Translate this Page







Joseph Campbell As mascaras de Deus.

Joseph Campbell As mascaras de Deus.

Joseph Campbell

 

 

 

AS MÁSCARAS DE

DEUS

 

MITOLOGIA ORIENTAL

 

 

 

 

tradução

Carmen Fischer

 

 

 

 

 

 

PALAS ATHENA

São Paulo

SUMÁRIO

 

 

PARTE I

A DIVISÃO ENTRE ORIENTE E OCIDENTE

 

Capítulo 1:

Os Sinais Distintivos Dos Quatro Grandes Domínios  13

I. O diálogo mítico entre Oriente e Ocidente              13
II. O mito comum do um que se tornou dois         17
III. As duas interpretações a respeito do ego      21
IV. Índia e Extremo Oriente: dois caminhos, dois modos   27
V. As duas lealdades da Europa e do Levante    33

VI. A era da comparação  35

Capítulo 2:

As Cidades de Deus       36

I. A era do espanto           36
II. Mitogênese    37
III. Estágio cultural e estilo cultural    44
IV. O estado hierático   47
V. Identificação mítica  54

VI. Enfatuação mítica  65
VII. O imanente deus transcendente 73
VIII. A arte sacerdotal     79
IX. Subordinação mítica  82

Capítulo 3:

As Cidades dos Homens   88

I. Dissociação mítica    88
II. Virtude mítica  95
III. Tempo mítico   97
IV. O dilúvio mítico      102
V. Culpa mítica                   109

VI. O conhecimento da dor 114

PARTE II

AS MITOLOGIAS DA ÍNDIA

 

Capítulo 4: A índia Antiga    123
I. O protagonista invisível  123
II. A civilização do Indo: c.2500-1500 a.C.  129
III. O período védico: c. 1500-500 a.C.   142
IV. Poder mítico             155
V. Filosofia da floresta  162

VI. A divindade imanente-transcendente   168

[pag. 005]

VII. A grande 172

VIII. O caminho da fumaça 177

IX. O caminho do 190

 

Capítulo 5:

A Índia Budista 195

I. O herói ocidental e o oriental 195

II. As novas cidades-estados: c-800-500 a.C. 199

III. A lenda do salvador do mundo 203

IV. Eternização mítica 205

V. O caminho do meio 207

VI. Nirvana 221

VII. A idade dos grandes clássicos: c500 a.C.-500 d.C. 229

VIII. Três reis budistas 231

IX. O caminho da visão 240

X. O mundo reconquistado como sonho 248

 

Capitulo 6:

A Idade de Ouro da Índia 254

I. A herança de Roma 254

II. O passado mítico 259

III. A idade das grandes crenças: c.500-1.500 d.C. 267

IV. A via do prazer 271

V. O ataque do islamismo 286

 

PARTE III

AS MITOLOGIAS DO EXTREMO ORIENTE

 

Capítulo 7:

Mitologia Chinesa 291

I. A antigüidade da civilização chinesa 291

II. O passado mítico 297

III. A época feudal chinesa: c. 1500-500 a.C. 310

IV. A idade dos grandes clássicos: c.500 a.C-500 d.C. 321

V. A época das grandes crenças: c.500 a.C-1500 d.C. 324

 

Capítulo 8:

Mitologia Japonesa 360

Origens pré-históricas 360

II. O passado mítico 363

III. O caminho dos espíritos 370

IV. Os caminhos do Buda 374

V. O caminho dos heróis 387

O caminho do chá 389

Capítulo 9:

O Tibete: o Buda e a Nova Felicidade 393

 

Notas de referência* 403

Índice remissivo 427

[pag. 006]

 

 

 

* As Notas foram inseridas ao final das páginas.

PS: A Numeração de páginas do sumário corresponde ao original impresso.

PS2: As páginas estão numeradas de acordo com o documento original, indicando sempre o final de cada uma, entre colchetes.

 

 

ILUSTRAÇÕES

 

Figura 1. Antigo complexo de templo, tipo oval: Iraque, c.4000-3500 a.C. 38

Figura 2. A força que se autoconsome: Suméria, c.3500 a.C. 39

Figura 3. O senhor da vida: Suméria, c.3500 a.C. 40

Figura 4. O sacrifício: Suméria, c.2300 a.C. 42

Figura 5. O leito ritual: Suméria, c.2300 a.C. 42

Figura 6. Mural mortuário em Hieracômpolis: Egito, c.2900? a.C. 47

Figura 7. Estela de Narmer (anverso): Egito, c.2850 a.C. 49

Figura 8. Estela de Narmer (reverso): Egito, c.2850 a.C. 50

Figura 9. Petróglifo. O barco da morte: Núbia, c.500-50 a.C.? 62

Figura 10. O segredo dos dois parceiros: Egito, c.2800 a.C. 68

Figura 11. A dupla entronização: Egito, c.2800 a.C. 69

Figura 12. O poder dual: Egito. c.2650 a.C. 72

Figura 13. O zigurate de Nipur (reconstrução): Iraque, c.2000 a.C. 90

Figura 14. Imagem de uma serva: Vale do Indo, c.2000 a.C. 130

Figura 15. Imagem de um sacerdote: Vale do Indo, c.2000 a.C. 132

Figura 16. O sacrifício: Vale do Indo, c.2000 a.C. 137

Figura 17. A deusa da árvore: Vale do Indo, c.2000 a.C. 138

Figura 18. O senhor das feras: Vale do Indo. c.2000 a.C. 140

Figura 19. O poder da serpente: Vale do Indo, c.2000 a.C. 140

Figura 20. O senhor da vida: França, c.50 d.C. 243

Figura 21. A ilha das pedras preciosas: Índia (Rajput), c. 1800 d.C. 264

Figura 22. Estilo do Antigo Pacífico; à esquerda, cabo de osso. China

(Shang), c. 1200 a.C; à direita, poste totêmico, América do Norte.

(Costa Noroeste), recente 312

Figura 23. Estilo do Antigo Pacífico: acima, América do Norte (Costa

Noroeste), recente; abaixo, México (estilo Tajin), c.200-1000 d.C 313

 

Desenhos das figuras 2, 3,4, 16, 19, 22, 23: John L. Mackey. [pag. 007]

 

 

[pag. 008]

Página em branco

[pag. 009]

título

[pag. 010]

Página em branco

[pag. 011]

título

[pag. 012]

Página em branco

 

 

AS MASCARAS DE DEUS

 

 

 

 

MITOLOGIA ORIENTAL

 

 

 

https://groups.google.com.br/group/digitalsource

 

 

Esta obra foi digitalizada pelo grupo Digital Source para proporcionar, de maneira totalmente gratuita, o benefício de sua leitura àqueles que não podem comprá-la ou àqueles que necessitam de meios eletrônicos para ler. Dessa forma, a venda deste e-book ou até mesmo a sua troca por qualquer contraprestação é totalmente condenável em qualquer circunstância. A generosidade e a humildade é a marca da distribuição, portanto distribua este livro livremente.

Após sua leitura considere seriamente a possibilidade de adquirir o original, pois assim você estará incentivando o autor e a publicação de novas obras.

 

 

 

 

 

PARTE I

 

 

A DIVISÃO ENTRE

ORIENTE E OCIDENTE

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

CAPITULO I

 

 

OS SINAIS DISTINTIVOS DOS QUATRO GRANDES DOMÍNIOS

 

 

 

I. O DIALOGO MÍTICO ENTRE ORIENTE E OCIDENTE

 

O mito do eterno retorno, que continua sendo essencial na via oriental, revela uma ordem de formas imutáveis que surgem e ressurgem ao longo do tempo. A rotação diária do sol, o minguar e o crescer da lua, o ciclo do ano e o ritmo de nascimento, morte e renascimento no mundo orgânico, representam um milagre de surgimento contínuo, fundamental à natureza do universo. Todos conhecemos o mito arcaico das quatro idades — do ouro, da prata, do bronze e do ferro — em que o mundo é mostrado em seu declínio, sempre para pior. Em seu devido tempo ele se desintegrara no caos, apenas para ressurgir, viçoso como uma flor, e recomeçar espontaneamente seu curso inevitável. Jamais houve um tempo em que não houvesse tempo. Tampouco haverá um tempo em que esse jogo caleidoscópico da eternidade no tempo deixe de existir.

Não há, portanto, nada a ser ganho, nem pelo universo nem pelo homem, através de originalidade e esforço individuais. Aqueles que se apegaram ao seu corpo mortal e a suas afeições, necessariamente acharão tudo muito penoso, pois tudo — para eles — terá que acabar. Mas para aqueles que encontraram o ponto imóvel da eternidade, em volta do qual tudo gira, inclusive eles próprios, tudo éaceitável da maneira como é, e pode ser vivenciado como magnífico e maravilhoso. O primeiro dever do indivíduo é,portanto, simplesmente exercer o papel que lhe foi atribuído — como o fazem o sol e a lua, as várias espécies animais e vegetais, as águas, as rochas e as estrelas — sem resistência, sem negligência, e então, se possível, orientar a mente de maneira a identificar sua consciência com o princípio contido no todo. [pag. 013]

O encantamento onírico dessa tradição contemplativa, orientada metafisicamente, onde a luz eas trevas dançam juntas no jogo cósmico de sombras criador do mundo, traz, até os tempos modernos uma imagem de idade incalculável. Em sua forma primitiva, ela é amplamente conhecida entre as aldeias tropicais da vasta zona equatorial que se estende da África, em direção leste, através da Índia, Sudeste Asiático e Oceania, até o Brasil, onde o mito básico é o da idade dos sonhos do princípio, quando não havia nem morte nem nascimento e que, entretanto, acabou quando foi cometido um assassinato. O corpo da vítima foi cortado e enterrado. E das partes enterradas não apenas surgiram as plantas comestíveis das quais a comunidade vive; também surgiram os órgãos reprodutivos naqueles que comeram de seus frutos. Foi assim que a morte, que chegou ao inundo através de um assassinato, foi contrabalançada por seu oposto, a geração, e a vida, essa coisa que se autoconsome e que vive da própria vida, iniciou seu interminável curso.

Em todas as selvas do mundo abundam não apenas cenas violentas entre animais, mas também espantosos ritos humanos de comunhão canibal, representando dramaticamente com a força de um choque iniciatório — a cena do assassinato, o ato sexual e o banquete do princípio, quando a vida e a morte, que haviam sido uma, tornaram-se duas, e os sexos, que antes eram um, tornaram-se dois. As criaturas passam a ter existência, vivem da morte de outras, morrem e tornam-se alimento de outras, perpetuando através das transformações do tempo o arquétipo sem-tempo do princípio mitológico. O indivíduo, neste contexto, não é mais importante do que uma folha caída. Do ponto de vista psicológico, o efeito da prática de tal rito éretirar o foco da mente do individual — que perece — e colocá-lo no grupo — que permanece. Do ponto de vista mágico, reforça a vida perene em todas as vidas, que parecem muitas, mas na verdade são uma só, estimulando assim o crescimento do inhame, do coco, dos porcos, da lua, da fruta-pão, bem como da comunidade humana.

Sir James Frazer, em O Ramo Dourado, mostrou que nas primeiras cidades-estados do Oriente Próximo, de cujo centro se originaram todas as civilizações avançadas do mundo, reis-deuses eram sacrificados em conformidade com esse rito selvagem. E a escavação de Sir Leonard Woolley das tumbas reais de Ur, nas quais cortes inteiras haviam sido cerimonialmente enterradas vivas, revelou que na Suméria tais práticas continuaram até aproximadamente 2350 a.C. Sabemos, além do mais, que na Índia, no século XVI da nossa era, foram observados reis retalhando cerimonialmente a si próprios , e nos templos da deusa negra K

ālī, a terrível de muitos nomes, "difícil de ser abordada" (durgā), cujo estômago é um vácuo que jamais pode ser preenchido e cujo útero está eternamente parindo todas as coisas, um rio de sangue de oferendas decapitadas tem fluido continuamente por milênios através de canais abertos para devolver esse sangue, ainda vivo, à sua fonte divina.

Até hoje setecentas ou oitocentas cabras são abatidas em três dias no Kalighat, o principal templo da deusa em Calcutá, durante seu festival de outono, o Durga Puja. [pag. 014]

As cabeças são empilhadas diante da imagem e os corpos vão para os devotos, para serem consumidos em comunhão contemplativa. Búfalos, ovelhas, porcos e aves também são imolados prodigamente em adoração a ela e, antes da proibição do sacrifício humano em 1835, ela recebia de todas as partes do país banquetes ainda mais abundantes. Em Tanjore, no templo dedicado a

Śiva, uma criança do sexo masculino era decapitada diante do altar da deusa todas as sextas-feiras na hora sagrada do crepúsculo. No ano de 1830, um insignificante monarca de Bastar, desejando sua graça, sacrificou-lhe em uma ocasião vinte e cinco homens em seu altar em Danteshvari e, no século XVI, um rei de Cooch Behar imolou cento e cinqüenta no mesmo local.

Nas montanhas Jaintia, no Assam, era costume de uma certa casa real oferecer iodos os anos uma vítima humana durante o Durga Puja, Depois de ter-se banhado e purificado, o sacrificado era vestido com roupas novas, coberto com sândalo e vermelhão, adornado com grinaldas, e dessa maneira instalado sobre uma plataforma elevada diante da imagem, onde passava algum tempo em meditação, repetindo sons sagrados e, quando pronto, fazia um sinal com o dedo. O carrasco, também pronunciando sílabas sagradas, primeiro elevava a espada e em seguida cortava a cabeça do homem, que logo era ofertada à deusa numa bandeja de ouro. Os pulmões, depois de cozidos, eram consumidos pelos iogues, e a família real compartilhava uma pequena porção de arroz embebido no sangue sacrifical. Os que eram oferecidos em tais sacrifícios eram habitualmente voluntários. Entretanto, quando se carecia deles, eram seqüestrados fora do pequeno feudo. Assim aconteceu em 1832, quando quatro homens desapareceram do domínio britânico, dos quais um escapou para contar a história, e no ano seguinte o reino foi anexado — sem esse costume.

"Por cada sacrifício humano acompanhado de seus devidos ritos, a deusa fica agradecida mil anos", podemos ler no Kalika Pur

āna, uma escritura hindu datada de cerca do século X da nossa era; "e pelo sacrifício de três homens, cem mil anos. Śiva, em seu aspecto terrífico, como consorte da deusa, é aplacado durante três mil anos por uma oferenda de carne humana. Pois o sangue, se imediatamente consagrado, toma-se ambrosia, e, como a cabeça e o corpo são extremamente gratificantes. deveriam ser oferecidos nas devoções à deusa. O sábio faria bem se acrescentasse tais carnes, livres de pêlos, às suas oferendas de comida."

No jardim da inocência, onde tais ritos podem ser realizados com perfeita equanimidade, tanto a vitima quanto o sacerdote sacrificial são capazes de identificar sua consciência com o princípio contido no todo. Eles podem verdadeiramente dizer e sentir, nas palavras da Bhagavad Gītā, que "assim como as roupas gastas são jogadas fora e as novas são vestidas, também corpos gastos são jogados fora pelo habitante do corpo e novos são vestidos".

Para o Ocidente, entretanto, a possibilidade de retorno a tal estado sem ego, anterior ao nascimento da individualidade, não existe há muito tempo, e pode-se considerar que o primeiro estágio importante da separação ocorreu naquela mesma partedo Oriente Próximo Nuclear, onde os primeiros reis-deuses e suas cortes foram [pag. 015] sepultados ritualmente durante séculos: na Suméria, onde a separação das esferas divina e humana começou a ser representada no mito e no ritual por volta de 2350 a.C. O rei, então, não era mais um deus, mas um servo de deus, seu "lugar-tenente na Terra", supervisor da raça de escravos humanos criada para servir aos deuses com labuta incessante. E a questão suprema já não era a da identidade, mas a da relação. O homem tinha sido feito não para ser Deus, mas para conhecê-lo, honrá-lo e servi-lo; de modo que o próprio rei — que de acordo com a visão mitológica anterior tinha sido a principal personificação da divindade na terra — era agora apenas um sacerdote oferecendo sacrifício em honra Àquele acima, não um deus retornando, ele mesmo, em sacrifício dedicado ao Si-Próprio.

No curso dos séculos seguintes, um novo sentido de separação levou a uma aspiração inversa de retorno, isto é: não à identidade, pois já não era mais possível conceber isso (criador e criatura não eram o mesmo), mas à presença e visão do deus perdido. Em conseqüência, a nova mitologia produziu, no devido tempo, um processo que se afastava da visão estática anterior de ciclos repetidos. Assim, de uma criação feita no princípio do tempo de uma só vez e para sempre, de uma queda subseqüente e de uma obra de restauração ainda em curso, surge uma mitologia progressiva de orientação temporal. O mundo não mais era para ser conhecido como mera demonstração no tempo dos paradigmas da eternidade, mas como um campo de conflito cósmico inaudito entre as duas forças, a da luz e a das trevas.

O primeiro profeta dessa mitologia de restauração cósmica foi, ao que parece, o persa Zoroastro, cujas datas, entretanto, não foram fixadas com segurança. Elas foram situadas variadamente entre c.1200 e c.550 a.C, de maneira que, como Homero (de mais ou menos a mesma datação), ele talvez devesse ser olhado mais como símbolo deuma tradição do que como específica ou exclusivamente um homem. O sistema associado a seu nome está baseado na idéia de um conflito entre o senhor sábio, Ahura Mazda, "primeiro pai da Ordem Justa, que determinou o rumo do sol e das estrelas", e um princípio independente do mal. Angra Mainyu, o Impostor, princípio da mentira que, quando tudo estava perfeitamente acabado, penetrou em cada partícula. O mundo, em conseqüência, e um complexo dentro do qual o bem e o mal, a luz e as trevas, a sabedoria e a violência, estão disputando a vitória. E o privilégio e dever de cada homem — que, como parte da criação, e ele próprio um composto de bem e mal — é escolher, voluntariamente, participar da luta em defesa da luz. Supõe-se que com o nascimento Zoroastro, doze mil anos após a criação do mundo, o conflito experimentou uma mudança decisiva em favor do bem, e que quando ele retornar, passados outros doze milênios, na pessoa do messias Saoshyant, ocorrerá a batalha final e a conflagração cósmica, através da qual o princípio das trevas e a mentira serão destruídos. Depois disso, tudo será luz. não haverá mais história e o Reino de Deus (Ahura Mazda) terá sido fundado em sua forma prístina para sempre.

É evidente que para a reorientação do espírito humano seria necessária aqui uma poderosa fórmula mítica, capaz de arremessar esse espírito para a frente no decorrer [pag. 016] do tempo e de convocar o homem a assumir uma responsabilidade autônoma pela renovação do universo em nome de Deus. Capaz também de promover uma nova e potencialmente política (ou seja, não-contemplativa) filosofia de guerra santa. Diz uma oração persa: "Que possamos ser como aqueles que causam a renovação e o progresso deste mundo, até que sua perfeição seja atingida",

A primeira manifestação histórica da força dessa nova visão mítica ocorreu no império aquemênida de Ciro, o Grande (morto em 529 a.C.), e Dario I (que reinou de c.521a 486 a.C), que em algumas décadas estendeu seu domínio da Índia à Grécia e sob cuja proteção os hebreus do pós-êxodo tanto reconstruíram seu templo (Ezra 1:1-11) como reconstruíram sua herança tradicional. A segunda manifestação histórica dessa nova visão foi a aplicação por parte dos hebreus de sua mensagem universal a si próprios; a seguinte foi a missão mundial do cristianismo e a quarta, a do islamismo.

"Ampliem o lugar de suas tendas e deixem abertas as cortinas de suas habitações; Não recuem, estendam suas cordas e fortaleçam suas estacas. Pois vocês se dispersarão para o exterior para a direita e para a esquerda e seus descendentes possuirão as nações, e o povo escolhido, as cidades abandonadas (Isaías 54:2-3; c.546-536 a.C).

"E esse evangelho do reino será pregado em todo o mundo como testemunho para todas as nações, e então chegará o fim" (Mateus 24:14; c.90 d.C),

"E mate-os onde quer que os encontre, e expulse-os de onde eles o expulsaram; pois o tumulto e a opressão são piores que a matança. [...] E combata-os até não haver mais tumulto ou opressão e ali prevalecer a justiça e a fé em Alá; mas se eles cessarem, não permita que haja hostilidade, exceto para aqueles que praticam a opressão" (Alcorão 2:191, 193; c.632 d.C).

Duas mitologias completamente opostas sobre o destino e virtude humanos, portanto, chegaram juntas ao mondo moderno. E ambas estão contribuindo com qualquer nova sociedade que possa estar em processo de formação. Pois, da árvore que cresce no jardim onde Deus anda no frescor do dia, os sábios a oeste do Irã compartilharam do fruto do conhecimento do bem e do mal, enquanto os do outro lado daquele limite cultural, na Índia e Extremo Oriente, provaram apenas do fruto da vida eterna. Entretanto, os dois galhos, somos informados, unem-se no centro do jardim, onde formam uma única árvore na base, ramificando-se quando atingem uma cena altura. Igualmente, as duas mitologias originam-se de uma única base no Oriente Próximo. E se o homem provasse de ambos os frutos ele se tornaria, disseram-nos, como o próprio Deus (Gênese 3:22) — o que constitui a bênção que o encontro do Oriente e do Ocidente hoje nos oferece a todos.

 

II. O MITO COMUM NO UM QUE SE TORNOU DOIS

 

A extensão da divergência entre as mitologias e em conseqüência as psicologias — do Oriente e do Ocidente no decorrer do período entre o nascimento da civilização no Oriente Próximo e a época atual de redescoberta mútua, fica evidente nas [pág. 018] respectivas versões opostas da mesma imagem mitológica do primeiro ser, que originalmente era um, mas se tornou dois.

"No princípio", afirma um exemplo indiano de c.700 a.C, preservado no Brhadaranyaka Upanisad,

 

este universo não era nada senão o Si-Próprio na forma de um homem. Ele olhou em volta e viu que não havia nada além de si mesmo, de maneira que seu primeiro grito foi: "Sou Eu!", e daí surgiu o conceito "eu". (E é por isso que, até hoje, quando interpelados respondemos antes "sou eu!", e só depois damos o nome pelo qual atendemos.)

Então, ele teve medo. (É por isso que qualquer pessoa sozinha tem medo.) Mas considerou: "Como não há ninguém aqui além de mim mesmo, o que há para temer?" Emconseqüência disso o medo desapareceu. (Pois o que deveria ser temido? É apenas a outro que o medo se refere.)

Entretanto, ele carecia de prazer (por isso, carecemos de prazer quando sozinhos) e desejou outro. Ele era exatamente tão grande quanto um homem e uma mulher abraçados. Esse Si-Próprio dividiu-se então em duas partes, e com isso passou a haver um senhor e uma senhora. (Por isso, esse corpo, em si mesmo, como declara o sábio Yajnavalkya, é como a metade de uma ervilha. E é por isso, além do mais, que esse espaço é preenchido por uma mulher.)

O macho abraçou a fêmea e desse abraço surgiu a raça humana. Ela, entretanto, refletiu: "Como ele pode unir-se a mim, que sou produto dele próprio? Bem, então vou esconder-me!" Ela tornou-se uma vaca, ele um touro e uniu-se a ela, e dessa união surgiu o gado. Ela tornou-se uma égua, ele um garanhão, ela uma jumenta, ele um jumento e uniram-se, e disso surgiram os animais de casco. Ela tornou-se uma cabra, ele um bode; ela uma ovelha, ele um carneiro e uniram-se, e surgiram as cabras e as ovelhas. Dessa maneira ele criou todos os pares de criaturas, até as formigas. E então percebeu: "Na verdade, sou a criação; pois tudo isso brotou de mim". Daí surgiu o conceito "Criação" (em sânscrito, sistih,"fruto do manar").

Todo aquele que entender isso torna-se, verdadeiramente, ele próprio um criador nessa criação.

O mais conhecido exemplo ocidental dessa imagem do primeiro ser, dividido em dois, que parece ser dois mas é de fato um, está no Livro do Gênese, segundo capítulo, orientado porém em outra direção. Pois o casal é dividido ali por um ser superior que, como nos contam, fez com que o homem caísse em profundo sono e, enquanto ele dormia tirou uma de suas costelas. Na versão indiana é o próprio deus que se divide e se torna não apenas homem, mas toda a criação; de maneira que tudo é uma manifestação daquela única substância divina onipresente: não há outro. Na Bíblia, entretanto, Deus e homem, desde o início, são distintos. De fato, o homem é feito à imagem de Deus e o sopro de Deus foi insuflado em suas narinas; mas seu ser, seu Si-Próprio, não é o de Deus, nem tampouco é uno com o universo. A criação do mundo, dos animais e de Adão (que então se tornou Adão e Eva), foi realizada não dentro da esfera da divindade, mas fora dela. Há, conseqüentemente, [pag. 018] uma separação intrínseca e não apenas formal. E o propósito do Conhecimento não pode ser contemplar Deus aqui e agora em todas as coisas; pois Deus não está nas coisas. Deus étranscendente. Apenas os mortos vêem Deus. O propósito do conhecimento tem que ser, antes, conhecer a relação de Deus com sua criação, ou, mais especificamente, com o homem, e através de tal conhecimento, pela graça de Deus, religar a própria vontade de cada um com a do Criador.

Além do mais, de acordo com a visão bíblica desse mito, foi apenas após a criação que o homem caiu, enquanto no exemplo indiano a própria criação foi uma queda — a fragmentação de um deus. E o deus não é condenado. Antes, sua criação, "seu manar" (sistih), é descrito como um ato de voluntária e dinâmica vontade-de-ser-mais, que antecedeu a criação e tem, portanto, um significado metafísico e simbólico, nem literal nem histórico. A queda de Adão e Eva foi um evento dentro da já criada estrutura de espaço e tempo, um acidente que não deveria ter ocorrido. Por outro lado, o mito do Si-Próprio na forma de um homem que olhou em volta e não viu nada alem de si mesmo, disse "Eu", sentiu medo e então desejou ser dois, fala de um fator não casual mas intrínseco na multiplicação do ser, cuja correção ou anulação não aperfeiçoaria, mas dissolveria a criação. O ponto de vista indiano é metafísico, poético; o bíblico, ético e histórico.

A queda e expulsão de Adão do Paraíso não foi, portanto, em nenhum sentido uma divisão metafísica da própria substância divina, mas um evento apenas na história, ou pré-história, do homem. E esse evento no mundo criado aparece ao longo da Bíblia no registro dos sucessos e fracassos do homem na tentativa de religar-se a Deus — sucessos e fracassos, mais uma vez, concebidos historicamente. Pois, como veremos a seguir, o próprio Deus, em certo momento no curso do tempo, por na própria vontade, moveu-se em direção ao homem, instituindo uma nova lei na forma de um pacto com um certo povo, que se tornou, com isso, uma raça sacerdotal, única no mundo. A reconciliação de Deus com o homem, de cuja criação ele se havia arrependido (Gênese 6:6), deveria ser alcançada apenas pela virtude dessa comunidade particular — em seu devido tempo: pois em seu tempo deveria ocorrer a instauração do reino do Senhor Deus na terra, quando as monarquias pagas se desagregariam e Israel seria salvo, quando os homens "lançariam seus ídolos de prata e seus ídolos de ouro, que fizeram para adorar, às toupeiras e aos morcegos".

 

Sede subjugados, vós povos, e ficai desalentados;

dai ouvidos, todos vós países distantes;

escarnecei e ficai desalentados;

escarnecei e ficai desalentados.

Aconselhai-vos, mas isso não vos levará a nada:

dizei uma palavra, mas ela não se sustentará,

porque Deus está conosco.

Na visão indiana, pelo contrário, o que édivino aqui é divino lá também; tampouco se terá que esperar — ou mesmo desejar — pelo "dia do Senhor". Pois o que se [pag. 019] perdeu e, em cada um, o Si-Próprio (ātman), aqui e agora, e tem apenas que ser procurado. Ou, como eles dizem: "Apenas quando os homens enrolarem o espaço como um pedaço de couro, haverá um fim para o sofrimento e além disso haverá o conhecimento de Deus".

No mundo dominado pela Bíblia surge a questão a respeito da comunidade escolhida, pois é bem sabido que três manifestaram pretensões: a judaica, a cristã e a muçulmana, cada uma alegando autoridade advinda de uma revelação particular. Deus, embora concebido como fora do âmbito da história e não sendo ele próprio sua substância (transcendente: não imanente), supostamente engajou-se de modo milagroso na empresa de restaurar o homem caído, através de uma aliança, sacramento ou livro revelado, a fim de propiciar uma experiência comunal geral de realização ainda por vir. O mundo é corrupto e o homem um pecador; o indivíduo, entretanto, através da união com Deus no destino da única comunidade legitimada, participa da glória vindoura do reino da justiça, quando "a glória do Senhor será revelada e toda a carne junta a verá".

Na experiência e visão da Índia, por outro lado, embora o mistério e ascendência sagrados tenham sido entendidos como, de fato, transcendentes ("outro que não o conhecido; mais do que isso: acima do desconhecido"), eles são também, ao mesmo tempo, imanentes ("como uma navalha em seu estojo, como o fogo no pavio"). Não é que o divino esteja em todas as partes: é que o divino é tudo. De maneira que não se precisa de nenhuma referencia externa, revelação, sacramento ou comunidade autorizada para se retornar a ele. Tem-se apenas que mudar a orientação psicológica e reconhecer (re-conhecer) o que está dentro. Sem esse reconhecimento, somos afastados de nossa própria realidade por uma miopia cerebral que em sânscrito é chamada māyā, "ilusão" (da raiz verbal m

ā, "medir, marcar, formar, construir", denotando, em primeiro lugar, o poder de um deus ou demônio de produzir efeitos ilusórios, de mudar de forma e de aparecer sob máscaras enganadoras; em segundo lugar, "mágica", a produção de ilusões e, na guerra, "camuflagem, táticas enganadoras", e finalmente, no discurso filosófico, a ilusão sobreposta à realidade por causa da ignorância). No lugar da expulsão bíblica de um paraíso geográfico e concebido historicamente, onde Deus andava no frescor do dia, temos na Índia, portanto, já por volta de 700 a.C. (cerca de trezentos anos antes da compilação do Pentateuco), uma interpretação psicológica do grande tema.

Nas duas tradições, o mito do andrógino primevo é aplicado à mesma função: evidenciar a distância do homem, em sua vida secular normal, dos divinos Alfa e Ômega. Mas os argumentos diferem radicalmente e, por isso, sustentam duas civilizações radicalmente diferentes. Pois, se o homem foi afastado do divino por um evento histórico, será um evento histórico que o levará de volta, enquanto, se foi impedido por algum tipo de desvio psicológico, a psicologia será seu veículo de retorno. Portanto, na Índia o foco último de preocupação não é a comunidade (embora, como veremos, a idéia de comunidade sagrada exerça um papel formidável como força disciplinadora), mas a ioga. [pag. 020]

 

III. AS DUAS INTERPRETAÇÕES A RESPEITO DO EGO

 

O termo indiano yoga deriva tia raiz verbal sânscrita yuj, "ligar, juntar ou unir", etimologicamente relacionada com "emparelhar" — uma canga de bois — e é, em certo sentido, análoga à palavra "religião" (latim re-ligio), "ligar de volta ou atar". O homem, a criatura, é ligado de volta a Deus pela religião. Entretanto, a religião, religio, refere-se a uma vinculação historicamente condicionada por meio de uma aliança, sacramento ou livro sagrado, enquanto a ioga é a vinculação psicológica da mente com o princípio superior "pelo qual a mente conhece". Além do mais, na ioga o que éunido é, finalmente, o Si-Próprio consigo mesmo, consciência com consciência; pois o que parecia, através da māyā, ser dois, na realidade não é assim; ao passo que na religião, o que se une são Deus e o homem, que não são a mesma coisa.

Nas religiões populares do Oriente, entretanto, os deuses são adorados como se fossem exteriores a seus devotos e são observados todos os ritos e regras de uma relação convencionada. Contudo, a realização última, que os sábios celebraram, é que o deus adorado como algo externo é, na realidade, um reflexo do mesmo mistério do Si-Próprio. Enquanto permanecer a ilusão do ego, também permanecerá a ilusão proporcional de uma divindade separada, e vice-versa: enquanto for alimentada a idéia de uma divindade separada, uma ilusão do ego relacionada com ela no amor, medo, adoração, separação e reconciliação também estará presente. Mas precisamente essa ilusão de dualidade é o ardil da m

āyā. "Tu és Aquilo" (tat tvam asi) é o pensamento adequado ao primeiro passo em direção à sabedoria.

No princípio, como vimos, havia apenas o Si-Próprio; mas ele disse "Eu" (em sânscrito, aham)e imediatamente sentiu medo e depois, desejo.

Deve-se observar que nesta abordagem do instante da criação (apresentada do de dentro da esfera da psique do próprio ser criador), as duas motivações básicas são Identificadas da mesma forma que as principais escolas modernas de análise profunda as indicaram na psique humana: agressão e desejo. Carl G. Jung, em seu primeiro ensaio sobre The Unconscious in Normal and Pathological Psychotogy [O inconsciente na Psicologia Normal e na Psicopatologia] (1916), escreveu sobre dois tipos psicológicos: o introvertido, acossado pelo medo, e o extrovertido, conduzido pelo desejo. Sigmund Freud também, em Além do Princípio do Prazer (1920), escreveu sobre "o desejo de morte" e "o desejo de vida": por um lado, o desejo de violência e o medo dela (thánatos, destrudo)e, por outro, a necessidade e o desejo de amar e ser amado (Eros, libido). Ambos originam-se espontaneamente da fonte profunda e obscura das energias da psique, o id, e são governados, portanto, pelo autocentrado "princípio do prazer" — Eu quero: eu tenho medo. De modo semelhante, no mito indiano, assim que o Si-Próprio disse "Eu" (aham), ele conheceu primeiro o medo e depois o desejo.

Mas agora e aqui, acredito, há um ponto de importância fundamental para nossa interpretação da diferença básica entre as abordagens oriental e ocidental no cultivo do espírito — no mito indiano o princípio do ego, "Eu" (aham), é totalmente [pag. 021] identificado com o princípio do prazer, enquanto nas psicologias tanto de Freud quanto de Jung sua função específica e conhecer a realidade externa e relacionar-se com ela ("princípio da realidade" de Freud): não a realidade da esfera metafísica, mas a da física, empírica, de tempo e espaço. Em outras palavras, a maturidade espiritual, conforme entendida no moderno Ocidente, requer uma diferenciação entre o ego e o id, enquanto no Oriente, ao longo de pelo menos toda a história de todas as doutrinas que provieram da Índia, o ego (aham-kāra: "a emissão do som 'Eu'") é impugnado como o princípio da ilusão libidinosa, a ser dissolvida.

Vamos lançar um olhar sobre a maravilhosa história do Buda no episódio em que alcança o propósito de todos os propósitos sob a "árvore do despertar", a árvore Bo ou Bodhi (bodhi, "despertar").

O Bem-aventurado, sozinho, acompanhado apenas de sua própria decisão, com a mente firmemente determinada, ergueu-se como um leão ao cair da noite, na hora em que as flores se fecham e, encaminhando-se para uma estrada que os deuses tinham forrado de bandeiras, apressou-se em direção à árvore Bodhi. Cobras, gnomos, pássaros, músicos divinos e muitos outros seres o veneraram com perfumes, flores e outras oferendas, enquanto os coros dos céus entoavam música celestial; de maneira que os dez mil mundos ficaram repletos de aromas agradáveis, grinaldas e brados de júbilo.

Naquele momento, surgiu na direção oposta um cortador de grama chamado Sotthiya, carregando um fardo de grama; quando ele viu o Grande Ser, que era um homem santo, deu-lhe de presente oito punhados. Depois disso, chegando junto da árvore Bodhi, aquele que estava prestes a tornar-se o Buda ficou em pé no lado sul, de frente para o Norte. Imediatamente, a metade sul do mundo afundou até parecer locar o mais inicio dos infernos, enquanto a metade norte se elevou até o céu mais alto.

"Parece-me", disse o futuro Buda, "que este não pode ser o lugar para a obtenção da suprema sabedoria", e caminhando em volta da árvore, com seu lado direito voltado para ela, chegou ao lado oeste e postou-se de frente para o Leste. Em seguida, a metade oeste do mundo afundou até parecer tocar o mais ínfero dos infernos, enquanto a metade leste elevou-se até o mais alto dos céus. De fato, onde quer que o Bem-aventurado parasse, a vasta terra elevava-se e afundava-se, como se fosse uma imensa roda deitada sobre seu eixo e alguém estivesse pisando em sua borda.

"Penso", disse o futuro Buda, "que este também não pode ser o lugar para a obtenção da suprema sabedoria", e continuou caminhando, com seu lado direito voltado para a árvore, até chegar ao lado norte, colocando-se de frente para o Sul. Então a metade norte do mundo afundou até parecer tocar o mais ínfero dos infernos, enquanto a metade sul se elevou até o mais alto dos céus.

"Penso", disse o futuro Buda. "que este tampouco pode ser o lugar para a obtenção da suprema sabedoria", e caminhando em volta da árvore, com seu lado direito voltado para ela, chegou ao lado leste e colocou-se de frente para o Oeste.

Pois bem, é do lado leste de suas árvores Bodhi que todos os Budas sentaram, de pernas cruzadas, e esse lado jamais estremeceu ou oscilou. [pag. 022]

Então, o Grande Ser, dizendo para si mesmo "este éoPonto Imóvel, no qual todos os Budas se assentaram; este é o lugar propício para destruir a rede das paixões", apanhou um tufo do grama por uma das pontas e sacudiu-o. E imediatamente as folhas da grama formaram um assento medindo catorze cúbilos [50 cm] de lado, tão simétrico que nem mesmo o mais habilidoso pintor ou escultor conseguiria desenhar.

O futuro Buda, de costas para o tronco da árvore Bodhi, colocou-se de frente para o Leste e, tomando a firme resolução: "que minha pele, nervos e ossos fiquem secos; que toda a carne e sangue do meu corpo sequem, mas eu não me moverei deste assento atéatingir a sabedoria suprema e absoluta!", sentou-se de pernas cruzadas numa postura inabalável, da qual nem mesmo uma centena de raios caindo de uma só vez poderia removê-lo.

Tendo deixado seu palácio, esposa e filho alguns anos antes, para buscar o conhecimento que deveria libertar do sofrimento todos os seres, o príncipe Gautama Śākyamuni chegara, finalmente, ao ponto central, o ponto que sustenta o universo aqui descrito em termos mitológicos, para que não seja tomado como um local físico que pudesse ser encontrado em algum lugar da terra. Sua localização é psicológica. E aquele ponto de equilíbrio na mente, do qual o universo inteiro pode ser contemplado: o ponto imóvel de desapego em torno do qual giram todas as coisas. Ao homem secular, as coisas parecem mover-se no tempo e ser, em seu caráter último, concretas. Eu estou aqui, você está lá; direito e esquerdo; em cima, embaixo; vida e morte. Os pares de opostos estão todos em volta e a roda do mundo, a roda do tempo, está sempre girando, com nossas vidas presas ao seu aro. Entretanto, há um ponto central que tudo sustenta, um centro onde os opostos convergem, como os raios de uma roda, na vacuidade. E é ali, diz-se, de frente para o Leste (a direção do novo dia) que os Budas do passado, do presente e do futuro — pertencentes a um único Estado de Buda, embora se manifeste variadamente no tempo — experimentaram a absoluta iluminação.

O príncipe Gautama Śākyamuni, com sua mente firmada naquele centro e prestes a desvendar o mistério último da existência, seria agora assaltado pelo senhor da ilusão da vida: aquele mesmo Si-Próprio-em-forma-de-um-homem que, antes do princípio do tempo, olhou em volta e não viu nada alem de si e disse "Eu", e imediatamente sentiu, primeiro medo e depois desejo. Representado mitologicamente, esse mesmo Ser de todos os seres apareceu diante do futuro Buda, primeiro como um príncipe, portando um arco florido, personificando Eros. Desejo (em sânscrito, kāma) e depois como um aterrorizante marajá de demônios, montado em um elefante guerreiro, o Rei Tanatos (em sânscrito, māra). Rei Morte.

Em uma famosa versão sânscrita da vida do Buda, escrita por Ashvaghosha (c. 100 d.C), um dos primeiros mestres do assim chamado estilo "poético" (kāvya)de composição literária, brâmane douto que se converteu à ordem budista, lemos:

 

aquele que no mundo échamado de Senhor Desejo, o dono das setas floridas, que também échamado de Senhor Morte e é o inimigo último do desapego, conclamando [pag. 023] seus três filhos encantadores, ou seja, Loucura, Folia e Orgulho, e suas voluptuosas filhas, Luxúria, Prazer e Anseio, enviou-os ao Bem-aventurado. Pegando seu arco florido e suas cinco flechas que instilam paixão, chamadas, A Incitadora do Auge do Desejo, A Que dá Contentamento, A Que Cega de Paixão, A Abrasadora e A Portadora da Morte, ele acompanhou sua prole até o pé da árvore onde o Grande Ser estava sentado. Brincando com uma flecha, o deus apareceu e dirigiu-se ao tranqüilo vidente que ali estava fazendo sua travessia até a costa distante do oceano da existência.

"Levante-se, levante-se, nobre príncipe!", ele ordenou em tom de divina autoridade. "Lembre-se dos deveres de sua casta e abandone esta busca dissoluta de desapego. A vida mendicante não é para aquele que nasceu numa casa nobre; mas antes, pela lealdade aos deveres de sua casta, ficará a serviço da sociedade, manterá as leis da religião revelada, combaterá a perversidade no mundo e com isso, na qualidade de um deus, merecerá uma morada no mais alto céu."

O Bem-aventurado não se moveu.

"Não vai levantar-se?", perguntou então o deus. E colocou uma flecha no arco. "Se for obstinado, teimoso e persistir em sua decisão, esta flecha que estou armando e que já inflamou o próprio sol será arremessada, fila já está apontando a língua em sua direção, como uma serpente." E, ameaçando sem nenhum efeito, ele disparou a flecha — sem resultado.

Pois o Bem-aventurado, pelo mérito de inumeráveis atos de doação ilimitada praticados durante suas inúmeras vidas, tinha dissolvido em sua mente o conceito do "eu" (aham)e, com isso, a experiência correlata de qualquer "tu" (tvam). Na vacuidade do Ponto Imóvel, debaixo da árvore do conhecimento além dos pares-de-opostos, além da vida e da morte, do bem e do mal, do eu e do tu, se ele tivesse pensado no "eu" teria sentido "eles ou elas" e, vendo as voluptuosas filhas do deus que se exibiam, sedutoras, à sua frente, como objetos na esfera de um sujeito, teria precisado no mínimo, controlar-se. Entretanto, não havendo nenhum "eu" presente em sua mente, não havia tampouco nenhum "eles ou elas". Absolutamente imóvel, porque ele próprio absolutamente ausente, assentado no Ponto Imóvel na atitude inabalável de todos os Budas, o Bem-aventurado era invulnerável à flecha.

E o deus, percebendo que seu ataque tinha fracassado, pensou: "Ele nem mesmo percebe a flecha que inflamou o sol! Será que é destituído de sentidos? Ele não merece nem minha flecha florida nem nenhuma das minhas filhas: vou enviar contra ele meu exército".

E imediatamente, despindo-se de seu aspecto atraente como Senhor Desejo, o grande deus tornou-se o Senhor Morte e em volta dele irrompeu um exército de criaturas demoníacas, ostentando formas assustadoras e portando nas mãos arcos e flechas, dardos, maças, espadas, árvores e mesmo montanhas resplandecentes; com aparência de javalis, peixes, cavalos, camelos, asnos, tigres, ursos, leões e elefantes; com um só olho, várias caras, três cabeças, pançudos e com barrigas pintadas; munidos de garras, presas, alguns trazendo nas mãos corpos sem cabeça, muitos com [pag. 024] caras semimutiladas, bocas monstruosas, joelhos cobertos de nós e catinga de bode; vermelhos cor-de-cobre, alguns vestindo couro, outros absolutamente nada, com cabelos cor-de-fogo ou de fumaça, muitos com longas orelhas pendentes, com a metade da cara branca, outros com a metade do corpo verde; pintados de vermelho e cor-de-fumaça, amarelo e negro; com braços mais longos do que o alcance das serpentes, os cintos com sinos tilintantes; alguns tão altos quanto palmeiras, portando lanças; alguns do tamanho de uma criança, com dentes saltados; alguns com corpo de pássaro e cara de carneiro ou corpo de homem e cara de gato; com cabelos hirsutos, com topetes ou semicarecas; com expressões carrancudas ou triunfantes, consumindo forças ou fascinando mentes. Alguns divertindo-se no céu, outros no topo das árvores; muitos dançavam uns sobre os outros e muitos, ainda, pulavam desvairadamente no chão. Um deles, dançando, balançava um tridente; outro estalava sua maça; um, feito um touro, pulava de alegria; outro esparzia chamas de cada fio de cabelo. E havia alguns que se postaram à sua volta para assustá-lo com muitas línguas espichadas, muitas bocas, selvagens, dentes pontudos afiados, orelhas pontudas como pregos e olhos iguais ao disco solar. Outros, saltando para o céu, arremessavam rochas, árvores e machados, espalhando chamas tão volumosas quanto picos de montanhas, chuvas de brasas, serpentes de fogo e chuvas de pedras. E o tempo todo, uma mulher nua, com uma caveira na mão, agitava-se à volta, irrequieta, não parando em nenhum lugar, como a mente de um estudante distraído debruçado sobre os textos sagrados.

Mas vejam! entre todos esses terrores, visões, sons e odores, a mente do Bem-aventurado não estava mais abalada do que o juízo de Garuda, o pássaro-sol de penas douradas, entre os corvos. E uma voz gritou do céu: "Ó Mara, não se canse em vão! Desista dessa maldade e vá embora em paz! Pois mesmo que o fogo um dia abandone o seu calor, a água sua fluidez, a terra sua solidez, jamais este Grande Ser, que adquiriu o mérito que o trouxe até esta árvore por muitas vidas em inumeráveis eras, abandonará sua determinação".

E o deus Mara, frustrado, desapareceu com seu exército. O céu, iluminado pela lua cheia, brilhou então como o sorriso de uma donzela e derramou sobre o Bem-aventurado flores, pétalas de flores, ramalhetes de flores úmidas de orvalho. Naquela noite, ao longo da noite, no primeiro período de vigília daquela noite maravilhosa, ele adquiriu o conhecimento de sua existência anterior; no segundo período conquistou a visão divina; no último, compreendeu a Lei da Originação Dependente e, ao nascer do sol, atingiu a onisciência.

A terra estremeceu de prazer, como uma mulher excitada. Os deuses desceram do todos os lados para adorar o Bem-aventurado que era agora o Buda, o Desporto.

"Glória a ti, herói iluminado entre os homens", eles cantavam enquanto o circundavam movendo-se no sentido do sol. E chegaram todos os demônios da terra, mesmo os filhos e filhas de Mara, as divindades que vagam pelo céu e as que andam no chão. E depois de terem adorado o vitorioso com todas as formas de homenagens de acordo com suas posições, retornaram a suas diversas moradas, radiantes pelo novo êxtase. [pag. 025]

Em resumo: o Buda, havendo dissolvido o senso de "eu", orientou sua consciência para além da motivação da criação — o que, entretanto, não significou que ele tivesse deixado de viver. De fato, ele permaneceria por mais meio século no mundo do tempo e do espaço, participando — oh, ironia! — da vacuidade dessa multiplicidade, percebendo a dualidade, mas sabendo que ela é ilusória, ensinando compassivamente o que não pode ser ensinado a outros que, na verdade, não eram outros. Pois não há nenhuma forma de comunicar uma experiência em palavras àqueles que ainda não viveram essa experiência — ou, pelo menos, algo que se aproxime dela, à qual só possa fazer referência por analogias. Além do mais, onde não há ego, não há "outro" a ser temido, desejado ou ensinado.

Na doutrina clássica indiana das quatro finalidades para as quais se supõe que os homens vivam e lutem — amor e prazer (kāma), poder e sucesso (artha), ordem legal e virtude moral (dharma)e,