa, comestíveis, até material para o fogo. Todos queriam reparar o acolhimento pouco hospitaleiro. E nós, mortos de fome, atiramo-nos à comida, esquecendo tudo o mais.

De súbito, alguém nos falou, num inglês perfeito. Levantamos os olhos e, embora já estivesse anoitecendo, reconhecemos, no tibetano ricamente trajado, que nos dirigia a palavra, um membro das classes mais elevadas do país. Surpresos e contentes, perguntamos-lhe se não era um dos quatro filhos da nobreza tibetana que haviam estudado em Rugby. "Não — respondeu ele — mas passei muitos anos na índia". Contamos-lhe brevemente a nossa história: éramos alemães e desejávamos uma permissão de estada. Ele refletiu um instante e explicou que, sem o consentimento do Conselho local, nem nos poderia ter na sua casa. Mas saiu imediatamente, à procura da licença.

As demais pessoas presentes cochichavam entre si, em torno dele. Tinham-lhe dado respeitosamente passagem. Quando o viram sair, informaram-nos de que esse senhor era um "bönpo" de alta categoria, administrador da central elétrica. Ainda não ousávamos por excessivas esperanças nas suas promessas; começamos a preparar-nos para passar a noite. Enquanto conversávamos ao pé do fogo, com os curiosos, que iam e vinham continuamente, os criados pediram-nos que os acompanhássemos. O senhor Thangme, o "chefe da eletricidade", convidava-nos a irmos à sua casa. Os seus servos o chamavam respeitosamente "Kungö", isto é, "Alteza". Tomamos nota, para também o tratarmos assim.

Thangme e a sua jovem esposa receberam-nos cordialmente no seu lar. Cinco crianças, em torno, miravam-nos boquiabertas, como olhariam um fenômeno. O "Kungö" tinha uma boa notícia para nós. O Conselho permitira-lhe acolher-nos por uma noite; quanto ao mais, naturalmente, devia ser submetido ao Gabinete. Ainda assim, não havia motivo para nos preocuparmos. Estávamos em Lhasa e uma família da nobreza hospedava-nos na sua residência. Já nos preparavam um quarto, um verdadeiro quarto, limpo, arrumado. Uma pequena estufa de ferro espalhava o seu calor no ambiente. Fazia sete anos que não víamos uma estufa! Adejava no ar um aroma de zimbro — um grande luxo, pois o zimbro tem de ser trazido a Lhasa, em semanas de marcha, pelos iaques de carga. Mal nos atrevíamos a sentar os nossos andrajos, nas cadeiras estofadas com tapeçarias. Serviram-nos uma suculenta ceia chinesa e nós, totalmente aturdidos, começamos a comer. Os presentes, reunidos à nossa roda, comentavam as nossas façanhas. Custava-lhes crer que tivéssemos passado um inverno no Chang-tang, que viéssemos do Nyentschenthanglha. O nosso conhecimento do idioma tibetano despertava grande admiração. Mas como nos sentíamos mesquinhos e feios, naquele quadro de elegância! Os nossos objetos de uso, arrastados anos a fio a toda parte, como o bem mais precioso, perdiam de repente o brilho, todo o valor; e, de bom grado, nos desfaríamos deles.

Caímos finalmente na cama, estonteados, mortos de cansaço. Nem por isso conseguimos adormecer. Muitas noites passáramos, deitados na terra dura, protegidos apenas pela nossa pele de carneiro e por um cobertor esgarçado contra o frio mais álgido! Aí estávamos de novo numa cama fofa, num quarto aquecido. O corpo não se adaptava tão prontamente; as idéias giravam-nos na cabeça, como roda de moinho. Tudo se sobrepunha, penetrava em nós. O campo de internamente! Fazia vinte e um meses que o abandonáramos. Quantas coisas se haviam passado nesses meses! E os nossos camaradas estariam vivendo a mesma vida monótona? Embora a guerra tivesse terminado desde muito tempo, eles ainda não estavam livres. Livres... E nós? Estaríamos livres finalmente?

Já antes de acordarmos direito, havia um criado com chá e bolachas, diante da nossa cama. Pudemos barbear-nos, lavar-nos com água quente. Já parecíamos mais civilizados. O que nos aborrecia eram as nossas cabeleiras. Chamou-se um muçulmano, reputado o melhor cabeleireiro da cidade, e ele nos tosou as jubas. A operação não nos restituiu um ar muito europeu; ainda assim fomos muito admirados. Os tibetanos desconheciam o corte dos cabelos. Usam a cabeça raspada, ou cabelos trançados em rabicho.

Tornamos a ver Thangme só ao meio-dia. Ele vinha muito bem humorado, porque estivera no Ministério do Exterior e tinha boas novas para nós. Não seríamos entregues aos ingleses! Ficaríamos provisoriamente em Lhasa; só nos pediam o favor de não sair da casa do nosso hospedeiro, enquanto o regente do Tibete, que se encontrava justamente para um período de meditação em Taglung Tra, não reassumisse o seu posto. Deram-nos a entender que se tratava de medida de prudência, para evitar incidentes com certos monges fanáticos. O governo punha-nos à disposição alimentação e roupas novas.

Estávamos radiantes. Depois dos meses passados em palmilhar penosamente os caminhos, alguns dias de descanso eram justamente o que nos faltava. Atiramo-nos, com entusiasmo, a um monte de jornais. As notícias, que neles colhemos, entusiasmaram-nos menos: agitações no mundo inteiro; dias difíceis para a nossa pátria; alemães, prisioneiros de guerra, em trabalhos forçados, na Inglaterra e na França...

No mesmo dia, visitou-nos um "bönpo" do conselho municipal, acompanhado de seis policiais, pouco asseados e pouco adequados para inspirar confiança. Contudo, em tom extremamente cortês, ele pediu-nos apenas licença para revistar a nossa bagagem. Surpreendeu-nos o trabalho exato das autoridades: o "bönpo" tinha na mão um relatório minucioso de Kyirong e conferia as datas do nosso roteiro. Arriscamos uma pergunta: os "bönpos", em cujos distritos passáramos, seriam punidos realmente? "O caso está sendo examinado pelo Gabinete" — respondeu ele, pensativo — "E, desde já, os "bönpos" podem contar com um castigo..." Essa resposta nos entristeceu profundamente. Para alegrar o nosso interlocutor, contamos-lhe de que natureza haviam sido os encontros e quantas vezes tínhamos mentido. Foi a nossa vez de rir, quando ele nos confessou que, na véspera à noite, chegara a temer uma invasão alemã em Lhasa. Com efeito, as pessoas a cujas portas batêramos, pedindo pousada, haviam corrido imediatamente ao conselho municipal. Tinha-se a impressão de que tropas alemãs invadiam a cidade.

 

 

O ASSUNTO DO DIA EM LHASA

 

Fosse como fosse, éramos o assunto do dia em Lhasa. Todos queriam ver-nos; todos faziam questão de ouvir, com os seus ouvidos, as nossas aventuras. E, como estávamos inibidos de sair, começaram as visitas. A esposa de Thagme azafamava-se, servindo chá, na sua melhor porcelana. Nós éramos iniciados na cerimônia do chá para as visitas. O valor e a beleza do aparelho de chá, valem por uma homenagem ao hóspede. Consta esse aparelho dum suporte, não raro de ouro ou de prata, no qual se colocam as taças de porcelana e que têm uma tampa, terminada em ponta, do mesmo material que os pires. Tive freqüentemente ensejo de ver aparelhos chineses, verdadeiras maravilhas mais do que centenárias.

A casa dos Thangmes passou a receber diariamente visitas importantes. Ele era um nobre de quinta categoria e, como os tibetanos se atem muito à etiqueta, até aí só recebia visitantes da sua classe, ou de nível inferior. Mas, desde a nossa chegada, as personalidades das camadas superiores eram naturalmente as mais empenhadas em nos conhecer. Veio, em primeiro lugar, o filho do conhecido e famoso ministro Tsarong, com a esposa. Nós lêramos muito a respeito de seu pai. De origem humilde, tornara-se valido do décimo terceiro Dalai Lama, ocupara altos cargos e, graças à sua capacidade e inteligência, adquirira grande riqueza. Sendo o Dalai Lama obrigado, há quarenta anos, a refugiar-se na índia, para escapar aos chineses, Tsarong prestara-lhe valiosos serviços. Fora muitos anos membro do Conselho de Ministros e, como primeiro valido tinha praticamente o poder dum regente. Mais tarde, um novo favorito, Khünpela, suplantara-o nessa posição. Ficavam-lhe, porém, asseguradas a classe e a dignidade: nobreza de terceira categoria e a direção da Casa da Moeda.

Seu filho, de vinte e seis anos de idade, educara-se na índia e falava correntemente inglês. Muito presunçoso, usava nos cabelos o amuleto de ouro que o distinguia como filho de ministro. Mas nem sempre a classe depende da origem duma pessoa; pode também ser adquirida por merecimento.

Os criados serviam o chá e, em breve, se estabeleceu uma conversação animada. Era incrivelmente enciclopédica a orientação do jovem tibetano. Interessava-o particularmente a técnica. Interrogou-nos sobre as conquistas mais recentes e contou-nos que ele próprio construíra o seu aparelho de rádio e instalara no telhado da sua casa um gerador movido pelo vento. Estávamos em meio duma discussão especializada, quando a esposa do nosso visitante nos interrompeu, sorrindo, para fazer por seu turno algumas perguntas. Yangtchenla era uma das beldades de Lhasa; muito elegante, requintada, não lhe eram decerto estranhos o pó, o ruge, o batom. Desconhecia a timidez; bem o demonstrou, no desembaraço com que nos interrogou em tibetano, com gestos vivos e gritinhos de surpresa, rindo-se com gosto, quando lhe contamos que lográramos os "bönpos", com papéis velhos, sem nenhum valor. Admirou muito o nosso tibetano; mas com o sorrisinho divertido que os mais dignos dos nossos visitantes nem sempre conseguiam reprimir. Mais tarde, tivemos a explicação disto: nós falávamos o mais rude de quantos dialetos tibetanos de nômades e camponeses é possível imaginar — mais ou menos como soaria a fala dum aldeão do vale mais remoto dos Alpes, se caísse num salão de Viena e ali soltasse o verbo. Divertiam-se à nossa custa; eram, porém, demasiado corteses, para nos corrigir.

Quando o jovem par se retirou finalmente, éramos amigos. Apreciamos muito os seus presentes: roupa branca, pulôveres, cigarros. Pediram-nos que disséssemos francamente, se precisávamos dalguma coisa. O filho do ministro prometeu empenhar-se por nós; depois, fez-nos chegar um recado do pai; este convidava-nos a ir morar na sua casa, quando a nossa causa estivesse decidida favoravelmente. E tudo isto era muito confortador.

 

 

O "Potala", sede do governo tibetano

 

 

Residência da família do Dalai Lama. O Autor ocupou cm Lhasa um prédio muito semelhante a este, embora um pouco menor.

 

O fiel camarada do Autor, Peter Aufschnaiter, com a irmã do Dalai Lama.

 

Continuavam as visitas. A seguinte foi a do irmão do membro do Gabinete Surkhang, general do exército tibetano. Trazia um tema de conversação que o interessava sumamente: desejava saber tudo o que fosse possível, a respeito de Rommel. Falou-nos com entusiasmo da sua admiração pelo marechal; disse que acompanhara, com o seu magro conhecimento do idioma inglês, todas as notícias publicadas na imprensa, sobre o comandante alemão. Sob este aspecto, Lhasa não era isolada. Vinham, através da índia, jornais de todo o mundo, havendo até na cidade alguns assinantes da "Life" ilustrada. Os diários hindus chegavam regularmente, embora cora uma semana de atraso.

O sarilho das visitas prosseguiu: religiosos funcionários, muito amáveis, que nos mimoseavam com presentes — muitos deles foram, mais tarde, os meus melhores amigos. Apareceram depois um membro da representação diplomática chinesa e um funcionário siquinense da representação britânica em Lhasa.

Honra especial constituiu a visita do comandante do exército tibetano, Künsangtse, que fez questão de nos ver, antes de partir como chefe duma delegação, em visita de boa vizinhança à China e à índia. Era o irmão mais novo do ministro do Exterior, dotado de extraordinária inteligência e muito bem informado. Caiu-nos um peso do coração, quando ele nos garantiu que o nosso pedido de permissão de estada receberia resposta positiva. A pouco e pouco, nos íamos aclimatando. Entre nós e o casal Thangme estabelecera-se uma amizade sincera. Éramos tratados com carinho, bem nutridos; e todos se alegravam do nosso apetite. Mas — provavelmente como reação às muitas fadigas e privações — Aufschnaiter e eu éramos acometidos de toda sorte de achaques: o meu camarada teve um acesso de febre; e a minha ciática fazia-me sofrer cada vez mais.

Thangme chamou o médico da representação diplomática chinesa. Ele estudara em Berlim e Bordéus; examinou-nos pelos métodos europeus e deu-nos alguns medicamentos. Naturalmente a conversação versou também sobre política; e o médico profetizou que, nos próximos vinte anos, todo o poder do mundo se enfeixaria nas mãos Ha América, da Rússia e da China...

 

 

OS DOIS POBRES FORAGIDOS SÃO MIMADOS

 

Provavelmente nenhum país do mundo se interessou tanto por dois pobres foragidos, como o Tibete. Chegou-nos enfim o pacote de roupas do governo! Ainda em cima, com desculpas pela demora, porque as nossas medidas excediam as da média doa tibetanos e não se encontrara pronto nada que nos pudesse servir. A roupa, o calçado, haviam sido feitos por medida. E nós nos alegramos como crianças. Finalmente íamos descartar-nos dos nossos andrajos! Provamos tudo logo. Não se poderia dizer que parecia obra de grande cortador; eram, porém, trajes bem feitos e limpos, com os quais não nos envergonharíamos de aparecer.

Dedicamos o tempo, que nos sobrava entre as muitas visitas, aos nossos Diários e apontamentos. Já então éramos amigos dos pequenos Thangmes. Em geral, quando nos levantávamos, eles já tinham saído, porque freqüentavam escolas privadas onde, como nos nossos semi-internatos, permaneciam o dia todo sob a vigilância dos mestres. À noite, os meninos mostravam-nos os seus exercícios que me interessavam particularmente, porque eu mesmo me empenhava em aprender a escrita tibetana. Aufschnaiter, que desde muito tempo se ocupava com isso, ensinara-me alguma coisa, nas nossas caminhadas. Passaram-se, contudo, vários anos, antes que fosse possível escrever mais ou menos correntemente em tibetano. A dificuldade não está propriamente em aprender as letras; está na sua disposição e combinação em sílabas. Muitos signos derivam de manuscritos indianos milenares; por isto a escrita tibetana assemelha-se mais à escrita hindu do que à caligrafia chinesa. Escreve-se num papel apergaminhado, belo e resistente, com tinta chinesa. Em Lhasa, só se fabrica uma qualidade inferior. Existem, porém, no Tibete, fábricas de papel famosas, especialmente nas regiões onde abunda o zimbro. Além disto, importam-se anualmente milhares de fardos de papel, trazido pelos iaques, do Nepal e do Bhutan. Este papel também é produzido pelos processos usados no Tibete. Mais tarde, assisti freqüentemente a esse trabalho, em Lhasa, à margem do Kyitchu. Estende-se uma papa rala de papel em panos de linho esticados em bastidores. Exposta ao ar seco do planalto, a papa endurece em poucas horas e o papel pronto é retirado da forma. Naturalmente esse papel não é bem liso e, não raro, os adultos têm dificuldade em escrever nele. Às crianças, para os exercícios escolares, dão-se de preferência tabuinhas, onde se escreve com tinta diluída e pena de bambu. Essa escrita apaga-se com um pano seco. Os filhos de Thangme não se saíam melhor do que os nossos principiantes: muito a miúdo, tinham de apagar vinte vezes o exercício, até este lhes sair bem.

A bem dizer já éramos da família. A senhora Thangme dispensava-nos todas as atenções; trocávamos idéias sobre todos os assuntos possíveis e ela se envaidecia, quando lhe elogiávamos o gosto e a bela aparência. Como toda mulher, gostava de toaletes e de enfeites; e orgulhava-se das suas preciosidades.

Um dia, deu-nos uma grande prova de confiança, convidando-nos a ir ao seu quarto, para nos mostrar as suas jóias, guardadas numa grande arca, em caixinhas, ou em estojos de seda. Que tesouro! Deixamos os olhos neles! Um suntuoso diadema de coral, turquesas e pérolas, anéis, brincos de diamante... E os minúsculos cofres-amuletos tibetanos que se trazem ao pescoço, presos a um colar de coral. Desses cofrezinhos fazem-se muitos tipos, desde os mais baratos até aos de mais fino lavor. Muitas mulheres os usam o dia inteiro, porque eles contêm um talismã; e elas acreditam que este as protege contra todo mal.

A senhora Thangme achava graça na nossa admiração. Explicou-nos que todo homem é obrigado a dar à esposa jóias correspondentes à sua categoria social. Se o seu marido fosse promovido a uma classe superior, ela ganharia logo os enfeites adequados à nova posição social. Bonita instituição! Muitas européias folgariam de ter esse privilégio. E não adianta, para isso, ter muito dinheiro. O dinheiro por si só não confere o direito de usar jóias valiosas. Naturalmente, os maridos tibetanos também se queixam das exigências das suas mulheres, porque estas — tal qual no Ocidente — só querem sobrepujar-se umas às outras. Os diademas, os cofrezinhos-amuletos, os brincos, estão ao alcance de qualquer senhora. Mas o uso depende do regulamento. Admiramos, mais tarde, jóias que valiam mais de 500.000 xelins. À classe de Thangme correspondiam jóias do valor de 175.000 xelins. Yangtchenla disse-nos que nunca saía, sem uma escolta de criados, porque os ladrões costumavam assaltar e roubar as senhoras na rua.

 

 

HOSPEDADOS NA CASA PATERNA DO DALAI LAMA

 

Entretanto, haviam-se passado oito dias. Respeitando a proibição que nos fora imposta, não saíramos de casa; conseqüentemente, ainda não conhecíamos a cidade. Que surpresa a nossa, no dia em que os criados vieram trazer-nos um convite para ir à casa paterna do Dalai Lama! E ir imediatamente! Considerando-nos ligados pela promessa de não deixar a casa, que nos hospedava, consultamos primeiro o casal. A nossa hesitação escandalizou Thangme. Nada podia ser melhor do que esse convite! Teria a precedência, se tanto, um convite do Dalai Lama, ou do regente. Ninguém poderia deter-nos, nem chamar-nos à responsabilidade. Seria, pelo contrário, falta grave esquivar-se.

Isso nos tranqüilizou. Estávamos, ainda assim, um tanto nervosos. Seria esse convite um bom sinal para o nosso destino futuro? Nesse estado de ânimo, tratamos de preparar-nos para a visita. Estreamos nesse dia o traje e o calçado com que nos presenteara o governo. Estávamos perfeitamente apresentáveis. Thangme pregou-nos às pressas, uns laços de seda branca e mostrou-nos como devíamos entregá-los nessa cerimônia. Já observáramos esse uso em Kyirong, mesmo nas camadas populares: nas visitas, ao expor um pedido a um superior, nas grandes festas, doam-se laços brancos que são encontrados em diferentes feitios, dependendo a sua qualidade da classe do doador.

Saímos à rua, pela primeira vez, depois do nosso ingresso sensacional. Não ficava muito longe a casa dos pais do Dalai Lama. Em breve, chegávamos a um portal imponente, ao lado do qual já nos aguardava, diante da sua guarita, o porteiro que nos acolheu com uma respeitosa reverência.

Seguimos então, através do vasto jardim, por entre canteiros de hortaliças e belos grupos de salgueiros, até ao palácio. Subimos ao segundo andar. Abriu-se a porta duma sala espaçosa e clara. Novas mesuras: estávamos em presença da mãe do rei-deus, majestosa senhora de aspecto aristocrático e digno, sentada num pequeno trono, numa roda de servos. Não nos contagiara decerto o respeitoso temor que os tibetanos sentem pela "Mãe Divina"; ainda assim, nos empolgou a solenidade do instante.

Mas a Mãe Divina já nos acolhia com um sorriso cordial, visivelmente satisfeita, enquanto nos curvávamos para lhe entregar os laços brancos, de braços estendidos, como nos ensinara Thangme. Ela aceitou-os, passou-os aos criados; e foi com uma expressão feliz que, contrariando o uso tibetano, nos estendeu a mão.

Nisso, entrou o pai do Dalai Lama, homem idoso e empertigado. Novas reverências, entrega cerimoniosa de laços brancos; e ele também nos apertou, sem constrangimento, a mão. Como, de quando em quando, lhe apareciam europeus em casa, o velho senhor se familiarizara com certos usos europeus; e não escondia que se orgulhava disso... Sentamo-nos todos à roda do chá. Os criados iam e vinham, servindo primeiro o velho, depois a dama, nós por último. O chá surpreendeu-nos, pelo seu aroma; tratava-se duma qualidade nova e dum método de preparação diferente do que se usa no Tibete. O fato interessou-nos; fizemos algumas perguntas e a conversação continuou em tom muito cordial. O casal falou-nos da sua terra natal: Amdo, onde tinham sido modestos camponeses, donos duma pequena lavoura, antes que o seu filho mais moço fosse declarado encarnação do Dalai Lama... Amdo é já na China, na província de Ching-hai; mas os seus habitantes são quase exclusivamente tibetanos. Tinham trazido a Lhasa, para a sua nova vida, a bebida da sua terra. Em Amdo, o chá não se prepara com manteiga; os seus ingredientes são leite e umas pitadas de sal. Outra coisa lembrava, nessas duas criaturas lhanas uma origem diferente: o dialeto. Ambos falavam mal o tibetano das províncias centrais. O irmão do Dalai Lama, um adolescente de quatorze anos, servia-nos de intérprete; viera em pequeno para Lhasa e depressa aprendera o tibetano puro; só com os pais falava o dialeto de Amdo.

A conversação continuava e nós observávamos os dois velhos. Ambos causavam ótima impressão. A sua origem modesta transparecia na sua naturalidade simpática; a sua atitude, o seu procedimento traíam uma nobreza inata. Grande fora o salto, da sua pequena casa rústica, numa província longínqua, àquela posição ducal em Lhasa! Pertenciam-lhes o palácio, onde moravam, e vastas propriedades. E, aparentemente, ambos haviam superado, sem inconvenientes, a mudança súbita das suas condições de existência. Na sua nobre simplicidade, a Mãe Divina dava a impressão de ser mais inteligente do que o marido; a este subira talvez um tanto à cabeça a nova glória...

E ali estava também o filho de quatorze anos, Lobsang Samten. Vivo, esperto, curioso, crivou-nos de perguntas e quis conhecer todos os pormenores da nossa aventura, alegando com importância que o seu irmão-deus o encarregara de lhe referir tudo exatamente. O Dalai Lama interessava-se por nós! Entusiasmados por essa notícias, quisemos saber mais sobre ele. Aprendemos assim que o nome "Dalai Lama" não era usado pelos tibetanos. De origem mongólica, significava "largo oceano". Ao Dalai Lama dava-se comumente o nome de "Gyalpo Rimpotche" ou, mais ou menos, "rei precioso". Falando ao seu jovem rei-deus, os pais e os irmãos usavam uma fórmula mais íntima: "Kundün", cuja tradução literal é "Presente".

Os "Pais Divinos" tinham ao todo seis filhos. O mais velho, reconhecido — muito antes de se descobrir o Dalai Lama — como encarnação dum Buda, revestia-se da dignidade de Lama, no claustro de Tagtshel. Também se lhe aplicava a denominação de "Rimpotch", tratamento dado a todos os Lamas encarnados. O segundo filho, Gyalo Thündrup, freqüentava a escola, na China. Lobsang Samten destinava-se à carreira de monge-funcionário. O Dalai Lama contava então onze anos e tinha, além dos irmãos, duas irmãs. Mais tarde, a "Mãe Divina" deu à luz mais uma encarnação: o Ngari Rimpotche. Como mãe de três encarnações, era um fenômeno único, na vida budista.

Essa visita assinalou o princípio dum contacto cordial com essa mulher simples e inteligente — uma convivência que se prolongou até à fuga ante a invasão dos chineses vermelhos. A nossa amizade nada tinha a ver com a adoração supra-sensível de que vivia cercada a Mãe Divina. Todavia, embora considere com certo cepticismo todas as coisas metafísicas, eu não conseguia furtar-me ao poder da personalidade e da fé, que se irradiava dessa mulher.

Só a pouco e pouco nos compenetramos da distinção que significava para nós esse convite. Cumpre não esquecer que, em todo o Tibete, afora essa família e alguns servos pessoais da categoria de abades, ninguém tinha o direito de se dirigir ao rei-deus adolescente. E ele, no seu isolamento ultraterrestre, se interessara pessoalmente pela nossa sorte! Quando nos despedimos, pediram-nos que disséssemos o que desejávamos. Agradecemos; não queríamos ser indiscretos. Todavia, num abrir e fechar de olhos, apareceu uma fila de criados que se preparou a preceder-nos, carregando sacos de farinha e de tsampa, pacotes de manteiga, magníficos cobertores de lã. "Por desejo expresso do "Kundün" — disse a Mãe Divina, sorrindo e enfiando-nos na mão uma cédula. Tudoisto se passou de modo tão simples e natural, que nem nos sentimos envergonhados.

Com muitos agradecimentos e mesuras respeitosas, saímos da sala. Como prova particular de amizade, em nome de seus pais, Lobsang Samten tornou a deitar-nos na nuca os laços brancos, enquanto nos curvávamos.

Depois acompanhou-nos pessoalmente ao jardim; mostrou-nos os anexos, a cavalariça que abrigava soberbos animais de Siling e de Ili, orgulho de seu pai. Na conversação, perguntou se eu não o poderia instruir nalguns ramos da técnica ocidental. Essa indagação vinha ao encontro dos meus desejos. Muitas vezes me ocorrera que lecionar os jovens da nobreza seria um meio de ganhar a minha subsistência...

Carregados de presentes, acompanhados de criadagem, voltamos ao lar dos Thangmes, nas melhores disposições; já agora, acreditávamos, tudo mudaria a nosso favor.

Em casa, esperavam-nos em grande tensão. Tivemos de contar tudo, tintim por tintim; e os nossos próximos visitantes já iam sendo informados da honra que nos fora dispensada. Subíamos no conceito público!

Demos os mantimentos, que trazíamos, à gentil dona da casa, a título de pequena indenização do trabalho que lhe déramos e da quantidade de visitas que tínhamos provocado. Ela protestou energicamente: até aí, a sua casa nunca recebera visitantes tão ilustres.

E, no dia seguinte, quando vieram por seu turno os irmãos do Dalai Lama, ela escondeu-se discretamente e só reapareceu, quando a casa toda ficou pronta para receber a bênção do jovem Lama. O "Rimpotche" de vinte e cinco anos viera do seu claustro, para nos ver! Na sua pessoa, conhecemos pela primeira vez um Lama encarnado. Costuma-se dar o nome de Lamas a todos os monges do Tibete. Na realidade, só usam este título as encarnações e os poucos monges que se distinguiram pela vida ascética ou pela prática de ações notáveis. Todos os Lamas têm o privilégio de dar a sua bênção, e são venerados como santos.

 

 

O MINISTÉRIO DO EXTERIOR DO TIBETE CONCEDE-NOS LIBERDADE DE MOVIMENTOS

 

Dez dias após a nossa chegada, recebemos comunicação de que o Ministério do Exterior nos restituía liberdade de ação. Acompanhavam o ofício dois ricos capotes de pele de carneiro, para os quais, não fazia muito, nos tinham tomado as medidas. Neles se haviam empregado nada menos de sessenta peles. Estávamos muito contentes com o nosso sucesso, se bem que então me torturasse particularmente a minha ciática.

No mesmo dia, fomos passear na cidade e, nos nossos trajes tibetanos, não causamos excessiva estranheza. O que ainda havia para ver! O centro de Lhasa era a bem dizer uma única loja. As casas comerciais enfileiravam-se, uma ao lado da outra e, os que não dispunham dum armazém vendiam simplesmente na rua. Não havia vitrinas, no nosso sentido; toda abertura na parede era a entrada doutra loja, ainda que esta fosse um desvão. Vimos lá verdadeiras mercearias, onde se vendia de tudo, desde as agulhas de coser até às galochas; ao lado, exposições elegantes de sedas e tecidos; postos de venda especializados em comestíveis, junto de produtos importados, como o americano "Corned Beef", a manteiga da Austrália, o uísque inglês. Nada havia que não se pudesse obter, ou pelo menos encomendar. Não faltavam os cosméticos de Elisabeth Arden, os cremes Ponds, o pó, o ruge, o batom; e tinham muita saída. Os excedentes da produção americana apareciam expostos entre pernas de iaque e caixas de manteiga. Era possível mandar vir máquinas de costura, rádios, gramofones; e as últimas gravações de Bing Crosby, para o próximo serão em família. Acima de tudo, pairava a vozear, o bulício alegre da multidão variegada, regateando nas compras. Regatear é um prazer; e ali se estendia esse prazer, até ao limite possível. Ali o nômade troca um rabo de iaque, por certa quantidade de rape; na loja contígua, a dama aristocrática, acolitada por um séquito de mucamas, fica horas a revolver montes de sedas e brocados. A mulher do nômade não é menos exigente, quando procura o tecido indiano de algodão, para novas flâmulas devotas.

As classes populares usam de ordinário o "nambu" tecido de lã pura, de duração indefinida, produto de indústria caseira, com apenas vinte centímetros de largura, que é entregue às firmas comerciais em grossos fardos, nas cores branca e violeta, uma tinta na qual se empregam geralmente índigo e ruibarbo. Usam nambu branco quase exclusivamente os arrieiros, porque o tecido incolor é um símbolo de pobreza. Não se conhecendo aqui o sistema métrico, medem-se os tecidos pelo comprimento do braço, o côvado das nossas medidas antigas. Graças aos meus braços compridos, eu sempre saía lucrando com as minhas compras...

Havia depois uma grande casa de chapéus de feltro europeus; eram o "dernier cri" em Lhasa. Um elegante chapéu de feltro sempre dá um toque especial a um traje tibetano. Mas os tibetanos preferem o chapéu ocidental de abas largas, como proteção contra o sol, porque no Tibete não se faz questão de bronzear-se. Todavia, os chapéus tibetanos ricamente enfeitados, são muito mais pitorescos e condizem com o quadro colorido das ruas. O governo procurou, aliás, obstar com certos regulamentos, à entrada da moda estrangeira — não com o intuito de intervir na liberdade dos indivíduos, mas em prol da conservação do antigo e magnífico traje nacional. Conseqüentemente, as mulheres raras vezes usam chapéu; têm os seus belos toucados de três pontas. O funcionalismo também se adapta a essas prescrições. Sempre há espaço suficiente para a fantasia; e, com a combinação de estofos e de cores, pode cada um ter o seu cunho pessoal.

Além dos chapéus ocidentais, os tibetanos apreciam os guarda-sóis de todo tamanho, cor e qualidade, que servem de ordinário para resguardar do sol. E os monges de crânio raspado são os melhores clientes desse artigo, porquanto andam de cabeça descoberta, salvo nas grandes cerimônias.

Chegamos a casa, estonteados pelo excesso de impressões coloridas dum movimento ao qual, desde anos, estávamos desacostumados. Aguardava-nos ali o secretário da representação diplomática britânica, amigo de Thangme e que não nos procurava em caráter oficial. Segundo nos declarou, ouvira contar muitas coisas a nosso respeito e interessava-se particularmente pelo nosso roteiro e as nossas aventuras. Fora, com efeito, representante comercial do seu governo em Gartok e conhecia regularmente a região por onde tínhamos andado. A visita do diplomata encheu-nos de esperanças. Estimaríamos mandar notícias nossas à nossa terra onde, já desde muito tempo, devíamos estar no rol dos desaparecidos. Só a representação britânica tinha comunicação direta com o mundo. O Tibete não fazia parte da União Postal Internacional e o seu serviço dos correios era um tanto complicado. O secretário inglês aconselhou-nos a expor pessoalmente o nosso desejo; em conseqüência, no dia seguinte fomos à sede da embaixada. Nós a tínhamos visto, no dia da nossa chegada a Lhasa: ficava fora da cidade, numa espécie de parque.

Criados de libré encarnada levaram-nos primeiro ao jardim. Dava ali o seu passeio matinal Reginaldo Fox, o rádio-operador, domiciliado desde muitos anos em Lhasa, casado com uma tibetana e pai de quatro lindos filhos de cabelos louros e grandes olhos negros amendoados. Os dois mais velhos estavam num internato da índia.

Reginaldo Fox era, em Lhasa, o único possuidor dum motor capaz de inspirar confiança; além da sua atividade na embaixada britânica, vivia constantemente ocupado em carregar as rádio-baterias de Lhasa. A radiotelefonia punha-o em comunicação direta com a índia. Fox era conhecido e apreciado pela sua capacidade.

Entretanto, os lacaios nos tinham anunciado. Conduziram-nos ao primeiro andar. Numa varanda banhada de sol, estava posta a mesa, para um apetitoso primeiro almoço. Recebeu-nos ali o chefe da representação e convidou-nos a participar da sua excelente refeição inglesa. Desde quantos anos não nos sentávamos numa poltrona! Toalha na mesa; flores nos vasos; livros, uma sala acolhedora, guarnecida à européia... Nós corríamos por ela os olhos, em silêncio. Era como se estivéssemos de volta à nossa terra. O diplomata compreendeu o que sentíamos; seguia, sorrindo, a direção do nosso olhar; e, como demorávamos os olhos nos livros, ele pôs amàvelmente a sua biblioteca à nossa disposição. Travou-se a palestra. O inglês evitava, com muito tato, a pergunta que mais nos inquietava no íntimo: ainda éramos prisioneiros de guerra? Afinal, perguntamos sem rodeios se os nossos camaradas ainda estavam no acampamento. Ele não nos soube dizer ao certo; prometeu, porém, informar-se na índia. Discutiu a seguir, com toda a franqueza, a nossa situação, mostrando-se informado de todas as minúcias da nossa fuga; e deixou transparecer que, segundo ouvira do governo tibetano, em breve nós voltaríamos à índia. Não manifestamos grande entusiasmo por essa perspectiva; ele perguntou-nos então se nos interessaria trabalhar em Siquim; tinha nesse Estado boas relações e, dentro de poucos dias, viajaria para lá. Confessamos que preferiríamos ficar no Tibete. Se não fosse possível, tornaríamos de bom grado a considerar a sua proposta. Esse debate, de tamanha significação para o nosso destino, não nos tirou o apetite. Tudo nos parecia delicioso e, em breve, o bule, as travessas, os cestinhos estavam vazios. Que diria o senhor ministro da nossa sem-cerimônia? Ele, porém, limitou-se a sorrir e, sem dizer palavra mandou servir-nos outra vez. Aí, a conversação passou a versar sobre assuntos particulares; e nós nos aventuramos a exprimir o nosso desejo de enviar notícias nossas à nossa terra. O ministro prometeu intervir junto da Cruz Vermelha. Mais tarde, tivemos licença, para enviar de quando em quando uma carta, por intermédio da representação britânica. Na maioria das vezes, porém, utilizávamos o complicado serviço postal do Tibete. Enviávamos a carta em duplo sobrescrito, com selo tibetano, até à fronteira. Tínhamos ali uma pessoa que rasgava o envelope externo, apunha o selo indiano e fazia seguir a correspondência. Com um pouco de sorte, era possível receber cartas da Europa, ao termo de quatorze dias; da América, depois de vinte dias. No Tibete, o correio era transportado por estafetas que se revezavam em etapas iguais, de seis quilômetros e meio. Nos trechos mais importantes, havia pequenos locais onde se fazia a substituição. Os estafetas iam armados duma lança com guizos; a lança, em caso de necessidade, servia de arma; os guizos afugentavam de noite os animais ferozes. Os selos eram impressos em cinco modelos diferentes, na Casa da Moeda, e vendidos nas agências do Correio.

 

 

VISITAS IMPORTANTES EM LHASA

 

Estávamos muito satisfeitos com a nossa visita. Aí também, tínhamos encontrado boa vontade; e isto era de particular importância. Esperávamos que os ingleses se houvessem convencido enfim do nosso caráter de cidadãos inofensivos. Percorremos, na melhor disposição, os três quilômetros que nos separavam da cidade, parando já em Shö, o bairro dos ministérios, dos templos, da Imprensa Nacional, logo abaixo do Potala. Paramos, porque na ida certos criados, nos tinham dito, em nome do seu amo, um grande senhor, que este desejava ver-nos, quando voltássemos da legação britânica. À nossa indagação curiosa: "Quem é esse grande senhor que deseja a nossa visita?" responderam: "Um monge, alto funcionário do governo, um Trünyi Tchemo.” sto é: um dos quatro "bönpos" mais poderosos, árbitros da sorte de todos os monges do Tibete.

Entramos numa vivenda espaçosa e elegante. Notava-se em tudo um asseio rigoroso; como se diz, poder-se-ia comer, naquele pavimento de pedra bruta. Acolheu-nos afavelmente um senhor simpático, idoso, que nos ofereceu novamente chá e biscoitos. Trocadas as cortesias convencionais, travou-se a conversação que, em breve, nos revelou o interesse honroso do nosso interlocutor. Ele tinha consciência — declarou-nos — do atraso do seu país. Entendia que homens como nós poderiam ser aproveitados. Infelizmente, não se percebia isso e ele resolvera intervir a nosso favor. Que estudos tínhamos feito, que profissão exercíamos na nossa terra? Encontrávamos afinal uma pessoa que se interessava pelos nossos estudos! Despertou atenção especial Aufschnaiter, pela sua qualidade de engenheiro-agrônomo, ramo de atividade no qual o Tibete não possuía técnicos. E quantas possibilidades oferecia esse vasto país!...

No dia seguinte, fizemos a nossa visita oficial aos quatro membros do Conselho. Os quatro ministros eram os detentores do poder supremo e os responsáveis pela regência. Três deles eram dignitários leigos; o quarto, um monge-funcionário. Todos pertenciam à mais alta nobreza e viviam com luxo.

Refletíramos muito tempo em qual deles nos conviria procurar primeiro. O justo seria começar pelo monge-ministro; mas decidimos apresentar-nos informalmente ao mais moço. Surkhang tinha trinta e dois anos, era considerado o mais progressista; e nós esperávamos achar mais facilmente nele compreensão e conselho.

Surkhang veio-nos ao encontro e acolheu-nos cordialmente. Estabelecera-se entre ele e nós uma simpatia recíproca. Surpreendeu-nos o seu conhecimento perfeito de tudo o que se passava no mundo. O jovem ministro convidou-nos à sua mesa requintada; e, quando nos despedimos, levávamos a impressão de sermos velhos conhecidos.

A visita seguinte foi para o ministro Kabschöpa, homem corpulento, muito cheio de si e da sua dignidade, que nos mediu de alto a baixo. Recebeu-nos sentado indolentemente no seu trono e só depois de lhe fazermos a nossa mesura se dignou apontar duas cadeiras já preparadas. Aí, despejou sobre nós uma catadupa de frases, pigarreando no ponto de maior efeito. De repente, um servo acudiu, correndo, e apresentou-lhe uma pequena cuspideira de ouro. Foi o cúmulo da pose. Cuspir, em Lhasa, cabe perfeitamente nos hábitos sociais; em toda mesa, há uma pequena escarradeira. Agora, levá-la aos lábios era novidade.

Nesse primeiro encontro, não nos foi possível conhecer bem esse homem. Suportamos tudo passivamente, correspondemos à sua cortesia e sorvemos com correção exemplar a cerimoniosa taça de chá. Como não desconfiava que falássemos tibetano, Kabschöpa, convidara o filho de seu irmão, para servir de intérprete. O rapaz — que devia as suas funções no ministério do Exterior ao seu conhecimento da língua inglesa, e com o qual teríamos de nos avir muitas vezes — era um típico representante da nova geração que estudara nas escolas da índia e viera de lá, com a cabeça cheia de planos de reforma do Tibete. Até aí, porém, não se atrevera a defender as suas teses contra os monges conservadores. Mal nos vimos sós, ele arriscou a observação de que era pena termos chegado prematuramente a Lhasa. Fossem ministros ele e mais alguns jovens aristocratas, haveria trabalho para nós, às mãos cheias...

Quando nos despedimos de Kabschöpa, com palavras corteses, um bando de solicitadores já esperavam na ante-sala uma audiência, com fisionomia apreensiva e muitos presentes.

Em Lingkhor, a estrada de oito quilômetros de extensão, em torno de Lhasa, o monge-ministro recebeu-nos com muita simplicidade. Já idoso, orgulhava-se da sua barba branca, curta e bem cuidada. Porque barba, no Tibete, é raridade! No mais, parecia muito sereno, ponderado, esquivo, no que diferia da espontaneidade dos seus colegas. Chamava-se Rampa e era um dos poucos monges-funcionários descendentes da nobreza. A evolução da situação mundial devia causar-lhe apreensões secretas, porque ele se mostrou muito interessado em conhecer a nossa opinião sobre a política da Rússia. Disse-nos que, em velhos manuscritos, existe uma profecia: uma grande potência do norte invadirá o Tibete, arrasará a religião e se tornará senhora do mundo...

A nossa última visita foi para Pünkhang, o decano dos quatro ministros, um homenzinho com lentes grossas diante dos olhos míopes, coisa absolutamente insólita no Tibete, onde usar óculos é considerado esnobismo. Não os podem usar os funcionários; e, mesmo na vida particular, não são bem vistos. O nosso ministro obtivera do 13.° Dalai Lama uma permissão especial para usar óculos, pelo menos no exercício do seu cargo; nas ocasiões solenes, a sua miopia o deixava simplesmente amparado. Pünkhang recebeu-nos em presença da esposa; e, embora de acordo com a etiqueta o ministro se sentasse em plano superior ao da consorte, não era preciso um olhar de águia para perceber que, nesse lar, quem vestia calças era a mulher. Após os primeiros cumprimentos, o ministro mal abriu a boca; e fomos crivados de perguntas.

Mais tarde, Pünkhang mostrou-nos a sua capela particular. Era aparentado com a família dum Dalai Lama e tirava daí motivo de orgulho. Entre as muitas imagens sacras, mostrou-nos uma que representava o rei-deus descendente da sua estirpe. A capela era escura; a luz mal podia penetrar naquele recinto empoeirado.

Cheguei depois a conhecer os filhos de Pünkhang. O mais velho era governador de Gyantse. Mais interessante do que ele era a sua esposa, princesa de Siquim, de raça tibetana, uma das maiores beldades que tive ensejo de ver, dotada do encanto indescritível da mulher asiática, moldada pelo cunho da antiqüíssima civilização oriental. Ao mesmo tempo, educada nos melhores colégios da índia, a princesa era uma mulher moderna, inteligente, instruída. Foi no Tibete a primeira mulher que se negou a casar com o marido e com o irmão do marido, porque isso não condizia com as suas opiniões. Podia manter uma conversação como a mais espirituosa dama dum salão europeu; interessava-se por política e cultura, como por tudo o que ocorria no mundo. Falava muitas vezes da igualdade de direitos da mulher... Mas, para isso, ainda faltava muito no Tibete.

À despedida, pedimos ao ministro que também nos ajudasse a obter a permissão de permanência. À semelhança dos seus colegas, ele prometeu empenhar-se a nosso favor. Nós, porém, já vivêramos bastante na Ásia, para saber que ali nunca se diz um "não" explícito... Ainda corríamos o risco de sermos rejeitados. Teríamos de voltar às cercas de arame farpado da índia?

Com o intuito de nos garantirmos por todos os lados, procuramos estar em bons termos com a representação diplomática chinesa. O encarregado de negócios recebeu-nos com a cortesia tradicional dos filhos do Celeste Império e prometeu transmitir imediatamente ao seu governo o nosso pedido de licença para entrar e trabalhar na China.

Esforçávamo-nos assim prudentemente por tomar pé em várias partes e convencer as gentes de que nada tinham a recear de nós. Acontecia, de fato, muitas vezes que, encontrando-nos na rua, desconhecidos nos fizessem as perguntas mais extravagantes. E, coisa mais extraordinária, certo dia um chinês bateu um instantâneo de nós dois. Máquina fotográfica em Lhasa... Era outra raridade.. O incidente deu-nos que pensar. Já ouvíramos dizer que, de Lhasa, muita gente transmitia notícias para o exterior. Acaso nos julgavam agentes duma potência estrangeira? Só os ingleses sabiam que éramos inofensivos. Tinham em mãos dados para se convencerem donde vínhamos e comprovarem as nossas declarações. Os outros, porém, podiam atribuir-nos quaisquer intenções. Não tínhamos ambições políticas. Só queríamos asilo e trabalho, até que nos fosse possível voltar à Europa.

Entretanto, embora estivéssemos em princípios de fevereiro, vinha chegando a primavera, com dias luminosos e quentes, porque Lhasa fica mais ao sul do que o Cairo e a sua posição elevada dá uma força excepcional à luz solar. Nós nos sentíamos muito bem, se a nossa vida não fosse tão vazia!... diariamente, convites e visitas, relacionados com grandes jantares; passávamos duma a outra mão como bichos raros. A mais perfeita existência de ociosos e já estávamos fartos dela. Quem nos dera trabalhar, praticar esportes!... Mas, afora um modesto campo de basquetebol, não havia praças de esporte no Tibete. Os jovens jogadores tibetanos e chineses de bola-ao-cesto acolheram com entusiasmo a nossa oferta de jogar com eles, o que eu passei a fazer, sempre que a minha ciática o permitisse. Esse campo dispunha também duma ducha que era para nós o maior elemento de atração. Uma ducha custava a bagatela de dez rúpias — um preço enorme, se considerarmos que pelo mesmo dinheiro se obtinha uma ovelha; mas tinha a sua razão de ser: o combustível empregado para aquecer a água era o estéreo de vaca muito raro em Lhasa e trazido de longe.

Contaram-nos que já houvera na cidade um campo de futebol. Organizaram-se onze times que disputaram entre si vários campeonatos. Um dia, durante uma partida, caiu sobre a cidade um temporal. O granizo causou danos graves... e o futebol foi proibido! Talvez o regente o visse já desde muito tempo, com maus olhos, ou a Igreja receasse perder o prestígio... Efetivamente, a população entusiasmava-se pelo jogo; os próprios monges de Será e Drebung não o desprezavam. Fosse como fosse, o granizo foi interpretado como um castigo dos deuses ao jogo sacrílego e aboliu-se o futebol.

Nessa ocasião, perguntamos curiosos, se havia de fato lamas dotados do poder de parar o granizo e conjurar os aguaceiros. No Tibete, acredita-se piamente nisso. Em todas as lavouras, há pequenos montes de pedras, com vasos em que se queima incenso, quando ameaça um temporal. Certas aldeias têm até os seus próprios "fabricantes de tormentas", monges aos quais se atribui o dom de esconjurar o mau tempo. Com esse fim, eles sopram em grandes conchas, produzindo sons vibrantes, análogos aos dos sinos das nossas igrejas, que ainda hoje é costume fazer soar, em muitas aldeias, quando ameaça um temporal. No Tibete, porém, não se conhece naturalmente nenhuma explicação física. Tudo é encantamento, esconjuro, influência divina...

A este respeito, contaram-nos uma anedota engraçada do tempo do 13.° Dalai Lama: este, como é natural, tinha em casa o seu esconjurador do tempo, o mais famoso exorcista de que havia memória. A sua missão especial era proteger, contra o mau tempo, o jardim de verão do rei-deus. Um belo dia uma tremenda saraivada devastou-o, arrasando as flores raras, as maçãs e as peras já maduras, os sumarentos abricós. O exorcista foi intimado a comparecer perante o Buda vivo, que o aguardava, fervendo de ira, no seu trono e ordenou: "Um milagre, já! Ou serás castigado e demitido!" O mágico prostrou-se no chão e pediu uma peneira. Uma peneira comum... Seria milagre suficiente não passar na peneira a água que ele despejasse nela? O Dalai Lama acenou afirmativamente; o exorcista deitou água na peneira. E vejam só: não passou uma gota! Estava salva a sua honra de feiticeiro, e ele conservou a sua gorda prebenda...

Recorrera à hipnose, ou aprendera algum truque físico, nalgum velho calhamaço de magia? Seja como for, o homem livrou-se habilmente do bar aço.

Entretanto, à espera da decisão, quebrávamos a cabeça, parafusando em como ganharíamos o nosso sustento, no caso de podermos ficar. Provisoriamente, havia quem olhasse generosamente por nós: por ordem do Ministério do Exterior, continuávamos a receber verdadeiros carregamentos de tsampa, de farinha, de manteiga, de chá. E foi uma surpresa feliz, quando o sobrinho de Kabschöpa nos entregou, em nome do governo, um presente em dinheiro: quinhentas rúpias. Na carta em que agradecíamos essa dádiva, oferecemos os nossos préstimos à administração tibetana, puramente em troca de moradia e sustento.

 

 

A HOSPITALIDADE LIBERAL DE TSARONG

 

Até então — fazia já três semanas — aproveitávamos a hospitalidade de Thangme. Mas o ricaço Tsarong convidava-nos a morar na sua casa; e nós aceitamos com gratidão. Porque Thangme tinha cinco filhos e nós não lhes queríamos ocupar mais tempo o lugar. Ele, que nos recolhera pobres vagabundos da rua, tornara-se para nós um verdadeiro amigo. Nunca esquecemos essa bondade! Pelo Ano Novo, era meu o primeiro laço branco que ele recebia; e mais tarde, quando eu tive uma casa, Tangme figurava infalivelmente entre os meus convidados da noite de Natal.

Em casa de Tsarong, deram-nos um quarto espaçoso, mobiliado à moda da Europa: mesa, poltronas, camas e ricos tapetes. E ao lado um pequeno lavatório. Em casa de Tsarong, fomos encontrar também alguma coisa que até aí nos fizera falta: uma privada que se pudesse fechar, assunto que é um capítulo negro em todo o Tibete no qual se procede sem o menor constrangimento. Imagine-se: anexo à casa de moradia, uma espécie de telheiro ao qual se sobe por vários degraus: na plataforma do telheiro, algumas aberturas; aos pés do muro um buraco, a cova de despejo; eis o máximo do conforto: e isto não se encontra em toda parte...

Já cedo, havia água quente, para banhar-nos, na cozinha, recinto espaçoso, escorado em postes, fora do corpo da casa. No centro do chão de terra batida, um gigantesco fogão de barro ao qual era possível chegar-se de todos os lados. O fogo ardia ali dia e noite, sob a vigilância dum criado. Enquanto o fogão trabalhava, esse homem manejava um fole enorme, e a boca do forno flamejava e ardia como uma lareira. Lhasa está situada a 3.700 metros de altitude; a falta de oxigênio e o combustível usual — estéreo de iaque — exigem um estímulo artificial, para manter o fogo bem aceso.

Tsarong podia dar-se ao luxo de ter vários cozinheiros. O "chef" trabalhara muitos anos no primeiro hotel de Calcutá e entendia de cozinha européia. Preparava assados estupendos e era, além disto, confeiteiro emérito. Outro cozinheiro fora enviado à China e aprendera todas as especialidades da cozinha chinesa. Tsarong gostava de surpreender os seus convidados, com iguarias desconhecidas.

Estranhávamos que, nas cozinhas das casas fidalgas tibetanas, as mulheres só servissem como ajudantes.

No Tibete, as refeições obedecem a um horário um tanto diferente do nosso. O chá é servido ao primeiro almoço e também durante o dia. Ouvi dizer que, em Lhasa, há quem tome até duzentas xícaras de chá com manteiga, diariamente. Isto, naturalmente, é exagero; mas tem-se a impressão de que poderia ser verdade. Há duas refeições principais: Uma às dez da manhã; a outra à noite, depois do ocaso. Nós almoçávamos no quarto, com tsampa e outros ingredientes. Ao jantar, éramos quase sempre convidados de Tsarong. Era propriamente a hora mais importante do dia; a família reunia-se em torno da mesa grande; serviam-se muitos pratos e comentavam-se todos os acontecimentos.

Passávamos depois à sala de estar, sobrecarregada de tapeçarias, de arcas, de quadros. Fumávamos um cigarro, tomávamos um copo de cerveja e admirávamos as aquisições mais recentes do dono da casa. Era incrível a quantidade de coisas que ele adquiria. Possuía um rádio maravilhoso com que sintonizávamos todas as estações do mundo, deleitando-nos com uma recepção perfeita, porque no "telhado do mundo" há poucas interferências. Ora tocávamos as últimas gravações; ora experimentávamos uma máquina fotográfica, uma câmara de filmar. Uma noite, o nosso anfitrião apareceu até com um teodolito. E sabia lidar com todos esses aparelhos! Era, na cidade, o homem mais provido de passatempos; e nós não poderíamos desejar nada melhor do que sermos seus hóspedes. Tsarong colecionava selos; entretinha copiosa correspondência com todas as partes do mundo, no que o auxiliava o seu filho poliglota. Na sua biblioteca primorosamente escolhida, havia bom número de obras ocidentais, na maior parte presentes de estrangeiros que se hospedavam em casa de Tsarong e, de ordinário, deixavam um livro como lembrança.

Tsarong era um homem extraordinário. Sempre se empenhara em introduzir reformas no país e ainda era consultado, quando algum problema grave preocupava o governo. Era obra sua a única ponte de ferro do Tibete; Tsarong mandara-a construir e montar na índia; depois, desarmada, ela viera peça por peça ao "telhado do mundo" no lombo dos iaques e nas costas dos servos. Tsarong era um "self-made-man" do formato mais moderno; mesmo em países ocidentais, se distinguiria, pelas suas aptidões, como personalidade de valor.

Seu filho George — este conservara o seu nome escolar indiano — seguia nas pegadas do pai. Já no primeiro encontro, a sua cultura, os seus múltiplos interesses lhe tinham valido a nossa admiração. No momento, a sua paixão era a fotografia. E valia a pena ver as que George apresentava. Uma noite, surpreendeu-nos com um filme colorido, rodado por ele próprio. O sussurro leve do aparelho de projeção, as imagens em tecnicolor, coisa ainda nova para nós, podiam causar a ilusão de estarmos no Urania de Viena. Mas isto, enquanto não se interrompeu a corrente. O pequeno motor tinha os seus caprichos e, a toda hora, era preciso parar e recomeçar. Aí estava a diferença.

 

 

O monge ministro do Exterior (à esquerda) com os seus dois secretários.

 

Em Lhasa, nas reuniões sociais, a cerveja é servida aos convidados por senhoras cujos adereços podem valer centenas de milhares de xelins.

 

Os três ministros principais — dois leigos e um monge — saem para uma festa de gala, com o seu séquito de servos.

 

Os convites de Tsarong, os livros, que ele e a legação inglesa nos emprestavam eram, à noite, as nossas únicas diversões. Em Lhasa, não havia cinema nem teatro; tão pouco locais públicos. Toda a vida social se passava nas casas particulares.

De dia, estávamos continuamente ocupados em colher impressões, a fim de que não nos escapasse nada digno de ser visto. Porque vivíamos na ânsia -— não sem razão de ser — de não termos visto tudo, se qualquer dia fôssemos rejeitados. Não tínhamos motivo direto para este receio; mas também não nos fiávamos demais no excesso de amizade... Seria por mero acaso que já tivéramos de ouvir várias vezes a história de certo professor inglês? O governo tibetano pedira-lhe que fundasse em Lhasa uma escola em moldes europeus e propusera-lhe vários anos de contrato. Ao termo de seis meses, o professor tivera de fazer as malas. A oposição dos monges enxotara-o do país.

 

 

NO TIBETE NÃO SE CONHECE A PRESSA

 

Continuávamos o giro de visitas. Eram tantas a fazer! E assim íamos deitando uma vista de olhos à vida doméstica das casas nobres. Uma coisa invejávamos particularmente aos habitantes de Lhasa, quando pensávamos nas cidades européias: eles sempre têm tempo! A pior doença do nosso século, a eterna precipitação, ainda não conseguiu insinuar-se no Tibete. Ninguém trabalhava demais. No serviço público também adotava-se o mesmo ritmo. Os funcionários aparecem na repartição, quando a manhã já vai bem adiantada; e, logo depois do meio-dia, voltam para casa. Se houver algum estorvo, se tiverem visitas, mandam simplesmente um criado a um colega, para que os substitua.

As mulheres não têm noção da igualdade de direitos e, a meu ver, acham-se muito bem assim. Dedicam horas aos cuidados de beleza, enfiam os seus enfeites de pérolas, escolhem novos tecidos e cogitam de como poderão levar as lampas a dona Fulana, na próxima reunião social. Na lida doméstica, não precisam mover um dedo; mas trazem continuamente, como insígnia da sua dignidade, um enorme molho de chaves. E a sete chaves é trancada em Lhasa qualquer bugiganga.

E havia então o "ma-jong", espécie de jogo de dominó chinês. Foi por certo tempo a paixão geral, uma fascinação que fazia esquecer as obrigações, a casa, a família... As paradas eram, em geral, muito altas. E todos jogavam; mesmo os criados que, não raro, jogando às escondidas perdiam em poucas horas, as economias de longos anos de trabalho. Finalmente o governo achou que aquilo passava os limites. Proibiu o jogo, confiscou todos os tabuleiros de dominó e condenou os pecadores clandestinos a pesadas multas em dinheiro e prestação de serviço. Quanto mais elevada fosse a posição do faltoso, tanto mais avultada era a multa. E isto adiantou! Eu nunca acreditaria que se pudesse conseguir um resultado tão radical. Suspirou-se muito tempo pelo jogo, mas respeitava-se a proibição. O poder da hierarquia era ilimitado. Aos poucos todos se compenetraram de que a paixão do jogo fizera negligenciar muitas coisas. Para os sábados livres — o domingo não tem nenhuma importância no Tibete — acharam-se em breve outros passatempos, outros jogos de tabuleiro como o gamão, o xadrez; ou inofensivas charadas e palavras cruzadas.

Tive, naturalmente, de aprender a jogar ma-jong; do contrário, não teria sossego. E com isso aprendi o que pode uma paixão... Mas guardei-me dela! Só em ocasiões especiais, em dias festivos, em reuniões numerosas, deixei-a por vezes voltar à tona...

Naqueles dias, tivemos um encontro que nos causou verdadeira alegria: tornamos a ver um antigo conhecido, o soldado de Chang-tse, que nos escoltara até à fronteira da índia. Já então, ele nos gabara muito Lhasa. Fora o mais simpático dos nossos guardas e, à despedida, gritara-nos um "Auf Wiedersehen in Lhasa!" E a predição se realizou, ao entrarmos um dia na modesta casa de chá, onde costumávamos comprar pão e biscoitos. Contou-nos o nosso amigo que passara a ser mensageiro do governo e ouvira falar muito de nós. Mas, como soldado raso, não podia atrever-se a visitar-nos em casa do ministro Tsarong. Então! Deportados dois anos antes, sempre tínhamos conseguido chegar à Cidade Santa!

Convidamos o novo correio do rei-deus a tomar chá com bolos; e o dono do local, um gordo muçulmano, alegrou-se da honra que fazíamos à sua casa. Serviu-nos pessoalmente, falando inglês — ou, digamos, o que ele entendia por isto. Contou-nos com muita pose que era de Kashgar e aprendera ali a sua arte culinária, numa nobre casa inglesa. Os seus produtos eram famosos em Lhasa... mas, para nós, sempre sabiam um tanto a manteiga rançosa. Os tibetanos acudiam, em bandos, à sua casa de chá e rendiam-lhe altos lucros. Como bom maometano que era, o homem fazia peregrinações freqüentes a Meca e a Medina, com toda a sua numerosa família. E eu achava notável que os habitantes duma cidade sagrada financiassem a viagem a outra cidade santa.

 

AMEAÇADOS NOVAMENTE DE DEPORTAÇÃO

 

A 16 de fevereiro de 1946, fazia um mês que estávamos em Lhasa. A nossa sorte permanecia indecisa; na incerteza, não tínhamos trabalho e preocupava-nos o nosso futuro.

Justamente nesse dia, Kabschöpa visitou-nos em caráter oficial, como enviado do Ministério do Exterior. Mal o vimos, com aquela cara de circunstância, adivinhamos do que se tratava, ainda assim a sua comunicação foi um golpe rude: o governo indeferira a nossa petição; seríamos recambiados imediatamente para a índia. No íntimo sempre tivéramos essa possibilidade diante dos olhos; víamo-nos enfim, diante do fato consumado... e estávamos perplexos. Protestamos logo contra essa decisão. Kabschöpa encolheu os ombros e aconselhou-nos a recorrer a autoridades superiores.

A reação seguinte a esse recado infausto fez-nos procurar todos os mapas do Tibete oriental que nos fosse possível descobrir em Lhasa. À noite, sentamo-nos diante deles e começamos a estudar roteiros, a forjar planos. Uma coisa estava assentada: nós não voltaríamos ao campo de internamento. Preferíamos fugir de novo, tentar a sorte na China. A idéia de que podíamos fugir acalmou-nos. Tínhamos algum dinheiro, um bom equipamento e a possibilidade de nos abastecermos de víveres a qualquer hora. Mas a minha ciática? Não melhorava nada. Aufschnaiter chamara o médico da legação britânica; ele receitara uns pós, dera-me injeções; nada adiantava. A maldita dor poria tudo a perder? Eu estava quase desesperado.

No dia seguinte, vesti-me modestamente e fui-me, claudicando, ver a família do Dalai Lama; talvez pudessem fazer alguma coisa por nós. A Mãe Divina e Lobsang Samten prometeram contar tudo ao jovem rei-deus. Estavam certos de que ele falaria a nosso favor. Falou de fato; e, embora o Dalai Lama ainda não exercesse nenhum poder, a sua boa vontade foi-nos muito útil. Entretanto, Aufschnaiter corria a cidade, dum a outro conhecido, para movimentar todas as alavancas. A fim de que nada ficasse por tentar, redigimos imediatamente, em inglês, o requerimento seguinte:

 

“Ao Ministério do Exterior do Tibete

17 de fevereiro de 1946

Procurou-nos ontem Kabschöpa Se* Kuscho, para nos transmitir a intimação do Governo do Tibete, que nos manda abandonar Lhasa, no mais breve prazo possível, e regressar à índia. Em resposta a essa intimação, tomamos a liberdade de expor o nosso caso, como segue:

(*) Se, filho; fórmula de cortesia.

 

"Em maio de 1939, na nossa qualidade de alpinistas, chegamos da Alemanha à índia, com a intenção de regressar em agosto do mesmo ano ao nosso país. A 3 de setembro de 1939, data da declaração de guerra, fomos presos e internados.

"Em 1943, publicou-se na imprensa um acordo entre os governos do Tibete e da índia, segundo o qual seria permitido o transporte de mercadorias, da índia para a China, via Tibete, com a condição expressa de não se tratar de material bélico. Desse convênio deduzimos que, nesta guerra, o Tibete se considera Estado neutro, razão por que envidamos todos os esforços, no sentido de alcançar o seu território.

"O fato de ser o Tibete um Estado neutral foi-nos confirmado mais tarde por Mr. Hopkinson, chefe da representação britânica em Lhasa, o qual — ultimamente, quando o visitamos — nos declarou que não pediria ao governo do Tibete que nos recambiasse para a índia.

"Convenções internacionais determinam que aos prisioneiros de guerra, que consigam entrar em território neutro, será concedido asilo e que eles permanecem sob a proteção do país neutro, até que seja possível repatriá-los. Esta regra é observada por todos os governos neutros de todo o mundo; e nenhum país neutro devolve à prisão os foragidos dessa classe. Sabemos que os internados alemães na índia ainda não foram repatriados. Recambiar-nos para a índia equivaleria a restituir-nos à prisão.

"No caso do governo tibetano reputar a nossa permanência no país contrária à sua atitude tradicional perante os estrangeiros — como nos explicou ontem Kabschöpa Se Kuscho — tomamos a liberdade de observar que, a este respeito, o governo tibetano já abriu precedentes e que nós esperamos beneficiar-nos do que já foi outorgado a outrem. Somos profundamente gratos ao governo tibetano pela bondade e hospitalidade de que fomos objeto no seu território; por outro lado, o governo tibetano compreenderá, sem dúvida que, depois de chegarmos ao Tibete — conseqüentemente, à liberdade — não queiramos voltar à prisão onde vegetamos quase cinco anos.

"Rogamos, pois, encarecidamente ao governo tibetano que nos dê o mesmo tratamento, que outros governos neutros têm assegurado a prisioneiros fugitivos, e nos permita permanecer no Tibete, até que seja possível a nossa repatriação.

Peter Aufschnaiter

Heinrich Harrer"

 

Como se tudo conjurasse contra nós, a minha ciática se agravou subitamente, em tal medida, que me privou de qualquer movimento. Tive de ficar de cama, curtindo dores horríveis. Imóvel, gemendo, eu martirizava o cérebro, para encontrar uma saída, enquanto Aufschnaiter feria os pés correndo dum a outro extremo da cidade. Que dias de aflição!

No dia 21 de fevereiro, bateram inesperadamente à nossa porta alguns soldados. Intimaram-nos a arrumar as malas; tinham ordem de nos escoltar até à índia. Partiríamos às primeiras horas da manhã seguinte. Era o fim! Mas como podia eu suportar uma viagem? Se nem conseguia dar os poucos passos até à janela! Desesperado, tentei demonstrá-lo ao tenente. Ele mostrou-me uma cara desolada; como todos os soldados do mundo, cumpria ordens, não tinha autoridade para aceitar explicações. Recobrando um tanto a calma, encarreguei-o de comunicar aos seus superiores que eu só poderia deixar Lhasa, se me carregassem. Os soldados retiraram-se.

Recorremos logo a Tsarong, pedindo conselho e ajuda. Ele também não nos podia valer. Não é possível opor-se a uma ordem do governo, disse-nos, muito sério. Novamente sós no nosso quarto, amaldiçoamos a minha enfermidade; se eu não estivesse naquele estado, nada nos deteria; já naquela noite, estaríamos a caminho. Mil vezes as fadigas, as privações, os perigos, do que uma vida confortável atrás das cercas de arame farpado! Não seria tão fácil tirar-me dali, na manhã seguinte. Exacerbado, preparei-me a oferecer uma resistência passiva.

Na manhã seguinte, porém, nada tugiu nem mugiu... Nem soldados, nem notícias. Sobressaltados, apelamos para Kabschöpa. Ele veio em pessoa, um tanto embaraçado. Aufschnaiter apontou o meu leito de dor e começou as negociações: não seria possível chegar a um compromisso? Assaltara-nos a suspeita de que no fundo, atrás de tudo estivessem os ingleses exigindo a nossa deportação!

O Tibete é um país pequeno; quer estar em bons termos com todos os vizinhos e manter as boas relações com gestos diplomáticos. Não se exporia a desavenças com a poderosa Grã-Bretanha, por dois alemães, prisioneiros de guerra! Conseqüentemente, Aufschnaiter propôs que pedíssemos ao médico inglês — que era nessa ocasião chefe da representação diplomática — um atestado das minhas condições de saúde. Kabschöpa aceitou a proposta com uma satisfação tão visível, que nós trocamos um olhar: a nossa suspeita era fundada.

No curso desse dia, recebi a visita do médico; disse-me ele que o governo tibetano pusera nas suas mãos a decisão da nossa partida. Em seguida, o inglês aplicou-me outras injeções que também não me adiantaram. Mais me aliviou um presente de Tsarong, isto é, algodão termógeno.

Jurei então que havia de dominar o meu mal. Esse azar não devia comprometer os nossos planos! Com todo o poder da minha vontade, constrangi-me a fazer diariamente certos exercícios. Um lama recomendara-me que me esforçasse por mover com a planta dos pés uma bengala; e eu, sentado na minha poltrona, fazia rolar horas inteiras a bengala, embora tivesse vontade de gritar de dor. Aos poucos melhorei, com efeito; pude voltar ao jardim e aquecer-me ao sol como um velhinho.

 

 

COMEÇA O ANO DO "CÃO DE FOGO"

 

A primavera floria de fato, em todo o seu esplendor. Estávamos em março. O dia 4 de março marca o início da maior festa tibetana: a festa do Ano Novo, que se prolonga pelo espaço de três semanas. E eu, infelizmente, não podia tomar parte nela. Ouvia apenas o som distante dos tambores e das trombetas; e assistia à lufa-lufa que andava em casa, prova da importância que os tibetanos atribuem a essas festividades. Tsarong e o filho compareciam todas as manhãs à cabeceira da minha cama de doente, para que eu lhes admirasse as vestes suntuosas de seda e brocado. Aufschnaiter ia naturalmente a toda parte; e à noite me apresentava o seu relatório.

Festejava-se, nesse ano, o princípio do "Ano do Cão de Fogo". A 4 de março, o conselho municipal resignava os seus poderes nas mãos dos monges — era a autoridade leiga devolvendo simbolicamente à religião os cargos que dela recebera. Aí entrava em vigor um regulamento severo e temido. Principiava por uma limpeza radical. Naqueles dias, Lhasa era famosa pelo asseio, não se podendo, a seu respeito, dizer sempre a mesma coisa. Promulgava-se ao mesmo tempo, uma espécie de trégua: silêncio nas ruas e repartições fechadas, embora o comércio e o hábito de regatear funcionassem como sempre — salvo, por ocasião de cortejos e procissões. Qualquer excesso, ou crime, nessas semanas era punido com rigor excepcional. Os monges eram inexoráveis. E inspiravam grande receio, porque já houvera quem morresse em meio duma severa fustigação — a pena usual. Em tais casos, porém, o regente intervinha e sabia descobrir os responsáveis.

No tumulto festivo daqueles dias, o nosso caso ficou suspenso; e nós nos guardávamos de nos por em evidência. Talvez o governo se contentasse provisoriamente com que o médico inglês não me houvesse declarado apto para marchar. Ganhávamos assim tempo precioso! Antes de tudo eu tinha de me livrar da minha enfermidade. Depois veríamos; possivelmente fugiríamos para a China.

Eu tomava diariamente o meu banho de sol, no jardim, aproveitando o calor agradável. Tanto maior foi o meu espanto, certa manhã ao despertar, quando encontrei todo o esplendor primaveril coberto por uma densa camada de neve. Essa nevada tardia era dupla raridade em Lhasa; primeiro, porque esta cidade se situa no coração da Ásia e a neve poucas vezes a atinge; secundariamente, a sua posição meridional e a forte radiação solar, própria daquela altitude, dissolvem prontamente o gelo.

Nesse dia também, a neve não tardou a derreter-se; e contribuiu para que a tempestade de areia fosse suportável. A umidade do solo ligava a areia e o pó; assim diminuía o remoinho da areia na atmosfera.

Essas tempestades formam-se pontualmente, todas as primaveras, e a região lhes sente os efeitos, quase pelo espaço de dois meses: Atingem a cidade às primeiras horas da tarde; já de longe são visíveis as enormes nuvens negras que se aproximam rapidamente. Encobrem primeiro o Potala — é o sinal para que cada qual procure a toda pressa abrigo. Interrompe-se o movimento nas ruas; tinem as vidraças; os animais nos prados voltam-se, põem o rabo na direção do vento e aguardam pacientemente que lhes seja dado pastar de novo. Os numerosos varre-dores, as turmas da limpeza da cidade, encolhem-se nos cantos, porque a tormenta nem sempre é tão mansa. Aufschnaiter voltou um dia a casa, com o capote esfarrapado; a tempestade chegara a carregar um cavalo morto. A matilha lambera sangue...

O período das tempestades é a época mais desagradável do ano. Mesmo dentro de casa, sente-se o estridor da areia nos dentes, porque em Lhasa as janelas não têm tampos. A única coisa positiva é que elas anunciam de fato o fim do inverno. Todo jardineiro sabe que, daí em diante, não deve temer geadas. Os prados, ao longo dos canais, recebem a primeira demão verde; os "Cabelos de Buda" começam a florescer. É o famoso salgueiro à entrada da catedral. Os seus delicados ramos pendentes, com as suas florinhas de pólen dourado, justificam na primavera essa denominação poética.

Mal pude dar alguns passos, procurei tornar-me útil. Tsarong plantara no seu pomar centenas de mudas de árvores frutíferas; mas como eram tiradas de sementes, não davam fruto. Auxiliado por George, empreendi o trabalho de enxertá-las sistematicamente. Muito se riram então os moradores da casa! No Tibete, não se conhece o enxerto, nem há termo para ele. Conseqüentemente, "enxertar" ficou sendo para eles "casar", denominação que lhes parecia sumamente cômica.

Povo feliz, com o seu humorismo pueril! Os tibetanos gostam de rir. Se alguém tropeça ou resvala, eles divertem-se com isso horas a fio. A malícia é um dos seus prazeres prediletos; nunca, porém, se eiva de maldade. O seu espírito zombeteiro não respeita coisas nem pessoas. Como não há jornais, a crítica às pessoas e coisas antipáticas se faz em sátiras e canções burlescas. As moças e os rapazes que, à noite, passeiam em Parkhor, cantam os versos mais recentes. As personalidades mais elevadas não escapam aos sarcasmos. De quando em vez, o governo proíbe esta ou aquela sátira; mas tem inteligência bastante para não castigar ninguém. Então o pasquim incriminado deixa de ser ouvido em público; em segredo, porém, continua a ronda.

O Ano Novo é a época gloriosa de Parkhor. Esta avenida circular contorna a catedral; nela se desenrola toda a vida da cidade. Ali está a maioria das casas de comércio; ali começam ou terminam todas as paradas militares e religiosas. De noite, especialmente em dias festivos, desfilam ali os devotos, murmurando preces; e muitos deles medem o percurso com o comprimento do seu corpo. Mas Parkhor também tem aspectos menos austeros. Belas mulheres exibem ali as últimas criações da moda, em flertes com os jovens da nobreza. E também é ali que as beldades fáceis de Lhasa encontram o que procuram. Parkhor é o centro da vida social, da sociabilidade e da moda.

No décimo quinto dia do primeiro mês do ano tibetano, eu me sentia tão hem, que pude assistir à festa. Nesse dia, as comemorações atingem o ponto culminante. É o dia da procissão solene da qual participa pessoalmente Sua Santidade o Dalai Lama.

Tsarong prometera-nos lugar a uma janela duma sua casa em Parkhor. Infelizmente, no andar térreo; porque durante a procissão ninguém pode estar acima de certa altura predeterminada. As casas também não podem ter mais de dois pavimentos, porque seria sacrilégio fazer concorrência à catedral ou ao Potala. E essa disposição é observada estritamente. Para muitas famílias da nobreza, as casas antigas, escuras, inçadas de percevejos, tornaram-se demasiado pequenas e incômodas. Os proprietários, não podendo aumentar a construção, contornam a dificuldade, armando no seu telhado plano uma casa de tábuas desmontável, para o estio. E eu via com espanto a presteza com que essas casas desapareciam, quando o Dalai Lama ou o regente tomavam parte numa procissão.

Enquanto ondulava nas ruas a multidão colorida, vibrante, aguardando a procissão, nós esperávamos sentados à janela, com a esposa de Tsarong. Era ela uma velha dama bondosa, que sempre nos tratara com carinho maternal. E, nesse momento, nos sentíamos particularmente felizes, na sua companhia. Efetivamente, para nós, tudo aquilo era um mundo estranho; a voz dela, familiar, afável, fazia por assim dizer de traço de união com as novidades que nos vinha explicando. Pouco adiante, erguiam-se do chão misteriosos andaimes duns dez metros de altura — para as figuras de manteiga — explicou a Sr.a Tsarong. Logo depois do ocaso, seriam colocadas ali as obras de arte executadas em manteiga pelos monges, durante meses de trabalho assíduo. Nos claustros havia secções especializadas onde esses monges, verdadeiros artistas no seu sector, amassavam e moldavam, com paciência infinita, figuras e ornatos de manteiga de várias cores, filigranas finíssimas feitas para durar uma noite e dignas de serem elevadas ao nível de obras artísticas. Centenas dessas pirâmides, espalhadas nas ruas por onde passaria a procissão, atestavam com o seu fausto a devoção de famílias nobres e ricas de Lhasa. Efetivamente, cada uma dessas torres custava somas ingentes; não raro, várias famílias cotizavam-se, para custeá-la. E todas rivalizavam em dar o melhor de si mesmas, porque a pirâmide mais bela era premiada pelo governo. Fazia decênios, que o prêmio vinha sendo atribuído a obras dos monges do claustro de Gyü.

Já desaparecia toda a orla do arco interior de Parkhor, atrás da fila colorida de torres triangulares. Aglomerava-se diante delas uma multidão incalculável e era um problema enxergar alguma coisa. Escurecia. Passou o regimento de Lhasa, com tambores e clarins. Formando cordão, os soldados impeliram para trás os espectadores, a fim de manter a rua desimpedida.

Anoiteceu de repente. Mas um mar de luzes flamejou, iluminando tudo como em pleno dia, com a claridade bruxuleante de milhares de candeeiros de manteiga, entremeados dalguns lampiões de querosene. Nisso, o disco da lua surgiu sobre os telhados, porque em Lhasa, o décimo quinto dia de cada mês é sempre de lua cheia. Tudo estava a postos. A grande solenidade podia começar. Um silêncio prenhe de expectativa envolveu a multidão.

 

 

UM DEUS ERGUE A MÃO, PARA ABENÇOAR

 

Chegou o grande momento: a porta da catedral abre-se e por ela sai lentamente o Dalai Lama, o jovem rei-deus, ladeado por dois abades. O povo curva-se, reverente. O cerimonial estrito exigiria que os devotos se prostrassem no pó, o que é impossível neste caso, por falta de espaço. Dobram-se, pois, sobre os vizinhos os milhares de dorsos da multidão, como uma seara à passagem do vento. Ninguém se atreve a levantar os olhos. O Dalai Lama encaminha-se lentamente, em marcha compassada, para Parkhor, parando diante das figuras de manteiga, contemplando-as uma por uma. Acompanha-o um séquito brilhante: todos os altos dignitários, a aristocracia e depois — rigorosamente de acordo com a respectiva categoria — todo o funcionalismo do país, em cujas fileiras reconhecemos o nosso amigo Tsarong, logo atrás do rei-deus, em razão da sua posição elevada. À semelhança dos outros nobres, traz na mão direita um archote resinoso aceso.

Empolgada, temerosa, a multidão guarda silêncio. Só se ouve a música dos monges: oboés, tubas, atabaques... Um quadro, uma visão dum mundo diferente, uma atmosfera singularmente irreal a que nós mesmos, europeus desabusados, não conseguimos escapar inteiramente... A luz trêmula e amarelenta dos candeeiros emprestava vida às figuras de manteiga; flores estranhas dobravam, ao sopro duma brisa imaginária; as dobras das suntuosas roupagens dos ídolos moviam-se, farfalhando; carantonhas demoníacas faziam esgares... E um deus ergueu a mão para abençoar...

Acaso nós também cedêramos à fascinação dessa fantasmagoria estranha, desconcertante?

O disco redondo da lua cheia, símbolo do outro mundo, ao qual se tributava essa grandiosa homenagem, sorria das alturas aos crentes... Seria enviado pelos deuses esse sinal de benevolência?

Já então o Buda vivo estava bem perto... passava pela nossa janela... As mulheres prostravam-se, mal respiravam; a multidão imobilizara-se. Nós, presos de funda emoção, escondíamo-nos atrás das mulheres curvadas, tentando insurgir-nos contra o poder que nos enfeitiçava... "É apenas uma criança" — repetia eu comigo — "apenas uma criança".

Era, porém, o objeto da fé daquela aglomeração de milhares de fiéis, síntese das suas preces, das suas aspirações, das suas esperanças... Ou Lhasa, ou Roma... Um elo une todas as almas crentes: o desejo de encontrar a Deus e de servi-lo, acima de todas as discriminações... Fechei os olhos. O murmúrio das preces, a música solene, o incenso subindo, em nuvens de aromas, ao céu noturno...

O Dalai Lama acabava de percorrer o seu trajeto e recolhia-se ao grande Tsuglhakhang. Os soldados retiravam-se em meio do tinir das suas armas.

Como se despertasse dum sono hipnótico, a multidão passou, num instante, da ordem ao caos. A transição foi tão súbita, que nos deixou perplexos... Gritos, gestos ferozes... criaturas que se atropelavam, que por um triz não se matavam. Os devotos lacrimosos, os extáticos, transformavam-se dum instante para outro em possessos furibundos. Intervieram então os monges-soldados, rapagões temíveis, de ombros robustos e caras enegrecidas, — para lhes dar um aspecto mais assustador — e desataram a esbordoar o ajuntamento, a torto e a direito, sem contemplações. As figuras de manteiga também corriam perigo! A multidão acossada premia-se, em torno das pirâmides. Acusava com berros as pauladas; mas, apesar delas, não arredava pé, como se cada um dos seus componentes fosse possuído do demônio. Seriam as mesmas criaturas que, havia pouco se prostravam, submissas, aos pés duma criança? E agora recebiam as vergastadas como uma bênção. Tochas fumegavam acima das cabeças; gritos de dor sobrepujavam a vociferação da massa... Aqui, rostos chamuscados; acolá, gemidos dos que se espezinhavam!

Alta noite. Depois dum espetáculo dessa natureza, não havia meio de adormecer. De olhos fechados, tornávamos a ver, uma por uma as cenas a que assistíramos, como um sonho confuso, opressivo... O eco dos gritos persistia, nas ruas. Na minha semi-inconsciência, pingavam lentamente as notas dum oboé... Fosse pelo que fosse, eu estava triste...

Na manhã seguinte, as ruas amanheceram vazias. Nem sinal das figuras de manteiga, da devoção e dos êxtases da noite passada; no lugar ocupado na véspera pelos andaimes, viam-se balizas; as figuras coloridas dos santos se haviam derretido. Alimentariam candeeiros de manteiga, ou seriam guardadas como remédio consagrado.

Nessa manhã, recebemos muitas visitas. Os tibetanos de longe e^ de perto vinham assistir às festas do Ano Novo na capital, fossem nômades do planalto, ou habitantes das províncias ocidentais. Havia entre eles muitos conhecidos da nossa longa viagem. Não custava encontrar-nos, porque ainda éramos em Lhasa o assunto da cidade e qualquer criança sabia onde morávamos.

Traziam-nos presentes: carne seca reputada em Lhasa uma especialidade. E, nessa ocasião, fomos informados de que os funcionários dos distritos, por onde tínhamos passado, haviam sido molestados pelo governo, com admoestações, multas e ameaças de medidas "drásticas", se o caso se repetisse.

Doeu-nos muito saber que esses homens, por se terem mostrado humanos conosco, se haviam exposto a essas humilhações. Eles, porém, pelo que parecia, não nos guardavam rancor. Sucedeu-nos topar com um "bönpo" que embaçáramos com os nossos papéis velhos. Ele riu-se e alegrou-se de tornar a ver-nos.

Mas as festividades do Ano Novo não terminariam, dessa vez, sem incidentes. Ocorreu em Parkhor um desastre que em breve suplantou todos os demais argumentos de conversação.

Todos os anos se erigiam ali altos mastros formados por vários troncos reunidos. Estes vinham de longe; e o seu transporte — que é um capítulo à parte — fazia-se de maneira tão primitiva, que me encheu de pena e indignação, quando o vi pela primeira vez. Lembrei-me instintivamente dos barqueiros do Volga. Uns vinte homens, arrastando cada qual um tronco amarrado ao seu corpo, marcham a passo militar, cantando com voz surda uma das suas monótonas toadas, arquejando, banhados em suor. Mas o solista não lhes concede uma pausa. Esse trabalho de grilhetas representa uma parte dos seus impostos a pagar. Tributos de regime feudal! Os carregadores vêm de várias aldeias e revezam-se com os doutras povoações. As lengalengas, com que acompanham essa marcha forçada, lhes são impostas, para os distrair do trabalho brutal. Seria preferível que poupassem os pulmões! Essa espécie de fatalismo sempre me causa verdadeira revolta. Como homem moderno que sou, não posso admitir que este país se feche tão rigorosamente a todo progresso.

Há de haver uma possibilidade de se fazer o transporte desses madeiros, sem ser à força de homens. Para que inventaram os chineses a roda, séculos atrás? Os transportes, o comércio, toda a vida pública do Tibete, acusariam um surto incalculável de prosperidade; a riqueza nacional aumentaria. Mas qual! O governo não quer saber de rodas!

Mais tarde, quando me coube dirigir a dragagem de rios, fiz várias descobertas; e estas fundamentaram a minha hipótese de que, séculos atrás, os tibetanos conheciam e utilizavam a roda. Trouxemos à tona blocos de pedra talhada, de formato regular. Não um; não, senhores! Centenas! Só com o auxílio de recursos técnicos eles puderam vir das pedreiras distantes muitos quilômetros. Para transportar um desses blocos, à distância de poucos metros, os meus trabalhadores teriam de parti-lo em oito pedaços. Que ironia!

Cada vez mais eu me convencia de que o Tibete já vivera a sua época áurea. Testemunho da sua passada importância histórica é um alto obelisco de pedra, do ano de 763 depois de Cristo. Naquele tempo, os exércitos tibetanos estavam às portas da capital do império e ditaram aos chineses uma paz que os obrigava a pagar ao Tibete um tributo anual de 50 mil rolos de seda.

E o Potala? Esse também deve datar dum período de esplendor, se bem que em época diferente. Hoje, não ocorreria a ninguém a idéia de construir semelhante monumento. Certa vez, perguntei a um pedreiro que trabalhava ao meu lado, porque já não se fazem construções como aquela.

— "O Potala é obra dos deuses! — replicou ele, indignado. — Jamais o fariam as mãos dos homens. Espíritos bons e seres sobrenaturais criaram de noite essa obra-prima."

Eis que, em relação às ambições, ao progresso, nos chocamos com a mesma indiferença com que os carregadores arrastam os seus madeiros.

O Tibete afastou-se mais e mais do poderio e da glória militares, para a religião. Talvez seja mais feliz assim...

Os muitos e pesados troncos arrastados a Lhasa, para as festividades do Ano Novo, atam-se em torno dum grosso mastro de vinte metros de altura, com correias de couro de iaque. Depois prende-se ao mastro uma bandeira em que se imprimiram textos de orações. Ao contrário do que se faz na Europa, cose-se a bandeira do vértice à base do mastro.

Talvez os troncos fossem muito pesados, ou as correias muito fracas. O certo é que, ao levantar o mastro, este se desconjuntou. Um dos troncos matou três trabalhadores e feriu outros.

Esta desgraça abalou o Tibete inteiro; e os tibetanos viram nele um mau presságio. Pintou-se o futuro com as cores mais negras; profetizaram-se cataclismos, terremotos, inundações; falou-se de guerra, enviezando significativamente os olhos para o lado da China. Cada qual se deixava dominar pela superstição

— inclusive os nobres educados à inglesa.

Apesar disto, as vítimas do desastre não foram entregues aos monges. Transportaram-nas para a sede da legação britânica, onde havia sempre à disposição dos tibetanos certo número de leitos. O médico inglês tinha muito que fazer; todas as manhãs, havia uma fila de consulentes à porta; à tarde, eram visitas na cidade. Os monges toleravam, calados, essa intrusão na sua esfera de autoridade, porque não era possível ignorar os sucessos do médico — e também porque a Grã-Bretanha era grande potência na Ásia.

O exercício da medicina ainda é um capítulo sombrio, no Tibete. ^ O médico da legação britânica e o da representação diplomática chinesa, que também me tratara, eram os únicos profissionais diplomados, para uma população de três milhões e meio de almas. Os médicos teriam, no Tibete, uma vasto campo de ação. Mas o governo nunca pôde chamar ao Tibete médicos estrangeiros. Todo o poder estava nas mãos dos monges; e eles censuravam os próprios membros da regência, se estes chamassem o médico inglês à cabeceira dum enfermo.

 

 

A NOSSA PRIMEIRA EMPREITADA

 

Vimos, por isso, um presságio auspicioso para o nosso futuro, no convite feito a Aufschnaiter, para se apresentar a um alto funcionário religioso que o incumbiu de construir um canal de irrigação. Emudecemos de alegria. Estava dado o primeiro passo para uma existência sólida em Lhasa; e eram os monges que nos abriam o caminho!

Aufschnaiter começou imediatamente os trabalhos de medição. Eu fiz questão de ajudá-lo, porque ele não poderia dispor de ajudantes. Fui, portanto, ao seu local de trabalho, em Lingkhor. Deparou-se-me ali um quadro indescritível, indubitavelmente sem-par no mundo inteiro!

Centenas, senão milhares de monges, acocorados, cobertos pelas suas sotainas encarnadas, entregavam-se a uma ocupação para a qual o homem procura isolar-se. Uma coisa indescritível! Não invejei a Aufschnaiter o seu local de trabalho. Pusemos mãos à obra, sem olhar nem à direita nem à esquerda, doidos por sairmos dali.

Aufschnaiter continuou corajosamente; ao termo duma quinzena, podia dar princípio à escavação. Puseram-lhe às ordens cento e cinqüenta trabalhadores, o que nos deu a sensação de sermos grandes empreiteiros. Mas íamos ver o que eram os métodos de trabalho, naquele país...

Entretanto, eu também arranjara uma ocupação. O jardim de Tsarong ainda era para mim, homem doente, o remanso mais adequado. Pus-me então a parafusar no que poderia fazer, para lhe acrescentar a beleza. De súbito, tive uma boa idéia: um repuxo!

Tirei medidas, desenhei croquis e, pouco depois, tinha pronto um belo plano. Tesarong ficou entusiasmado. Escolheu pessoalmente os criados que me deveriam ajudar. E eu, sentado confortavelmente ao sol, dirigia a minha turma. Em breve, estava colocada a canalização subterrânea e escavado o tanque. Chegada a hora de cimentá-lo, Tsarong fez questão de meter as mãos na massa, porque desde a construção da sua grande ponte de ferro, era perito em obras de concreto.

Em seguida, instalamos no telhado o reservatório que alimentaria os jactos. Infelizmente, a bomba hidráulica era difícil de manejar. Fazendo da necessidade virtude, recorri à bomba manual para treinar os meus músculos.

Chegou finalmente o grande momento: a fonte lançou ao ar o seu primeiro jacto e uma alegria pueril animou a casa inteira! O repuxo — o único do Tibete — foi, daí em diante, a maior sensação dos famosos "garden-parties" de Tsarong.

As muitas impressões novas, a insólita atividade, quase nos faziam esquecer as preocupações. Um dia, Thangme trouxe-nos um jornal que se publicava em língua tibetana e mostrou-nos um artigo em que éramos mencionados e que lemos com vivo interesse. O articulista contava, com muita simpatia, a nossa odisséia nas montanhas, até chegarmos a Lhasa aonde viéramos impetrar a proteção do Tibete devoto e neutral. Essas referências, em termos tão benévolos, só podiam influenciar favoravelmente a opinião pública e vir em apoio da nossa petição. Na Europa, esse periódico seria uma publicação sem importância; saía mensalmente em Kahmpong, isto é, na índia, numa tiragem de apenas quinhentos exemplares que o editor tinha, assim mesmo, dificuldade em vender. Era, porém, bastante difundido em Lhasa, justamente nos meios em que nos convinha; e alguns números chegavam às mãos dos tibetólogos de todo o mundo.

 

 

FESTA ESPORTIVA, ÀS PORTAS DE LHASA

 

Continuavam os festejos do Ano Novo. Encerradas as grandes cerimônias, começavam em Parkhor, defronte do Tsuglhakhang, as competições esportivas pelas quais — como é natural — eu, antigo desportista, me interessava particularmente. Levantava-me todos os dias, ao nascer do sol, porque elas principiavam às primeiras horas da manhã.

Conquistáramos, a poder de habilidade, uma janela do segundo andar da legação chinesa e dali assistíamos a tudo, bem disfarçados atrás duma cortina, único meio de contornarmos a proibição de subir acima do rés-do-chão, em presença do regente. Este troneava atrás duma cortina de gaze, no último andar do Tsuglhakhang; os quatro membros do Gabinete assomavam às janelas.

Abria o programa a luta romana — não sei dizer se propriamente greco-romana, ou de estilo mais livre, se bem que regulada por normas próprias. Para o K. O., bastava que o lutador tocasse o terreno com quaisquer partes do corpo que não fossem os pés. Não havia lista de chamada nem preparativos de nenhuma espécie. Estendia-se uma esteira de feltro no chão e, do meio dos milhares de espectadores, se anunciavam os concorrentes que iam lutar. Nem a menor noção do "training".

Os lutadores usavam apenas uma tanga e tremiam de frio, àquela hora matinal. Eram indivíduos altos, musculosos. Meneavam-se truculentamente, diante do nariz do adversário, alardeando coragem e vigor, absolutamente crus em luta romana. Seriam presa fácil, para um verdadeiro lutador. Os encontros eram breves e os pares sucediam-se rapidamente. Não punham grande empenho em vencer. De resto, ao vencedor não se dispensavam honras especiais; os dois antagonistas, vencedor e vencido recebiam igualmente um laço branco. Curvavam-se diante do "bönpo" que os entregava respeitosamente, prostravam-se três vezes para reverenciar o regente e retiravam-se como dois bons camaradas.

Seguia-se a prova de levantamento de peso, representado este por um bloco de pedra lisa que já vira centenas de festas do Ano Novo. O atleta devia erguê-lo e fazer assim a volta do mastro. Poucos o conseguiam. E eram gargalhadas, quando algum concorrente, sobreestimando as suas forças, se aproximava da pedra com ar soberbo e não conseguia levantá-la; ou quando ela, escapando-lhe das mãos, quase lhe esmagava os dedos dos pés.

De repente, ouvia-se um galope longínquo. Interrompia-se prontamente o levantamento de peso. Começava a corrida de cavalos. Estes já vinham perto, numa nuvem de pó.

Para a corrida de cavalos também não havia pista demarcada. Os monges-soldados zurziam, com as suas varas, os imprudentes curiosos que se desgarrassem no terreno. Mas, à última hora, eram os próprios cavalos que, em tropel vertiginoso, abriam o caminho. Essa corrida de cavalos também ultrapassava o nosso entendimento. Os animais corriam, sem cavaleiros. Soltavam-nos, em partida coletiva, alguns quilômetros antes da entrada da cidade, e eles iam em carreira desenfreada, entre as duas alas de espectadores contidos a custo, até à meta final. Só eram admitidos cavalos criados no Tibete; e cada um deles trazia, bem aberto no lombo um lenço, com o nome do seu proprietário. A vitória tinha de caber naturalmente a um cavalo do Dalai Lama, ou do governo. Se qualquer dos outros tomava a dianteira, os servos o detinham antes da raia final.

O povo assistia à corrida, num estado de grande tensão e, como a criadagem da nobreza, estimulava os cavalos com forte vozearia. Os fidalgos tibetanos, muitos dos quais eram donos dos cavalos, conservavam a sua atitude digna. A cavalhada passou por nós, com fragor de caça selvagem, a caminho do ponto terminal da corrida, situado fora da cidade.

Nem se haviam dissipado as nuvens de pó levantadas pelos cascos dos cavalos, quando se iniciou o número seguinte, a corrida pedestre, com a aparição dos primeiros e esbaforidos concorrentes. De resto, ali qualquer um se julgava atleta. Conseqüentemente, corria quem quisesse, desde o ancião alquebrado até à garotada. Corriam descalços, arquejantes, com os pés ensangüentados e cheios de bolhas, as feições contraídas. Via-se que nunca se haviam exercitado na corrida. Muitos desistiram antes do fim do percurso de oito quilômetros. Colheram, se tanto, a risota dos espectadores.

Os que vinham atrás, rengos e esbofados, ainda estavam na pista, quando se deu princípio à prova sucessiva que era, desta vez, uma corrida de cavalos montados por garbosos cavaleiros, metidos em trajes históricos doutras épocas. A assistência acolheu-os com brados de entusiasmo; eles fustigavam impiedosa-mente os ginetes, para obter o máximo de velocidade. Assustado pela algazarra e pela gesticulação dos espectadores, um cavalo cuspiu da sela o cavaleiro que foi estatelar-se no meio do povo. Ninguém se incomodou.

O torneio de equitação encerrou as provas desportivas em Parkhor. Os vencedores — mais de cem corredores e quase outros tantos cavaleiros — receberam, como prêmio, laços brancos e coloridos. Mas o povo não os aplaudiu; não há em Lhasa este hábito. Todos se riam, quando descobriam, onde quer que fosse, uma situação cômica. Era, para o povo, o espetáculo.

 

Numa encosta, perto de Drebung, estende-se uma vez por ano, uma bandeira de seda de dimensões colossais. 60 monges a arrastam encosta acima e lá a desenrolam.

 

 

Casas de tufos de relva e barro, flâmulas com orações, montanhas cobertas de neve — eis a característica paisagem tibetana.

 

 

Bandeira de Tra Yerpa. As figuras são de seda e brocado de cores diferentes, aplicadas ao tecido da bandeira.

 

Os festejos terminaram com outra corrida de cavalos, num vasto prado às portas da capital. Encontramo-nos de novo no meio da multidão; mas por sorte, um nobre tibetano convidou-nos a entrar na sua tenda. Dispostas em fila, de acordo com a classe social do proprietário, forradas de seda e brocado, ricamente ornamentadas, essas tendas formavam um quadro magnífico. Os trajes femininos e masculinos compunham uma sinfonia de cores. O funcionalismo leigo, a partir da quarta categoria, usava roupagens luxuosas de seda, dum tom amarelo vivo, e os chapéus em forma de prato, debruados de raposa azul — pele de raposa azul que vinha de Hamburgo, porque os tibetanos desprezam a raposa azul nacional. Não são só as mulheres; os homens também rivalizam no luxo da indumentária. O seu amor ao fausto, genuinamente asiático, pôs os tibetanos em comunicação com muitas partes do globo, embora sob outros aspectos eles não sejam muito versados em geografia universal. As raposas azuis vinham de Hamburgo; as pérolas cultivadas, do Japão; as turquesas, da Pérsia, via Bombaim; o coral, da Itália; o âmbar, de Berlim e Königsberg. Mais tarde, eu mesmo tive de escrever cartas para todos os quadrantes do mundo, quando um fidalgo rico pretendia encomendar alguma coisa. No Tibete, o fausto, a pompa eram necessidade e deviam prevalecer sempre nas festas. O povo simples não conhecia o luxo; apreciava-o, porém, nos seus senhores e rezava por que lhes aumentasse o poder. As grandes festas eram propriamente uma exibição de poderio e opulência; e os "bönpos" de alta categoria sabiam o que deviam ao seu povo; e no último dia da festa, quando os quatro membros do Conselho de Ministros trocavam os seus suntuosos chapéus pelos chapéus de franjas encarnadas dos seus lacaios, para manifestar um instante a sua identidade com o povo, o entusiasmo da massa desconhecia limites.

Mas voltemos à corrida de cavalos.

Era a festa mais popular; provavelmente, uma reminiscência das grandes paradas militares doutros tempos, quando os senhores feudais tinham de por as suas tropas diante dos olhos do suserano, em determinadas ocasiões, a fim de provar a prontidão perene, para o caso duma guerra. Esta significação está, há muito, esquecida. Contudo, muitas particularidades desses jogos recordam o período de guerras, sob a influência dos mongóis, de cujas façanhas eqüestres ainda hoje se contam maravilhas.

Assistiríamos naquele dia a provas de habilidade assombrosa dos tibetanos, que nos encheram de admiração. Toda família da nobreza destacava para esses jogos certo número de participantes e, como é natural, timbrava em escolher os melhores, para que brilhassem na equipe. A equitação e o tiro eram os esportes em que eles deviam revelar a sua mestria. Confesso quando os vi praticarem as suas proezas, fiquei mudo de estupefação: direitos na sela, enquanto o cavalo galopava em direção a um alvo suspenso, erguiam acima da cabeça a espingarda de vareta com o estopim fumegante, e atiravam em ângulo reto ao alvo; no mesmo instante, trocavam a arma de fogo pelo arco e a flecha — já então a menos de vinte metros do alvo seguinte — e o clamor entusiástico da multidão saudava outra pontaria certeira. É prodigiosa a presteza com que os tibetanos manejam e trocam as armas.

Nessas festas, evidenciava-se a hospitalidade exemplar que o governo tibetano dispensava até aos estrangeiros. Armavam-se luxuosas tendas de honra para todas as representações diplomáticas do exterior. Criados e oficiais de ligação cuidavam dos desejos dos hóspedes.

No local da festa, vimos um número excepcional de chineses. Estes embora pertençam à mesma raça, distinguem-se logo dos tibetanos; a gente do Tibete tem os olhos menos oblíquos, as feições mais bonitas, as faces rosadas. Os ricos trajes chineses eram, em muitos casos, substituídos pelo vestuário europeu;'e numerosos chineses — menos conservadores neste ponto do que os tibetanos — usavam óculos. Eram, na sua maioria, comerciantes domiciliados em Lhasa e muito favorecidos nos seus negócios, pela comunicação com a sua terra natal. Davam-se bem na capital tibetana e, não raro, ali se radicavam definitivamente. Havia para isso uma razão especial: os chineses são, em geral, opiômanos; ora, no Tibete — onde já o hábito de fumar desagradava às autoridades e, em certos casos, era sujeito a castigos — não havia nenhuma restrição para os fumantes de ópio. Muitas vezes, aliás, o exemplo dos chineses induzia o forasteiro ao uso do cachimbo de ópio. Mesmo neste caso, porém, se evidenciava o poder autoritário do governo: o hábito de fumar ópio, não podia alastrar-se além de certos limites, porque as autoridades vigiavam com severidade qualquer forma do vício de fumar. Em Lhasa, era possível obter cigarros de todas as marcas mundiais; era, porém, proibido fumar nas repartições, na rua, nas cerimônias; e, pelo Ano Novo, quando os monges assumiam o poder, suspendia-se até a venda de cigarros.

Em compensação, todos os tibetanos cheiram rape. Os monges e o povo preparavam o rape que usavam como estimulante; e cada qual se orgulhava da sua mistura. Quando dois tibetanos se encontram, o primeiro gesto é puxar a caixinha do rape e oferecer uma pitada, com o que se exibe com satisfação a caixinha, desde a mais modesta de chifre de iaque, até aos preciosos estojinhos de ouro, passando por todas as gradações. Deita-se com deleite o rape na unha do polegar; depois — nisto os tibetanos são treinadíssimos — sopram-se pela boca baforadas, nuvens de pó, sem espirrar sequer uma vez. Quando alguém rompia num espirro formidável, esse era sempre eu, com grande hilaridade dos presentes.

Em Lhasa, ainda há os nepaleses. Obesos, ricamente trajados, esses comerciantes revelam à distância como lhes correm bem os negócios. Graças a um velho tratado, eles ainda são isentos de todos os impostos — concessão que o Tibete, derrotado numa guerra, se viu forçado a outorgar-lhes — e exploram a valer esse privilégio. As mais belas lojas de Parkhor pertencem aos nepaleses, negociantes consumados, com um sexto sentido, o do "bom negócio". A maioria deles tem família na sua terra e acaba voltando para lá, ao contrário dos chineses que se casam de bom grado com tibetanas e são maridos exemplares.

Nas festas oficiais, a representação diplomática nepalesa sobressaía como uma ilha mais colorida, da confusão geral de cores. As suas roupagens sobrepujavam, com os seus tons berrantes, a exuberância geral dos matizes; e as fardas vermelhas dos seus soldados gurcas, a sua guarda do corpo, reluziam de longe.

Esses soldados gurcas tinham granjeado certa fama em Lhasa, por serem os únicos que se atreviam a passar por cima duma proibição das autoridades: a proibição de pescar. Chegando-lhe isto ao conhecimento, o governo tibetano protestou solenemente, junto da legação nepalesa. E aí começou a farsa. Os transgressores tinham, naturalmente, de ser castigados, porque a representação diplomática nepalesa fazia questão de estar bem com o governo; mas os altos dignitários também tinham as suas culpas no cartório, visto que não poucos nobres tibetanos de Lhasa sabiam dar valor a uma boa peixada. Conseqüentemente, os pobres faltosos — depois de muito barulho — foram condenados a umas quantas chicotadas. Mas o castigo não fez chorar ninguém...

E ninguém ousaria, em Lhasa, pescar sequer com anzol. Em todo o Tibete, só um povoado gozava do privilégio de poder pescar. Era uma aldeia, à margem do Tsangpo, no meio dum deserto de areia. Não medrava ali nenhum plantio nem se podia criar gado, por falta de pastagens. A pesca era, portanto, a única fonte alimentícia; e a lei fizera uma concessão. Na realidade, a população da vila era considerada de nível inferior, como os magarefes e os ferreiros.

Numericamente, os muçulmanos também constituíam uma parte notável da população de Lhasa. Possuíam um local de culto próprio e tinham plena liberdade para exercerem a sua religião. Um dos mais nobres característicos do povo tibetano era a sua isenção de proselitismo fanático, a despeito da soberania absoluta dos monges, e o respeito extremo à religião alheia.

A maioria dos muçulmanos eram imigrados procedentes da índia, absorvidos totalmente pela população tibetana. A princípio, o seu zelo religioso os induzia a exigir que as suas esposas tibetanas se convertessem ao Islam. Mas o governo interveio e determinou que só se permitiria o casamento de tibetanas com islamitas, com a condição de não abjurarem elas a sua fé. As mulheres e as filhas desses casamentos mistos continuavam a vestir o belo traje nacional tibetano e usavam o véu do Islam, simbolicamente, para cobrir a cabeça. Os homens, com fez, ou turbante, adaptavam-se bem ao quadro da cidade. Eram na maior parte comerciantes; e mantinham boas relações com a índia, particularmente com Cachemira.

Naquela prova de equitação, poder-se-iam observar na pradaria, como numa bandeja, todos os grupos raciais de Lhasa.

Lá estavam também, numa fusão colorida, ladaquis, butaneses, mongóis, siquineses, casaques, ou como quer que se chamassem os clãs vizinhos. Especialidade rara eram os hui-huis, muçulmanos chineses da província de Cucunor, proprietários dos matadouros situados num bairro especial, fora de Lingkhor, e olhados por cima do ombro porque, abatendo animais, infringiam a doutrina budista. Contudo, eles também tinham os seus templos.

Por mais que diferissem na religião, na raça, nos costumes, os habitantes de Lhasa formavam uma população compacta e homogênea, nas festas do Mês do Ano Novo. Vizinhavam pacificamente as próprias tendas dos dois grandes rivais que pleiteavam os favores do Tibete: os ingleses e os chineses.

Depois dos jogos eqüestres e das flechas atiradas aos alvos suspensos, o encerramento dos festejos seria uma competição entre membros da nobreza. Em toda a minha vida, não vi nada que se parecesse com aquilo; nem julgaria possível o que vi! Correu-se uma cortina de cor e, sobre esse fundo, colocaram-se círculos concêntricos de couro, em torno dum alvo preto duns quinze centímetros de diâmetro. O atirador tomava posição a uns trinta metros de distância e cravava a seta no centro do alvo. Durante o vôo, as flechas produziam sons estranhos, audíveis de longe. Tive ensejo de examinar uma dessas flechas: em vez da ponta acerada, encontrei no extremo da haste um castão de madeira perfurada. Os sons eram produzidos pelo ar que, durante o vôo, silvava nesses furos. Com esse projétil, o tiro era tão certeiro, que quase todas as flechas acertavam no centro do alvo. Os concorrentes aristocráticos também eram premiados com laços brancos.

Terminada a festa, os senhores feudais em solene cortejo voltaram à cidade. O povo formava alas no percurso; e admirava sem inveja os seus semideuses. Estava saturado. Tivera espetáculos para os olhos e os ouvidos. E, nos corações crentes, continuava a vibrar o misticismo das cerimônias solenes, a visão do rei-deus adolescente. Podiam reverter à vida rotineira de cada dia. Os comerciantes reabriam as lojas e recomeçavam a regatear com a costumeira ânsia de lucro; os jogadores de dados reapareciam nas esquinas; os cães invadiam de novo a cidade donde os escorraçara, por motivos óbvios, o período de limpeza...

Tudo se aquietava, em torno de nós. Aproximava-se o verão; a minha ciática melhorava. Já não se falava da nossa deportação. Eu continuava em tratamento com o médico inglês; nos dias de bom tempo podia, no entanto, trabalhar em jardins. Porque tinha encomendas às mãos cheias. Espalhara-se que a instalação do repuxo, no jardim de Tsarong, era obra minha e os membros da nobreza, um após outro, queriam réplicas dessa obra.

O tibetano preza, com efeito, o seu jardim. De todo punhado de terra faz nascer flores, não raro nos vasos mais extravagantes: bules de chá, latas de conservas, louça quebrada. Em todas as casas, em todas as peças, o enfeite são flores. E, nos jardins, se lhes presta um verdadeiro culto.

Aufschnaiter vivia muito ocupado com a construção do seu canal, o primeiro que se traçava tecnicamente no Tibete. O meu amigo trabalhava de sol a sol, descansando só nos dias festivos. E podia considerar acaso feliz o fato de serem os monges os seus empregadores. Sim: embora os nobres leigos desempenhassem papel importante na administração do país, a solução de todas as questões dependia duma reduzida camarilha de monges.

 

 

A ORDEM DOS TSEDRUNGS

 

Por isto, dei-me por muito 'satisfeito, no dia em que me chamaram, para entregar ao meu cuidado o jardim dos tsedrungs.

Os tsedrungs eram monges-funcionários, congregados numa espécie de ordem e, pela sua educação austera no espírito de

fraternidade, muito superiores aos funcionários seculares investidos no poder. Formavam o ambiente mais chegado ao Dalai Lama. Todos os servos pessoais do jovem deus pertenciam à ordem; os seus camaristas, os seus mestres, os seus acompanha-dores eram tsedrungs de alto nível. Demais, o Dalai Lama tomava parte nas reuniões obrigatórias da ordem, convocadas diariamente, para cultivar o espírito de camaradagem.

Os monges funcionários da ordem dos tsedrungs passavam, sem exceção, por uma formação severa, na sua escola situada na ala leste do Potala. Os mestres vinham tradicionalmente do famoso claustro de Möndroling, ao sul do Tsangpo, notório pelo estudo que lá se fazia da gramática e da literatura tibetanas. Qualquer moço tibetano podia freqüentar a escola dos tsedrungs. Entrar na ordem apresentava mais dificuldades. Em virtude dum regulamento secular, o número dos membros da ordem era limitado: os tsedrungs eram sempre cento e setenta e cinco. A mesma restrição sofria o número dos funcionários leigos. Conseqüentemente, no Tibete sempre houve trezentos e cinqüenta funcionários, ultimamente, a criação de novos cargos aumentou um tanto esse número.

Completando dezoito anos, o aspirante a monge submetia-se a determinadas provas. Se fosse aprovado — e, naturalmente, apadrinhado — entrava a fazer parte da ordem no nível zero, podendo elevar-se, conforme as suas aptidões, até à terceira categoria. Os tsedrungs vestiam as usuais sotainas vermelhas e, sobre elas, o distintivo das respectivas classes; os da terceira, por exemplo, usavam roupagens de seda amarela. Os jovens educandos dos tsedrungs vinham das camadas populares e serviam de sadio contrapeso à aristocracia profana hereditária. Abria-se-lhes um vasto campo de ação. Não havia, com efeito, função burocrática em cujo exercício não figurasse, juntamente com o funcionário profano, pelo menos um monge-funcionário. Com esse desempenho comum dum cargo, evitava-se a ditadura despótica individual, um dos perigos sempre presentes num regime feudal.

Fora o primeiro camarista do pequeno rei-deus, que tinha o título sonoro de Drönyer Tshemo, que me mandara chamar, para me propor que arranjasse o jardim dos tsedrungs. Grande oportunidade para mim! O dignitário deixara, com efeito, transparecer que o jardim do Dalai Lama também precisava ser modernizado; se o meu trabalho agradasse... Aceitei imediatamente. Puseram-me à disposição certo número de trabalhadores; eu pus mãos à obra, com o máximo zelo. Mal me sobrava tempo para as lições particulares de inglês e matemática a alguns jovens aristocratas.

Que mais nos poderia atingir? As nossas empreitadas procediam de altas autoridades religiosas. Não seria indício de que se haviam acostumado à nossa presença e nos toleravam, sem objeções?

Mas ainda íamos sofrer um choque: certa manhã, visitou-nos um alto funcionário do Ministério do Exterior, Kyibub, o último dos quatro estudantes tibetanos que haviam estado anos em Rugby. Trazia-o uma incumbência penosa que ele desempenhou com muitas desculpas e visível contrariedade. O médico inglês declarara-me apto para viajar, e o governo contava com a nossa partida imediata. Como prova, Kyibub mostrou-me uma carta do médico inglês. Dizia este que eu ainda não estava completamente são; entretanto a viagem não representava para mim perigo de vida.

Aufschnaiter estava, como eu, aturdido. Já não contávamos com isso! Mas, voltando à realidade, tentamos argumentar com serenidade e cortesia. Sim: eu estava quase bom; contudo, a menor coisa poderia causar uma recaída; que seria de mim, se em meio duma viagem fatigante não pudesse dar um passo? Além disto, estávamos justamente na época de começar na índia o calor forte. Quem se habituara ao ar saudável de Lhasa não resistiria, sem inconvenientes a essa mudança. E que seria também do nosso trabalho, começado aliás por ordem de altas autoridades? Como se podia pensar em impedir que o levássemos a termo? Endereçaríamos outra petição ao governo...

Por dentro, porém, já nos víamos a caminho da índia e já planejávamos em que região do Himalaia nos safaríamos; porque os nossos camaradas continuavam atrás dos aramados, embora estivéssemos já em abril de 1946.

Entretanto, a partir desse dia, não tornamos a ouvir falar de ordem de deportação, se bem que nos demorássemos ainda por certo tempo.

E íamos tomando pé em Lhasa. Já não despertávamos atenção na rua e as crianças deixavam de apontar-nos. Já agora, recebíamos visitas, não de gente curiosa, mas de verdadeiros amigos. A legação britânica também parecia convencida de que não éramos indivíduos perigosos; com efeito, embora Dehli houvesse exigido a nossa extradição, aparentemente essa exigência não impressionara ninguém... As camadas oficiais do Tibete garantiam-nos que éramos ali muito benquistos.

E íamos progredindo. Já ganhávamos tanto, que não precisávamos depender da hospitalidade generosa de Tsarong. O nosso trabalho granjeara-nos muitas amizades; o tempo voava. A única coisa que nos faltava eram cartas de casa. Fazia mais de dois anos que não recebíamos notícias. Com certeza, julgavam-nos mortos. Consolávamo-nos, pensando em que a nossa situação era bem suportável e tínhamos 'todas as razões para estar satisfeitos; tínhamos onde morar, sem nenhuma preocupação pela nossa subsistência. Não invejávamos o progresso do Ocidente. A Europa e o seu tumulto estavam bem longe. Por vezes, sentados ao pé do rádio a ouvir os noticiários, meneávamos a cabeça; não nos davam vontade de voltar...

Os convites das famílias da sociedade de Lhasa punham muita diversão na nossa vida. Apreciávamos cada vez mais a hospitalidade tibetana e os pratos finos, escolhidos, que nessas ocasiões apareciam na mesa.

 

 

O FILHO MAIS NOVO DA MÃE DIVINA

 

Mas tudo o que víramos até aí, foi ofuscado pela primeira recepção oficial a que assisti, em casa dos pais do Dalai Lama. A falar verdade, assisti por mero acaso. Trabalhava justamente no jardim, porque ali também ia introduzir inovações, quando Mãe Divina mandou chamar-me, para me dizer que suspendesse o trabalho e fosse juntar-me aos seus convidados. Considerei com certo acanhamento a brilhante sociedade reunida no salão: uns trinta membros da aristocracia tibetana, nos seus melhores trajes e nas melhores disposições. Inteirei-me do motivo da recepção: festejava-se o nascimento do filho mais novo que viera ao mundo três dias antes. Formulei as minhas congratulações e apresentei um laço branco, arranjado às pressas. Mãe Divina sorriu com ar benévolo. Mais uma vez a admirei, vendo-a andar dum lado a outro no salão, entretendo-se animadamente com as visitas. É incrível a presteza com que as parturientes se restabelecem, nesta terra. Ninguém dá muita importância ao caso. Não há médicos; as mulheres se assistem reciprocamente. Toda mulher se orgulha de ter prole numerosa e sadia; ama-menta ela própria os filhos, com uma resistência admirável: não é raro ver crianças de três e quatro anos, pedirem ainda o peito materno. As mulheres dos nômades e dos pobres trazem os seus bebês nó bolso do peito da sua pele de carneiro; e a criancinha, quando tem fome, sabe achar o seu alimento. Pobres e ricos, no Tibete todos gostam de ter muitos filhos e tratam os pequenos com carinho. Infelizmente, as moléstias venéreas ceifam vítimas em quase todas as famílias; são raras por isto as cidades de população infantil numerosa.

Nas casas nobres, cada criança que vem ao mundo é entregue ao cuidado duma criada particular que não a abandona nem de dia nem de noite. O nascimento dum filho sempre é festejado solenemente. Não há batismo nem padrinhos, na acepção ocidental. O nome — ou melhor: os nomes, porque toda criança recebe mais de um — é escolhido por um Lama que, para essa escolha, toma em consideração aspectos astrológicos e relações com os santos. Se a criança sobreviver a uma grave enfermidade, dão-lhe outro nome, porque o primeiro é reputado agourento e, portanto, substituído.

Aconteceu, por exemplo, que um meu amigo adulto teve uma terrível disenteria. Curou-se e recebeu outro nome... que eu sempre trocava pelo antigo.

A celebração do nascimento do irmão mais novo do Dalai Lama foi uma festa alegre e realmente luculiana. Os convidados sentaram-se, em almofadas, a mesinhas dispostas rigorosamente de acordo com a sua classe e o seu prestígio.

Duas horas durou o festim, durante o qual foram servidos, um após outro numerosos pratos novos. Tentei contá-los e cheguei só até quarenta. Requer treino, conter-se no princípio, para resistir até à última iguaria. Lacaios desembaraçados punham travessas e terrinas nas mesas, serviam sem ruído e voltavam com outras preciosidades. Havia de tudo! Petiscos de todas as partes do mundo, ao lado dos pratos nacionais de carne de carneiro e de iaque, de galinha com arroz. E mais especialidades indianas, curry e todos os ingredientes imagináveis. Para terminar, a sopa de massa; mas aí já ninguém se agüentava. Ainda assim — mesmo cansados de comer — alguns convidados quiseram jogar. E o tempo passou, voando, até à noite, quando se serviu uma ceia, se possível mais opípara; que também se prolongou por várias horas. Era de admirar que ainda houvesse manjares desconhecidos. Bebeu-se tchang em grande quantidade, porque a comida picante dava muita sede. Quem achava a cerveja muito leve, podia servir-se de uísque ou de vinho do Porto. O entusiasmo aquecia e o anfitrião folgava de ver os hóspedes alegres. Um pileque não é nenhuma vergonha; vale por uma contribuição para o bom humor.

A recepção em casa da parturiente interrompeu-se logo após a ceia. Fora, esperavam criados e cavalos, para levar os convidados às suas residências — o cúmulo da hospitalidade. Despedimo-nos entre agradecimentos e ainda recebemos um laço branco para o pescoço. Cruzavam-se convites de todos os lados; seria necessário um ouvido muito apurado, para distinguir os que eram feitos com intenção sincera, dos que não passavam de meras fórmulas de cortesia. Passou-se muito tempo, antes que Aufschnaiter e eu aprendêssemos a diferençar as gradações sutis, de tom e de forma de frase. Podíamos contentar-nos com o modo como éramos convidados.

 

 

CAMARADAGEM COM LOBSANG SAMTEN

 

Fomos hóspedes com freqüência, nessa casa; em breve se estabeleceu uma verdadeira amizade entre nós e Lobsang Samten que era de fato um simpático rapaz. Estava então no início da sua carreira de monge-funcionário, carreira brilhante, traçada pela sua origem, pela sua situação de irmão do Dalai Lama. Mais tarde, desempenharia um grande papel, como intermediário entre o jovem rei-deus e o governo. Mas o peso dessa dignidade já lhe ensombrava a vida: Lobsang Samten não tinha liberdade de movimentos; do menor dos seus passos tirava-se imediatamente uma conclusão. Quando lhe acontecia ter de ir a casa dum alto funcionário, nalguma ocasião oficial, todos fossem eles membros do Gabinete ou governadores — levantavam-se para reverenciar o irmão do rei-deus. Tudo isso poderia subir facilmente à cabeça dum adolescente. Lobsang Samten, porém, conservava a sua índole modesta.

Falava-me com freqüência do irmão mais moço que levava uma existência solitária no Potala. Eu notara muitas vezes, em reuniões elegantes, que os convidados tratavam de se esconder, fosse como fosse, mal se perfilava lá a figura do Dalai Lama, passeando no terraço do palácio. Lobsang deu-me disso uma explicação comovedora: o Dalai Lama possuía muitos binóculos de primeira qualidade, recebidos de presente, e divertia-se em observar vida e feitos dos seus súditos. Porque, para ele, o Potala era uma gaiola dourada. O Dalai Lama passava muitas horas do seu dia, estudando e orando, em recintos escuros. Os lazeres e diversões, que lhe permitiam, eram muito limitados. Portanto, quando os participantes duma alegre festa social se sentiam observados, furtavam-se com a presteza possível ao campo visual do binóculo, a fim de poupar uma tristeza ao soberano que jamais havia de conhecer essa alegria.

Lobsang Samten era o seu único amigo e confidente, já então intermediário entre o mundo exterior e o rei-deus, pois tinha de contar ao irmão todas as novidades. Assim eu soube que o Dalai Lama se interessava muito pela nossa atividade e que o seu binóculo me colhera muitas vezes trabalhando nos jardins.

Lobsang contou-me também que seu irmão gostava muito de veranear em Norbulingka. Entrara a bela estação do ano; o jovem rei-deus achava o Potala muito estreito e ansiava por fazer exercício ao ar livre. Partiria, assim que fosse possível.

Acabaram as tempestades de areia; floriram os pessegueiros. Nos picos próximos, os últimos restos de neve brilhavam sob o sol quente; esse contraste dava à primavera o encanto peculiar que eu já lhe conhecera, nas montanhas da minha pátria. E chegou o dia em que o verão passa a estar em vigor, o dia da troca da roupa de inverno pela indumentária estiva. Efetivamente, não se despia a pele do inverno a critério de cada um. De acordo com certas previsões de velhos livros sacros, fixava-se anualmente uma data em que os monges e a nobreza estreavam a roupa de verão, pouco importando que houvesse feito calor antes dessa data, ou que ainda estrondassem tempestades e nevascas. O mesmo ocorre no outono, com a troca das roupas leves pelos abrigos de peles. Eu ouvia continuamente queixas, porque essa troca de roupa ocorrera prematuramente ou demasiado tarde, porque ora se morria de calor, ora se gelava de frio. Mas o que se decidia era mantido.

A troca se fazia em forma de assembléia, com uma cerimônia que durava horas. Os criados traziam às costas as trouxas com a nova indumentária. No caso dos monges, era mais fácil: eles trocavam apenas o chapéu debruado de pele por outro, em forma de prato, de "papier-maché". E a cidade inteira mudava subitamente de aspecto, quando os cidadãos apareciam todos, de repente, com outra roupa. Havia, porém, mais uma troca de vestuário, no dia em que o funcionalismo acompanhava, em cortejo solene, o soberano ao jardim de verão.

Aufschnaiter e eu esperávamos com alvoroço essa procissão. Teríamos, sem dúvida, ensejo de ver de perto o Buda vivo.

 

 

PROCISSÃO A NORBULINGKA

 

Num esplêndido dia de sol, verdadeiro dia de verão, a cidade em peso saiu pela porta ocidental, para formar alas, na extensão de três quilômetros, que separa o Potala de Norbulingka. E foi um tento conseguir um bom lugar, naquela aglomeração, que se adensava perigosamente!

Tudo o que tinha pés acudia, de longe e de perto. Isto, por si só, já era um espetáculo deslumbrante; e mais uma vez lamentei não ter máquina fotográfica. Mas teria de ser filme colorido, para fixar esse quadro movimentado e multicor. A festa da entrada do verão era um dia de júbilo para moços e velhos; eu mesmo me alegrava de que o deus quase menino pudesse sair da sua prisão sombria para um jardim luminoso. Não havia sol bastante, na sua vida!

Imponente, grandioso na arquitetura externa, o Potala é, como habitação, extremamente escuro e desconfortável. É de crer que todos os reis-deuses não se tenham dado bem nele, porque a construção da casa de campo de Norbulingka foi iniciada sob o VII Dalai Lama. Contudo, só o Dalai Lama XIII a completou.

O Dalai Lama XIII foi um grande reformador e, ao mesmo tempo, um homem de mentalidade moderna, o primeiro rei-deus que tomou a liberdade de mandar vir a Lhasa três automóveis, coisa inaudita para aquela época! Carregadores e iaques os trouxeram, desmontados, às montanhas. Em Lhasa os tornou a armar um mecânico que aprendera esse ofício na índia. Fora depois "motorista real" e contava-me muitas vezes, com tristeza, casos ocorridos com os três veículos — dois Austins e um Dodge — que anos antes eram sensação no "telhado do mundo" e agora choravam o dono morto, enferrujando veneràvelmente. Ainda despertava hilaridade em Lhasa o modo como o Dalai Lama XIII utilizava os seus carros para fugir do palácio de inverno. No outono, fazia-se com toda a pompa a solene procissão do regresso; pouco depois, o Dalai Lama metia-se num dos seus carros e esgueirava-se discretamente para Norbulingka.

Sons de instrumentos de sopro anunciaram a aproximação do cortejo. Serpeou um murmúrio no meio da multidão, mas logo se restabeleceu o silêncio respeitoso, mal apareceu a vanguarda, formada por um exército de monges-serventes, trazendo solenemente os objetos de uso pessoal de Sua Santidade, entrouxados em lenços de seda amarela. O amarelo é a cor da igreja lamaísta reformada, denominada abreviadamente "Igreja amarela". Uma antiga lenda explica por que se escolheu como símbolo essa cor:

Tsong Kapa, o grande reformador do budismo, no Tibete, ao entrar no claustro de Sakya, ocupava o último lugar na turma de noviços. Quando chegou a sua vez na vestidura, os chapéus vermelhos usados pelos monges tinham acabado; houve que arranjar para ele um chapéu qualquer. Calhou ser o chapéu amarelo. Tsong Kapa nunca se descartou dele; e o amarelo foi o símbolo da Igreja reformada.

O Dalai Lama também usava, em recepções e cerimônias, um barrete de seda amarela; esta cor caracterizava todos os seus objetos de uso e era seu exclusivo privilégio.

Adiantavam-se os portadores das grandes gaiolas dos pássaros favoritos do rei-deus. De quando em quando, um papagaio vociferava frases de saudação, que a massa recebia com um suspiro extasiado, como se fossem mensagens pessoais do seu deus. Aos servos, seguiam-se a certa distância monges porta-estandartes, precedendo uma banda de música montada, uniformizada com trajes antigos e munida de instrumentos antiquados. O som lamentoso destes instrumentos e o toque dos tambores nem sempre eram afinados; mas tudo aquilo fazia muito barulho e era posto em cena em grande pose. Vinha depois a ordem dos tsedrungs, também a cavalo, observando rigorosamente a hierarquia. Sucediam-lhe os palafreneiros com os cavalos favoritos do Dalai Lama, suntuosamente ajaezados: freio amarelo e todas as partes metálicas, bem como a sela de ouro puro. Os xairéis eram de grosso brocado russo. Como se tivessem consciência do valor que representavam, os ginetes caracolavam, airosos e insofridos, por entre a admiração silenciosa da multidão.

E aí vinham finalmente os senhores supremos do país! O vértice da hierarquia, os homens investidos na missão excelsa de velar pelo rei-deus: camaristas, copeiros, professores e todos os dignitários que estabeleciam a ligação entre o governo e o povo — os únicos, salvo os membros da família, que tinham o privilégio de dirigir a palavra ao jovem deus: abades com roupagens de seda amarela sobre a sotaina usual, flanqueados dos rapagões atléticos da guarda do corpo de Sua Santidade, selecionados com o máximo rigor. Nenhum deles media menos de dois metros de altura; mas contaram-me que houve um de dois metros e quarenta e cinco centímetros! Verdadeiros colossos, de ombros possantes, armados de longos chicotes. O único som humano, naquele silêncio temeroso vinha deles, exortando continuamente o povo, em tons de baixo profundo, a retrair-se, a tirar o chapéu. Devia ser parte do cerimonial, creio eu; porque, independentemente disso, os espectadores mantinham-se em atitude reverente, de cabeça baixa e mãos juntas, dos lados do trajeto; muitos prostravam-se no chão.

Surgiu então o comandante do exército tibetano, de espada desembainhada. O seu sóbrio uniforme caqui destoava singularmente das vestes suntuosas de seda e brocado dos demais membros do préstito; mas, como as particularidades da farda ficavam entregues à sua fantasia, as dragonas e os distintivos eram de ouro. O general trazia na cabeça um capacete tropical.

Aproximou-se enfim — e todos contiveram o fôlego — brilhando como ouro à luz do sol, a cadeirinha de seda amarela do jovem Buda vivo. Carregavam-na trinta e seis portadores vestidos de seda verde, com a cabeça coberta por gorros chatos, encarnados. O contraste das cores fortes, luminosas: amarelo, verde, vermelho, era arrebatador. Um monge mantinha aberto sobre a cadeirinha um gigantesco guarda-sol irisado, de penas de pavão — uma festa para os olhos, um quadro que se diria ressuscitado dalguma lenda oriental, esquecida há muito.

 

 

QUEREMOS VER O DALAI LAMA

 

Em torno de nós, a multidão curvava-se profundamente; ninguém ousava levantar os olhos. Nós por certo sobressaíamos, porque mal nos inclináramos. Custasse o que custasse, queríamos ver o Dalai Lama! E, de repente, um rostinho de traços finos curvou-se, colou-se quase à vidraça da cadeirinha, sorriu-nos — um sorriso de criança, em feições cheias de encanto e dignidade inatos. Ele também tivera curiosidade de ver-nos. Sentimos o seu olhar demorar-se em nós!

A cadeirinha avançava lentamente, em ritmo compassado, solene. Era surpreendente a sincronização dos movimentos dos trinta e seis portadores. Mais tarde, disseram-me que esses homens treinavam semanalmente sob a direção dum nobre tibetano, com uma cadeirinha exatamente igual; por isso conseguiam esse passo harmonioso.

Passara o centro espiritual da procissão... Vinha agora o poder temporal. Ladeavam a cadeirinha do Dalai Lama os quatro ministros, montados em cavalos soberbos. Atrás deles, adiantava-se outra cadeirinha igualmente suntuosa, mas com menos portadores: a do Regente. Tagtra Gyeltshab Rimpotche, o "tigre de pedra, o nobre suplente do rei", velho fidalgo de setenta e três anos, de olhar cravado ao longe, não sorriu à multidão, não deu mostras de lhe notar a presença. Austero substituto do jovem rei, tinha tantos inimigos quantos amigos.

O silêncio do povo era quase inquietante. Atrás do regente, cavalgavam as "três colunas do Estado": os abades dos claustros de Será, Drebung e Ganden. Também usavam, sobre as sotainas, mantas amarelas; mas de lã. E cobriam a cabeça raspada, com chapéus chatos de "papier-maché" dourado. Marchavam, em seguida, as várias categorias da nobreza profana, em ordem hierárquica. Todos os membros duma classe usavam o mesmo tipo de vestuário; curiosos eram os barretes de várias formas, e até grotescos como os minúsculos gorros brancos da nobreza de classe inferior, que mal cobriam o nó dos cabelos e eram atados com uma fita, debaixo do queixo.

Eu me absorvia em observar o espetáculo, quando sons conhecidos me feriram o ouvido: o hino inglês! Chegando a meio caminho do Palácio de Verão, a banda da guarda do corpo entrou na forma, para a passagem do Dalai Lama... e executou o hino inglês! Eu já o ouvira mais bem tocado; nunca ele me impressionara, no entanto, como nesse momento. Mais tarde, tive a explicação; era simples imitação mal-entendida dum uso europeu: o regente da banda, que se formara com outros oficiais, no exército inglês da índia, reparara em que o hino desempenhava papel de relevo, em cerimônias oficiais, e trouxera-o ao Tibete. Existia para essa música um texto em tibetano; eu, porém, nunca o ouvi cantar.

Afora certas desafinações das trompetes, que podemos atribuir à ausência do oxigênio, a charanga deu conta do seu hino até ao fim é colocou-se, já então, à retaguarda do cortejo. Aí, gaiteiros da banda do corpo policial de quinhentos homens, formado nas vizinhanças de Norbulingka, tocaram canções escocesas.

A música tibetana, que tive ensejo de ouvir, conhece só a composição musical em uníssono; as suas melodias, ora alegres, ora melancólicas, agradam ao ouvido; e o ritmo pode mudar muitas vezes, na mesma peça.

O cortejo solene ia desaparecendo além do portão do jardim, onde ainda se realizaria outra longa cerimônia. Encerraria a festa, um almoço oferecido aos funcionários.

A multidão dispersou-se. Uns voltavam ao trabalho; outros, já que estavam no campo, aproveitavam o dia radioso para piqueniques. Acabava de passar um dos grandes acontecimentos do calendário popular e de bom grado se alongava um tanto o dia festivo. As damas da nobreza, as senhoras dos comerciantes exibiam os chapéus novos de verão, flertavam um pouco e teriam assunto para muito tempo. Suando sob as peles quentes de carneiro, os nômades desarmavam as suas tendas; visto o cortejo solene, apressavam-se a voltar à sua terra fria, o Changtang.

Assim como no Tibete ninguém se abalança a fazer peregrinações à índia, no verão, assim os nômades não se sentem bem em Lhasa, quando faz calor. É que Lhasa fica "apenas" a 3.700 metros de altitude; o nômade, que vive em geral mil metros acima da capital tibetana, não está habituado à temperatura elevada da capital.

Nós também fomos indo para casa, impressionados pelo que tínhamos visto. Não se poderia achar, para as condições políticas do país, alegoria melhor do que a cena a que acabávamos de assistir. O centro e o ponto mais alto eram o Dalai Lama e o regente. À esquerda e à direita, dispunham-se, em ordem descendente, categorias iguais. E os monges formavam a vanguarda da procissão que era uma demonstração evidente da sua importância no Estado. Só em segunda linha figurava a nobreza.

O centro do edifício do Estado era a religião. O peregrino expunha-se a mil peripécias, o nômade vinha do longínquo Tchangtang, a fim de assistir uma vez por ano à manifestação deslumbrante da sua crença; depois, revertia à soledade da sua existência dura. O curso do dia do povo era ditado pela fé; giravam incessantemente os moinhos de preces e os devotos murmuravam fórmulas piedosas; tremulavam as flâmulas com orações, nos telhados e nos passos montesinos. A chuva, o vento, todos os fenômenos da natureza, os picos solitários cobertos de neve e gelo, são testemunhos da onipresença dos deuses; as saraivadas de granizo são a sua cólera; a medrança, a fertilidade, são sinais da sua benevolência. A vida do povo era orientada, segundo essa vontade, cujos intérpretes eram os Lamas. Sondavam-se ansiosamente os sinais; antes de todo princípio, estão bons ou maus presságios; rezava-se, pensava-se, conjurava-se sem cessar. Em toda parte, ardiam os candeeiros de manteiga, na casa mais aristocrática, tanto quanto na tenda do nômade. Tremulasse a chama no recipiente de cobre dos indigentes, ou no vaso de ouro dos ricos, era a mesma a fé que a acendia. No Tibete, a existência terrestre não tem muita cotação; a morte não apavora. O tibetano sabe que nascerá outra vez e espera obter, com uma peregrinação devota, uma forma de vida mais elevada, na próxima encarnação. A Igreja é a instância suprema; o mais humilde dos monges era respeitado pelo povo que o tratava por "kuscho", forma de tratamento reservada outrora à nobreza inferior. Toda família dava pelo menos um filho ao claustro, provando assim o seu temor da Igreja e preparando a esse filho um princípio de vida indubitavelmente melhor.

Em todos aqueles anos, nunca me sucedeu encontrar sequer uma pessoa que externasse a mínima dúvida sobre a doutrina de Buda. Sim; havia muitas seitas; mas as diferenças eram só aparentes; não se esconde o fervor íntimo que todas elas irradiam. Depois de breve permanência no Tibete, eu já não matava distraidamente uma mosca; e, estando com um tibetano, não me atreveria a esmagar um inseto, só porque este me importunava. A este respeito, havia coisas comoventes; num piquenique, a formiga, que subisse num dos participantes, era tirada e largada com todo o cuidado. Quando sucedia cair uma mosca numa taça de chá, era uma tragédia: antes de sorver a infusão, salvava-se a mosca, porque ela bem poderia ser a reencarnação da falecida vovó. Sempre e em toda parte, era preocupação constante essa salvação de vidas e almas. No inverno, quebrava-se o gelo dos charcos, para livrar peixes e vermes, antes de gelarem. No verão, eram recolhidos, quando o charco ameaçava secar. As crianças, os mendigos, os criados das casas nobres, passavam por vezes horas inteiras na água, pescando na água turva tudo o que lá ainda vivesse e que, guardado em baldes ou latas de conserva, era posto em liberdade no rio, com o que já se fizera alguma coisa pela salvação da sua alma. Ou ia-se de casa em casa, vendendo os "salvados" às famílias abastadas, a fim de que estas participassem da obra de caridade. Seria mais feliz, quem salvasse o maior número de vidas. Essa comunidade com todas as criaturas é um traço deveras comovente da alma do povo tibetano.

Nunca hei de esquecer um caso desse gênero, ocorrido com o meu amigo monge-funcionário Wangdüla. Fomos os dois ao único restaurante chinês de Lhasa. No pátio, alguém tentava pegar um ganso destinado visivelmente à panela. Wangdüla puxou prontamente uma cédula, comprou o ganso do chinês e mandou-o levar por um seu criado à sua casa onde eu ainda vi por vários anos, a ave ciscar, desfrutando uma velhice sossegada.

Foi típico dessa atitude para com todos os seres vivos o decreto promulgado durante os três anos de meditação do jovem Dalai Lama e que regulamentava a atividade, no sector das construções, em todo o Tibete. Enviaram-se correios em todas as direções; o decreto tinha de chegar aos mais longínquos rincões do país. Com efeito, ao revolver o terreno, por mais cuidado que se tivesse, matar-se-iam inevitavelmente vermes e insetos. Mais tarde, quando me tocou dirigir trabalhos de construção, vi com os meus olhos os cules largarem a ferramenta, para alijar — e salvar — todos os bichinhos contidos em cada torrão de terra.

Conseqüência lógica desse modo de pensar era não haver pena de morte no Tibete. O homicídio, reputado o crime mais abominável, era punido apenas com determinado número de açoites e com o uso de grilhões soldados nos tornozelos. A fustigação era, no fundo, suplício mais cruel do que a nossa sentença de morte, pois redundava freqüentemente em morte, precedida de horríveis tormentos. Não infringia, no entanto um artigo de fé. Os grandes criminosos condenados à grilheta ou acabavam em prisão perpétua, no cárcere do Estado em Shö, ou eram entregues a governadores distritais que tinham de se responsabilizar por eles. Tomamos conhecimento pessoalmente dum caso desse gênero; e, naquela ocasião, a sorte daquele assassino não nos parecera merecedora de tanta clemência. Fora condenado a arrastar os grilhões a vida inteira e o Estado não lhe dava de comer. Ainda assim, havia pessoas tão compassivas que o alimentavam, de pena — sempre, com o fito de salvar uma vida. Os criminosos, que cumpriam sentença na prisão, não passavam tão bem; tinham apenas um privilégio: nos dias do nascimento e da morte de Buda, podiam esmolar, acorrentados dois a dois, em Lingkhor.

 

A nora do ministro do Exterior Surkhang Dashigme, com filho.

 

 

Jogo de dados, num piquenique. No estio, fora do serviço e das vistas dos superiores, o traje europeu é muito apreciado.

 

Dança de monges bailarinos, com cabeça e máscara de animal, no pátio de Potala.

 

 

Ministros e aristocratas assistem a uma cerimônia.

 

Os ladrões, os delinqüentes menores, também eram açoitados em público. Aos transgressores punha-se uma tabuleta ao pescoço, com a especificação da culpa; tinham de passar assim alguns dias, numa espécie de pelourinho. E, nessas ocasiões, também havia almas caridosas que lhes davam de comer e de beber. Os salteadores e gatunos presos eram apresentados à justiça. De ordinário, se lhes amputavam as mãos, ou os pés. E era horrível, como tive ensejo de ver, o processo de esterilização da ferida: mergulhar o membro mutilado em manteiga fervente. Todavia, nem isso escarmentava os malfeitores. Contou-me um governador que os condenados apresentavam as mãos com um gesto insolente e, na semana seguinte, reincidiam no crime. Tamanha coragem surpreendia a própria autoridade. De resto, em Lhasa, a cidade santa, essas sentenças desumanas, já não se executavam desde vários anos.

Os delitos políticos eram punidos com extrema severidade. Ainda hoje se fala do castigo que se infligiu aos monges do claustro de Tengyeling que, há uns quarenta anos, tentaram pactuar com os chineses: o mosteiro foi arrasado; e delido para sempre o seu nome.

Não havia, no Tibete, magistratura profissional. A investigação de cada caso era confiada a dois ou três nobres tibetanos, sistema que, infelizmente, levava ao suborno. Raros membros da nobreza tinham fama de incorruptíveis. As somas provenientes de suborno consideravam-se freqüentemente boa fonte de renda do regime feudal. Sucedia, pois, que certos casos duvidosos eram decididos como insignificâncias. Quem se julgasse injustiçado dispunha dum grande recurso: entregar pessoalmente uma carta ao Dalai Lama, durante uma procissão. Seria, em todo caso, punido por essa infração do cerimonial; todavia, se o Dalai Lama opinasse que a reclamação era justa, o reclamante seria logo favorecido. Apurando-se que ele não tinha razão, infligiam-lhe duplo castigo, pela sua desfaçatez...

Salvo nos vinte e um dias de reinado dos monges pelo Ano Novo, na cidade santa o conselho municipal era ao mesmo tempo tribunal de justiça. Designavam-se para esse encargo dois funcionários leigos; e eles tinham muito que fazer, pois na esteira dos inúmeros peregrinos muita ralé invadia a cidade santa.

O regime tibetano apresentava uma exceção: o caso dos "katsaras", mestiços de tibetanos e nepaleses. Os katsaras tinham autoridades próprias — a metade tibetanas, a outra metade nepaleses; esses dignitários cuidavam também das relações diplomáticas entre o Tibete e o Nepal.

 

 

ESTIAGEM E O ORÁCULO DE GADONG

 

Após a instalação do Dalai Lama no Palácio de Verão, entrou em ritmo acelerado o estio, estação maravilhosa em Lhasa. A temperatura sobe aos 35 graus e as noites são aprazivelmente frescas. Mas o clima seco logo se faz sentir; as chuvas são raras e, em breve, todos suspiram por um bom aguaceiro. Em Lhasa não faltam, em verdade, chafarizes de pedra; mas quase todos os anos ficam enxutos. Nessas emergências, a população tem de recorrer ao Kyitchu. O rio naturalmente é considerado saudável — embora de quando em quando se lancem cadáveres às suas águas. Mas os peixes se encarregam de fazê-los desaparecerem prontamente. A água do rio é fresca e límpida como a dum regato montesino, porque desce das geleiras do Nyentschenthangla.

Quando secam as fontes da cidade e os campos de cevada esturram ao sol, publicava-se todos os anos um curioso decreto oficial: até ordem contrária, todo habitante de Lhasa tinha de molhar as ruas da cidade santa. Começava então uma estranha atividade, como se estivéssemos numa Schilda oriental. Tudo o que tivesse mãos e pés corria, com balde e bilhas, ao rio e esparramava o líquido precioso na cidade. Os nobres mandavam os seus criados; mas tomavam-lhes das mãos as bilhas cheias e entravam com entusiasmo na batalha da água. Porque nem só as vias públicas eram regadas; os passantes também. Pobres e ricos, moços e velhos, todos estavam na rua. Já não havia diferença de classes; não se fazia senão regar, despejar e esguichar água, patinhar no molhado. Das janelas choviam jactos líquidos à traição; dos telhados cascateavam riachos; chafarizes antigos, recuperados, espirravam-nos de repente na cara. E as crianças, então! Até que um dia tinham licença para fazer o proibido! E nisso, naturalmente, não olhavam as conseqüências. É óbvio que não havia remédio senão mostrar boa cara àquela brincadeira perversa, ainda que estivéssemos molhados da cabeça aos pés. Fazer de desmancha-prazeres poderia provocar dose dupla. Se alguém se punha a xingar, a frente inteira dos petulantes aguadeiros voltava-se incontinenti para o malfadado ranzinza e não lhe deixava no corpo um pêlo enxuto.

Era uma autêntica festa popular! As casas de comércio funcionavam de portas encostadas; e quem pretendesse fazer compras em Parkhor, voltava à casa encharcado. Eu, naturalmente, era muito visado. Com a minha altura, oferecia-lhes um alvo excelente; no "tschermen Henrigla", no alemão Henrique, acertava-se melhor do que nos outros.

Enquanto estrondava nas ruas de Lhasa a batalha da água, o "oráculo de Gadong", o mais famoso "fazedor de chuva" do Tibete, era convocado ao Palácio de Verão do Dalai Lama. Ali o aguardava uma luzida assembléia dos mais altos dignitários do governo, presidida pessoalmente pelo Buda vivo. Diante daquele público em expectativa, o monge caiu um momento em transe, cambaleando e gemendo. Um monge-funcionário impetrou então chuva, a fim de que o país não sofresse os danos da má colheita. Os movimentos do oráculo tornaram-se extáticos; o seu murmúrio confuso mudou para uma série de gritinhos... E já estava a postos o secretário incumbido de interpretar e transcrever as palavras oraculares. Entregou depois o escrito ao Conselho de Ministros. O corpo do médium, abandonado pelo seu deus, recaiu inerte e foi levado em braços.

A partir daí, Lhasa esperou, em peso, as chuvas. Choveu realmente. Creia-se no sobrenatural, ou procure-se uma explicação racional, resta o fato de chover infalivelmente, depois duma dessas cenas. Para os tibetanos não sofria dúvida que a divindade protetora se incorporara no feiticeiro em transe e ouvira a súplica do seu povo.

Eu, naturalmente, não me dei por satisfeito com isso e procurei uma explicação mais positiva. Não teria a água, que durante dias inundara as ruas, provocado a formação de nuvens? Ou seriam os prolongamentos das monções, chegando com certo atraso ao planalto tibetano?

A representação diplomática britânica instalara uma estação meteorológica; fazia medições escrupulosas e registrava, em média anual, uma precipitação de 35 centímetros, verificando-se regularmente a maior altura nesse período do ano. Mais tarde, Aufschnaiter conseguiu marcar, com o seu pluviômetro, o princípio da elevação anual das águas do Kyitchu quase exatamente nesse mesmo dia. Envolvendo-se num quê de misticismo, o meu amigo daria um bom oráculo.

Segundo depoimento geral, os arredores de Lhasa gozaram antigamente de precipitação muito superior. Havia grandes florestas, graças às quais o clima era frio e chuvoso; mas o patrimônio florestal foi saqueado até à completa destruição. Agora não há lenha em parte alguma. Com as suas pastagens e plantações de choupos, estas e aquelas cultivadas, Lhasa lembra hoje um oásis verde, no vale escalvado do Kytchu. Nas nossas excursões, achávamos freqüentemente grossos troncos, testemunhos das matas doutrora. Como devia ser bela, naquele tempo esta região! Lamentávamos deveras que não houvesse ali a menor compreensão da silvicultura. Um dos muitos planos que apresentamos ao governo sugeria a fundação duma escola de silvicultura e o preparo de pessoal instruído cientificamente.

Já então, arranjar combustível em Lhasa era um problema. A lenha vinha de muito longe. Era, conseqüentemente, mais cara; só os ricos podiam dar-se a esse luxo. De ordinário, usava-se só estéreo de iaque. E a caça a esse material assumia formas grotescas: mal chegava do Changtang uma grande caravana e bivaqueava à beira da estrada, mulheres e crianças munidas de cestos corriam para lá e, entre risadas e gritos, disputavam o que os animais deixassem no terreno.

A mesma competição repetia-se todas as tardes, quando os muitos cavalos de Lhasa eram levados ao rio, para se abeberarem.

O estrume, ainda úmido, era colado às paredes. Dias depois estava seco, isto é, pronto para queimar.

Às primeiras horas da manhã, pairavam todos os dias, sobre a cidade, nuvens azuladas que se diriam a fumaça de numerosas fábricas. Eram, porém, as nuvens pesadas da queima de estéreo. À primeira brisa matutina, elas subiam às montanhas e lá se dissipavam.

 

 

A VIDA DE CADA DIA, EM LHASA

 

Convidados cá e lá, consultados freqüentemente, sempre no centro, em breve conhecíamos a vida em Lhasa, sob todos os aspectos: instituições, condições domésticas, opiniões e costumes. Dia a dia, as novidades vinham a nós; muitas perdiam em breve o seu caráter secreto; outras tantas, porém, ficavam perenemente envoltas em mistério. Uma coisa, porém, mudara: já não éramos estrangeiros; pertencíamos à população.

Começara a temporada balnear; todos suspiravam pelos verdes. Nos jardins à beira do Kyitchu, vivia-se intensamente. Grandes e pequenos divertiam-se nas águas rasas dos braços do rio. Vestiam-se roupas vistosas, levava-se uma bilha de cerveja, acompanhada de comestíveis... Era a receita simples para um dia feliz.

Naturalmente, podia-se ter a mesma coisa com todo o conforto. A nobreza tibetana armava tendas bordadas; e muitas jovens damas, que tinham estudado na índia, exibiam com orgulho maiôs modernos. Tagarelava-se um pouco e passava-se o tempo, comendo e jogando dados. Nunca terminava um dia, sem render graças aos deuses por essas horas radiosas, com uma oferenda de incenso à margem do rio.

Eu era muito admirado pelas minhas proezas em natação. Em Lhasa, não se entendia muito disso; as águas do Kyitchu eram demasiado frias, para se aprender a nadar. Conversava-se na praia, mas ninguém pensava em mergulhar. E aí vinha eu, como bom esportista nadador! Convidavam-me de toda parte, naturalmente com a segunda intenção de que eu oferecesse a todos o espetáculo que todos esperavam. Era sempre um castigo, para mim e para a minha ciática. De fato, a água tinha, se tanto, a temperatura de dez graus. Raramente eu me deixava induzir a contentar o meu público, arriscando um mergulho. Mas, por vezes, foi bom eu estar perto, pois consegui salvar três homens de perecerem afogados. O rio não deixava de ser perigoso, em razão dos seus muitos remoinhos, provocados pelas más construções.

Um dia, eu era convidado do ministro do Exterior, Surkhang, e da sua família que armara a tenda à margem do rio. O seu filho do segundo casamento, Dshigme — isto é, "Nada teme" — estava justamente em férias. Freqüentava uma escola, na índia, e ali aprendera também a nadar um pouco.

Eu nadava de costas e deixara-me levar um tanto rio abaixo, quando ouvi subitamente gritos e avistei um grupo, gesticulando na praia, apontando todos a água. Passava-se com certeza alguma coisa! Nadei rapidamente para a margem e corri à tenda. Colhido por um sorvedouro, Dshigme afundava, afundava cada vez mais. Sem perder tempo em refletir, pulei dentro d'água que também tentou sugar-me. Eu era, porém, muito mais forte do que o menino; consegui trazer à margem o seu corpo quase sem vida. A minha experiência de instrutor esportivo valeu-me bem nessa ocasião; dentro de instantes, Dshigme tornava a respirar, para alegria do pai e demais espectadores, assombrados. O ministro do Exterior clamava-me com lágrimas, a sua gratidão: sabia perfeitamente que, sem mim, o seu filho já estaria morto; eu salvara uma vida humana... isso me seria levado à conta, com juros altos...

Daí resultaram relações mais íntimas entre mim e essa família cujas condições eram, em verdade, das mais singulares, mesmo no Tibete: o ministro do Exterior divorciara-se da sua primeira esposa. A segunda morrera, deixando-lhe Dshigme. Quando sucedeu o fato que acabei de referir, Surkhang partilhava com um nobre de categoria inferior a esposa deste; mas, nesse contrato de casamento, Dshigme figurava como terceiro marido, porque o ministro não pretendia deixar toda a sua fortuna à mulher.

Situações igualmente confusas existiam em numerosas famílias. Chegou certa vez ao meu conhecimento um caso grotesco em que a mãe era cunhada da sua própria filha. Vigoravam a poligamia e a poliandria; apesar disto, a maioria dos tibetanos contraía casamentos monogâmicos normais.

Quando um homem tinha várias mulheres, esse estado de coisas distinguia-se essencialmente do harém oriental. Neste caso, ele escolhia as esposas numa família com várias filhas e nenhum herdeiro homem. Desse modo, a herança ficava toda na mesma família. Era a situação do nosso amigo Tsarong. Ele casara-se com três irmãs; e o Dalai Lama o autorizara a usar o nome da família das consortes.

A despeito dessas condições não raro extraordinárias, a vida conjugai não era mais complicada do que entre nós. Muito contribuía para isso a mentalidade desse povo: os tibetanos não exageram os seus sentimentos. Se vários irmãos "repartem" uma mulher, o mais velho é sempre o senhor da casa; os outros só têm direitos, quando ele viaja, ou se diverte alhures. Lá por isso, ninguém passa privações. Há mulheres de sobra. A maioria dos homens são monges, vivem em celibato e, em toda aldeia, há um claustro. Os filhos dos casamentos secundários não têm direito à herança; esta cabe exclusivamente aos filhos da senhora da casa, pouco importando qual dos irmãos é o pai desses filhos. O essencial é que os bens fiquem na família.

O Tibete não conhece preocupações de superpovoação. Há séculos, não se altera o número dos seus habitantes. São causa disto a poliandria, os inúmeros monges e também a mortalidade precoce. Segundo os meus cálculos, a média da idade dos tibetanos orça pelos trinta anos. É alto o índice de mortalidade infantil; e, em todo o funcionalismo, há só um septuagenário e quatro sexagenários.

Li, em muitos livros sobre o Tibete, que o dono da casa oferece aos convidados a mulher, ou a filha. Se contasse com isso, estaria eu muito enganado! Sucedia às vezes atirar, brincando, um galanteio a alguma criadinha graciosa. Nem estas, porém, davam corda assim, sem cerimônia. Também queriam ser conquistadas. Raparigas fáceis havia em toda parte; e, mesmo em Lhasa, certas beldades sabiam tirar proveito do amor.

Antigamente, os casamentos faziam-se por intermédio dos pais. Hoje, acontece freqüentemente serem os moços os que escolhem o seu par. Casam-se muito novos — as moças, com dezesseis anos; os rapazes, quando muito, com dezessete ou dezoito. A nobreza tem as suas leis rigorosas: casa-se exclusivamente na sua classe; com parentes, porém, só após a sétima geração, para evitar consangüinidade. Só o Dalai Lama pode autorizar exceções. Em casos especiais, homens de qualidades notáveis puderam elevar-se do povo à condição de fidalgos, injetando sangue novo em pelo menos duzentas famílias aristocráticas do país.

Trocada a promessa de casamento, a noiva prepara-se para as núpcias: o enxoval consta principalmente de vestidos e jóias adequados à sua classe. No dia das bodas, já antes do nascer do sol, a noiva vai a cavalo à sua nova casa onde um Lama abençoa a união, na capela doméstica. Não se usa aqui a viagem de núpcias; mas o casamento é celebrado com uma grande festa que, de acordo com as posses da família, pode durar até quatorze dias. Os convidados não se retiram sequer de noite. Depois começa, para a recém-casada, a nova vida. Dona de casa ela só poderá ser por morte da sogra.

Os divórcios são raros e têm de ser aprovados previamente pelo governo. Para o adultério, há castigos drásticos; por exemplo: a ablação do nariz. Nunca assisti a uma punição desse gênero. Mostraram-me, certa vez, uma velha sem nariz. Dizia-se que fora o preço da sua infidelidade. Mas também podia ser um caso de sífilis...

 

 

MÉDICOS, CURANDEIROS E ADIVINHOS

 

Refiro-me aqui a um capítulo infelizmente muito sério para o Tibete. Ocorrem freqüentemente, na cidade, casos de moléstias venéreas; mas a estas, como às demais enfermidades, atribui-se relativa importância. Negligencia-se o tratamento e só se chama o médico, quando é demasiado tarde.

O remédio antiqüíssimo, o mercúrio, também era conhecido pelos monges da Escola de Medina.

Quanto haveria a fazer, em prol do futuro do Tibete, se fossem melhoradas as condições médicas e sanitárias! A cirurgia, antes de tudo, era totalmente desconhecida. Aufschnaiter e eu tínhamos verdadeiro horror de pensar numa apendicite. Toda dor suspeita enchia-nos de apreensão; parecia-nos absurdo morrer de inflamação do apêndice, em pleno século XX.

Os tibetanos não tinham a menor idéia duma intervenção, no corpo humano, salvo a de lancetar um abscesso. Ignoravam a própria obstetrícia. A única coisa mais ou menos chegada à cirurgia era o trabalho dos esquartejadores de cadáveres, os "domden". Estes referiam muitas vezes às famílias desejosas de saberem a causa de certas mortes, ou a estudantes de medicina interessados profissionalmente, as anormalidades que notassem nos corpos.

Desgraçadamente, as Escolas de Medicina barravam todo progresso. A doutrina de Buda e dos seus apóstolos era, para elas, a lei suprema, intangível. O sistema estava consolidado; era, porem, um sistema milenário. E os seus adeptos orgulhavam-se especialmente, por exemplo, de reconhecer qualquer doença, tomando o pulso ao enfermo.

Havia duas Escolas de Medicina: a menor, no Tshagpori, ou Montanha de Ferro; a mais importante, na cidade. Todo claustro enviava certo número de moços inteligentes a uma das escolas. O curso podia durar dez e até quinze anos. Os lentes eram velhos monges eruditos; os modestos aprendizes, sentados no chão, em posição de Buda, com uma espécie de tabuleta nos joelhos, escutavam e contemplavam os mestres. Para elucidação, serviam muitas vezes painéis coloridos. Assisti certo dia à explicação, baseada em representações gráficas, dos fenômenos de intoxicação provocada pela ingestão de certas plantas. Viam-se os vegetais, os fenômenos produzidos no organismo humano, o contraveneno administrado e a reação ao dito. Era, tal qual, o sistema de quadros de parede, usado nas nossas escolas.

No Tibete, considerava-se a astronomia intimamente ligada à ciência médica. Nas escolas, compunha-se anualmente o calendário lunar, de acordo com velhos alfarrábios. Os eclipses do sol e da lua eram registrados exatamente; as previsões meteorológicas anuais e mensais eram organizadas como nos nossos almanaques para a agricultura.

No outono, os corpos docente e discente das escolas excursionavam às montanhas, à procura de ervas medicinais. Os rapazes adoravam essas excursões; havia muito que fazer, mas também muitas diversões. Todos os dias, armava-se o acampamento em lugares diferentes. No fim, os iaques bem carregados tomavam o caminho de Tra Yerpa, a localidade mais sagrada do Tibete. Havia ali certo santuário onde as ervas eram selecionadas e postas a secar. No inverno, os jovens estudantes de medicina, com um trabalho minucioso e fatigante, as reduziam a pó. Devidamente rotuladas, eram entregues então, em sacos de couro hermèticamente fechados, ao abade da Escola de Medicina. As Escolas de Medicina eram, ao mesmo tempo, as farmácias do país. Ali, qualquer cidadão podia obter, grátis, ou mediante pequena remuneração, conselhos e medicamentos. Essas consultas eram, para os alunos a instrução prática.

Os tibetanos são verdadeiramente muito adiantados no conhecimento das ervas e das suas propriedades curativas. Eu mesmo entreguei-me freqüentemente à sua ciência; e, se as suas pílulas não me curaram a ciática, os seus chás de ervas livraram-me muitas vezes de resfriados e febres.

O abade reitor da Escola de Medicina urbana era também médico pessoal do Dalai Lama, cargo honroso, mas muito perigoso. Morrendo o Dalai Lama XIII apenas com a idade de cinqüenta e quatro anos, surgiram muitas suspeitas contra o seu médico-abade. E este pôde dar-se por satisfeito com escapar à fustigação e conservar o seu posto.

Nas cidades e nos claustros, vacinava-se contra a varíola. Em caso de qualquer outra epidemia, a população estava indefesa; e isto custou muitas vezes numerosas vidas humanas.

A salvação do Tibete está no seu clima frio, na pureza da sua atmosfera alpestre; sem isso, com a falta de asseio reinante, as lastimosas condições higiênicas, as catástrofes seriam inevitáveis. Em toda circunstância, nós insistíamos na necessidade premente de melhoramentos sanitários importantes; e, pelo menos nas nossas cabeças, um plano para a rede de esgotos de Lhasa já estava bem adiantado. Todavia, mais do que nos monges da Escola de Medicina, que poderíamos comparar aos nossos médicos práticos, o povo confiava em benzeduras e curandeiros. Muitas vezes, os Lamas friccionavam os seus pacientes com a sua saliva santa. Ou faziam, com tsampa, manteiga e urina dos santos homens, uma papa que davam aos doentes. Mais inofensivos eram os sinetes recortados em madeira, mergulhados em água benta, que se premem nos pontos doloridos. Amuletos preferidos contra doenças e perigos são os pequenos simulacros dos deuses que os Lamas moldavam em barro. Nada excedia, porém, o valor atribuído a um objeto de propriedade do Dalai Lama. Quase todo membro da nobreza exibia com orgulho relíquias do Dalai Lama XIII, cosidas cuidadosamente em escapulários de seda. Tsarong, na qualidade de ex-valido, possuía muitos objetos de uso pessoal do Dalai Lama. Sempre estranhei que Tsarong e seu filho, educado na índia, homens progressistas, esclarecidos, se ativessem a essa superstição.

A confiança dos tibetanos na força protetora dos amuletos é ilimitada. Nas viagens, em guerra, sentem-se resguardados de todo perigo. Se, por vezes, eu aventava um argumento em contrário, apostavam comigo o que eu quisesse em que a posse dum amuleto é garantia contra projeteis de arma de fogo. Certa vez, perguntei: "Então, se pendurarmos um amuleto ao pescoço dum vira-lata, não lhe poderão cortar o rabo?" Todos externaram a convicção de que não seria possível. A minha noção do tacto e da consideração devida à hospitalidade, que me dispensavam, fez que eu me abstivesse de lhes demonstrar o seu engano. Não era meu desejo ferir a crença de quem quer que fosse.

Muitos homens e mulheres viviam de predizer o futuro e de tirar horóscopos. Faziam parte do quadro das ruas de Lhasa as velhas acocoradas ao longo do trajeto dos peregrinos e que, a troco de quase nada, adivinhavam o futuro. Perguntavam a data do nascimento, faziam um breve cálculo com o seu rosário, e o consulente continuava a romaria, confortado pelas palavras misteriosas das adivinhas. Gozavam de confiança especial as predições dos Lamas e das Encarnações. Não se dava um passo, sem interrogar o destino. Partindo para uma peregrinação, ou para assumir um novo cargo, sempre era bom levar presságios animadores.

Vivia então em Lhasa um Lama especialmente famoso, cujas visitas e audiências eram marcadas com antecedência de meses. Esse monge ia com os discípulos duma a outra localidade, para atender a todos os convites; e recebia tantos presentes, que a turma toda podia levar boa vida. O seu prestígio era tão grande, que o próprio Mr. Fox — o rádio-operador inglês, que desde anos sofria horrivelmente de gota — esperava, ansioso, uma sua visita. Por má sorte, ficou na fila; porque, antes de chegar a sua vez, o Lama já idoso morreu.

Fora a princípio um modesto monge. Ao termo de vinte anos de estudo, prestara exames brilhantes num dos maiores mosteiros; depois vivera alguns anos como eremita, numa das ermidas solitárias, espalhadas em todo o país. Os monges as procuram para local de meditação; muitos são, por sua vontade, emparedados nelas pelos discípulos; assim murados, vivem anos, de tsampa e chá. O nosso monge também granjeou fama pela sua vida exemplar. Nunca se alimentava do que fosse preciso matar; chegava a recusar os ovos. Também se dizia que ele não precisava de sono, que nunca dormira numa cama, fato de que eu mesmo me certifiquei, quando ele morou três dias perto de mim. Atribuíam-se-lhe milagres; afirmava-se, por exemplo, que em contacto com a radiação forte da sua mão, o seu rosário começara a arder. Ele doara os donativos que recebia, para fazer de ouro a maior estátua de Buda da cidade.

Também havia no Tibete uma única encarnação feminina. Chamava-se "Fulgurite". Muitas vezes a vi, em cerimônias, ou em Parkhor. Fulgurite era então uma mocinha duns dezesseis anos, sempre em hábito de monja. Mas tinha fama de ser a maior santa do Tibete e todos lhe pediam a bênção, onde quer que ela aparecesse. Mais tarde, foi abadessa dum mosteiro de monges, à beira do lago Yamdrok.

Lhasa vivia cheia de histórias e boatos relativos a monges santos e santas monjas. Eu bem gostaria de lhes averiguar os milagres; mas custava-me ferir os tibetanos na sua fé. Eles eram felizes na sua crença; e tão corretos, que nunca tentaram converter, nem Aufschnaiter, nem a mim. Nós respeitávamos os seus usos, visitávamos os seus templos e doávamos laços de seda branca, de acordo com o que exigia a etiqueta.

 

 

O ORÁCULO OFICIAL

 

Assim como o povo, nas preocupações da sua vida de cada dia, procurava conselho e ajuda em adivinhas e Lamas, assim o governo interrogava, antes de toda resolução importante, o oráculo oficial. Certa vez, pedi ao meu amigo Wangdüla que me levasse a assistir a uma dessas consultas. Saímos muito cedo, a cavalo, para o claustro de Netshung. A dignidade de oráculo do Estado descansava então nos ombros dum monge de dezenove anos, de origem modesta, mas que vinha merecendo atenção, pelas suas qualidades mediúnicas. Embora não tivesse a prática do seu antecessor, que trabalhara com o Dalai Lama, o jovem religioso autorizava a formar grandes esperanças. Eu quebrara muitas vezes a cabeça, tentando deslindar se é só graças a uma inaudita capacidade de concentração, que certas pessoas conseguem, num mínimo de tempo, cair em estado de transe prolongado, ou se há para esse fim drogas e outros recursos.

Para atuar como oráculo, o monge devia separar o seu espírito do seu corpo, a fim de que o deus do seu templo se incorporasse nele e, através dele, se fizesse ouvir. Nesse instante, em virtude das suas faculdades de médium o monge possibilitava a manifestação da divindade. Tal é a convicção dos tibetanos; e nisso o meu amigo Wangdüla também acredita piamente.

Debatendo estas coisas, acabamos de percorrer os oito quilômetros de distância até o mosteiro de Netshung. Vinha do templo uma música surda, lúgubre. Entramos. O quadro era pavoroso! De todas as paredes, caveiras, carantonhas hediondas nos faziam esgares; a atmosfera, saturada de incenso, dificultava a respiração. Justamente nesse momento, o jovem monge era trazido do seu aposento particular à nave do templo. Tinha, no meio do peito, um espelho redondo de metal. Os criados envolveram-no em roupagens de seda de cor, guiaram-no ao seu trono e afastaram-se dele. Não se ouvia um som, salvo o da música surda, insistente. O médium começou a concentrar-se. Eu o observava atento, sem desviar os olhos das suas feições; não me escapou o mais leve tremor dos seus traços. Mais e mais se diria que a vida se extinguia nele. O seu corpo inteiriçou-se afinal, abaixo da máscara rígida do rosto... De repente, empinou-se, como ferido pelo raio. Elevou-se no recinto um suspiro de alívio: o deus se incorporara. O tremor do médium acentuou-se; o suor aljofrou-lhe a testa. Os servos aproximaram-se e pousaram-lhe na cabeça uma espécie de tiara colossal, fantástica, tão pesada que dois homens a sustinham, enquanto os outros a ajeitavam; sob essa carga, o monge afundou mais, nas almofadas do trono. "Não admira que os médiuns não vivam muito" — disse eu comigo. O enorme esforço físico e psíquico dessas sessões lhes consome as forças.

No que estávamos observando, o tremor aumentava; oscilava-lhe a cabeça sobrecarregada, saltavam-lhe os olhos; o rosto tingia-se-lhe dum rubor doentio, a respiração silvava-lhe entre os dentes. De súbito, levantou-se dum salto. Os servos quiseram ajudá-lo; ele escapou-lhes e, ao som lamentoso dum oboé, começou a rodar, numa espécie de dança lenta, extática. A sua respiração sibilante, os seus gemidos eram no templo, os únicos sons humanos. O médium trazia no polegar um enorme anel e pôs-se a percutir com ele o espelho que lhe cintilava no peito. <J tinido sobrepujava o rufar abafado dos tambores. O monge rodopiou num pé só, direito sob a coroa colossal, muito pesada para dois homens. Os servos encheram-lhe as mãos de grãos de cevada, que ele espargiu sobre a multidão temerosa de espectadores. Todos se curvaram; eu já receava sobressair como intruso. O médium parecia nervoso... Estaria eu estorvando a consulta aos deuses? Não; ele já estava mais calmo. Os criados o seguraram com força. Um membro do governo apresentou-se diante dele; atirou-lhe um laço de seda à cabeça curvada sob o peso e começou a formular as perguntas sutilizadas cuidadosamente pelo Gabinete. O médium forneceu solução a várias questões: à adjudicação dum posto de governador, à descoberta duma alta encarnação, à possibilidade de guerra ou de paz. Não raro, cumpria repetir várias vezes uma pergunta, até o oráculo balbuciar os primeiros sons. Eu me esforçava por tirar daquele murmúrio palavras inteligíveis. Inutilmente! Enquanto o representante do governo, respeitosamente curvado, tentava entender alguma coisa, outro monge mais idoso transcrevia correntemente as respostas. Fizera-o mais de cem vezes na sua vida, porque já servira o falecido oráculo, na qualidade de secretário. Uma suspeita cruzou-me o cérebro: não seria o secretário o verdadeiro oráculo? Apesar da sua ambigüidade, as respostas que ele transcrevia sempre eram orientadoras; e suficientes para eximir o Gabinete das grandes responsabilidades. Se um oráculo reincidisse muito tempo em dar respostas erradas, o governo adotava um processo sumário: demitia-o das suas funções — uma medida que eu logicamente nunca cheguei a entender. Pois não era o deus que falava pela boca do médium?

Apesar disso, o cargo de oráculo oficial era muito cobiçado. Correspondia, de fato, ao posto dum Dalama, isto é, à terceira categoria e tornava o ocupante senhor supremo do claustro de Netshung, com todas as suas prebendas.

As últimas perguntas formuladas pelo representante do governo, ficaram sem resposta. Teriam as energias faltado ao jovem monge, ou enfadara-se o deus? Outros monges aproximaram-se do médium trêmulo de emoção, apresentaram-lhe vários laços de seda. Ele atou-os todos, com as mãos trêmulas. Esses laços revestiam súplicas e valiam como talismãs contra todos os perigos. O médium ensaiou, mais uma vez, uns passos de dança e caiu. Quatro monges o levaram, inconsciente, da nave do templo.

Saí, por meu turno, completamente aturdido e estaquei, deslumbrado, à luz do sol. A minha inteligência positiva de europeu não se conformava com aquilo. Mais tarde, tomei parte noutras sessões de consulta; nunca achei, nem aproximadamente, uma solução racional para aquele enigma.

E era sempre com estranheza que encontrava o oráculo do Estado, na vida de cada dia. Estando à mesa com ele, nunca pude habituar-me a vê-lo sorver a sua sopa de aletria como os outros convidados da nobreza. Quando nos cruzávamos na rua, eu tirava o chapéu; ele sorria e retribuía o cumprimento com um aceno afável. A sua fisionomia era a dum rapaz simpático da sua idade; não lembrava absolutamente a facies congestionada e doentia do êxtase.

E depois, pelo Ano Novo, eu o vi cambalear na rua... Os servos o amparavam à direita e à esquerda. De distância em distância de trinta a quarenta metros, ele afundava, exausto, na poltrona que lhe tinham trazido. Tudo recuava diante dele. E o povo assistia, mudo, ao espetáculo diabólico.

O oráculo oficial viveu ainda um grande dia: o da assim chamada "Grande Procissão" — isto é, a da visita do Dalai Lama à catedral, na cidade — para a diferençar da "procissão" habitual de ida ao Palácio de Verão.

Mais uma vez, Lhasa toda pôs-se em movimento; e custava achar um lugarzinho. Uma tenda ocupava uma espécie de largo. Como sempre, monges-soldados continham com as varas a multidão curiosa. Essa tenda ainda escondia aos olhos do povo o grande mistério: ali dentro, o Dalama de Netshung preparava-se para o transe. Já então se aproximava lentamente o rei-deus, na sua cadeirinha de trinta e seis portadores. A música dos monges acompanhava o cortejo solene; tubas, trombetas, tambores anunciavam o ponto culminante. A cadeirinha passava pela tenda do oráculo; nesse momento, o monge saiu, cambaleando, já possuído do seu deus, com a fisionomia das horas de transe, a respiração sibilante, quase esmagado pelo peso da tiara. Mas, arredando brutalmente os portadores, içou aos ombros os varais da cadeirinha e desatou a correr, entre as alas; a liteira real oscilava perigosamente. Servos e portadores emparelharam-se na corrida, procurando aliviar o peso ao monge. Ao termo duns trinta passos, ele caiu, extenuado; já aguardava ali a maça para o levar de volta à tenda. Durara apenas segundos a cena que a multidão presenciara, fascinada. A procissão retomou a marcha regular. Nunca eu pude descobrir o que significava exatamente esse ritual; talvez fosse a representação simbólica da submissão dum deus protetor ao Buda vivo.

Além dos oráculos do tempo e do Estado, havia em Lhasa pelo menos mais seis médiuns, figurando entre eles uma velha considerada a manifestação duma deusa. Em troca dalgumas moedas, ela se prontificava a cair em transe e deixar a palavra à divindade. Havia dias em que se punha até quatro vezes nesse estado. Para mim, aliás, nunca passou duma embusteira...

Também havia oráculos que, em estado de transe, torciam uma espada em espiral; em muitas casas nobres de Lhasa existiam espadas no altar doméstico; falharam todas as minhas tentativas de torcê-las daquela maneira.

A consulta ao oráculo data da era pré-budista, quando os deuses exigiam sacrifícios humanos. Sempre me impressionou profundamente esse espetáculo sinistro; eu, porém, nunca pus as minhas resoluções na dependência dum oráculo.

 

 

OUTONO ALEGRE EM LHASA

 

O tempo passava... Fazia meses que estávamos em Lhasa, e novas coisas incompreensíveis nos fascinavam diariamente, fazendo-nos quase esquecer a vida de cada dia. Entrava o outono, a mais bela estação em Lhasa. Os jardins — muitos deles, frutos do meu trabalho! — estavam em flor, enquanto a folhagem do arvoredo já se tingia de tons de ouro. Havia fartura de fruta: pêssegos, maçãs, uvas, das províncias do sul; magníficos espécimes de tomates e abóboras expunham-se no mercado; as famílias nobres ofereciam muitas festas, porque a estação possibilitava a variedade de iguarias.

E que época maravilhosa para passeios! Que, aliás, não se faziam, porque nenhum tibetano teria a idéia de escalar a montanha, por divertimento. Só por motivos de culto, os monges visitavam em certos dias os picos dos arredores — em média, altitudes de 5.600 metros. Os nobres tibetanos mandavam os criados, porque importava granjear o favor dos deuses, acendendo uma fogueira de incenso em sua honra. Bradavam-se preces ao vento, colocavam-se novas flâmulas; e as gralhas assanhadas esperavam as oferendas de tsampa. Todavia, os ofertantes davam-se por muito felizes, voltando, dois ou três dias depois, à cidade.

Aufschnaiter e eu, pelo contrário, subíamos com entusiasmo a todos os picos circunvizinhos que não nos ofereciam dificuldades técnicas e nos deslumbravam com os seus magníficos panoramas. Muito perto, no Himalaia meridional, sobressaía um de sete mil metros: o Nyentschenthanglha, a cadeia donde, um ano antes, descêramos a Lhasa.

As geleiras não são visíveis da cidade. Em todo o Tibete, tinham-se a respeito do gelo e da neve, idéias errôneas. Nós bem gostaríamos de esquiar; mas, embora repetíssemos as experiências com esquis feitos por nós mesmos, as distâncias eram demasiado grandes e precisaríamos de cavalos, de tendas, de servos. Custa bastante fazer esporte, numa terra desabitada.

Contentávamo-nos, portanto, com escalar montanhas. O nosso equipamento não estava muito de acordo: botas militares; peças de vestuário, dos excedentes da produção americana. Mas bastavam para a finalidade. Os tibetanos espantavam-se da presteza com que regressávamos das nossas expedições. Certa vez tive até de acender uma fogueira de incenso, que os meus amigos observavam do telhado das suas casas. Do contrário, ninguém acreditaria que chegáramos de fato ao cume. Nas expedições em que os seus servos empregavam até três dias, nós não gastávamos mais do que um dia. O primeiro, em quem pude insuflar o meu entusiasmo de alpinista foi o meu amigo Wangdüla. Mais tarde outros o imitaram; e todos se extasiavam, diante dos panoramas e das estupendas flores que encontrávamos nos montes.

Também no Tibete, as montanhas têm nomes de deuses. Nós nos admirávamos de que os tibetanos achassem, para os milhares de picos, nomes diferentes. Eram, a falar verdade, na sua maioria denominações locais; e podia muito bem suceder que o mesmo monte tivesse ao norte muita outra denominação que no sul.

A minha meta favorita era um pequeno lago alpestre, a menos dum dia de marcha de Lhasa. Eu o vira pela primeira vez, na estação das chuvas, quando se receava em Lhasa um transbordamento das suas águas. Segundo uma lenda antiqüíssima, esse lago está ligado a lençóis d'água subterrâneos, debaixo da catedral. Por isto, o governo mandava anualmente monges lá acima, para impetrar com preces e oferendas o favor do espírito dos lagos. Também o visitam muitos peregrinos que lhe atiram moedas e anéis. Nas suas margens há abrigos de pedra onde eu também descansei, nas minhas excursões. O lago em si pareceu-me absolutamente inofensivo; ainda que as suas águas extravasassem, a cidade nada sofreria. O local era sossegado, idílico. Rebanhos de carneiros selvagens, de gazelas, bandos de marmotas e raposas eram senhores do terreno; os gipaetos revoluteavam no azul. Nenhum desses animais conhecia o homem como um inimigo. Nos arredores da cidade santa, ninguém se atreveria a caçar um animal. Em torno do lago, vicejava uma flora que qualquer botânico apreciaria sumamente. Orlavam-lhe as águas papoulas amarelas e azuis — uma especialidade tibetana que só se encontra no Jardim Botânico de Londres.

Nas minhas excursões, eu não me limitava a praticar esporte. Pensava muitas vezes no que seria possível empreender naquela altura. Ocorreu-me assim a idéia de fazer uma cancha de tênis. Consegui interessar certo número de pessoas; organizei uma lista de sócios e recebi dinheiro adiantado, para a aquisição do necessário. A lista era imponente; e tinha, por assim dizer, caráter internacional: hindus, chineses, siquimeses, nepaleses e, naturalmente, jovens aristocratas de Lhasa. A princípio, estes hesitavam, porque o governo proibira o futebol. Cheguei, porém, a persuadi-los de que o tênis é um esporte que não atrai grande público, não provoca brigas; a própria Igreja o consideraria inofensivo. Além disso, a representação diplomática britânica tinha um campo de tênis — um valioso apoio moral para nós.

Contratei, portanto, trabalhadores e mandei terraplenar uma extensão adequada, à margem do rio. Não foi fácil encontrar a terra necessária para esse fim. Mas, ao termo dum mês, tudo estava pronto; e nós nos orgulhávamos muito da nossa obra. Mandáramos vir da índia redes, raquetas, bolas; e, com uma pequena reunião festiva, inauguramos o nosso "Tennis-Klub Lhasa".

As crianças rivalizavam em cuidar das bolas; mas como eram desastradas! Nunca na sua vida, lhes caíra uma bola nas mãos. Quando convidamos os membros da representação britânica para uma partida, houve uma cena curiosa: soldados da guarda do corpo da missão nepalesa, em uniformes vistosos, tomaram o lugar dos meninos.

Em breve, reunimos certo número de ótimos jogadores. O melhor deles, era incontestàvelmente o Sr. Liu, secretário da representação diplomática chinesa. Vinha em segundo lugar Mr. Richardson, da missão política inglesa, escocês escanifrado, manhoso e teimoso no trabalho de sua alçada e que só tinha um "hobby": a sua magnífica horta-jardim. Quem ia lá, julgava estar num jardim encantado.

Do nosso jogo de tênis evolveu uma sociabilidade muito simpática. Ganhou foros de cidade o hábito da troca de convites para uma xícara de chá e algumas horas de bridge. Assim eram os meus domingos. Muito antes do fim da semana, nós nos preparávamos com entusiasmo para as reuniões sociais, com o sentimento de não termos perdido de todo o ambiente a que pertencíamos.

O meu amigo Wangdüla revelava-se, entretanto, tenista apaixonado e parceiro de valor no bridge.

A nossa cancha de tênis tinha uma vantagem: podia ser aproveitada o ano inteiro. Só nos abstínhamos de jogar, no período das tempestades de areia. Substituíramos a cerca de arame por uma enfiada de reposteiros enormes que recolhíamos, assim que as nuvens se aglomeravam sobre o Potala, a fim de que o vendaval não os levasse.

No outono, os tibetanos entregavam-se a diversões tradicionais, peculiares do seu povo. A primeira delas era soltar pandorgas. Passadas as chuvas, o límpido ar outoniço convidava a sair. Nessa época, os bazares enchiam-se de papagaios multicores. Esse esporte iniciava-se invariavelmente com o primeiro dos oito meses do ano tibetano; e não só para as crianças, como na nossa terra. Era uma autêntica festa popular da qual a nobreza participava com entusiasmo.

A primeira pandorga subia do Potala. Era o sinal. Em breve, o céu de Lhasa sarapintava-se de milhares de papagaios. Crianças e adultos passavam horas nos telhados planos, governando as pandorgas, com uma seriedade e uma concentração que, no Ocidente, só se observam, se tanto, em jogos que exigem grande habilidade. As pandorgas pendiam de fios de retrós grosso, embebidos em cola e vidro pulverizado. Cada participante do jogo punha todo o empenho em cruzar o cordel do seu papagaio com o do seu adversário e cortá-lo. Quando o conseguia, eram manifestações ruidosas nos telhados. O papagaio baixava lentamente; as crianças corriam ao encontro dele, porque já agora lhes pertencia. Ganhava quem mantivesse a sua pandorga mais tempo no ar. Esse jogo tomava um mês inteiro todas as horas de folga; e cessava de repente como começara.

Certo dia, em que vagueava no Bazar vendo as pandorgas, tive um encontro curioso. Chegou-se a mim um tibetano completamente desconhecido e ofereceu-me um relógio, isto é, um verdadeiro caco velho, enferrujado e sem mostrador. O homem explicou: o relógio desarranjara-se; não lhe ocorria meio de consertá-lo. Eu, como europeu, talvez ainda tirasse dele alguma coisa. Vendia-o por qualquer preço. Paguei o objeto e logo o identifiquei: era o relógio que Aufschnaiter vendera por necessidade de dinheiro, no Tibete ocidental, um dos primeiros Rollex impermeáveis. Ele o usara durante a expedição ao Nanga-Parbat. Custara-lhe muito separar-se desse relógio. Talvez eu pudesse dar-lhe uma alegria, embora o Rollex nunca tornasse a ser o que era. Valeria em todo caso, como curiosidade. Aufschnaiter fazia anos em novembro. Embora com pouca esperança de êxito, confiei o relógio a um maometano muito hábil, entendido em relógios. O mecanismo o entusiasmou; em breve tornou a funcionar. À vista do relógio, Aufschnaiter arregalou os olhos; usa-o ainda hoje.

Dir-se-ia que o outono despertava, em todas as camadas da população tibetana o desejo de atividade física. Sucedeu-me muitas vezes observar, no jardim dos tsedrungs, os monges-funcionários, nas suas horas de lazer. A sua diversão favorita era um jogo muito primitivo, mas que exigia uma destreza extrema: visar com pedrinhas redondas um chifre de iaque, colocado a uns trinta metros de distância. Quem acertasse mais vezes no alvo levava mais dinheiro. Experimentei com freqüência a minha pontaria; não posso afirmar que tive muito sucesso...

Também se ouviam no jardim silvos de flechas; eram os nobres tibetanos, adestrando-se nessa forma de tiro.

Realizavam-se no outono as grandes feiras de cavalos que chegavam à cidade às centenas, em grandes caravanas provenientes de Siling, no noroeste da índia. Começavam então negociações animadas e vivo regateio — o que é compreensível. E, em Lhasa, entendia-se alguma coisa de cavalos. Certos animais de bela estampa alcançavam cotações elevadas, porque os nobres tibetanos mantinham vários cavalos nas suas cavalariças e timbravam em montar todos os anos um de raça diferente — luxo a que, aliás, só se podiam dar os ricos. O homem do povo, quando podia andar montado, utilizava os pôneis criados no Tibete. Os aristocratas, pelo contrário, eram obrigados a esse luxo, pela sua categoria social. Cavalgavam escoltados por servos. Um ministro de Estado, por exemplo, saía com um séquito de seis, metidos em librés exatamente iguais; assim exigia a etiqueta. Conforme a sua classe e posição, os membros da nobreza podiam ter na estrebaria até vinte cavalos.

 

Danças de monges, em Schö, para festejar o Pequeno Ano Novo. Os bailarinos usam máscaras de madeira pintada. Trazem na mão sinetas e conchas fósseis. Os nós da rede ornamental são de ossos humanos ou de marfim.

 

Jovens aristocratas de Lhasa.

 

 

Também vi cavalgar senhoras das classes superiores. O seu traje era bastante folgado, para permitir que a amazona se atravessasse na sela. E assim elas acompanhavam o marido nas peregrinações, ou nas viagens para assumir novos cargos, não raro durante semanas. Protegiam a cabeça com um largo chapéu, o rosto com uma essência escura vegetal, a boca, com um xale. Cavalgando na rua, assim embuçadas, não se distinguiam umas das outras. Desconfio que dei muitas ratas, quando não as reconhecia imediatamente...

Nessas longas viagens a cavalo, tomavam parte crianças de quatro a cinco anos, levadas ao colo por mucamas. As de mais idade iam bem firmes, sentadas numa espécie de estante.

Atribuía-se grande valor aos belos arreios. Na cidade, os funcionários usavam a sela tradicional de madeira, desconfortável para o cavalo e para o cavaleiro. Nas grandes viagens, ela era substituída por selas de couro. Nas procissões apareciam suntuosas selas antigas, com guarnições de ouro e prata, acompanhadas de magníficos xairéis. Os jaezes do cavalo já atestavam a classe social do cavaleiro. Se o ginete trazia ao pescoço uma borla encarnada, o seu dono era um fidalgo importante. Quando as borlas eram duas, indicavam uma personalidade de posição social excepcionalmente elevada. As ruas também evidenciavam, com certos arranjos, que eram preparadas para a equitação. Diante das casas particulares e dos edifícios públicos, há pedestais de pedra que facilitam o ato de montar e de apear-se. Quando o fidalgo despontava a cavalo, os criados acudiam a guiar o animal ao ponto adequado e ajudavam o amo a por o pé em terra.

Em princípios de dezembro, houve um dia sensacional. Estava previsto um eclipse lunar. Desde as primeiras horas da tarde, os telhados encheram-se de curiosos que aguardavam o espetáculo.. Quando a sombra da terra começou a projetar-se lentamente no disco da lua, principiou o rebuliço na cidade. Não tardaram gritos, estalos fortes; eram os cidadãos querendo escorraçar o mau demônio que se postara diante da lua! Passado o eclipse, todos voltaram contentes às suas casas, para festejar o acontecimento, com tchang e jogo de dados.

 

 

A MINHA FESTA DE NATAL

 

Aproximava-se mais e mais o Natal. Metera-se-me na cabeça a idéia de fazer uma surpresa aos meus amigos, oferecendo-lhes uma festa. Uma verdadeira festa de Natal, com árvore e presentes. Fora convidado tantas vezes, recebera deles tantas provas de amizade, que pelo menos uma vez queria retribuir tudo isso com um pouco de alegria. Deram-me que fazer os preparativos! O meu amigo Trethong, filho dum falecido ministro, emprestou-me por vários dias a sua casa. Contratei criados e cozinheiros experientes, provi-me de louça e comprei para os meus convidados alguns presentinhos: lâmpadas de bolso, canivetes, tênis de mesa, jogos de salão. E um presente especial, para o meu anfitrião Tsarong e a família. Depois foi a vez da grande atração: a Árvore de Natal. A Sr.a Tsarong emprestou-me um pé de zimbro, plantado num belo vaso; e eu o enfeitei com velinhas, maçãs, nozes e doces. A minha Árvore de Natal lembrava bem as verdadeiras!

Atendo-se aos hábitos locais, a festa começou antes do meio-dia. Wangdüla postou-se ao meu lado, como "mestre de cerimônias", porque eu receava cometer algum lapso de etiqueta. Os convidados miravam, curiosos, o "pinheiro" de todos os lados; encantavam-se nos embrulhinhos pendurados nele e vibravam de tensão e expectativa, como crianças em véspera de Natal. Almoçando, jogando, bebendo, passou-se o dia. Ao escurecer, pedi a todos que me acompanhassem a outra sala. Wangdüla vestiu a pele do avesso e fez de Papai Noel. Eu acendi as luzes da árvore. No gramofone, rodava um disco: "Stille Nacht, heilige Nacht". A porta abriu-se de par em par, e os meus convidados arregalaram os olhos, à vista da Árvore. O Sr. Liu entoou a canção; logo o imitaram alguns dos presentes que a conheciam das escolas inglesas. Estranho quadro o desse grupo, cantando no coração da Ásia a melodia das noites de Natal da nossa terra!... Até aí, eu reprimira inflexivelmente o enternecimento; nesse instante, porém, vieram-me quase as lágrimas aos olhos e doeu-me, bem no fundo, a saudade.

Não quadrava, no entanto, essa atitude a quem vivia no Tibete. Ali, naturalmente, era outra coisa; não havia comparação possível entre essa gente e a sua terra, e a nossa pátria e a nossa gente. Só restava adaptar-se e dar-se por satisfeito com os hábitos e costumes locais.

O bom humor dos meus hóspedes, o prazer visível que lhes causavam os meus presentinhos, e talvez alguns goles de álcool, ajudaram-me a recalcar a nostalgia. E, à despedida, os meus amigos não faziam senão repetir como lhes soubera bem o "Ano Novo alemão".

Fazia exatamente um ano que, lá longe, no solitário Chang-tang, dois pãezinhos brancos haviam sido para nós o mais precioso presente de Natal. Nessa noite, em Lhasa, sentáramo-nos a uma mesa rica, rodeados de pessoas amigas... Não tínhamos o direito de queixar-nos da nossa sorte.

 

 

PERÍODO DE MUITO TRABALHO

 

Entramos, sem solenidades especiais, no ano de 1947. Aufschnaiter concluíra o seu grande canal de irrigação e defrontava-se com outra obra de grande vulto. Lhasa era dotada duma antiga central elétrica, construída vinte anos antes por um dos quatro estudantes tibetanos de Rugby.

Na época da nossa chegada à capital do Tibete, essa usina estava completamente abandonada e não preenchia a sua finalidade. Nos dias feriais, mal conseguia mover as máquinas da Casa da Moeda; só nos dias festivos a corrente chegava às casas particulares e fornecia a cobiçada luz clara às residências dos ministros.

O Tibete fabricava o seu dinheiro, cédulas e moedas. A unidade monetária é o sang; as frações são o sho e o kharma. As notas eram impressas em policromia com marca d'água, em ótimo papel nacional. Os números, habilmente pintados à mão, frustravam toda tentativa de falsificação, pela dificuldade de serem imitados. Cunhavam-se as moedas em ouro, prata e cobre, com os símbolos do Tibete, montanhas e leões, que também apareciam, ladeando um sol nascente, na bandeira nacional e nos selos do correio.

Como a sua modesta Casa da Moeda dependia muito do rio, os tibetanos recorreram a Aufschnaiter e pediram-lhe que reformasse e atualizasse a velha central elétrica. O meu amigo teve o mérito de persuadi-los de que não se ganharia muito com isso. Seria preferível utilizar toda a força hidráulica do Kyitchu. A usina primitiva dependia, de fato, das águas sonolentas dum braço lateral do rio. Receara-se antigamente que os deuses castigassem Lhasa pelo sacrilégio de usar as águas do rio sagrado, para finalidades profanas. Aufschnaiter soube dissipar esse temor e pôde começar imediatamente os trabalhos. Como o local das obras ficava muito longe, o meu amigo, teve licença para se alojar no pavilhão duma propriedade, fora da capital.

Aufschnaiter e eu víamo-nos raramente. A minha atividade didática prendia-me à cidade; com efeito, além das minhas lições, eu exercia as funções de instrutor de tênis. Em linha geral, os meus discípulos faziam progressos sensíveis. Infelizmente, a perseverança não era virtude tibetana. No princípio, os alunos vibravam de entusiasmo, começavam muitas coisas; ao termo de pouco tempo, o interesse arrefecia. Conseqüentemente, ás minhas turmas variavam a miúdo, o que nem sempre era muito satisfatório para mim. Os jovens da nobreza, que lecionei, eram na maioria dos casos inteligentes e espertos; em facilidade de compreensão, não ficavam a dever aos nossos colegiais. Nas escolas indianas, os estudantes tibetanos eram de nível intelectual análogo ao dos europeus — e convém não esquecer que tinham de aprender também a língua do professor. Apesar disto, alcançavam freqüentemente o posto de primeiros da classe. No St. Joseph College de Darjeeling, um rapaz de Lhasa foi até o melhor aluno desse instituto e, ao mesmo tempo o chefe de todas as suas equipes esportivas.

Além da minha atividade de professor, eu arranjara outras fontes de ganho. Em Lhasa, achava-se realmente dinheiro nas ruas. Bastava ter um pouco de iniciativa. Eu, por exemplo, poderia abrir uma leiteria para vender leite e manteiga fresca; ou poderia mandar vir da índia uma máquina para fabricar sorvetes. Relojoeiros, sapateiros, jardineiros eram artífices muito procurados. O comércio também oferecia vasto campo de possibilidades de lucro, sobretudo a quem soubesse inglês e pudesse manter comunicações com a índia. Quanta gente vivia de comprar mercadorias nos bazares indianos e de revendê-las em Lhasa! Não havia necessidade de licença; habilitação profissional, diploma, eram conceitos desconhecidos; não se cobravam impostos. Em muitos ramos de negócio não havia concorrência, e os preços eram fixados arbitrariamente.

Nós, porém, não tencionávamos ser comerciantes nem visávamos exclusivamente a ganhar dinheiro. Queríamos achar trabalho de nosso gosto e, acima de tudo, útil ao governo, para lhe retribuir a hospitalidade. Por isto folgávamos de que os tibetanos recorressem a nós em tantos casos e nós pudéssemos ser "paus para toda obra"; era um modo de manifestar a nossa gratidão. Não raro, aliás, nos víamos em apuros, porque nem sempre éramos tão competentes como nos julgavam.

Como na ocasião em que nos encarregaram, de supetão, de redourar as estátuas dos deuses dum templo. Por sorte, encontramos na biblioteca inesgotável de Tsarong um livro de fórmulas e, nele, uma receita para preparar tinta aplicável, com grãos de ouro. Vários ingredientes tiveram de vir da índia. Sim; porque os nepaleses, mestres na arte de dourar e pratear, guardavam zelosamente os seus segredos.

O Tibete tem, em todo o seu território, grandes minas de ouro: mas em parte alguma são exploradas com métodos modernos. Desde a antigüidade, escava-se o Changtang com chifres de gazela, o meio mais primitivo. Um inglês observou certa vez, em minha presença, que talvez valesse a pena repassar, segundo os novos processos, o solo já revolvido. Ainda hoje, muitas províncias pagam os seus tributos com ouro em grão. Também neste caso, os veios não são devidamente explorados como seria necessário, de receio de irritar os espíritos da terra e provocar a sua vingança. E isto impede todas as medidas progressistas. Muitos grandes rios da Ásia nascem no Tibete e carreiam o ouro das suas montanhas. Entretanto, só os países vizinhos começaram a explorá-los; e, no Tibete, a lavagem do ouro só e nos distritos onde se revelou muito rendosa. No leste do Tibete, certos rios cavaram valos onde o ouro de aluvião se acumula por si mesmo; é só limpar o fundo do rego de tempos a tempos. De ordinário, cabe ao governador do distrito o controle dessa lavagem de ouro natural.

Eu estranhava que ainda não tivesse ocorrido a ninguém a idéia de explorar esse tesouro em proveito próprio. Mergulhando nos riachos dos arredores de Lhasa, vê-se o pó de ouro flamejar no fundo, à luz do sol. Um quadro inverossímil! Mas essa riqueza permanece inexplorada, como noutros territórios do país; em parte, porque o tibetano acha estafante esse trabalho relativamente fácil! Por outro lado, no Tibete preza-se o ouro mais do que nos países ocidentais; nem tanto pelo seu valor material, e sim por ser meio de expressão de luxo e pompa. Todas as jóias são de ouro primorosamente lavrado; nos templos, acumulam-se tesouros incalculáveis. E nunca parecem suficientes! Há lâmpadas de manteiga de ouro maciço e metros de altura; estátuas de deuses chapeadas de ouro, da altura de vários pavimentes, túmulos perdulàriamente ornamentados são testemunhos de amor ao fausto e, ao mesmo tempo, de abnegação. Criaturas pobres tiram, muitas vezes um anel do dedo e o dão ao templo. Não visam apenas a granjear os favores da divindade; fazem questão de contribuir para aumentar essa coleção enorme de preciosidades que tanto significam para elas.

O mesmo ocorre em relação às riquezas do subsolo. Oferecem-se anualmente a Lhasa, como tributo das outras províncias, mica, ferro, cobre, prata e outros minerais. Ninguém pensa, no entanto, em fundar uma indústria, para utilizá-los; nem cuida de aproveitá-los para as suas necessidades.

Evita-se perturbar os espíritos da terra, temendo que eles se vinguem com terremotos. É preferível mandar vir da índia, em semanas de transporte, através das montanhas, as chapas de cobre para a Casa da Moeda; ou comprar molas velhas de vagões ferroviários, para forjar espadas. Em vez de cavar em profundidade, à procura de carvão, seca-se estéreo de iaque e de cavalo para combustível. O próprio e precioso sal-gema não é extraído, porque os lagos sem sangradouro do Changtang fornecem bastante sal. Todos os anos, trocam-se carregamentos de sal por sacos de arroz, no Butan, no Nepal, na índia. Brota em jactos do solo o petróleo bruto, e o povo o colhe para alimentar os seus candeeiros fuliginosos. Talvez haja, cá e lá, este ou aquele tibetano empreendedor, sonhando enriquecer com a exploração desses tesouros. Mas ninguém se atreve a começar. Sentem instintamente que só poderiam por em prática as suas intenções pacíficas, se pudessem desafiar a ambição de poder dos seus grandes vizinhos. Conseqüentemente, preferem inverter os seus capitais no comércio, em artigos de menos repercussão mundial...

Pouco antes do nosso segundo Ano Novo em Lhasa, recebemos correspondência da pátria. Ao termo de três anos! As cartas eram datadas do ano anterior; um dos envelopes trazia até o selo de Reykjavik e circulara pelo mundo inteiro. Apesar de tudo, que bom era saber que existia uma ligação, um fio entre o "telhado do mundo" e a nossa terra natal, distante, jamais esquecida! Infelizmente, era um fio muito tênue; e não melhoraram, nos anos seguintes, as comunicações postais. Não era possível mudar nada. As notícias da Europa não eram muito animadoras. Incentivavam-nos a obedecer ao pressentimento, que já nos assaltara outras vezes, de ficar onde estávamos, de nos instalarmos em Lhasa. Nenhum laço especial nos prendia afinal à pátria. Os anos passados nesse derradeiro cantinho pacífico do globo nos haviam plasmado. Nós agíamos e pensávamos como os tibetanos aprendem a agir e pensar. E o idioma já não era para nós puro meio de nos fazermos compreender; podíamos sustentar, em tibetano, qualquer conversação, com todas as fórmulas de cortesia. O contacto com o resto do mundo estava assegurado por um pequeno aparelho de rádio, presente dum dos ministros, o qual me pedira o favor de lhe comunicar toda novidade política, especialmente as que se referissem à Ásia central. Captar as vozes de todas as nações do mundo tão límpidas e puras, naquela caixinha, causava-nos uma sensação irreal. Efetivamente, no "telhado do mundo" não há dentista com brocas, não há bonde, não há cabeleireiro com aparelhos zunindo. Conseqüentemente, nada perturba a recepção.

Os dias começavam para mim, com a audição dos noticiários e, de ordinário, eu meneava a cabeça, estranhando que, em todo o mundo, os homens tomassem a sério certas coisas: o fato de certa máquina produzir mais alguns cavalos-vapor do que a mesma máquina da série anterior, ou que a travessia do oceano se fizera com dois minutos de diferença para menos do tempo do mês passado. Como tudo aquilo era secundário!... A posição das coisas varia, conforme o ponto de vista do observador. No Tibete, o passo do iaque é o padrão para toda velocidade; e já o era há mil anos. Seria o Tibete mais feliz, com outra orientação? Uma auto-estrada para a índia já bastaria, sem dúvida, para elevar o nível de vida do seu povo; mas isso equivaleria a introduzir no país o "ritmo moderno", a roubar-lhe a calma, a paz. Não convém impor a uma nação invenções totalmente estranhas ao seu grau de desenvolvimento. Há, no Tibete, um sábio provérbio: "Não se alcança o quinto andar do Potala, sem começar do rés-do-chão".

Acaso a civilização autóctone, o modo de vida dos tibetanos não contrabalançam bom número de invenções? Onde é possível encontrar hoje, no mundo ocidental, tão requintada cortesia? O tibetano nunca perde a compostura, nunca é grosseiro. Os próprios adversários políticos tratam-se com respeito e urbanidade; cumprimentam-se cordialmente, quando se encontram na rua. As senhoras da nobreza são cultas, alinhadas; anfitriãs admiráveis; revelam na escolha dos seus trajes e dos seus enfeites um bom gosto modelar. Pareceria perfeitamente compreensível que nós, dois celibatários, tivéssemos em casa uma, senão várias mulheres para dirigir-nos o lar. Amigos tibetanos sugeriram até que pelo menos repartíssemos uma entre nós. Não raro, em horas de soledade, afaguei a idéia de escolher uma esposa. Todavia, por lindas que fossem as moças tibetanas, nunca me decidi a essa união. Não havia suficientes pontos de contacto espirituais; e, a meu ver, o resto era muito pouco para uma existência em comum... Gostaria de mandar vir uma noiva da minha terra... A princípio, faltavam-me os meios; mais tarde, interpuseram-se os acontecimentos políticos.

Logo, eu vivia sozinho, o que muito me favoreceu depois, quando passei a estar em contacto direto com o Dalai Lama. A camarilha onipotente dos monges detentores do poder veria talvez com muito maus olhos os nossos encontros, se eu fosse casado. Os monges vivem, com efeito, em rigoroso celibato, evitando todo contacto com as mulheres. Infelizmente, o homossexualismo é fenômeno comum; e bem visto até, como indício de que na vida do interessado as mulheres não desempenham nenhum papel. Muitas vezes, porém, os monges se apaixonam; neste caso, solicitam permissão para deixar o mosteiro e casar-se com a amada. Essa petição é deferida, sem dificuldades. Se o monge pertence à nobreza, de nascença, assume um cargo da mesma categoria no funcionalismo leigo; mas o que vem das camadas populares perde a classe e, na maioria dos casos, ganha a vida no comércio. São, pelo contrário, aplicadas penas severas aos monges que se metem com mulheres, sem pedir licença.

A despeito da minha solidão voluntária, o tempo passava rapidamente. Para preencher as horas, tínhamos além do nosso trabalho a leitura e os convites. Demais, Aufschnaiter e eu nos visitávamos regularmente, desde que deixáramos de morar- juntos. A troca de idéias era, para nós, uma necessidade. Sentíamos que a nossa atividade ainda não bastava e, por vezes surgia em nós uma dúvida: não poderíamos empregar melhor o nosso tempo? Ainda havia tanto que fazer, nesse país intacto, justamente no setor da pesquisa! Não eram raras as ocasiões em que forjávamos planos. Se deixássemos Lhasa e nos fôssemos, disfarçados em pobres peregrinos, de estação a estação, Tibete 'a dentro, para o conhecer como ninguém?... Aufschnaiter continuava a afagar o seu sonho: passar um ano à margem do Namtsho, o grande lago misterioso, e estudar-lhe as marés.

 

 

OS ESTRANGEIROS E O SEU DESTINO NO TIBETE

 

Todavia, quando a nossa permanência em Lhasa deixou a pouco e pouco de nos reservar sensações, reconhecemos mais claramente como a sorte nos favorecera, levando-nos à capital do Tibete. O governo confiava-nos cartas para traduzir — cartas de todos os pontos do globo, cujos remetentes solicitavam uma permissão de estada. Muitos ofereciam os seus préstimos, a troco de casa e comida, só para conhecer o país. Outras missivas vinham de doentes do peito que esperavam curar-se, ou prolongar a vida, na atmosfera do Tibete. Estes doentes recebiam resposta imediata, à qual se anexavam votos pessoais e a bênção do Dalai Lama, bem como por vezes donativos em dinheiro. Às outras petições nunca se respondia. Mas o visto de entrada não se outorgava a ninguém. O Tibete punha todo o empenho em permanecer isolado. Continuava a ser a "terra proibida", por mais tentadoras que fossem as ofertas.

Em 1947, atendendo a uma recomendação dos ingleses, o governo tibetano convidou oficialmente o jovem jornalista francês Amaury de Riencourt que passou três semanas em Lhasa.

Um ano depois, veio de Roma o célebre tibetólogo professor Tucci. Era a sua sétima visita ao Tibete e só nessa fora-lhe permitido chegar a Lhasa. O professor Tucci granjeara fama de melhor conhecedor da história e da civilização tibetanas; traduzira inúmeros livros tibetanos e publicara várias obras de sua lavra. Surpreendia continuamente chineses, nepaleses, hindus, tibetanos, pelo seu conhecimento das datas da história da China, do Nepal, da índia, do Tibete. Encontrávamo-nos freqüentemente em reuniões; uma vez, em presença dum numeroso grupo de tibetanos, o professor colocou-me em posição constrangedora, declarando-se num debate de parecer contrário ao meu. A discussão versava sobre a forma da terra. No Tibete, subsistia a definição tradicional: a terra é um disco plano. Eu, como é natural, defendia a teoria da forma esférica. A minha argumentação já convencia os próprios tibetanos, quando eu — procurando dar-lhe mais força — apelei para o tibetólogo Tucci. E tive a surpresa de vê-lo tomar o partido dos que duvidavam; porque — no dizer dele — todas as ciências revisam continuamente as suas teorias. Talvez, lá um dia, a teoria tibetana viesse a ser proclamada válida. Sorrisinhos gerais; todos sabiam que eu também ensinava geografia. O professor Tucci permaneceu oito dias em Lhasa. Visitou depois o claustro de Samye, o mais famoso do Tibete. Deixou o país, levando copiosa bagagem Científica e muitos livros valiosos da imprensa particular do Potala.

Lhasa recebeu outra visita interessante, a dos dois Thomas Lowell, pai e filho. Estes também se demoraram oito dias. Tomaram parte em festas realizadas em sua honra, foram recebidos pelo Dalai Lama, filmaram e levaram documentários notáveis do país e dos habitantes. O filho escreveu, com agilidade jornalística, um "best seller"; o pai, rádio-comentarista famoso nos Estados Unidos, fez gravações para os seus programas.

Eu invejava-lhes o magnífico equipamento cine-fotográfico. Porque já então possuía, em sociedade com o meu amigo Wangdüla, uma "Leica"; mas lutava com a falta perpétua de filmes. Os americanos fizeram-me presente de dois filmes coloridos, os primeiros e os únicos que tive.

Naquela época, a situação política favorecera a visita dos dois americanos. Embora já histórica, a ameaça da China, impendente sobre o Tibete, voltava a ser particularmente atual. Todo regime chinês — imperial, nacional, comunista — externara pretensões imperialistas sobre o Tibete; e considerava este país uma das suas províncias. Com isso não concordavam os habitantes da terra dos Lamas, porque prezavam a sua independência, e a sua pátria lhes pertencia por direito incontestável. Conseqüentemente, o governo tibetano decidiu-se ao gesto de impressionar o mundo, pondo-lhe ante os olhos a sua autonomia, por intermédio da atividade publicitária dos dois Lowells.

Além destes quatro convidados oficiais, chegaram por motivos profissionais ao Tibete um engenheiro e um mecânico. O engenheiro era inglês; trabalhava para a General Electric Company (GEC). Vinha com o encargo de arranjar as máquinas da nova Central elétrica. Elogiou muito o trabalho já realizado por Aufschnaiter.

Nedbailoff, o mecânico, era russo branco. Vagueava na Ásia, desde a revolução bolchevista. Internado no campo, onde eu estivera, ia ser repatriado em 1947; mas, para salvar a pele, também fugira para o Tibete. Recapturado logo além da fronteira, porque a região estava sob o controle dos ingleses, o russo fora afinal tolerado no Sequim, por ser muito hábil no seu ofício. Vinha a Lhasa a chamado, para consertar a instalação da Central antiga. Meses depois, os chineses vermelhos invadiram o Tibete e Nedbailoff teve de fugir de novo. Talvez fosse dar à Austrália. O seu destino era fugir perpetuamente. Graças à sua índole aventurosa, superava todos os perigos. Além do seu trabalho, gostava de aguardente forte e de moças bonitas — dois artigos de que era bem sortida a cidade santa.

A declaração de independência da índia decidiu também a sorte da representação diplomática britânica em Lhasa. O seu pessoal foi substituído; só Mr. Richardson ficou mais um ano, porque os hindus não tinham funcionários instruídos para lhe ocupar o posto. O governo tibetano contratou Reginald Fox como rádio-operador para instalar, em todo ponto estratégico importante, estações radiotelegráficas, porque se agravava continuamente a ameaça dum ataque da China vermelha. Para Tschamdo, o foco do Tibete oriental, precisava-se dum homem de confiança. Reginald Fox mandou vir um jovem inglês, Robert Ford, que tive ensejo de conhecer em Lhasa. Era um simpático rapaz. Gostava de bailes. Foi ele quem apresentou à mocidade aristocrática de Lhasa o primeiro samba. Nas reuniões, dançava-se muito; de preferência, danças nacionais, semelhantes às danças das estepes; por vezes, um rápido fox-trott. Os velhos meneavam a cabeça: era indecente aquele agarramento dos pares — exatamente o que se dizia, uns decênios antes, na Europa, quando a valsa iniciou a sua marcha triunfal.

Depois Ford seguiu com uma enorme caravana para Tschamdo. Em breve era possível comunicar-se com ele, pelo telefone sem fios — um posto muito isolado, com alguns europeus, em centenas de quilômetros! Mas os radioamadores do mundo inteiro brigavam por uma conversação com Robert Ford. Essas palestras faziam que Robert Ford recebesse montes de cartas e de presentes de toda parte do globo. Infelizmente, os apontamentos que o moço inglês tomara, acerca desses diálogos inofensivos, valeram-lhe mais tarde a prisão. Separado dos que se retiravam ante a invasão chinesa, caiu em poder dos vermelhos que lhe assacaram as acusações mais absurdas, a fim de encontrar motivos para condená-lo. Atribuíram-lhe o envenenamento dum Lama; as notas do seu caderno de apontamentos foram interpretadas como espionagem. Ainda hoje, apesar da sua absoluta inocência, esse rapaz simpático é prisioneiro dos chineses vermelhos. O representante da Inglaterra em Pequim até agora não conseguiu libertá-lo. Nos meus sete anos de Tibete, conheci outro branco: o americano Bessac, de cujo destino me ocuparei adiante.

 

 

AUDIÊNCIA DO DALAI LAMA

 

Chegou o meu segundo Ano Novo tibetano em Lhasa. Dessa vez participei, desde o princípio, de todas as fases da festa. Mais uma vez acudiram forasteiros às dezenas de milhares e Lhasa reassumiu a aparência dum acampamento militar. Festejava-se o início do "ano do porco de fogo"; e a pompa das cerimônias nada ficou a dever às do ano anterior. Dessa festa, o quadro que ainda hoje tenho vivo na memória, foi a marcha de mil soldados em trajes de cavaleiros antigos. Este uso remontava a um acontecimento histórico. Em épocas distantes, um exército muçulmano lançara-se contra Lhasa, numa ofensiva difícil, ao sopé das montanhas de Nyentschenthanglha; mas fora varrido e congelado por violentas nevascas. Os "bönpos" dessa região levaram em triunfo, à capital as armaduras dos vencidos. Desde então, mil soldados as exibiram todos os anos, na parada do Ano Novo. Passavam os velhos estandartes, em meio do tinir das cotas de malha protetoras dos homens e dos ginetes; os capacetes com inscrições em hindustani reluziam ao sol; nas vielas apertadas, ecoavam os tiros das espingardas de vareta... Quadro singular, o dessas armaduras medievais, nessa cidade antiga! Ajustava-se tão bem à moldura, que poderia ser, não reminiscência histórica mas realidade. Comandada por dois generais aristocráticos, a tropa marchava de Parkhor a um largo, situado na periferia de Lhasa. Ali aguardavam dezenas de milhares de pessoas aglomeradas em redor da grande fogueira em cujas labaredas iam arder e subir ao céu as oferendas: toneladas de manteiga e frutos silvestres. A multidão seguia, fascinada, os gestos dos monges que arremessavam às chamas caveiras, figurações simbólicas de espíritos maus. Reboavam, ao mesmo tempo, os tiros de peça, lançados aos cimos da cordilheira. De morteiros enterrados, os artilheiros enviavam uma salva a cada pico. No ponto culminante da cerimônia, o oráculo oficial adiantou-se em transe, cambaleando, para a fogueira; ensaiou uns passos de dança e caiu. Foi o sinal. O povo despertou do seu estupor, moveu-se vociferando, como em êxtase. Nesses momentos, o comportamento da massa é imprevisível. Em 1939, por ocasião dessa mesma festa, os componentes da única expedição alemã ao Tibete escaparam vivos, por milagre. Tentavam filmar de frente o transe do oráculo, e a multidão os alvejou com uma saraivada de pedras. Os expedicionários fugiram por muros e telhados. Este incidente não era indício de ódio político nem de aversão aos estrangeiros em geral. Provocou-o só o fanatismo religioso que por vezes produz tais explosões. Mais tarde, filmando para o Dalai Lama, eu mesmo tive de agir com muita cautela, pois de ordinário havia cenas de êxtase. Por isto eu me orgulhava sumamente de poder levar a termo, sem empecilhos, o meu trabalho e de tirar, ainda em cima, algumas fotografias para mim.

Nessa festa do Ano Novo, o primeiro camarista de Sua Santidade comunicou-nos que estávamos na lista da recepção do Dalai Lama. Embora tivéssemos visto várias vezes o jovem deus e ele nos houvesse distinguido inconfundivelmente com um sorriso nas procissões, a perspectiva de nos encontrarmos com ele no Potala trazia-nos em grande alvoroço. Eu pressentia que esse convite ia ter grande importância para nós; foi, com efeito, o primeiro da sucessão de fatos que, mais tarde, me conduziu ao contacto imediato com o soberano adolescente.

No dia aprazado, vestimos os capotes de peles, compramos os laços brancos mais caros da cidade e, no meio duma aglomeração variegada de monges, de nômades, de senhoras em toalete de cerimônia, subimos a escadaria do Potala.

À medida que subíamos, mais e mais impressionante se tornava o panorama da cidade. Só dali se abrangia toda a beleza dos jardins, das mansões aristocráticas. O caminho renteava numerosas moendas de orações que os passantes cuidavam de manter em perpétuo movimento; depois transpusemos um dos grandes portais internos do palácio.

Percorrendo corredores sombrios, de paredes decoradas com imagens extravagantes de divindades protetoras, fomos dar a um pátio no andar inferior. Desembocavam ali clarabóias enormes, de oito a dez metros de profundidade, que permitiam avaliar a espessura dos muros. Vários lanços de escada levavam do pátio ao telhado descoberto. Subíamos cautelosamente, em fila, cuidando cada qual de fazer menos barulho do que o vizinho e não dar aos gigantescos monges-soldados ensejo para usarem os seus chicotes. Nos altos do monumento, já se premia um ajuntamento; pelo Ano Novo, qualquer pessoa podia pedir a bênção ao Buda vivo.

Algumas superestruturas de cobertura dourada, no terraço, continham os aposentos do Dalai Lama. Em longa procissão, tendo à frente os monges, os fiéis encaminharam-se para uma porta, diante da qual os funcionários-religiosos realizavam as suas assembléias diárias. Nós vínhamos na fila atrás dos monges. Entrando na sala de recepção, esticamos o pescoço, para deitar por cima daquele mar de cabeças uma vista de olhos ao Buda vivo. E ele, esquecendo um instante a sua dignidade, também ergueu a cabeça, para ver os dois estrangeiros de que tanto ouvira falar.

Sentado na atitude de Buda, levemente curvado no trono estofado de brocados preciosos, ficava horas a ver passar e a abençoar os crentes. Aos pés do trono, jaziam saquitéis de ouro, rolos de seda, centenas de laços brancos. Sabíamos que não devíamos apresentar-lhe pessoalmente os nossos; um dos abades viria apanhá-los. Passávamos nesse momento por ele. Contrariando a etiqueta, enviesei um olhar ao seu rosto. Dei com um sorriso de criança curiosa, nas suas belas feições; e ele, ao abençoar-me, tocou-me de leve a cabeça, como fazia aos monges. Tudo isto passou-se num relance; no minuto seguinte, já estávamos diante do trono mais baixo: o trono do regente. Ele também nos benzeu com a imposição das mãos; um abade nos colocou no pescoço um laço-amuleto vermelho e convidou-nos a tomar lugar nas almofadas. Serviram-nos arroz e chá; e nós, atendo-nos ao uso, espargimos alguns grãos no solo, como oferenda aos deuses.

Do nosso canto sossegado, pudemos então observar bem o que se passava. Continuavam a desfilar milhares de fiéis, para obter a bênção do jovem rei-deus. Passavam, curvados humildemente, com a língua de fora — um desfile singular! Ninguém ousava levantar os olhos. O toque leve duma borla de seda substituía a imposição das mãos com que fôramos agraciados os monges e nós. Seguíamos com os olhos a procissão interminável que vinha da entrada; não havia ninguém que não trouxesse pelo menos uma pequena dádiva. Muitas vezes eram apenas laços poídos. Mas havia também peregrinos com séqüitos carregados de oferendas. O tesoureiro tomava nota de todos indistintamente. As aproveitáveis passavam logo à administração do Potala. Os laços, ou eram vendidos posteriormente, ou guardados para premiar vencedores de competições. Só os saquitéis de dinheiro depositados aos pés do trono eram propriedade pessoal do rei-deus. Fluíam para as câmaras do ouro e da prata do Potala, onde se acumulavam desde séculos tesouros incalculáveis, transmitidos como herança duma a outra Encarnação.

Mais impressionante do que as dádivas era o fervor que transparecia naqueles semblantes. Para muitas daquelas criaturas, era o instante mais sublime da sua vida. Tinham percorrido em peregrinação milhares de quilômetros, prostrados no pó, rastejando nos joelhos, empregando meses e anos no caminho, sofrendo fome e frio, para receberem aquela bênção. O movimento maquinai da borla de seda parecia-me recompensa bem mesquinha para tanto ardor. Mas todos seguiam radiantes, se um monge-funcionário acrescentava à bênção um laço de seda para o pescoço. Esse laço era guardado a vida inteira, num cofrezinho-amuleto; ou cosido numa bolsa usada constantemente pelo seu possuidor, com a convicção de estar a salvo de qualquer perigo. A qualidade do laço era adequada à classe de quem o recebia. Todos tinham, porém, os famosos três nós místicos.

No recinto não muito vasto, que só recebia ar e luz por uma clarabóia, a atmosfera era opressiva. O cheiro das lâmpadas de manteiga, as nuvens de fumaça de incenso apertavam a garganta. Pairava sobre aqueles milhares de pessoas um silêncio perturbado apenas pelo arrastar dos pantufos. Embora ver o rei-deus fosse um nosso desejo longamente afagado, se bem que ainda houvesse bastante para ver, nós ambos respiramos, aliviados, quando a cerimônia terminou. Talvez tivessem a mesma sensação todos os presentes, salvo os que imploravam - bênçãos. Efetivamente, os dignitários de categoria mais elevada tinham de assistir à função solene horas e horas. Mas isso fazia parte dos seus altos cargos; e era considerado distinção especial.

Mal o último crente deixou o recinto, o Dalai Lama levantou-se. Os presentes o imitaram. Amparado pelos servos, o rei-deus voltou aos seus aposentos particulares. Nós, respeitosamente curvados, permanecemos no nosso lugar. Quando íamos retirar-nos, aproximou-se de nós um monge-funcionário e entregou-nos a cada um uma nota de cem "sangs", nova em folha.

— "Gyalpo Rimpotche ki söre re" — disse ele. Isto é: "Eis um presente do nobre rei".

Esse gesto surpreendeu-nos, tanto mais quando soubemos que ninguém fora presenteado da mesma maneira. Era típico de Lhasa que todos tomassem conhecimento disso, antes que nós o contássemos a quem quer que fosse. Guardamos anos essas notas, como talismãs portadores de felicidade. E, quando deixamos o Tibete, tivemos de convir em que o talismã fora eficiente.

 

 

VISITAMOS O POTALA

 

Finda a audiência, aproveitamos — como os demais peregrinos — o ensejo, para visitar o Potala.

O Potala, uma das obras arquitetônicas mais imponentes do mundo, foi edificado na sua forma atual pelo Dalai Lama V, há cerca de três séculos. Já antes dessa época, existia no mesmo monte um forte do rei do Tibete, forte esse que os mongóis arrasaram durante uma guerra. Em rude trabalho forçado, milhares de homens e mulheres arrastaram em extensões de quilômetros pedra por pedra; e hábeis pedreiros erigiram, na rocha, sem quaisquer recursos técnicos, esse monumento. A obra dir-se-ia ameaçada, quando o Dalai Lama V morreu subitamente. Com o auxílio dalgumas pessoas de confiança, o regente daquela época ocultou a morte de Sua Santidade, convicto de que não teria autoridade bastante para impor obediência aos súditos. Por certo tempo alegou-se, portanto, uma enfermidade do rei-deus; depois, o Dalai Lama mergulhou profundamente em meditação e exercícios piedosos. Esse embuste prolongou-se pelo espaço de dez anos, até acabar a construção do palácio. Quem o vê hoje, em toda a sua grandeza, há de, por certo, compreender e perdoar esse ardil.

Na sotéia do Potala, encontramos também o túmulo do soberano a quem se deve a existência dessa obra monumental. Os despojos do quinto Dalai Lama descansam num "tschörten", ao lado dos restos mortais dos outros reis-deuses. São sete mausoléus, guardados por monges em oração, que acompanham as suas preces com rufos surdos de tambor. Quem quiser chegar àqueles "stupas" solitários terá de subir escadas íngremes — empresa arriscada naquela escuridão, porque a sujeira acumulada nos degraus, durante séculos, os tornou resvaladiços. O "stupa" mais imponente é o do Dalai Lama XIII, cujo fundo se encontra vários pavimentos abaixo, no interior do Potala. Dizem que se empregaram mais de mil quilos de ouro, no revestimento dessa torre. Ornatos de ouro lavrado suportam pedras preciosas e pérolas de valor incalculável, doadas pelos crentes. É um luxo um tanto pesado; mas, por isso mesmo, corresponde à mentalidade asiática.

Depois dos vários templos, visitamos ainda a ala ocidental do palácio, onde se alojam duzentos e cinqüenta monges. Chama-se Namgyetrathang; é uma construção angulosa e estreita, nada convidativa para um europeu. Mas a vista, que se descortina das suas janelinhas, faz esquecer os seus esconsos sombrios. O panorama do Tshagpori e das águas límpidas do Kytchu é arrebatador. As casas de Shö ficam numa baixada tão funda que, para vê-las, é preciso debruçar-se. Que maravilha é Lhasa, vista do alto, com as suas casas em forma de dados, os seus telhados — terraços! Lá de cima não se vê a imundície das vielas.

Já estávamos a caminho da saída, quando nos defrontamos com um portão que nos surpreendeu, pelas suas dimensões. Era a porta da garagem dos carros do Dalai Lama XIII. Logo, o século XX conseguira penetrar até ali! Embora os autos já não fossem utilizados, só o fato de terem sido comprados foi a manifestação dum desejo de progresso. Todavia, o espírito conservador dos monges era mais forte do que toda idéia inovadora. Conseqüentemente, o Tibete continuava a ser o que fora séculos antes.

Nessa ocasião, não visitamos a ala leste, com a escola dos tsedrungs e as várias secções administrativas; o camarista-mor convidara-nos para almoçar. De conformidade com a sua posição social, residia alguns andares abaixo do Dalai Lama. Muitos funcionários e abades alojavam-se no Potala, em aposentos condizentes com a sua classe.

Nos anos seguintes, tive ensejo várias vezes de me hospedar no Potala, quando me demorava em visita aos amigos. A vida e as atividades nessa fortaleza eclesiástica, lembravam as dum castelo medieval. Nenhum objeto pertencia à atualidade. À noite, a certa hora, fechavam-se sob a vigilância do primeiro tesoureiro todas as portas. Guardas munidos de candeeiros inspecionavam todo o palácio, para se certificarem de que tudo estava em ordem; os seus brados ecoavam nos corredores e eram, no silêncio impressionante, os únicos rumores. As noites soíam ser longas e sossegadas, porque no Potala era costume deitar-se cedo. Em contraste com a vida social da cidade, ali não havia festas. Dos "tschörtens" dos finados reis-deuses emanava uma aura de morte. E o palácio, sinistro, solene, assemelhava-se a um mausoléu grandioso. Era compreensível que o jovem soberano se alegrasse de ir ao Palácio de Verão. Essa criança solitária, sem os pais, sem companheiros de folguedos, levava sem dúvida uma existência melancólica. Não se entretinha senão com os seus velhos mestres e os abades. A sua única diversão eram as visitas de seu irmão, Lobsang Samten que lhe trazia as lembranças dos pais e as novidades da capital.

Depois do almoço com o camarista, deixamos o Potala. No caminho, cruzamo-nos com aguadeiros arquejantes; arrastavam barris d'água para a cozinha de Sua Santidade. A água vinha duma nascente cercada, ao sopé do Tshagpori; só o cozinheiro do soberano tinha a chave do portão. Mas, apesar da distância, muita gente vinha buscar água ao desaguadouro da fonte, por ser esta reputada a melhor da cidade.

 

Um dos quatro dignitários que fizeram a volta do mundo, o general Surkhang, regressa a Lhasa. À maneira de boas-vindas, apresentam-lhe largas fitas de seda branca.

 

 

É neste monte dos arredores de Lhasa que os cadáveres dos membros da nobreza e dos Lamas são esquartejados e entregues às aves carnívoras.

 

O irmão de Wangdüla acompanhava-me freqüentemente, nas excursões às montanhas.

 

 

Patinando no gelo: o meu amigo Wangdüla, Lobsang Samten; à direita, o rádio-mecânico hindu.

 

Também se abeberava diariamente a essa fonte o elefante do Dalai Lama, o único do país, presente do marajá de Nepal ao Buda vivo, porque entre os nepaleses havia muitos crentes que veneravam o Dalai Lama como Encarnação. Eram numerosos os nepaleses que entravam para os conventos do Tibete e consagravam a vida à Igreja. Formavam pequenas comunidades distintas do lamaísmo e eram alunos muito inteligentes. Como prova da veneração de todo o Nepal, os nepaleses presentearam o Dalai Lama com dois elefantes. Um deles não resistira à travessia do Himalaia, embora se houvessem aplainado e varridos os quase mil quilômetros de percurso, a fim de facilitar o caminho aos animais que, pertencendo ao rei-deus, também eram considerados "santos". Em todas as paradas, prepararam-se estábulos para o paquiderme sobrevivente. E este, o "Langtshen Rimpotsche", foi acolhido em Lhasa com aclamações jubilosas. A capital do Tibete nunca vira um gigante como aquele. Deram-lhe alojamento próprio, na ala norte do Potala; e o elefante, coberto de ricos brocados, tomava parte a miúdo nas procissões. Os cavaleiros desviavam-se dele em largo arco, porque o gigante exótico assustaria os cavalos tibetanos que topassem com ele numa viela.

Ainda no período das festividades do Ano Novo, Lhasa enlutou-se. Morreu o pai do Dalai Lama. Fizera-se o possível para curá-lo. Monges e curandeiros esforçavam-se por lhe conservar a vida. Moldou-se até um fantoche, trasladou-se para ele, por artes mágicas, a moléstia do paciente e queimou-se o boneco, em solene cerimônia, à margem do rio. Essa espécie de transferência de enfermidade, reminiscência de antigas religiões, é praticada freqüentemente. Não salvou o enfermo. Eu acharia melhor chamar o médico inglês. Mas a família do Dalai Lama tinha de dar sempre o exemplo; não podia, numa situação crítica, quebrar a tradição.

Como de ordinário, o cadáver feito em postas no local consagrado, fora da cidade, foi entregue às aves carnívoras. No Tibete, não se choram os mortos, na acepção ocidental. A dor da separação é atenuada pela fé na reencarnação próxima; a morte não apavora os budistas. Os candeeiros de manteiga arderam quarenta e nove dias. Depois, realizou-se a cerimônia fúnebre usual, em casa do defunto e não se tornou a falar do caso. Viúvos e viúvas podem casar segunda vez, ao termo de certo prazo; e a vida continua o seu curso rotineiro.

 

 

A CONSPIRAÇÃO DOS MONGES DE SERÁ

 

O ano de 1947 trouxe a Lhasa uma pequena guerra civil. O ex-regente, Reting Rimpotsche, embora houvesse abdicado voluntariamente, tornou a sentir pruridos de exercer o poder. Ainda contava com numerosos partidários no povo e no funcionalismo, sempre revoltados contra o novo regente, empenhados em ter outra vez Reting ao leme do Estado. Um atentado com uma bomba-relógio moderna devia ser o sinal para o golpe. A bomba foi entregue, como presente dum desconhecido, em casa dum monge-funcionário de alta categoria. Mas o petrecho infernal explodiu, antes de chegar às mãos do regente. Felizmente não houve vítimas. O atentado fez descobrir uma conspiração; e o enérgico Tagtra Rimpotsche agiu com rapidez e firmeza. Um pequeno exército, comandado por um membro do Gabinete, marchou para o mosteiro de Reting e prendeu o ex-regente. Os monges do claustro de Será insurgiram-se contra essa ação do governo, desencadeando o pânico na cidade. Os comerciantes aferrolharam as lojas e transportaram as suas mercadorias para lugar seguro. Os nepaleses asilaram-se na sede da sua representação diplomática, a qual se converteu em breve numa câmara do tesouro, em razão dos valores que lá eram guardados. A nobreza trancou as portas das suas habitações e armou os criados. Impendia sobre a capital o estado de emergência.

Aufschnaiter vira as colunas em marcha para Reting e voltara imediatamente à cidade. Organizamos juntos a defesa da casa de Tsarong.

A crise política inspirava menos receio do que a possibilidade dos monges de Será invadirem e saquearem a capital. Também não mereciam muita confiança as tropas do governo, equipadas com armas relativamente modernas. Não era a primeira vez, na história de Lhasa, que aconteciam coisas...

Aguardava-se, em meio de grande tensão, a chegada de Reting, prisioneiro; mas o ex-regente já se encontrava no Potala, para onde fora levado clandestinamente. Usara-se desse ardil, com o intuito de iludir os monges rebelados os quais, segundo se apurara, preparavam uma sortida para libertar o preso. Desde o momento em que o seu chefe fora aprisionado, a sua causa estava perdida. Apesar disso, no seu fanatismo, os monges recusavam render-se, o que deu origem a um nutrido tiroteio. Só ao termo dalguns dias, quando o governo mandou bombardear com obuses a cidade-mosteiro de Será e várias casas foram destruídas, cessou a resistência. O exército conseguiu dominar os monges e, aos poucos, a calma se restabeleceu na cidade.

Duraram semanas os debates do julgamento dos culpados. Desterros e fustigações rigorosas estavam na ordem do dia.

Enquanto os projeteis ainda zuniam na cidade, espalhara-se com a rapidez dum raio a notícia da morte do regente revoltoso. Comentavam-se em toda parte as circunstâncias da sua abdicação. Muitos acreditavam num crime político; a maioria supunha, no entanto, que pela sua qualidade de Lama e graças à sua força de concentração e à sua vontade poderosa, Reting conseguira trasladar-se para o Além. Duma hora para outra, a cidade encheu-se das versões mais incríveis do milagre atribuído ao ex-regente e das suas faculdades sobre-humanas. Dizia-se, por exemplo, que certa vez, durante um passeio ele tapara simplesmente com as mãos a panela de barro, donde a sopa dum peregrino começava a extravasar, como se a argila ainda estivesse mole e maleável.

O governo absteve-se de tomar qualquer atitude, perante esses boatos. Provavelmente poucos sabiam o que sucedera de fato. O regente sedicioso, no seu período de governo, também tivera inimigos. Assim, certa vez mandara arrancar os olhos a um ministro que tramava uma rebelião. Soara a hora da vingança. Como sói ocorrer em crises políticas, nessa também pagaram inocentes. Os últimos partidários de Reting foram destituídos dos seus cargos. Um dos chefes do seu partido, chegou a suicidar-se — o único suicídio de que tive conhecimento, durante a minha permanência no Tibete. O suicídio contraria as convicções religiosas dos tibetanos e só os desesperados incuráveis escolhem essa solução. O governo não condenaria esse homem à morte. Já lhe pesava profundamente a resolução de bombardear Será. Provavelmente ele temia os castigos físicos usuais e quis escapar a essa sorte.

Como as prisões não bastavam, coube à nobreza alojar e vigiar os culpados. Conseqüentemente, dentro em pouco houve, em quase todas as casas, um condenado com grilhões e uma argola de madeira ao pescoço. Só o Dalai Lama, na data da sua ascensão ao poder, indultava os sentenciados políticos e os criminosos.

Os monges do mosteiro de Será, na sua maioria, se haviam refugiado na China. Quando irrompiam rebeliões no Tibete, os chineses tinham de ordinário a mão na massa.

O governo confiscou e vendeu em hasta pública todos os bens dos revoltosos. As casas e pavilhões de Reting foram demolidos e as árvores do seu magnífico pomar, transplantadas noutros jardins. O claustro foi entregue à pilhagem impiedosa dos soldados. Muitas semanas depois, ainda se expunham no bazar cálices de ouro, brocados preciosos e outros objetos de valor.

O governo pôs à disposição de Aufschnaiter um cavalo que pertencera a Reting. O animal lhe seria muito útil, no seu vasto campo de trabalho; até aí, o meu amigo se servira dum cavalo emprestado.

Da venda dos bens de Reting, vários milhões de rúpias fluíram para os cofres públicos. Centenas de fardos de casimiras inglesas, oitocentos trajes de seda e brocado eram apenas uma pequena parte dos bens do ex-regente — uma prova de como era possível enriquecer no Tibete. Efetivamente Reting vinha das camadas populares. Começara a sua carreira em pequeno, quando foi proclamado Encarnação.

 

 

SOLENIDADES RELIGIOSAS, EM MEMÓRIA DE BUDA

 

Respirei, aliviado, quando os motins terminaram e a vida normal se restabeleceu a pouco e pouco na cidade. O quarto mês do ano tibetano, santificado como mês do nascimento e da morte de Buda, apagou com as suas solenidades religiosas todo vestígio da revolta.

Os peregrinos afluíram de novo a Lhasa, aos milhares; Lingkhor foi teatro de procissões pomposas; e os crentes mediram com o comprimento do seu corpo os oito quilômetros de trajeto. Gastam-se nisso até onze dias; e, nesse lapso de tempo, eles se arrojaram ao pó dos caminhos, ou às veredas pedregosas do Tshagpori, em média quinhentas vezes. O "Om mani padme hum" estava nos lábios de todos os peregrinos que faziam penitência, sem distinção de posição nem de classe. A irmã do Dalai Lama ajoelhava ao lado da mulher do nômade; embora as vestes fossem diferentes, o fervor era o mesmo. Só quando terminava o programa do dia, tornava a evidenciar-se a diferença. A jovem aristocrata tinha à sua espera um servo com cavalos e uma ceia opima. A mulher do nômade embrulhava-se na capa e procurava um esconso, na rua, para dormir, a fim de na manhã seguinte estar pronta para recomeçar. Todos reiniciavam as prostrações, exatamente no mesmo lugar onde as tinham interrompido na véspera; os fanáticos mediam o Lingkhor com a largura do seu corpo, a fim de nunca voltarem o rosto à cidade santa. Havia, no entanto, entre os devotos muitos "profissionais" que tomavam a seu cargo as penitências de gente abastada e, ainda em cima, viviam de esmolas. "Ganhavam" tanto, que podiam fazer anualmente um vultoso donativo a um claustro.

Conheci um velho que, havia quarenta anos, se arrastava diariamente à roda do Lingkhor, e era conhecido, no convento de Será, pela sua liberalidade. Tinha muitos "clientes" na aristocracia e adotava nos seus exercícios um método especial: munido de luvas de madeira, guarnecidas de ferro e dum grande avental de couro, atirava-se ao leito da estrada e aproveitava o impulso para avançar o mais possível.

No décimo quinto dia do quarto mês, data da morte de Buda, o movimento em Lingkhor chegou ao auge. Inúmeras tendas orlavam o caminho. Nômades mendigos ocupavam os melhores lugares. Aos primeiros raios do sol, saiu a procissão da aristocracia; todos os membros do governo, com exceção do Dalai Lama e do Regente, tomavam parte nela. Passavam, rezando, ao longo da densa ala de espectadores; seguiam-nos lacaios com sacos cheios de moedas de cobre, que iam distribuindo no ajuntamento. Nenhum mendigo ficava de mãos vazias. Nem eram só mendigos; vi muitos dos nossos cavadores, dos nossos operários, estenderem a mão. Aparentemente, nenhum dos quase cinco mil indivíduos, que recebiam esmolas, se envergonhava disso. A distribuição durou o dia inteiro; os ricos, inclusive nepaleses, maometanos e chineses, deram aos necessitados o seu óbolo ao qual se acrescentavam tsampa e vários gêneros alimentícios.

Esse dia em Lingkhor seria a alegria dum etnólogo. Equivalia a um corte transversal na população do Tibete; mas também mostrava a distância entre a nobreza — a única classe abastada — e o povo.

Como sói acontecer nessas festas, os espertalhões descobriam todas as possibilidades imagináveis de tirar proveito. Certo indivíduo pendurara painéis coloridos num muro de jardim e, postado ao pé deles, contava com voz monótona à aglomeração, que o rodeava, a história do herói Kesar, exterminador de milhares de inimigos. Terminada a narração, todos davam os seus vinténs ao narrador. O auditório mudava e ele recomeçava a lengalenga, ou qualquer outra lenda do passado do Tibete. Tal qual os cantores populares das nossas feiras anuais!

Outros ganhavam dinheiro, lavrando em pedras fórmulas devotas, que colocavam nos "muros de Mani". Essas faixas de muro existem em todo o Tibete; algumas delas, já centenárias, cobertas de musgo e de ervas. Em muitas estão muradas moendas de orações; ou então as revestem pedras e painéis de ardósia, com inscrições piedosas. Quem encontrar no caminho um desses muros, deve tê-lo sempre à direita; só os adeptos da religião de Bön passam por eles em direção contrária. Os "muros de Mani" têm mais ou menos a significação que nós atribuímos a um cruzeiro, ou a um oratório. De quando em quando, são levantados cá e lá por um ricaço que espera fazer jus a uma reencarnação melhor.

Nesse mês consagrado, era rigorosamente proibido abater um animal. Conseqüentemente, não havia carne fresca nem festas; interrompiam-se as reuniões sociais, porque não era possível exigir que os convidados se contentassem com uma ceia frugal.

Mas o povo sabia achar as,suas diversões. A parte divertida do dia passava-se na vertente norte do Potala. Há ali uma lagoa e, no meio dela uma ilhota com o templo das serpentes. É uma distração agradável e pouco dispendiosa fazer em bote de pele de iaque a travessia da lagoa. Depois, a comitiva sentava-se na relva, à beira d'água, para um pequeno piquenique, sob o sol do verão.

Findo o mês consagrado, recomeçavam as grandes festas que, na estação estiva, se realizavam em belos parques, ou à margem do rio, e tanto podiam durar dias como semanas. As famílias da boa sociedade rivalizavam em exceder-se na opulência dos festins. Muitas vezes, eu estranhava que os nobres tibetanos não se cansassem das suas perenes reuniões e convites.

 

 

PRIMEIRA ENCOMENDA OFICIAL

 

Nesse verão, o governo tibetano incumbiu-nos de traçar uma planta exata da capital. Aufschnaiter empreendeu os seus trabalhos de medição. Era a primeira vez que as autoridades de Lhasa mandavam fazer esse levantamento; até aí não houvera uma planta da cidade. No século passado, agentes secretos hindus fizeram e levaram à índia alguns croquis; mas inexatos, desenhados de memória. Quanto a nós, usamos o teodolito de Tsarong e arrastamos as nossas fitas métricas por todos os recantos da cidade santa. Só podíamos trabalhar de manhã cedo. Mal começava o movimento nas ruas, éramos sitiados por um bando de curiosos. O governo já destacara dois policiais, para ajudar-nos a conter os importunos que, a toda hora, achavam interessante olhar pela objetiva, ao mesmo tempo que Aufschnaiter — mas do outro lado. Não era um prazer patinhar a manhã inteira, com frio cortante, entre imundícies e excrementos. Empregamos todo o inverno em reunir todas as bases do traçado. Depois, tivemos de subir aos telhados, a fim de que Aufschnaiter inscrevesse os prédios nos respectivos quarteirões. E eu coligi mais de mil denominações, na escrita original. Estando prontas as cópias destinadas ao Dalai Lama e aos grandes dignitários, houve em Lhasa um novo jogo de salão em voga: aprender a ler a planta. E cada qual se divertia imensamente em descobrir a sua casa.

Já então, o governo cogitava de dotar Lhasa de canalização e de iluminação elétrica, obras que também teríamos de executar. A falar verdade, nem eu nem Aufschnaiter entendíamos desse ramo de técnica. Mas, graças ao seu curso de engenheiro agrônomo, o meu camarada tinha um notável preparo matemático; em questões especiais, recorríamos aos manuais especializados. Já nesse ano, Aufschnaiter recebeu do governo um salário em rúpias. Em princípios de 1948, eu também fui contratado. Ainda hoje me orgulho da carta da minha nomeação.

No princípio do estio, meses após a audiência do Dalai Lama, uma noite chamaram-me, com urgência, de Norbulingkha. A enchente do Rio Kytchu ameaçava o palácio de veraneio do soberano. A época das monções transforma, duma hora para outra, o manso curso d'água num caudal devastador que, em certos pontos, atinge dois quilômetros de largura. Quando cheguei ao palácio, a velha barragem principiava a fraquejar. Com um violento aguaceiro, à luz precária das lâmpadas de bolso, os soldados da guarda do corpo sob a minha direção levantaram novo dique. Conseguimos reforçar o antigo, para que resistisse até ao amanhecer. Nessa manhã, mandei comprar todos os sacos de aniagem, que houvesse no bazar, e enchê-los de barro e tijolos de relva. Quinhentos cules e soldados ajudaram-me, com presteza desusada, a terminar o trabalho, antes que a velha barragem desmoronasse.

Na mesma ocasião, convocara-se o oráculo do tempo, o monge de Gadong e ele foi meu vizinho numa casa de Norbulingka. Tínhamos ambos o mesmo encargo: domar o rio. Mas foi bom que não se fiassem só no oráculo e quinhentos pares de braços pusessem mãos à obra. Enquanto dávamos os últimos golpes de enxada ao dique, o oráculo caiu em transe dentro d'água e executou a sua dança. No mesmo dia a chuva parou, as águas do rio desceram; e nós — o oráculo e eu — fomos ambos elogiados pelo Dalai Lama.

Mais tarde, perguntaram-me se eu não poderia fazer alguma coisa sólida, para represar as cheias que ameaçavam anualmente o Palácio de Verão. Prontifiquei-me logo a empreender o trabalho. Com o auxílio de Aufschnaiter, julgava-me capaz de regularizar o curso do rio. Os tibetanos construíam os seus diques sempre com paredes perpendiculares. Eu percebera, havia muito, que nisso estava o erro capital.

Começamos, pois, os trabalhos com muita antecedência, na primavera de 1948, porque eu pretendia terminá-los antes do período das monções. Puseram-nos às ordens quinhentos soldados e mil cules, uma equipe até aí única de mão de obra. E, na construção dessa barragem, houve uma inovação notável: consegui persuadir o governo de que o trabalho progrediria muito mais, se não exigíssemos trabalho forçado. Obtive que todo trabalhador percebesse diariamente o seu salário; assim a turma estava sempre contente. É óbvio que não se podia medir o andamento da obra por medidas européias. Não raro uma pá ocupava três trabalhadores; um a levava, os outros dois puxavam a corda atada ao cabo do utensílio. O vigor físico dos meus homens era muito inferior ao dos trabalhadores europeus. Era de ver como me olhavam boquiabertos, quando eu me impacientava e agarrava a pá! E quantas interrupções, quantas pausas! De repente, uma gritaria: descobrira-se um verme na pá! Todos acudiam a salvar o verme, a levá-lo para lugar seguro.

Também havia mulheres, nas obras do dique; e o seu trabalho nada ficava a dever ao dos homens. Elas carregavam o dia inteiro cestos de terra, cantando as suas toadas monótonas, para marcar o passo. No Tibete, como em todo o mundo, os soldados são eternos caçadores de rabos de saia e era constante a troca de indiretas entre os dois sexos. O número das mulheres, nas turmas de mão-de-obra, sempre excedia o dos homens. Aufschnaiter empregava, por exemplo, trezentas tibetanas, com um punhado de trabalhadores. Cumpre notar que um quinto da população masculina vivia nos claustros.

O escasso rendimento do trabalho dessas equipes dependia, sem dúvida, do seu estado de subnutrição. Tsampa, chá com manteiga, alguns rábanos temperados com páprica eram a alimentação principal da gente do povo. No local de trabalho, ronronava o dia inteiro a caldeira do chá; cada um tomava a sua ração. Ao meio-dia, havia sopa. Admirava-me que os trabalhadores se contentassem com isso e fossem tão alegres. Estavam habituados. A carne era cara; mesmo em casa, raramente a tinham na panela.

Além dos soldados e dos cules, eu contava com quarenta botes de couro de iaque. O ofício de barqueiro figurava entre os menos cotados, porque obrigava os que o exerciam a lidar, como os correeiros, com peles de animais, contrariando assim a doutrina de Buda. Ficou-me na memória um exemplo particularmente drástico do modo como eram tratados:

Numa viagem ao claustro de Samye, um Dalai Lama utilizou um passo por onde os barqueiros, a caminho do rio, passavam constantemente. Mas a passagem do rei-deus santificou o passo e os barqueiros já não o podiam atravessar. Tiveram de por o bote às costas e trilhar um caminho mais alto e mais escabroso que representava para eles grande perda de tempo. Os botes pesavam mais de cem quilos; os passos ficavam em geral acima dos cinco mil metros. Que influência exerce a religião nesse país, para intervir assim, com as suas leis, na vida cotidiana! Ver passar os barqueiros, cada um com o seu bote aos ombros, sempre me comovia profundamente. Devagar, a passos contados, eles marchavam rio acima — porque era impossível remar contra a correnteza — acompanhado cada qual dum carneiro que o seguia, afeiçoado e fiel como um cão amestrado, levando sem trela os objetos de uso do dono. À hora de começar a viagem, sem que o mandassem, o carneiro pulava dentro do bote.

Os quarenta barcos destacados para as obras do dique, iam buscar blocos de granito a uma pedreira situada mais acima, à margem do rio. Não era tarefa simples, para aqueles botes. Houve que reforçar-lhes os lados com tábuas, para que pudessem conter as pedras. Mas os meus barqueiros eram homens dos mais robustos da região; e também eram mais bem remunerados. Nem se mostravam tão humildes como seria de esperar duma classe menosprezada. Tinham a sua corporação e orgulhavam-se disso.

Quis um feliz acaso que um dos meus colaboradores fosse o "alto bönpo" de Tradün. Cabia-lhe pagar todas as noites o jornal dos trabalhadores. Guardávamos ótima lembrança um do outro e, não raro, nos entretínhamos, recordando aquele período de tão amargas provações para mim. Já agora, eu podia rir-me daquilo. Naqueles dias, o "bönpo" andava em viagem de inspeção, com uma escolta de vinte servos. Tratara-nos com muita consideração e bondade. Quem diria que um dia havíamos de trabalhar, um ao lado do outro, ocupando eu até a "posição de comando"! Custava-me compenetrar-me de que haviam decorrido quatro anos, desde o nosso primeiro encontro. E como esse país já me absorvera! Muitas vezes eu me surpreendia fazendo gestos típicos dos tibetanos; via-os centenas de vezes num dia e já os imitava inconscientemente.

Como o meu trabalho visava a proteger os jardins de Sua Santidade, os meus chefes eram monges da categoria mais elevada e o governo também se interessava vivamente pela minha atividade. O Gabinete, com os seus secretários e servidores, visitava freqüentemente as obras. Nessas ocasiões, mandavam chamar Aufschnaiter e ambos éramos gratificados com muitos elogios, laços de seda e dinheiro. Os trabalhadores também recebiam boas gorjetas e folgavam o resto do dia.

Em junho, o dique estava praticamente pronto. Em boa hora, aliás, porque já principiavam as cheias. Foram, nesse ano, particularmente caudalosas... mas a barragem resistiu. Nos terrenos inundados, plantaram-se salgueiros; e estes, com o seu verde tenro, muito contribuíram para embelezar as vizinhanças do Palácio de Verão.

 

 

TRABALHO E FESTAS, NO JARDIM DA PEDRA PRECIOSA

 

Durante as obras de proteção do Jardim da Pedra Preciosa, monges altos funcionários convidavam-me freqüentemente para jantar e pernoitar no palácio. Fui talvez o primeiro europeu que teve o privilégio de morar no Potala e no Palácio de Verão do rei-deus. Pude assim admirar as belezas do parque de coníferas e árvores frondosas, vindas de todos os pontos do país, os magníficos pessegueiros, pereiras e macieiras que forneciam frutos para a mesa do Dalai Lama. Um batalhão de jardineiros cuidava dos canteiros de flores, das belas árvores, da manutenção das alamedas. Os trabalhos mais pesados competiam à Guarda do Corpo. Embora cercado dum muro espesso, o parque podia ser visitado por qualquer pessoa. Dois guardas do corpo faziam sentinela aos portões; mas exclusivamente para cuidar de que os visitantes trajassem à moda tibetana. Nem chapéus nem sapatos europeus entravam no parque; só se abrira uma exceção para mim. Chegado, porém, o período das festas, também tive que me conformar com o uso e suar à vontade sob o chapeirão guarnecido de peles. Os guardas postados ao portão saudavam os membros da nobreza, a partir da quarta classe, apresentando armas; e também me faziam essa honra.

No meio do parque, esbarrava-se num alto muro amarelo, a linha divisória dos jardins particulares do Buda vivo. Só os abades e os íntimos do jovem deus podiam atravessá-la. Coberturas douradas de templos cintilavam misteriosamente entre a folhagem; os gritos dos pavões domesticados eram os únicos sons que vinham de lá ao mundo exterior. Ninguém sabia o que se passava naquele santuário secreto. Os próprios ministros do Gabinete não lhe transpunham o limiar; para o povo tibetano, aquele muro encerrava um segredo místico.

E também era meta de muitas peregrinações. Os peregrinos o costeavam, indo no sentido dos ponteiros dum relógio por um caminho circular. Separados por pequena distância, abriam-se no muro nichos para os cães de guarda; e os seus reforçados e felpudos ocupantes rosnavam, à aproximação de qualquer pessoa. As trelas de pêlo de iaque eram resistentes; mas os ladrados dos cães destoavam daquele mundo de paz. Mais tarde, quando se abriram para mim os próprios portões do muro amarelo, tratei de travar com esses camaradas temíveis uma espécie de armistício.

Lhasa inteira se divertia todos os anos, no vasto teatro ao ar livre, armado diante desse jardim interior e tendo por palco um grande pódio de pedra. Todos corriam para lá; quem não encontrava lugar ao pé do estrado, acomodava-se na sombra do esplêndido parque. Pelo espaço de sete dias, exibiam-se ali, do amanhecer ao por do sol, vários conjuntos teatrais. Todos os atores eram homens; e as representações versavam exclusivamente sobre temas religiosos. Os atores vinham do povo, de todas as profissões; depois retornavam à sua existência privada. Poucos granjeavam fama que lhes permitisse viver da sua arte.

Todos os anos encenavam-se os mesmos dramas. Os vários papéis constavam de recitativo e canto, no estilo das nossas óperas. Formavam a orquestra instrumentos de percussão; a música servia acima de tudo, para ritmar as danças. Só os cômicos interrompiam o curso melodramático da peça e declamavam os seus papéis. O belo e valioso guarda-roupa pertencia ao governo e era guardado no Palácio de Verão.

Um dos sete grupos, o Gyumalungma, famoso pelas suas paródias, era o único que me divertia regiamente; e me surpreendia de contínuo, com o seu desassombro. Testemunhava a favor do senso de humor e da sã energia desse povo a sua capacidade de zombar e rir-se francamente das suas fraquezas e até das instituições da Igreja. Sob uma tempestade de gargalhadas dos espectadores, chegava por exemplo, um oráculo à ribalta e arremedava o estado de transe, com piruetas e chiliques. Homens disfarçados em monjas imitavam de maneira grotesca o fervor fingido das mulheres que rezavam por dinheiro. Então, quando apareciam no palco monges e começavam a namoricar as monjas, a hilaridade não tinha fim, fazia correr lágrimas de riso, nas faces dos monges mais sisudos.

O Dalai Lama também assistia a esses espetáculos, sentado atrás duma cortina de gaze, no primeiro andar dum pavilhão inserto no muro amarelo, mas com a frente voltada para o palco. As tendas do funcionalismo ladeavam, em rigorosa ordem hierárquica, o grande pódio. Ao meio-dia, a caminho da refeição comum, preparada pela cozinha do Dalai Lama, os funcionários desfilavam diante da janela do soberano. Depois convidavam-se mutuamente para encontros em casa ou na repartição e continuavam a festejar. Entretanto, no palco ao ar livre, as cenas sucediam-se, sem interrupção; havia numerosos espectadores que não arredavam pé do seu lugar e acompanhavam, boquiabertos, a representação, do princípio ao fim.

Abria e encerrava o dia, o desfile no jardim de todas as forças aquarteladas em Lhasa, com as suas bandas de música, para apresentar armas ao rei do país dos Lamas. À noite, o desfile era o sinal da remuneração dos atores, gratificados então com uma chuva de laços brancos que escondiam presentes em dinheiro. Das despensas do soberano vinham carregamentos de tsampa, manteiga e chá; e um representante do Dalai Lama entregava a cada ator um laço branco e um envelope com dinheiro.

Terminado o ciclo de representações no Palácio de Verão, os grupos teatrais eram convidados a exibir-se nas residências dos nobres tibetanos e nos conventos. Durante um mês, representavam os seus dramas em várias localidades, sempre assediados pelo público, tanto que, muitas vezes, a polícia era obrigada a intervir.

 

 

EM CASA PRÓPRIA — COM TODO O CONFORTO

 

Esse ano fora assinalado por muitas mudanças para melhor, nas minhas condições pessoais. Contava-se entre elas uma residência confortável onde eu podia viver em completa independência. Nunca esqueci o que devo a Tsarong que me franqueou a sua casa e me ajudou a tomar pé na cidade santa. Desde que principiara a ganhar dinheiro, eu pagava-lhe uma mesada. Nos últimos tempos, vinha recebendo propostas de nobres tibetanos #que, removidos temporariamente para o interior, pretendiam arrendar-me a sua casa, o jardim e parte da criadagem. A oferta era tentadora; e eu já podia dar-me ao luxo de ter moradia própria.

Escolhi finalmente uma das casas do ministro do Exterior, Surkhang, por ser ela, no con