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James Ridfield O segredo de Chambala.

James Ridfield O segredo de Chambala.

O SEGREDO DE SHAMBHALA

A Décima Primeira Revelação

James Redfield

COLECÇÃO MILÉNIO

Editorial Notícias

Digitalização e Arranjo

Agostinho Costa

Este é o segredo de uma comunidade mítica, situada próximo do

Tibete, numa região permanentemente coberta de neve. A

existência lendária de Shambhala está ligada a formas

ancestrais de viver e saber - a sua revelação pode ter um

profundo impacte no modo como cada um de nós vive a sua vida.

A viagem física e espiritual até Shambhala começa com as

palavras de uma criança e a visão de um velho. Katmandu, no

Nepal, e depois Lhasa, no Tibete, são lugares de passagem para

a transformação interior necessária para entrar em Shambhala.

No final da viagem aguarda-nos a revelação de uma energia

capaz de libertar a vida de cada um e, ao mesmo tempo,

contribuir activamente para transformar o mundo.

James Redfield prossegue, com O Segredo de Shambhala, uma

busca espiritual iniciada com o best-seller International A

Profecia Celestina e depois continuada com A Décima Revelação

e A Visão Celestina (todos estes livros estão publicados com a

chancela de Editorial Notícias)

O autor vive com a sua mulher, Salle, e A gata Meredith, na

Florida e no Arizona.

 

 

Título Original: The Secret of Shambhala

Tradução de Pedro Dias

JAMES REDFIELD

O SEGREDO DE SHAMBHALA

A DÉCIMA PRIMEIRA REVELAÇÃO

Editorial Notícias

Terceira edição Novembro de 2001

Para Megan e Kelly cuja geração tem de evoluir

de forma mais consciente

AGRADECIMENTOS

Existem muitos heróis na evolução da consciência

espiritual. Devo um agradecimento especial a Larry Dossey,

pelo seu trabalho pioneiro na divulgação da pesquisa

científica sobre a oração e a intenção; também a Marilyn

Schlitz, que continua a fazer força para o desenvolvimento de

novos estudos sobre a intencionalidade humana no Instituto de

Ciências Noéticas. Na nutrição, merece reconhecimento o

trabalho de Theodore A. Baroody e Robert Young sobre o ácido e

o alcalino.

Pessoalmente, tenho de agradecer a Albert Gaulden, John

Winthrop Austin, John Diamond e Claire Zion, que continuam a

dar contributos especiais para este trabalho. E, acima de

tudo, um agradecimento especial a Salle Merrill Redfield, cuja

intuição e fé servem como testemunhos constantes do mistério.

Índice

NOTA DO AUTOR ......................... 11

1. CAMPOS DE INTENÇÃO ................. 19

2. O CHAMAMENTO DE SHAMBHALA .......... 43

3. CULTIVAR A ENERGIA ................. 67

4. ALERTA CONSCIENTE .................. 85

5. O CONTÁGIO DA CONSCIÊNCIA ......... 109

6. A PASSAGEM ........................ 127

7. ENTRADA EM SHAMBHALA .............. 142

8. O PROCESSO VITAL .................. 163

9. A ENERGIA DO MAL .................. 181

10. RECONHECER A LUZ ................. 201

11. O SEGREDO DE SHAMBHALA ........... 217

 

 

NOTA DO AUTOR

Quando escrevi A Profecia Celestina e A Décima Revelação,

estava firmemente convencido de que a cultura humana estava a

evoluir através de uma série de revelações sobre a vida e a

espiritualidade, revelações que podiam ser descritas e

documentadas. Tudo o que aconteceu desde então apenas

aprofundou esta crença.

Estamos a ganhar plena consciência de um processo espiritual

superior que age discretamente na vida e, ao fazê-lo, estamos

a deixar para trás uma visão materialista do mundo, uma visão

que reduz a vida à sobrevivência, que dá pouca importância à

religião e que usa brinquedos e distracções para afastar de

nós a verdadeira maravilha de estarmos vivos.

O que queremos, em vez disso, é uma vida cheia de

coincidências misteriosas e intuições súbitas, que aludem a um

caminho especial nesta existência, a uma busca particular de

informação e especialização - como se um qualquer destino

previsto estivesse a tentar emergir. Este tipo de vida é como

uma história de detectives no interior de nós mesmos e os

indícios em breve nos levarão de uma revelação para outra.

Descobrimos que uma verdadeira experiência do divino nos

espera e que, se conseguirmos encontrar esta conexão, as

nossas vidas se encherão de ainda mais clareza e intuição.

Começamos a captar visões do nosso destino, de uma missão que

podemos levar a bom termo, desde que evitemos os hábitos que

nos distraem, tratemos os outros com uma certa ética e nos

mantenhamos verdadeiros para com o nosso coração.

11

Na verdade, com a Décima Revelação, esta perspectiva

expande-se ainda mais e inclui toda a história e cultura. Num

certo nível, todos nós sabemos que viemos de um lugar

celestial para esta dimensão terrena para participarmos num

objectivo comum: para criarmos lentamente, geração após

geração, uma cultura completamente espiritual neste planeta.

Ainda assim, enquanto absorvemos esta revelação inspiradora,

está a chegar uma outra, a Décima Primeira. Os nossos

pensamentos e atitudes contam, quando tentamos tornar os

nossos sonhos em realidade. De facto, creio que estamos

prestes a compreender, finalmente, a influência que têm as

nossas intenções mentais, as nossas orações, até mesmo as

nossas opiniões e ideias preconcebidas secretas, não apenas

sobre o nosso próprio sucesso na vida mas também sobre o

sucesso dos outros.

Baseando-me na minha própria experiência, e naquilo que está

a acontecer ao nosso redor, ofereço este livro como ilustração

deste próximo passo em direcção à consciência. É minha crença

que esta revelação está já a emergir algures, girando por

entre milhares de discussões espirituais tardias, escondida

logo abaixo do ódio e medo que ainda marcam a nossa era. Tal

como antes, a nossa única responsabilidade é vivermos de

acordo com o que sabemos e depois estender a mão... e passar

palavra.

 

 

Verão 1999

o SEGREDO DE SHAMBHALA

De repente, Nabucodonosor levantou-se estupefacto,

e perguntou aos oficiais:

Não eram três os homens que amarrámos e atirámos

para dentro da fornalha?

Então como é que eu vejo quatro a andar no fogo?

E estes não estão ligados nem parecem ser atingidos pelas

chamas!

O quarto parece mesmo um deus!...

Louvado seja o Deus de Chadrac, Mechac e Abed-Nego!

Ele enviou o seu anjo para socorrer estes homens que o

servem e nele confiam.

Livro de Daniel

1.

CAMPOS DE INTENÇÃO

O telefone tocou e eu limitei-me a olhar para ele. A

última coisa de que eu precisava agora era de outra

distracção. Tentei afastá-lo da minha mente, olhando pela

janela para as árvores e flores silvestres, esperando

perder-me na variedade de cores outonais dos bosques em redor

da minha casa.

Tocou novamente e eu recebi uma imagem vaga mas

perturbadora, no olho da minha mente, de uma pessoa que

precisava de falar comigo. Rapidamente estendi a mão e atendi.

- Está?

- É o Bill - disse uma voz familiar. Bill era um

especialista em agronomia que me ajudava com o meu jardim.

Vivia encosta abaixo, apenas a algumas centenas de metros.

- Ouve, Bill, posso telefonar-te mais tarde? - disse eu. -

Tenho um prazo a cumprir.

- Ainda não conheces a minha filha, Natalie, pois não?

- Desculpa?

Não houve resposta.

- Bill?

- Ouve - respondeu finalmente -, a minha filha quer falar

contigo. Acho que pode ser importante. Não tenho bem a certeza

de como ela o conhece, mas parece estar bem familiarizada com

o teu trabaLho. Ela diz que tem informações acerca de um lugar

em que tu estarias interessado. Um lugar qualquer no norte do

Tibete? Ela diz que as pessoas lá têm informações importantes.

19

- Que idade tem ela? - perguntei.

Bill riu, na outra extremidade da linha.

- Tem só catorze anos, mas ultimamente tem dito coisas muito

 

 

interessantes. Tinha esperanças de falar contigo esta tarde,

antes do jogo de futebol dela. Alguma hipótese?

Comecei a adiar, mas a imagem anterior expandiu-se e começou

a ficar mais clara na minha mente. Parecia uma rapariga a

falar comigo algures perto da fonte grande, por cima da casa

dela.

- Sim, está bem - disse -, Que tal às duas horas?

- Perfeito - disse Bill.

Quando ia para lá apercebi-me de uma casa nova no outro lado

do vale, na encosta norte. Com mais esta são quase quarenta,

pensei. Tudo nos dois últimos anos. Eu sabia que se tinha

espalhado a notícia da beleza deste vale em forma de tigela,

mas não receava que o lugar ficasse demasiado cheio ou que as

suas espantosas paisagens naturais fossem destruídas.

Aninhados junto a uma floresta nacional, estávamos a dezasseis

quilómetros da povoação mais próxima - demasiado longe para a

maioria das pessoas. E a família a quem pertencia a terra, e

que estava agora a vender terrenos para construção nas colinas

exteriores, parecia determinada a manter a serenidade do

lugar. Cada casa tinha de ser baixa e escondida no meio dos

pinheiros e eucaliptos que definiam o horizonte.

O que mais me incomodava era o isolamento que os meus

vizinhos tanto pareciam apreciar. Pelo que eu conseguia ver, a

maior parte eram indivíduos especiais, fugidos a diversas

carreiras profissionais, que tinham aberto nichos vocacionais

únicos que lhes permitiam funcionar em horários flexíveis ou

viajar com horários muito próprios, como consultores - uma

liberdade que era necessária para se viver aqui, no meio do

mato.

Os laços comuns entre nós pareciam ser um idealismo

persistente e a necessidade de alargar as nossas profissões

infundindo-lhes visão espiritual, tudo na melhor tradição da

Décima Revelação. Ainda assim, quase todas as pessoas deste

vale mantinham-se reservadas, satisfeitas por se poderem

concentrar nos seus campos diversos sem prestarem muita

atenção à comunidade ou à necessidade de desenvolvermos a

nossa visão comum. Isto era especialmente verdade entre as

diferentes confissões religiosas. Por alguma razão, o vale

tinha atraído pessoas que seguiam uma grande variedade de

crenças, incluindo o Budismo, Judaísmo, Cristianismo católico

e protestante e Islamismo. E embora não houvesse qualquer

hostilidade de um grupo religioso em relação aos outros,

também não havia qualquer sentimento de afinidade.

A falta de comunhão preocupava-me porque havia sinais de

algumas das nossas crianças ostentarem os mesmos problemas

visíveis nos subúrbios: demasiado tempo sozinhas, demasiado

vídeo, demasiada preocupação com os altos e baixos da escola.

Começava a sentir-me preocupado por não haver família e

comunhão suficientes nas suas vidas, que permitissem afastar

estes problemas grupais e os mantivessem na sua correcta

perspectiva.

Mais à frente o carreiro estreitava e tive de passar entre

dois grandes rochedos que se estendiam até uma descida abrupta

de quase sessenta metros. Passando por eles, ouvi os primeiros

rumorejos da Fonte de Phillips, assim chamada pelos caçadores

de peles que, pela primeira vez, aqui se estabeleceram, no fim

do século XVII. A água descia por várias camadas de rocha, até

um lago preguiçoso com três metros de largura, originalmente

escavado à mão. Gerações sucessivas acrescentaram outros

toques, como as macieiras perto da desembocadura e a pedra

cimentada para reforçar e aprofundar o lago. Segui até junto

 

 

da água e baixei-me para recolher alguma nas minhas mãos,

afastando um pau quando me baixei. O pau manteve-se em

movimento, deslizando pelas pedras até um buraco.

- Uma cobra d'água! - disse em voz alta, recuando e sentindo

o suor a humedecer a minha testa. A vida aqui no bosque ainda

envolve alguns perigos, embora talvez não sejam os mesmos que

o velho Phillips enfrentou há séculos, quando se podia fazer

uma curva no caminho e dar de caras com um puma a guardar as

suas crias ou, pior ainda, uma vara de javalis, com presas de

oito centímetros que facilmente nos podiam rasgar a perna se

não conseguíssemos subir a uma árvore suficientemente

depressa. Se o dia corresse especialmente mal, podíamos até

encontrar um Cherokee furioso ou um Seminole deslocado,

cansado de encontrar novos colonos no seu terreno favorito de

caçadas... e convicto de que uma boa dentada no nosso coração

manteria a maré europeia ao largo para sempre.

20 - 21

Não, todos os que viveram nessa geração - nativos americanos

ou europeus - enfrentaram perigos directos que punham a sua

têmpera à prova a cada momento.

A nossa geração parece lidar com outros problemas, problemas

mais relacionados com a nossa atitude em relação à vida, com a

batalha constante entre o optimismo e o desespero. Por todo o

lado surgem vozes catastrofistas, mostrando-nos provas

factuais de que o estilo de vida ocidental não pode ser

sustentado, que o ar está a aquecer, os arsenais terroristas a

crescerem, as florestas a morrerem e a tecnologia a correr

furiosamente para uma espécie de mundo virtual que deixa os

nossos filhos malucos - ameaçando mergulhar-nos cada vez mais

na loucura e no surrealismo sem direcção.

Por contraste com este ponto de vista existem, obviamente,

os optimistas, que afirmam que a história esteve sempre cheia

de profetas do apocalipse, que todos os nossos problemas podem

ser resolvidos pela mesma tecnologia que produziu estes

perigos e que o mundo humano apenas começou a atingir o seu

potencial.

Parei e olhei novamente para o vale. Sabia que a Visão

Celestina estava algures entre estes dois pólos. Englobava uma

crença no crescimento sustentado e na tecnologia humana, mas

apenas se utilizada por um movimento intuitivo na direcção do

sagrado, e um optimismo baseado numa visão espiritual de até

onde o mundo pode ir.

Uma coisa era certa. Se aqueles que acreditam no poder da

visão querem fazer a diferença, teriam de começar

imediatamente, quando estamos mergulhados no mistério do novo

milénio. Este facto ainda me inspirava um temor respeitoso.

Como tínhamos tido a sorte de estarmos vivos na mudança não

apenas de um século, mas também de um período de mil anos?

Porquê nós? Porquê esta geração? Tinha a sensação de que

respostas maiores estavam ainda à nossa frente.

Olhei em redor da fonte por um momento, mais ou menos à

espera que a Natalie estivesse algures por ali. Tinha a

certeza que fôra esta a minha intuição. Ela estava aqui na

fonte, só que eu parecia estar a vê-la através de uma espécie

de janela. Era tudo muito confuso.

Quando cheguei à casa dela não parecia estar lá ninguém.

Segui até ao alpendre da fachada triangular castanha escura e

bati à porta com força. Não houve resposta. Depois, enquanto

 

 

olhava para o lado esquerdo da casa, qualquer coisa prendeu a

minha atenção. Estava a olhar para um carreiro empedrado que

passava pela enorme horta do Bill e subia até um pequeno prado

relvado no cimo da encosta. A luz tinha mudado?

Olhei para o céu, tentando perceber o que tinha acontecido.

Tinha visto uma flutuação na luz do prado, como se o sol

tivesse subitamente saído de trás de uma nuvem, iluminando

aquela área específica. Mas não havia nuvens no céu. Subi o

prado e encontrei a rapariga sentada no limite da relva. Era

alta e de cabelo escuro, tinha vestido um equipamento azul de

futebol e, quando me aproximei, ela voltou-se bruscamente,

surpreendida.

- Não quis assustar-te - disse eu.

Ela afastou os olhos por um momento, da maneira tímida que

uma adolescente faria, por isso agachei-me para estar ao nível

do olhar dela e apresentei-me.

Ela olhou novamente para mim, com olhos muito mais adultos

do que eu esperava.

- Não estamos a viver as Revelações aqui - disse ela.

Fui apanhado de surpresa. - O quê?

- As Revelações. Não estamos a vivê-las.

- O que queres dizer?

Ela olhou para mim com ar severo.

- Quero dizer que ainda não as compreendemos completamente.

Há mais que ainda precisamos de saber.

- Bem, não é assim tão simples...

Parei. Não acreditava que estava a ser interrogado desta

maneira por uma rapariga de catorze anos. Durante um instante,

fui atravessado por um clarão de raiva. Mas depois a Natalie

sorriu - um sorriso pequeno, apenas uma expressão nos cantos

da boca, que lhe davam um ar terno. Relaxei e sentei-me no

chão.

- Acredito que as Revelações são reais - respondi. - Mas não

são fáceis. Demoram tempo.

Ela não estava disposta a desistir. - Mas há pessoas que

estão a vivê-las neste momento.

Olhei para ela durante um instante.

22 - 23

- Onde?

- Na Ásia Central. As montanhas Kunlun. Vi-as no mapa. -

Parecia excitada. - Tem de ir lá. É importante. Há qualquer

coisa a mudar. Você tem de ir já para lá. Tem de ver.

Enquanto ela dizia isto, a expressão do seu rosto parecia

mais madura, autoritária, como a de uma pessoa de quarenta

anos. Pisquei os olhos com força, sem acreditar no que estava

a ver.

- Tem de ir lá. - repetiu.

- Natalie - disse eu -, Não tenho a certeza de saber bem o

que queres dizer. Que tipo de lugar é esse?

Ela afastou o olhar.

- Disseste que o tinhas visto no mapa. Podes mostrar-mo?

Ela ignorou a minha pergunta, parecendo distraída. - Que...

que horas são? - perguntou de súbito, gaguejando.

- Duas e um quarto.

- Tenho de ir.

- Espera, Natalie, esse lugar de que estavas a falar. Eu...

- Tenho de ir ter com a equipa - declarou ela. - Senão vou

chegar tarde.

 

 

Caminhava depressa agora, e eu esforcei-me por acompanhá-la.

- E esse lugar na Ásia, recordas-te exactamente onde é?

Quando ela olhou para trás por cima do ombro, para mim, vi

apenas a expressão de uma miúda de catorze anos a pensar em

futebol.

De regresso a casa sentia-me totalmente desorientado. O que

se tinha passado? Fiquei a olhar para a secretária, incapaz de

me concentrar. Mais tarde fiz uma longa caminhada e nadei no

lago, finalmente decidido a telefonar ao Bill pela manhã e

chegar ao fundo do mistério. Deitei-me cedo.

Cerca das três da manhã alguma coisa me acordou. O quarto

estava escuro. A única luz era a que penetrava por baixo das

persianas da janela. Fiquei à escuta, sem ouvir nada a não ser

os habituais sons da noite: um coro intermitente de grilos, o

rumor ocasional dos sapos no lago e, lá longe, o latir baixo

de um cão.

Pensei em levantar-me e trancar as portas da casa, coisa que

raramente fazia. Mas afastei a ideia, deixando-me mergulhar

novamente no sono. Teria adormecido completamente mas, no meu

último olhar sonolento pelo quarto, notei algo diferente na

janela. Havia mais luz lá fora do que antes.

Sentei-me e olhei novamente. Definitivamente havia mais luz

a entrar pelas persianas. Vesti umas calças, fui até à janela

e afastei as tabuinhas de madeira. Parecia tudo normal. De

onde vinha a luz?

Subitamente ouvi uma batida ligeira atrás de mim. Estava

alguém dentro de casa.

- Quem está aí? - perguntei sem pensar.

Não houve resposta.

Saí do quarto para o corredor que levava até à sala de

estar, pensando em ir ao armário buscar a minha espingarda

para matar cobras. Mas apercebi-me que a chave do armário

estava na gaveta da cómoda, junto à cama. Em vez disso,

prossegui cautelosamente.

Sem aviso, uma mão tocou-me no ombro.

- Chüuu, é o Wil.

Reconheci a voz e acenei. Quando levei a mão ao interruptor

na parede, ele deteve-me, depois atravessou a sala e espreitou

pela janela. Enquanto ele se movimentava, apercebi-me de

qualquer coisa diferente desde a última vez em que o vira.

Estava um pouco menos gracioso e os seus traços pareciam

completamente vulgares, sem a luminosidade que tinham

anteriormente.

- Do que andas à procura? - perguntei. - O que se passa?

Quase me mataste de susto.

Ele recuou para junto de mim. - Tinha de te ver. Tudo mudou.

Estou novamente onde estava antes.

- O que queres dizer?

Ele sorriu-me.

- Acho que é suposto isto estar a acontecer, mas já não

consigo entrar mentalmente nas outras dimensões, como

costumava fazer.

Ainda consigo aumentar um pouco a minha energia, mas agora

estou firmemente preso a este mundo. - Afastou o olhar por um

instante. - É quase como se aquilo que fizemos quando

conseguimos compreender a Décima Revelação tivesse sido apenas

uma amostra, uma experiência, uma espreitadela no futuro,

24 - 25

 

 

como uma experiência de morte iminente, e que agora terminou.

Seja o que for que tenhamos de fazer agora, temos de fazê-lo

aqui nesta Terra.

- De qualquer maneira, eu nunca consegui fazê-lo - disse eu.

Wil olhou-me nos olhos.

- Sabes, recebemos muita informação acerca da evolução

humana, acerca do prestar atenção, acerca de ser orientado

pela intuição e pelas coincidências. Fomos mandatados para

determos uma nova visão, todos nós. Só que não estamos a

torná-la realidade ao nível que podemos. Ainda falta qualquer

coisa no nosso conhecimento.

Fez uma pausa e depois disse:

- Não tenho certeza da razão, ainda, mas temos de ir à

Ásia... algures perto do Tibete. Está qualquer coisa a

acontecer lá. Qualquer coisa que nós temos de conhecer.

Fiquei surpreendido. A jovem Natalie tinha dito a mesma

coisa.

Wil voltou para a janela, olhando lá para fora.

- Porque estás a olhar pela janela com essa insistência? -

perguntei. - E porque me entraste em casa às escondidas?

Porque não bateste à porta? O que se passa?

- Provavelmente nada - respondeu. - Mas hoje de manhã

pareceu-me estar a ser seguido. Não posso ter a certeza.

Voltou para junto de mim. - Não posso explicar tudo agora.

Nem eu próprio tenho a certeza do que está a acontecer. Mas há

um sítio na Ásia que temos de encontrar. Podes encontrar-te

comigo no Hotel Himalaia, em Katmandu, no dia dezasseis?

- Espera um minuto! Wil, tenho coisas a fazer aqui. Estou

empenhado em...

Wil olhou para mim com uma expressão que nunca tinha visto

noutro rosto, uma mistura pura de aventura e decisão absoluta.

- Tudo bem - disse ele. - Se não estiveres lá a dezasseis,

não estás. Mas se fores, mantém-te sempre perfeitamente

alerta. Vai acontecer qualquer coisa.

Ele estava a falar a sério ao dar-me a escolher, mas ao

mesmo tempo sorria.

Afastei os olhos, aborrecido. Não queria fazer isto.

* * *

Na manhã seguinte decidi não contar a ninguém o que se

estava a passar, excepto à Charlene. O único problema era que

ela estava em reportagem no estrangeiro e era impossível

contactá-la directamente. Pude apenas deixar-lhe um e-mail.

Fui até ao meu computador e enviei-o, perguntando a mim

mesmo, como sempre fazia, até que ponto a Internet seria

segura. Os piratas conseguem entrar nos computadores mais

seguros de empresas e governos. Quão difícil seria interceptar

mensagens de e-mail... especialmente se nos lembrarmos que a

Internet foi originalmente criada pelo Departamento de Defesa,

como elo de ligação com os seus investigadores confidentes nas

principais universidades? Estará toda a Internet monitorizada?

Afugentei a preocupação, concluindo que estava a ser tolo. A

minha mensagem era uma entre dezenas de milhões. Quem se

importaria?

Enquanto estava no computador, tratei da viagem para chegar

a Katmandu, Nepal, no dia dezasseis e ficar no Himalaia. Teria

de partir dentro de dois dias, pensei, quase sem tempo para

preparar algumas coisas.

 

 

Abanei a cabeça. Uma parte de mim estava fascinada com a

ideia de ir ao Tibete. Sabia que a sua geografia era uma das

mais belas e misteriosas do mundo. Mas era também um país sob

o controlo repressivo do governo chinês e eu sabia que poderia

ser um lugar perigoso. O meu plano era avançar apenas enquanto

esta aventura me parecesse segura. Chega de me lançar de

cabeça e deixar-me arrastar para algo que eu não conseguia

controlar.

Wil tinha saído de minha casa tão depressa como chegara, sem

me dizer mais nada, deixando-me com a cabeça cheia de

perguntas.

O que sabia ele acerca desse lugar perto do Tibete? E porque

é que uma adolescente me mandava ir para lá? O Wil estava a

ser muito cauteloso. Porquê? Não ia dar um passo fora de

Katmandu sem descobrir a resposta.

Quando o dia chegou, tentei manter-me alerta durante os

longos voos para Frankfurt, Nova Deli e depois Katmandu, mas

não aconteceu nada digno de menção. No Himalaia, registei-me

com o meu próprio nome, pus as coisas no quarto e depois

comecei a espreitar o local, acabando no restaurante do hotel.

26 - 27

Ali sentado, esperava que o Wil entrasse a qualquer momento,

mas nada aconteceu. Uma hora depois pensei em ir até à

piscina, por isso chamei um paquete e soube que era lá fora.

Estaria ligeiramente frio, mas o sol brilhava e eu sabia que o

ar fresco me ajudaria a adaptar-me à altitude.

Saí e encontrei a piscina no meio das duas alas em forma de

L do edifício. Estava lá mais gente do que eu esperava, embora

poucos estivessem a conversar. Ao ocupar uma cadeira numa das

mesas, notei que as pessoas à minha volta, na maioria

asiáticos, com alguns europeus dispersos - pareciam estar

tensos ou com muitas saudades de casa. Franziam a testa uns

para os outros e falavam com brusquidão aos empregados do

hotel, exigindo bebidas e guardanapos, evitando o contacto

visual a todo o custo.

Gradualmente também o meu estado de espírito começou a

piorar. Aqui estava eu, pensei, metido em mais um hotel no

outro lado do mundo, sem um rosto amigável por perto. Respirei

fundo e recordei novamente o aviso do Wil para me manter

alerta, lembrando a mim mesmo que ele falara em procurar as

voltas subtis da sincronicidade, aquelas coincidências

misteriosas que podiam surgir num segundo e empurrar a nossa

vida numa nova direcção.

A compreensão desse fluxo misterioso, conforme eu sabia,

continuava a ser a experiência central da derradeira

espiritualidade, prova directa de que qualquer coisa mais

profunda agia discretamente por detrás do drama humano. O

problema fora sempre o carácter esporádico desta percepção;

surge durante algum tempo para nos seduzir e depois, tão

depressa como veio, desaparece.

Quando olhei em redor da área, o meu olhar caiu sobre um

homem alto com cabelo negro que ia a sair da porta do hotel,

dirigindo-se para mim. Vestia calças largas e uma camisola

branca à moda e trazia um jornal dobrado debaixo do braço.

Seguiu o carreiro por entre os hóspedes do hotel e sentou-se

numa mesa directamente à minha direita. Quando abriu o jornal,

olhou em redor e acenou-me com a cabeça, mostrando um sorriso

radioso. Depois chamou um empregado e pediu água. Tinha

 

 

aparência de asiático, mas falava um inglês fluente sem

vestígios de sotaque.

Quando a sua água chegou, assinou o recibo e começou a ler.

Este homem tinha qualquer coisa imediatamente atraente, mas eu

não conseguia perceber o que era. Irradiava uma atitude e

energia agradáveis; periodicamente parava de ler e olhava à

sua volta, com um sorriso rasgado. A certa altura estabeleceu

contacto visual com um dos cavalheiros enervados directamente

à minha frente.

Fiquei mais ou menos à espera que o homem carrancudo

afastasse rapidamente o olhar, mas em vez disso ele retribuiu

o sorriso do homem moreno e começaram uma conversa amena,

aparentemente em nepalês. A dado momento chegaram mesmo a

soltar uma gargalhada. Atraídas pela conversa, várias outras

pessoas das mesas próximas ficaram com um ar divertido e

alguém disse qualquer coisa que gerou outra risada.

Observei a cena com interesse. Estava a acontecer aqui

qualquer coisa, pensei. O estado de espírito à minha volta

estava a mudar.

- Meu Deus - gaguejou o homem moreno, olhando na minha

direcção. - Já viu isto?

Olhei em redor. Toda a gente parecia ter voltado às suas

leituras e ele estava a apontar para algo no jornal e a

deslocar a sua cadeira para se aproximar de mim.

- Publicaram outro estudo sobre orações - acrescentou. - É

fascinante.

- O que é que descobriram? - perguntei.

- Estavam a estudar os efeitos da oração em pessoas com

problemas médicos e descobriram que os pacientes que eram

regularmente objecto das orações de outras pessoas tinha menos

complicações e melhoravam mais depressa, mesmo quando não

tinham consciência das orações. É uma prova irrefutável de que

o poder da oração é real. Mas também descobriram outra coisa.

Descobriram que a oração mais eficiente é estruturada não como

um pedido, mas como uma afirmação.

- Não tenho a certeza de estar a perceber - disse eu.

Ele estava a olhar-me fixamente, com olhos de um azul

cristalino.

- Prepararam o estudo para testar dois tipos de oração. O

primeiro limitava-se a pedir a Deus, ou ao divino, para

intervir, para ajudar uma pessoa doente. O outro afirmava

simplesmente, com fé, que Deus iria ajudar essa pessoa. Está a

ver a diferença?

28 - 29

- Ainda não tenho bem a certeza.

- Uma oração que pede a intervenção de Deus assume que Deus

pode intervir, mas apenas se decidir satisfazer o nosso

pedido. Assume que o nosso único papel é pedir. A outra forma

de oração assume que Deus está pronto e disponível, mas criou

as leis da existência humana de tal forma que a realização do

nosso pedido depende, em boa parte, na certeza da nossa crença

de que isso será feito. Assim, a nossa oração deve ser uma

afirmação que dá expressão a esta fé. No estudo, este tipo de

oração mostrou ser mais eficiente.

Acenei. Estava a começar a perceber.

O homem desviou o olhar, como se estivesse a pensar para si

mesmo, e depois prosseguiu.

 

 

- Nenhuma das grandes orações da Bíblia é um pedido, são

todas afirmações. Pense no Pai-Nosso. Diz, Seja feita a vossa

vontade, assim na Terra como no Céu. O pão nosso de cada dia

nos dai hoje e perdoai-nos as nossas ofensas. Não diz por

favor, pode dar-nos comida, e não diz por favor, pode

perdoar-nos. Afirma apenas que estas coisas estão já prestes a

acontecer e, ao assumirmos com fé que elas vão acontecer,

tornamo-las reais.

Fez outra pausa, como se esperasse uma pergunta, ainda a

sorrir.

Tive de sorrir também. A sua boa disposição era contagiante.

- Alguns cientistas sugerem - prosseguiu ele - que estas

descobertas implicam algo mais, qualquer coisa que tem um

significado profundo para todos os seres vivos. Eles afirmam

que se as nossas expectativas, os anseios da nossa fé, são o

que faz a oração funcionar, nesse caso cada um de nós irradia

constantemente uma força de energia-oração para o mundo, quer

nos apercebamos disso ou não. Está a ver em que medida isto é

verdade?

Continuou sem esperar que eu respondesse.

- Se a oração é uma afirmação baseada nas nossas

expectativas, na nossa fé, então todas as nossas expectativas

têm o efeito de uma oração. Na realidade, estamos sempre a

rezar por um determinado futuro para nós mesmos e para os

outros, apenas não nos apercebemos completamente disso.

Olhou para mim como se tivesse acabado de largar uma

granada.

- Já imaginou? - continuou ele -, A ciência está agora a

confirmar as afirmações da mística mais esotérica de todas as

religiões. Todas elas dizem que nós temos uma influência

mental e espiritual sobre aquilo que acontece nas nossas

vidas. Lembre-se das escrituras, que nos dizem que a fé pode

mover montanhas. E se esta capacidade for o segredo do

verdadeiro sucesso na vida, da criação de uma verdadeira

comunidade? - Os olhos dele brilharam, como se ele soubesse

mais do que estava a dizer. - Todos temos de compreender como

é que isto funciona. Está na hora.

Estava a devolver o sorriso a este homem, intrigado por

aquilo que ele estava a dizer, ainda admirado pela

transformação no ambiente à volta da piscina, quando

instintivamente olhei para a esquerda, como fazemos quando

sentimos alguém a olhar para nós. Apercebi-me de um dos

empregados da piscina junto à porta de entrada, a observar-me

fixamente. Quando os nossos olhares se encontraram, ele

desviou rapidamente o olhar e começou a recuar pelo passeio

que levava a um elevador.

- Desculpe-me, cavalheiro - disse uma voz atrás de mim.

Quando me voltei, vi que era outro empregado.

- Posso servir-lhe uma bebida? - perguntou.

- Não... obrigado - respondi. - Vou esperar mais um pouco.

Quando tornei a olhar para o homem no passeio, este já tinha

desaparecido. Durante um momento inspeccionei a zona,

procurando-o. Quando finalmente olhei para a minha direita,

para onde o homem moreno tinha estado sentado, também ele

tinha desaparecido.

Levantei-me e perguntei ao homem da mesa à minha frente se

vira que caminho o homem do jornal tinha seguido. Ele abanou a

cabeça e desviou abruptamente o rosto. Passei o resto da

tarde no meu quarto. Os acontecimentos na piscina eram

desconcertantes. Quem era aquele homem, a falar-me de orações?

Esta informação envolveria uma sincronicidade? E porque é que

 

 

o empregado estava a observar-me? E onde estaria o Wil?

Por volta do pôr do Sol, depois de uma longa sesta, voltei a

sair, decidido a descer a rua alguns quarteirões, até um

restaurante ao ar livre que um dos hóspedes tinha mencionado.

30 - 31

- Muito perto. Perfeitamente seguro - disse o porteiro de

óculos quando lhe perguntei como ir até lá. - Não há problema.

Saí do vestíbulo para a luz cada vez mais escassa,

mantendo-me atento a sinais do Wil. A rua estava cheia de

gente e eu fui abrindo caminho. Quando cheguei ao restaurante,

deram-me uma pequena mesa de canto, perto de uma vedação de

ferro forjado com mais de um metro e vinte, que separava a

zona de refeições da rua. Jantei com vagar e li um jornal

inglês, ocupando a mesa por mais de uma hora.

A certa altura comecei a sentir-me desconfortável. Sentia-me

como se estivesse novamente a ser observado, só que não

conseguia ver ninguém a olhar para mim. Olhei para as outras

mesas, mas ninguém parecia estar a prestar-me a mínima

atenção. Levantando-me, olhei por cima da vedação para as

pessoas na rua. Nada. Lutando para afastar esta sensação,

paguei a conta e voltei para o hotel.

Quando me aproximava da entrada, avistei um homem junto a

uma fileira de arbustos, cerca de seis metros à minha

esquerda. Os nossos olhares cruzaram-se e ele deu um passo na

minha direcção. Desviei o olhar; ia a passar por ele quando me

apercebi que era o empregado que estava a olhar para mim na

piscina, só que agora calçava ténis e trazia calças de ganga

com uma t-shirt azul lisa. Parecia ter perto de trinta anos,

com olhos muito sérios. Apressei o meu passo.

- Desculpe-me, senhor - exclamou.

Eu continuei a andar.

- Por favor - disse ele. - Tenho de falar consigo.

Avancei mais alguns metros para estar à vista do porteiro e

dos paquetes e depois perguntei:

- O que é?

Ele aproximou-se, fazendo uma vénia ligeira. - Creio que o

senhor é quem eu vim procurar. Conhece o senhor Wilson James?

- Wil? Sim. Onde está ele?

- Ele não pode vir. Pediu-me que viesse esperá-lo.

Estendeu-me a mão, que eu aceitei com relutância,

dizendo-lhe o meu nome.

- Eu sou Yin Doloe - respondeu.

- Está empregado aqui no hotel? - perguntei.

- Não, lamento. Um amigo trabalha aqui. Ele emprestou-me um

casaco, para eu poder espreitar. Queria ver se o senhor estava

aqui.

Olhei para ele de mais perto. O meu instinto dizia-me que

ele estava a dizer a verdade. Mas porquê o secretismo? Porque

é que ele não foi ter comigo à piscina e me perguntou quem eu

era?

- O que é que reteve o Wil? - perguntei.

- Não tenho a certeza. Ele pediu para eu me encontrar

consigo e levá-lo a Lhasa. O seu plano, creio, é encontrar-se

connosco lá.

Virei a cara. As coisas começavam a parecer ameaçadoras.

Olhei novamente para ele e depois disse:

- Não sei se quero fazer isso. Porque é que o Wil não me

telefonou, ele mesmo?

 

 

- Tenho a certeza que há uma razão importante - respondeu

Yin, dando um passo na minha direcção. - Wil insistiu muito

para que eu o levasse. Ele precisa de si.

Os olhos de Yin imploravam.

- Podemos partir amanhã?

- Vamos fazer o seguinte - disse eu. - Porque é que não

entras para tomarmos um café e discutirmos a situação?

Ele olhou em redor, como se receasse alguma coisa. - Por

favor, voltarei às oito, amanhã de manhã. Wil tratou do voo e

do visto para si.

Sorriu e depois partiu rapidamente, antes que eu tivesse

tempo de protestar.

7:55 saí à porta do vestíbulo principal apenas com uma

sacola. O hotel concordara guardar tudo o mais. O meu plano

era regressar dentro de uma semana - a menos, é claro, que

qualquer coisa de estranho acontecesse depois de sair com Yin.

Nesse caso, regressaria imediatamente.

Exactamente à hora marcada, Yin chegou num velho Toyota e

seguimos para o aeroporto. Durante o caminho ele foi cordial,

mas continuou a declarar-se desconhecedor do que se passava

com o Wil. Pensei contar-lhe o que a Natalie me tinha dito

sobre aquele misterioso lugar na Ásia Central e o que o Wil me

tinha contado no meu quarto, só para ver a sua reacção.

32 - 33

Mas decidi não o fazer. É melhor observar o Yin atentamente,

pensei, e ver o aspecto das coisas no aeroporto.

No balcão dos bilhetes, soube que um lugar tinha de facto

sido comprado em meu nome num voo para Lhasa. Olhei à minha

volta e tentei avaliar a situação. Parecia tudo normal. Yin

estava a sorrir, obviamente bem disposto. Infelizmente a

empregada dos bilhetes não estava. Só conhecia algumas

palavras em inglês e era muito exigente. Quando me pediu o meu

passaporte, fiquei ainda mais irritado e respondi-lhe com

brusquidão. A dada altura ela parou e olhou-me friamente, como

se fosse simplesmente recusar emitir os bilhetes.

Yin acorreu rapidamente e falou com ela numa voz calma, no

seu nepalês nativo. Após alguns minutos a sua compostura

começou a mudar. Não voltou a olhar para mim, mas falou de

forma agradável com Yin, chegando a rir com alguma coisa que

ele disse. Alguns minutos depois tínhamos os nossos bilhetes e

cartões de embarque e estávamos sentados a uma pequena mesa

num café perto da nossa porta. Por todo o lado sentia-se o

cheiro forte de cigarros.

- Tem muita raiva - disse Yin. - E não usa muito bem a sua

energia.

Fui apanhado de surpresa: - Do que estás a falar?

Ele olhou para mim com simpatia. - Quero dizer, não fez nada

para ajudar a mulher do balcão com o seu humor.

Soube imediatamente o que ele estava a sugerir. No Peru, a

Oitava Revelação descrevia um método de animar os outros,

concentrando-nos no rosto deles de uma forma particular.

- Conheces as Revelações? - perguntei.

Yin acenou, continuando a olhar para mim. - Sim - disse. -

Mas há mais.

- Não é fácil lembrarmo-nos de transmitir a energia -

acrescentei, na defensiva.

 

 

Com um tom bem medido, Yin disse:

- Mas tem de compreender que, de qualquer maneira, já está a

influenciar os outros com a sua energia, quer se aperceba

disso ou não. O que é importante é a forma como coloca o

seu... campo de... de...

Yin esforçou-se por encontrar a palavra inglesa.

- Campo de intenção - disse finalmente. - O seu campo de

oração.

Olhei para ele com força. Yin parecia estar a descrever a

oração da mesma forma que o homem moreno o fizera.

- Do que é que estás a falar, exactamente? - perguntei.

- Alguma vez esteve numa sala cheia de gente onde a energia

e o humor estão em baixo e depois surge alguém que aumenta

imediatamente a energia de todos, simplesmente por entrar na

sala? O campo de energia dessa pessoa vai à sua frente e

afecta toda a gente.

- Sim - respondi. - Sei o que queres dizer.

O seu olhar penetrou em mim. - Se quer encontrar Shambhala,

tem de aprender a fazer isso conscientemente.

- Shambhala? Do que é que estás a falar?

O rosto de Yin ficou pálido, ostentando uma expressão de

embaraço. Abanou a cabeça, aparentemente sentindo que tinha

dito mais do que devia.

- Esqueça - disse baixinho. - Não é da minha competência.

Wil irá explicar-lhe isto.

Estava a formar-se uma fila para entrar no avião; Yin

afastou-se e avançou para a hospedeira que recebia os

bilhetes.

Fazia um enorme esforço mental, tentando localizar a palavra

Shambhala. Finalmente ocorreu-me. Shambhala era a mítica

comunidade da tradição budista tibetana, aquela que dera

origem às histórias sobre Shangri-La.

Olhei para Yin. - Esse lugar é um mito... certo?

Yin limitou-se a entregar o bilhete à hospedeira e seguiu

pela passagem.

No voo para Lhasa, Yin e eu sentámo-nos em secções

diferentes do avião, o que me deu tempo para pensar. Tudo o

que eu sabia sobre Shambhala era que este local tinha grande

significado para os budistas tibetanos, cujos antigos escritos

o descreviam como uma cidade sagrada de diamantes e ouro,

cheia de fiéis e lamas - e escondida algures nas vastas

regiões inabitáveis do norte do Tibete ou da China. Mais

recentemente, no entanto, a maior parte dos budistas parecia

falar de Shambhala em termos meramente simbólicos,

representando um estado mental espiritual, não uma localização

real.

34 - 35

Estendi a mão e tirei um folheto turístico sobre o Tibete da

bolsa nas costas do assento, esperando refrescar os meus

conhecimentos sobre a sua geografia. Entalado entre a China, a

norte, e a Índia e o Nepal, a sul, o Tibete é basicamente um

grande planalto com poucas áreas abaixo dos mil e oitocentos

metros. Na sua fronteira sul ficam os imponentes Himalaias,

incluindo o monte Evereste, e na fronteira norte, no interior

da China, ficam as grandes montanhas Kunlun. Entre eles há

gargantas profundas, rios bravios e centenas de quilómetros

quadrados de tundra rochosa. A julgar pelo mapa, o Tibete

oriental parecia ser mais fértil e densamente povoado,

 

 

enquanto que o norte e o oeste pareciam áridos e montanhosos,

com poucas estradas, todas elas de terra batida.

Aparentemente existem apenas dois grandes percursos para o

Tibete ocidental - a estrada do norte, usada principalmente

por camionistas, e a estrada do sul, que rodeia os Himalaias e

é usada por peregrinos de toda a região para chegarem aos

locais sagrados do Evereste, lago Manasarovar e monte Kailash

e, mais para a frente, para as misteriosas Kunlun.

Interrompi a minha leitura. Voando a trinta e cinco mil pés,

comecei a sentir uma nítida variação na temperatura e energia

exteriores. Abaixo de mim, erguiam-se os pináculos gelados e

rochosos dos Himalaias, enquadrados por um céu azul sem

nuvens. Voámos praticamente por cima do cume do monte Evereste

quando entrámos no espaço aéreo do Tibete - a terra das neves,

o tecto do mundo. Era uma nação de pessoas em demanda,

viajantes interiores, e quando olhei para os vales verdejantes

e planícies rochosas rodeados de montanhas, não pude deixar de

me sentir atemorizado pelo seu mistério. Infelizmente era

brutalmente administrada por um governo totalitário. O que é

que eu, perguntei a mim mesmo, estava a fazer aqui?

Olhei para trás, para Yin, sentado quatro filas atrás de

mim. Incomodava-me que ele fosse tão discreto. Decidi

novamente ser muito cauteloso. Não me afastaria de Lhasa sem

uma explicação completa.

Quando chegámos ao aeroporto, Yin resistiu a todas as minhas

perguntas sobre Shambhala, repetindo a sua afirmação de que em

breve nos encontraríamos com Wil e que, nessa altura, eu

saberia tudo. Apanhámos um táxi e seguimos para um pequeno

hotel perto do centro da cidade, onde o Wil estaria à nossa

espera.

Apercebi-me de Yin a olhar fixamente para mim.

- O que foi? - perguntei.

- Estava apenas a verificar se se adaptava bem à altitude -

respondeu Yin. - Lhasa fica três mil metros acima do nível do

mar. Durante uns tempos tem de ir com calma.

Concordei com um aceno de cabeça, apreciando a preocupação,

mas, no passado, eu sempre me adaptara facilmente a grandes

altitudes. Estava prestes a referir isso quando avistei uma

enorme estrutura semelhante a uma fortaleza, ao longe.

- Este é o palácio de Potala - disse Yin. - Queria que o

visse. Foi a residência de Inverno do Dalai Lama antes de ser

exilado. Agora simboliza a luta do povo tibetano contra a

ocupação chinesa.

Afastou o olhar e ficou silencioso até o carro parar, não em

frente do hotel, mas sim uns cem metros mais à frente.

- Wil já devia estar aqui - disse Yin quando abriu a porta.

- Espere no táxi. Eu vou verificar.

Mas, em vez de sair, ele parou e fixou a entrada. Vi o olhar

dele e olhei também nessa direcção. A rua estava cheia de

peões tibetanos e alguns turistas, mas tudo parecia normal.

Depois os meus olhos caíram sobre um homem baixo, chinês,

perto da esquina do edifício. Tinha na mão um papel qualquer,

mas os seus olhos inspeccionavam cuidadosamente a área.

Yin olhou para os carros estacionados junto ao passeio em

frente do homem, do outro lado da rua. O seu olhar deteve-se

num velho carro castanho com vários homens de fato.

Yin disse qualquer coisa ao condutor do táxi, que olhou

nervosamente para nós no espelho retrovisor e arrancou para o

próximo cruzamento. Enquanto seguíamos, Yin debruçou-se para

não ser visto pelos homens no carro.

- O que se passa? - perguntei.

 

 

Yin ignorou-me, dizendo ao condutor para virar à esquerda e

seguir para o centro da cidade.

Agarrei-lhe no braço.

- Yin, diz-me o que se passa. Quem eram aqueles homens?

36 - 37

- Não sei - disse ele. - Mas Wil já não estaria lá. Há um

outro sítio para onde eu penso que ele poderia ir. Veja se

estamos a ser seguidos.

Olhei para trás, enquanto Yin dava mais instruções ao

taxista. Vários carros surgiram atrás de nós mas depois

viraram noutras direcções. Não havia sinais do carro castanho.

- Vê alguém aí atrás? - perguntou Yin, virando-se para olhar

ele mesmo.

- Não me parece - respondi.

Estava prestes a interrogar Yin novamente acerca do que se

estava a passar quando notei que as mãos dele estavam a

tremer. Olhei bem para o seu rosto. Estava pálido e coberto de

suor. Percebi que ele devia estar aterrorizado. Essa visão

lançou um arrepio de medo pelo meu corpo.

Antes que eu pudesse falar, Yin indicou ao taxista um lugar

para estacionar e empurrou-me para fora do carro com a minha

sacola, conduzindo-me por uma rua lateral e depois para um

beco estreito. Depois de caminharmos uns trinta metros,

encostámo-nos à parede de um edifício e esperámos vários

minutos, de olhar pregado na entrada da rua que acabáramos de

deixar. Nenhum de nós disse uma palavra.

Quando lhe pareceu que não estávamos a ser seguidos, Yin

seguiu pelo beco até ao próximo edifício e bateu várias vezes.

Não houve resposta, mas a tranca da porta abriu-se

misteriosamente no interior - Espere aqui - ordenou Yin,

abrindo a porta. - Eu já volto.

Entrou silenciosamente no edifício e fechou a porta. Quando

a ouvi a trancar-se, fui tomado por uma onda de pânico. "E

agora?", pensei. Yin estava assustado. Iria abandonar-me aqui

fora? Olhei para trás, para o beco, e na direcção da rua

apinhada. Era exactamente isto o que eu mais receava. Alguém

parecia andar à procura do Yin e talvez também do Wil. Não

fazia ideia daquilo em que podia estar a envolver-me.

Talvez fosse melhor se Yin desaparecesse mesmo, pensei.

Assim podia voltar a correr para a rua e esconder-me no meio

da multidão até descobrir o caminho de regresso ao aeroporto.

Que mais podia eu fazer, a não ser voltar para casa? Estaria

absolvido de qualquer responsabilidade de procurar o Wil ou

fazer qualquer outra coisa nesta desventura.

A porta abriu-se subitamente, Yin deslizou para fora e a

porta trancou-se rapidamente.

- Wil deixou uma mensagem - declarou Yin. - Venha.

Caminhámos um pouco mais pelo beco e escondemo-nos entre

dois grandes contentores do lixo, enquanto Yin abria um

envelope e retirava de lá um bilhete. Observei-o enquanto ele

lia. O seu rosto pareceu ficar ainda mais branco. Quando

terminou, estendeu-me o bilhete.

- O que diz? - perguntei, agarrando o papel. Reconheci a

caligrafia do Wil enquanto lia:

Yin, estou convencido que nos autorizaram a entrar em

Shambhala. Mas tenho de prosseguir. É da máxima importância

 

 

que tragas o nosso amigo americano tão longe quanto puderes.

Sabes que os dakini guiar-te-ão.

Wil

Olhei para Yin, que me observou durante um momento e depois

virou o rosto. - O que quer ele dizer com autorizados a entrar

em Shambhala? Está a falar figurativamente, certo? Ele não

pensa que é um lugar real, pois não?

Yin estava a olhar fixamente para o chão.

- É claro que Wil pensa que é um lugar real - sussurrou.

- E tu? - perguntei.

Ele afastou novamente os olhos, parecendo que o peso do

mundo caíra sobre os seus ombros.

- Sim... sim... - disse ele. - Só que para a maioria das

pessoas é impossível sequer conceber esse lugar, quanto mais

chegar lá. Certamente você e eu não podemos... - A voz dele

sumiu-se no silêncio.

- Yin - repliquei. - Tens de me dizer o que se passa. O que

é que o Wil anda a fazer? Quem são os homens que viste no

hotel?

Yin observou-me durante um momento e depois disse:

- Acho que são agentes da espionagem chinesa.

- O quê?

- Não sei o que estão aqui a fazer. Aparentemente foram

alertados por toda esta actividade e conversa acerca de

Shambhala.

38 - 39

Muitos dos lamas daqui aperceberam-se que alguma coisa está a

mudar neste lugar sagrado. Tem havido muita discussão.

- A mudar de que maneira? Diz-me.

Yin respirou fundo. - Queria deixar o Wil explicar isto...

mas suponho que tenho de tentar. Tem de compreender o que é

Shambhala. O seu povo são seres humanos vivos, nascidos

naquele lugar sagrado, mas estão num grau evolutivo mais

avançado. Ajudam a sustentar a energia e a visão do mundo

inteiro.

Desviei o meu olhar, pensando na Décima Revelação. - São uma

espécie de guias espirituais?

- Não da maneira que você pensa - retorquiu Yin. - Não são

como os familiares ou almas do outro mundo, que nos podem

ajudar a partir dessa dimensão. São seres humanos que vivem

aqui na Terra. Os habitantes de Shambhala têm uma comunidade

extraordinária e vivem num estádio mais elevado de

desenvolvimento. São um modelo daquilo que o resto do mundo

acabará por alcançar.

- Onde fica esse lugar?

- Não sei.

- Conheces alguém que o tenha visto?

- Não. Quando era criança, estudei com um grande lama, que

me declarou um dia que ia para Shambhala e, após dias de

celebração, partiu.

- Ele chegou lá?

- Ninguém sabe. Desapareceu e nunca mais foi visto no

Tibete.

- Nesse caso ninguém sabe realmente se ele existe ou não.

Yin ficou silencioso por um momento e depois disse:

 

 

- Nós temos as lendas...

- Nós quem?

Ele olhou para mim. Conseguia ver que ele estava limitado

por algum tipo de código de silêncio.

- Não posso dizer-lhe isso. Apenas o líder da nossa seita, o

Lama Rigden, poderia decidir falar consigo.

- Que lendas são essas?

- Apenas posso dizer-lhe isto: as lendas são as narrativas

deixadas por aqueles que tentaram chegar a Shambhala no

passado. Têm séculos.

Yin estava prestes a dizer mais qualquer coisa quando um som

vindo da rua atraiu a nossa atenção. Olhámos atentamente mas

não vimos ninguém.

- Espere aqui - disse Yin.

Mais uma vez Yin bateu à porta e desapareceu lá dentro.

Igualmente depressa saiu e seguiu até junto dum velho jipe

ferrugento com um tejadilho de tecido rasgado. Abriu a porta e

fez-me sinal para entrar.

- Venha - chamou ele. - Temos de nos apressar.

40 - 41

2.

O CHAMAMENTO DE SHAMBHALA

Yin conduziu para fora de Lhasa. Eu mantive-me em

silêncio, olhando para as montanhas e perguntando a mim mesmo

o que o Wil queria dizer com a sua nota. Porque tinha ele

decidido seguir sozinho? E quem eram os dakini? Ia fazer essa

pergunta a Yin quando um camião militar chinês atravessou o

cruzamento à nossa frente.

A visão provocou em mim um sobressalto e senti uma onda de

nervosismo a encher o meu corpo. O que estava eu a fazer?

Tínhamos acabado de ver agentes da espionagem a vigiar o hotel

onde era suposto encontrarmo-nos com o Wil. Podiam estar à

nossa procura.

- Espera um minuto, Yin - disse eu. - Quero ir para um

aeroporto. Tudo isto parece-me demasiado perigoso.

Yin olhou para mim, alarmado.

- E o Wil? - perguntou. - Você leu o bilhete. Ele precisa de

si.

- Sim, bem, ele está habituado a este tipo de coisa. Não

tenho a certeza que ele quisesse que eu me pusesse em perigo

desta maneira.

- Já está em perigo. Temos de sair de Lhasa.

- Para onde vamos? - perguntei.

- Para o mosteiro do Lama Rigden, perto de Shigatse. Será

noite quando lá chegarmos.

- Há lá um telefone? - perguntei.

- Sim - retorquiu Yin. - Creio que sim, se estiver a

funcionar.

Acenei e Yin voltou a concentrar-se na estrada.

Tudo bem, pensei. Não haverá problema em afastar-me daqui,

antes de tratar do meu regresso a casa.

43

 

 

Durante horas seguimos aos solavancos pela estrada mal

pavimentada, ultrapassando camiões e carros velhos pelo

caminho. O cenário era uma mistura de feias zonas industriais

e bonitas paisagens. Bem depois de anoitecer, Yin parou no

pátio de uma casa pequena de betão. Um grande cão lanzudo

estava preso junto a uma oficina, à direita, ladrando

furiosamente.

- É a casa do Lama Rigden? - perguntei.

- Não, claro que não - respondeu Yin. - Mas conheço as

pessoas aqui. Podemos arranjar comida e gasolina, poderemos

precisar delas mais tarde. Eu volto já.

Observei Yin a subir os degraus de madeira e bater à porta.

Uma mulher tibetana idosa saiu e imediatamente prendeu Yin num

grande abraço. Yin apontou para mim, sorriu e disse qualquer

coisa que eu não consegui entender. Fez-me sinal, eu saí e

caminhei até à casa.

Um momento mais tarde ouvimos o guincho suave dos travões de

um carro lá fora. Yin correu para a janela e abriu as cortinas

para ver. Eu estava logo atrás dele. Na escuridão, via um

carro preto sem sinais, parado na berma da estrada do outro

lado da entrada esburacada, a trinta metros de distância.

- Quem são? - perguntei.

- Não sei - respondeu Yin. - Saia e vá buscar as nossas

malas, rápido.

Olhei para ele interrogativamente.

- Está tudo bem - disse ele. - Vá buscá-las, mas ande

depressa.

Saí de casa e caminhei até ao jipe, tentando não olhar para

o carro ao longe. Estendi o braço pela janela aberta, agarrei

a minha sacola e a mochila de Yin e depois voltei rapidamente

para dentro. Yin estava ainda a observar pela janela.

- Oh, bolas - disse ele subitamente. - Eles vêm aí.

Uma explosão de luz dos faróis iluminou a janela quando o

carro acelerou em direcção à casa. Tirando-me a mochila com

uma mão, Yin avançou para a porta das traseiras e para a

escuridão.

- Temos de seguir por aqui - gritou-me Yin enquanto seguia

por um carreiro que conduzia a um grupo de montes rochosos

baixos. Olhei para trás para a casa e vi, horrorizado, agentes

à paisana a saírem do carro e a rodearem a residência. Outro

carro que não tínhamos visto surgiu por um dos lados da casa;

mais homens saltaram dele e começaram a correr encosta acima

para a nossa direita. Eu sabia que, se continuássemos na

direcção que estávamos a seguir, eles nos apanhariam em poucos

minutos.

- Yin, espera um minuto - disse eu, num sussurro bem

audível. - Eles estão a cortar-nos o caminho.

Ele parou e pôs o rosto muito próximo do meu na escuridão.

- Para a esquerda - disse ele. - Vamos contorná-los.

Enquanto ele dizia isto, apercebi-me dos outros agentes a

correrem nessa direcção. Se seguíssemos o percurso que o Yin

indicava, seríamos seguramente vistos.

Olhei directamente para a parte mais íngreme da encosta.

Qualquer coisa chamou-me a atenção. Uma parte ténue do

carreiro estava visível, mais clara.

- Não, temos de subir a direito - disse eu instintivamente,

avançando nessa direcção. Yin atrasou-se um instante e,

depois, seguiu-me apressadamente. Abrimos caminho em direcção

às rochas, com os agentes a aproximarem-se pela nossa direita.

No cimo da elevação, um agente parecia estar mesmo em cima

 

 

de nós e, por isso, agachámo-nos entre dois grandes rochedos.

A área à nossa volta estava ainda perceptivelmente mais

luminosa. O homem não estava a mais de dez metros, avançando

para onde nos veria melhor. Depois, ao aproximar-se do limite

do brilho suave, a segundos de nos ver, parou abruptamente e

começou novamente a avançar, depois parou uma outra vez, como

se, subitamente, tivesse tido outra ideia. Sem dar mais um

passo, voltou-se e correu encosta abaixo.

Alguns momentos depois perguntei a Yin, num murmúrio, se ele

pensava que o agente nos tinha visto.

- Não - respondeu Yin. - Não me parece. Venha.

Trepámos a colina durante mais dez minutos, antes de

pararmos num precipício pedregoso para olharmos para a casa.

Conseguíamos ver mais carros de aspecto oficial a pararem

junto dela. Um deles era um velho carro da polícia, com uma

luz rotativa vermelha. A cena encheu-me de terror. Já não

havia dúvida de que esta gente andava atrás de nós.

44 - 45

Yin estava também a olhar ansiosamente para a casa, com as

mãos novamente a tremerem.

- O que é que eles vão fazer com a tua amiga? - perguntei,

horrorizado com aquilo que ele poderia dizer.

Yin olhou para mim com os olhos cheios de lágrimas e fúria,

depois continuou monte acima. Caminhámos durante várias

horas, abrindo caminho sob a luz de uma lua fraca e

periodicamente obscurecida pelas nuvens. Queria interrogar Yin

acerca das lendas que referira, mas ele continuava zangado e

taciturno. No cimo da colina, Yin parou e anunciou que

devíamos descansar. Ao sentar-me sobre uma rocha próxima, ele

afastou-se uns quatro metros para o meio da escuridão e ficou

de costas para mim.

- Como é que tinha tanta certeza - perguntou sem se voltar -

que devíamos subir a direito naquela colina lá atrás?

Respirei fundo.

- Vi qualquer coisa - gaguejei. - A zona estava, de alguma

forma, mais luminosa. Pareceu-me ser o caminho certo.

Ele virou-se, veio até junto de mim e sentou-se no chão à

minha frente.

- Alguma vez tinha visto uma coisa assim, antes?

Tentei afastar a minha ansiedade. O meu coração batia com

força e eu mal conseguia falar.

- Sim, já - respondi. - Várias vezes, recentemente.

Ele afastou os olhos e ficou silencioso.

- Yin, sabes o que está a acontecer?

- As lendas diriam que estamos a ser ajudados.

- Ajudados por quem?

Mais uma vez ele virou o rosto.

- Yin, diz-me o que sabes sobre isto.

Ele não respondeu.

- São os dakini que o Wil referia no seu bilhete?

Continuou a não haver resposta.

Comecei a sentir-me furioso. - Yin! Conta-me o que sabes.

Ele levantou-se rapidamente e olhou para mim sombriamente.

- Há coisas de que não podemos falar. Não compreende? Só o

facto de mencionar os nomes destes seres de forma frívola pode

deixar um homem mudo durante anos, ou cego. Eles são os

guardiões de Shambhala.

 

 

Marchou com intensidade até uma rocha plana, estendeu o

casaco e deitou-se.

Sentia-me igualmente exausto, incapaz de pensar.

- Temos de dormir - disse Yin. - Por favor, saberá mais

amanhã.

Olhei para ele durante mais um momento, depois deitei-me

sobre a rocha onde estava sentado e mergulhei num sono

profundo.

* * *

Fui despertado por um cone de luz a erguer-se entre dois

picos montanhosos ao longe. Olhando em redor, apercebi-me que

Yin tinha desaparecido. Levantei-me de um salto e procurei na

zona circundante, com dores por todo o corpo. Não via Yin em

lado algum.

Maldição, pensei. Não tinha forma de saber onde estava. Fui

atravessado por uma profunda onda de ansiedade. Esperei mais

trinta minutos, olhando para as colinas rochosas castanhas com

pequenos vales de relva verde, e ele continuou sem regressar.

Depois ergui-me e notei, pela primeira vez, que ao fundo da

encosta, a cerca de cento e vinte metros, estava uma estrada

de terra batida. Agarrei a minha sacola, desci por entre as

rochas até chegar à estrada e depois segui para norte. Tanto

quanto me conseguia lembrar, era essa a direcção de Lhasa.

Tinha andado pouco mais de um quilómetro quando me apercebi

que quatro ou cinco pessoas seguiam na mesma direcção, a menos

de quinhentos passos atrás de mim. Saí imediatamente da

estrada e subi para o cimo das rochas, de modo a estar

escondido mas conseguir ainda vê-las passar. Quando chegaram

junto de mim, vi que era uma família constituída por um velho,

um homem e uma mulher de uns trinta anos e dois rapazes

adolescentes. Traziam grandes sacos e o homem mais novo puxava

um carro carregado com as suas posses.

46 - 47

Pareciam refugiados.

Pensei em aproximar-me deles e pelo menos informar-me do

caminho a seguir, mas decidi não o fazer. Receava que eles

pudessem denunciar-me mais tarde e por isso deixei-os passar.

Esperei mais vinte minutos e depois avancei cautelosamente na

mesma direcção. Durante cerca de três quilómetros a estrada

serpenteou por entre as pequenas colinas e planaltos rochosos

até que, ao longe, no cimo de uma das colinas, avistei um

mosteiro. Saí da estrada e trepei por entre as rochas até

estar a duzentos metros dele. Era feito de tijolos cor de

areia, com o telhado plano pintado de castanho, e tinha duas

alas, uma de cada lado de um edifício principal.

Não via qualquer movimento e, a princípio, pensei que o

lugar estivesse vazio. Mas depois a porta frontal abriu-se e

vi um monge, vestido com um manto vermelho vivo, sair e

começar a trabalhar no jardim, perto de uma árvore solitária à

direita do edifício.

Ele parecia razoavelmente inofensivo, mas decidi não

arriscar. Voltei à estrada de terra batida, atravessei-a e

contornei o mosteiro pela esquerda, até o ter deixado bem para

trás. Depois segui novamente pela estrada, com cuidado,

 

 

parando apenas para tirar o casaco. O sol estava a pique e era

surpreendentemente quente.

Depois de quilómetro e meio, estava prestes a ultrapassar

uma pequena elevação na estrada quando ouvi qualquer coisa.

Corri para o meio das rochas e fiquei à escuta. A princípio

pensei que fosse um pássaro, mas lentamente percebi que era

alguém a falar, bem ao longe. Quem?

Com grandes cautelas, subi as rochas até chegar a uma

posição mais elevada, depois espreitei para o pequeno vale

mais abaixo. O meu coração gelou. Por baixo de mim estava um

cruzamento de terra batida onde estavam estacionados três

jipes militares. Uma dúzia de soldados, mais ou menos, estava

por ali, fumando e conversando. Recuei, mantendo-me agachado,

e voltei por onde tinha vindo até encontrar um sítio onde me

esconder, entre dois montículos rochosos.

Dali ouvi qualquer coisa à distância, para lá do bloqueio de

estrada. Era um gemido baixo, a princípio, e depois um

batimento rotativo que reconheci. Um helicóptero.

Em pânico, corri por entre as rochas tão depressa quanto

consegui, para longe da estrada. Atravessei um pequeno regato

e escorreguei, ensopando as calças até aos joelhos.

Levantei-me num salto e recomecei a correr, mas o meu pé

escorregou numa das pedras e eu caí monte abaixo, rasgando as

calças e a perna. Pus-me de pé com dificuldade e continuei a

correr, procurando um esconderijo melhor.

Quando o helicóptero se aproximou, corri sobre outra pequena

elevação e estava a olhar para trás quando alguém me agarrou e

me puxou para dentro de uma pequena fenda. Era Yin. Ficámos

perfeitamente imóveis enquanto o grande helicóptero voava

directamente por cima de nós.

- É um Z-9 - disse Yin. O rosto dele parecia tomado de

pânico, mas via-se que estava também furioso.

- Porque saiu do sítio onde estávamos acampados? -

perguntou, quase aos gritos.

- Tu deixaste-me! - respondi.

- Estive fora menos de uma hora. Devia ter esperado.

O medo e a raiva explodiram em mim.

- Esperado? Porque não me disseste para onde ias?

Ainda não tinha terminado, mas ouvia o helicóptero a virar

ao longe.

- O que vamos fazer? - perguntei a Yin. - Não podemos ficar

aqui.

- Voltamos ao mosteiro - disse ele. - Foi lá que eu estive.

Acenei com a cabeça, depois levantei-me e procurei o

helicóptero. Felizmente estava a virar para norte. Ao mesmo

tempo, outra coisa chamou a minha atenção. Era o monge que eu

tinha visto antes, descendo a vala na nossa direcção.

Avançou até nós e disse qualquer coisa a Yin em tibetano e

depois olhou para mim.

- Venha, por favor - disse ele em inglês, agarrando-me e

puxando-me na direcção do mosteiro.

Quando lá chegámos, atravessámos primeiro o portão de um

pátio lateral, passando por muitos tibetanos carregados com

sacos e vários pertences. Alguns deles pareciam muito pobres.

Depois chegámos ao edifício principal do mosteiro; o monge

abriu as grandes portas de madeira e conduziu-nos até uma sala

de entrada, onde estavam reunidos mais tibetanos.

48 - 49

 

 

Ao passarmos por eles reconheci um grupo; era a família que

tinha passado por mim na estrada. Eles olharam para mim com

olhos calorosos.

Yin viu-me a olhar para eles e interrogou-me a esse

respeito; eu expliquei-lhe que os tinha visto na estrada.

- Eles estavam lá para o conduzir até aqui - disse Yin. -

Mas você estava demasiado assustado para seguir a

sincronicidade.

Olhou para mim com ar severo e depois continuou a seguir o

monge até um pequeno escritório com prateleiras, secretárias e

vários rolos com orações. Sentámo-nos em redor de uma mesa de

madeira com gravações ornamentais, onde o monge e Yin trocaram

uma longa conversa em tibetano.

- Deixe-me ver a sua perna - pediu outro monge em inglês,

atrás de nós. Trazia um cestinho cheio de ligaduras brancas e

vários frascos com conta-gotas. O rosto de Yin iluminou-se.

- Vocês conhecem-se? - perguntei.

- Por favor - disse o monge, oferecendo-me a mão com uma

ligeira vénia. - Eu sou Jampa.

Yin inclinou-se para mim. - Jampa está com o Lama Rigden há

mais de dez anos.

- Quem é o Lama Rigden?

Jampa e Yin olharam um para o outro, como se não soubessem

bem o que me podiam contar. Finalmente Yin disse:

- Já lhe falei das lendas. O Lama Rigden compreende as

lendas melhor do que qualquer outra pessoa. É um dos maiores

peritos em Shambhala.

- Conte-me exactamente o que aconteceu - disse-me Jampa,

esfregando uma espécie de unguento na minha perna arranhada.

Olhei para Yin, que me fez sinal para obedecer.

- Tenho de informar o Lama do que Lhe aconteceu - explicou

Jampa.

Contei-Lhe tudo o que tinha acontecido desde a minha chegada

a Lhasa. Quando terminei, Jampa olhou para mim.

- E antes de vir para o Tibete? O que aconteceu?

Falei-lhe da filha do meu vizinho e do Wil.

Ele e Yin olharam um para o outro.

- E o que tem estado a pensar? - perguntou Jampa.

- Tenho estado a pensar que estou deslocado aqui - respondi.

- Estou a pensar em seguir para o aeroporto.

- Não, não é isso que eu queria dizer - disse apressadamente

Jampa. - Esta manhã, quando descobriu que Yin tinha partido,

qual foi a sua atitude, o seu estado de espírito?

- Fiquei assustado. Sabia apenas que os chineses me

apanhariam em minutos. Tentei imaginar uma forma de regressar

a Lhasa.

Jampa voltou-se e olhou para Yin, franzindo a testa. - Ele

não conhece os campos de oração.

Yin abanou a cabeça e desviou o olhar.

- Já falámos sobre isso - disse eu. - Mas não tenho a

certeza da sua importância. O que sabe acerca destes

helicópteros? Andam à nossa procura?

Jampa limitou-se a sorrir e disse-me para não me preocupar,

que aqui estaria em segurança. Fomos interrompidos por vários

outros monges a entregarem sopa, pão e chá. Enquanto comíamos,

a minha cabeça pareceu ficar mais lúcida e comecei a avaliar a

situação. Queria saber tudo acerca daquilo que se estava a

passar. Imediatamente.

Olhei para Jampa com determinação e ele respondeu ao meu

olhar com um profundo afecto.

- Sei que tem muitas perguntas - declarou. - Deixe-me

 

 

dizer-lhe o que posso. Somos uma seita especial aqui no

Tibete. Atípica. Há muitos séculos que acreditamos que

Shambhala é um lugar real. Também conhecemos as lendas,

sabedoria oral tão antiga como o Kalachakra, que se dedica a

integrar toda a verdade religiosa. Muitos dos nossos lamas

estão em contacto com Shambhala através dos seus sonhos. Há

alguns meses, o seu amigo Wil começou a surgir nos sonhos do

Lama Rigden sobre Shambhala. Pouco tempo depois, Wil foi

conduzido a este mesmo mosteiro. O Lama Rigden aceitou

recebê-lo e descobriu que Wil também tinha sonhado com

Shambhala.

- O que é que o Wil Lhe contou? - perguntei. - Para onde

foi?

Ele abanou a cabeça.

- Receio que tenha de esperar para ver se o Lama Rigden lhe

dará, ele próprio, essa informação.

Olhei para Yin e ele esboçou um sorriso.

50 - 51

- E os chineses? - perguntei a Jampa. - Qual é o

envolvimento deles?

Jampa encolheu os ombros.

- Não sabemos. Talvez eles saibam qualquer coisa acerca do

que se passa.

Acenei com a cabeça.

- Há mais uma coisa - disse Jampa. - Aparentemente, em todos

os sonhos surge mais uma pessoa. Um americano.

Jampa fez uma pausa e inclinou-se ligeiramente.

- O seu amigo Wil não tinha a certeza, mas pensava que era

você.

Depois de tomar banho e de mudar de roupa no quarto que

Jampa me tinha destinado, saí para o pátio das traseiras.

Vários monges trabalhavam numa horta, como se os chineses não

os preocupassem. Olhei para as montanhas e inspeccionei o céu.

Não se viam quaisquer helicópteros.

- Gostaria de se sentar naquele banco ali em cima? - disse

uma voz atrás de mim. Virei-me e vi Yin a sair pela porta.

Concordei e subimos várias plataformas cheias de plantas

ornamentais e vegetais, até chegarmos a uma zona de repouso,

em frente de um complicado santuário budista. Uma grande serra

enquadrava o horizonte atrás de nós, mas para sul tínhamos uma

vista panorâmica da paisagem durante vários quilómetros.

Muitas pessoas caminhavam pelas estradas ou puxavam carrinhos.

- Onde está o Lama? - perguntei.

- Não sei - respondeu Yin. - Ele ainda não aceitou vê-lo.

- Porque não?

Yin abanou a cabeça.

- Não sei.

- Achas que ele sabe onde está o Wil?

Yin abanou novamente a cabeça.

- Achas que os chineses ainda andam à nossa procura? -

perguntei.

Yin limitou-se a encolher os ombros, olhando para o vazio.

52

 

 

- Lamento estar com uma energia tão negativa - disse ele. -

Por favor não deixe que ela o influencie. É apenas a minha

raiva a dominar-me. Desde 1954, os chineses têm-se empenhado

em destruir sistematicamente a cultura tibetana. Veja as

pessoas que caminham além. Muitos deles são camponeses que

foram deslocados por causa de iniciativas económicas ordenadas

pelos chineses. Outros são nómadas que estão a morrer de fome

porque estas políticas interferiram com o seu estilo de vida.

- Comprimiu os dois punhos.

- Os chineses estão a fazer a mesma coisa que Estaline fez

na Manchúria, importando milhares de forasteiros para o

Tibete, neste caso chineses étnicos, para alterarem o

equilíbrio cultural e instituírem os hábitos chineses. Exigem

que as nossas escolas apenas ensinem na língua chinesa.

- As pessoas junto aos portões do mosteiro - perguntei. -

Porque vieram para aqui?

- O Lama Rigden e os monges estão a trabalhar para ajudarem

os pobres, que são quem mais sofre com a transição cultural.

Foi por isso que os chineses o deixaram em paz. Ele ajuda a

resolver os problemas sem agitar a população contra eles.

Yin disse isto de uma forma que reflectia um ligeiro

ressentimento contra o Lama, pedindo imediatamente desculpa.

- Não - disse. - Não quero sugerir que o Lama está a ser

demasiado cooperante. Só que aquilo que os chineses estão a

fazer é desprezível.

Fechou novamente os punhos e bateu com eles nos joelhos.

- Muitos pensaram, de início, que o governo chinês

respeitaria os hábitos tibetanos, que poderíamos existir no

interior da nação chinesa sem perdermos tudo. Mas o governo

está decidido a destruir-nos. Isso está claro agora e temos de

começar a tornar-lhes a vida mais difícil.

- Queres tentar lutar contra eles? - perguntei. - Yin, sabes

que não os podes vencer.

- Eu sei, eu sei - declarou ele. - Mas fico tão furioso,

quando penso no que eles estão a fazer. Um dia os guerreiros

de Shambhala cavalgarão para derrotar estes monstros do mal.

- O quê?

53

- É uma profecia do meu povo.

Ele olhou para mim e abanou a cabeça.

- Sei que tenho de dominar a minha raiva. Ela danifica o meu

campo de oração.

Abruptamente levantou-se e acrescentou:

- Vou perguntar ao Jampa se ele falou com o Lama. Por favor

desculpe-me.

Fez uma ligeira vénia e saiu.

Durante alguns instantes fiquei a olhar para a paisagem

tibetana, tentando compreender totalmente os estragos que a

ocupação chinesa tinha provocado. A dada altura pensei mesmo

ter ouvido outro helicóptero, mas estava demasiado longe para

ter a certeza. Sabia que a raiva do Yin era justificada e,

durante vários minutos, pensei nas realidades da situação

política do Tibete. Ocorreu-me a ideia de pedir um telefone e

perguntei a mim mesmo quão difícil seria conseguir uma ligação

internacional.

Estava prestes a erguer-me e seguir para dentro quando me

apercebi que me sentia cansado, por isso respirei fundo duas

vezes e tentei concentrar-me na beleza à minha volta. As

 

 

montanhas cobertas de neve e as cores verde e castanho da

paisagem eram fortes e belas e o céu tinha um azul profundo

com apenas algumas nuvens no horizonte para oeste.

Enquanto olhava, apercebi-me de dois monges, vários andares

abaixo de mim, a olharem fixamente na minha direcção. Olhei

para trás, para ver se havia algo lá, mas não vi nada de

invulgar. Sorri na direcção deles.

Após alguns minutos um deles subiu os degraus de pedra na

minha direcção, carregando um cesto cheio de ferramentas

manuais. Quando chegoujunto de mim, acenou delicadamente e

começou a tirar as ervas daninhas de um canteiro de flores,

cinco metros à minha direita. Vários minutos depois

juntou-se-lhe outro monge, que também começou a cavar.

Ocasionalmente olhavam para mim com olhos inquisitivos e

acenos respeitosos.

Respirei fundo mais algumas vezes e concentrei-me novamente

na distância, pensando naquilo que Yin tinha dito em relação

ao seu campo de oração. Ele receava que o seu ódio contra os

chineses danificasse a sua energia. O que queria isso dizer?

Subitamente comecei a sentir mais conscientemente o calor do

sol e o seu brilho, sentindo uma certa paz que não conhecia

desde que aqui chegara. Respirei fundo mais uma vez, com os

olhos fechados e sentindo algo mais, uma fragrância

invulgarmente doce, semelhante a um ramo de flores. A primeira

ideia que me ocorreu foi que os monges tinham cortado alguns

rebentos das plantas em que estavam a trabalhar e os tinham

colocado perto de mim.

Abri os olhos e olhei, mas não havia qualquer flor por

perto. Procurei uma brisa que pudesse ter trazido a fragrância

na minha direcção, mas não havia qualquer movimento no ar.

Notei que os monges tinham largado as ferramentas e estavam a

olhar intensamente para mim, de olhos muito abertos e com as

bocas semi-abertas, como se tivessem visto alguma coisa

estranha. Olhei novamente para trás de mim, tentando perceber

o que se estava a passar. Quando se aperceberam que me tinham

perturbado, reuniram rapidamente as suas ferramentas e cestos

e quase correram pelo carreiro em direcção ao mosteiro.

Segui-os com o olhar durante um momento, observando as suas

vestes vermelhas a agitarem-se e a balançarem enquanto eles

olhavam para trás, para verem se eu estava a observá-los.

* * *

AsSim que desci e entrei no mosteiro, soube que se

passava qualquer coisa. Os monges corriam em todas as

direcções, sussurrando uns para os outros.

Segui por um corredor e entrei no meu quarto, planeando

pedir a Jampa para usar um telefone. O meu humor estava

melhor, mas estava outra vez a pôr em causa o meu instinto de

autopreservação. Estava a deixar-me arrastar por aquilo que se

passava aqui, em vez de tentar sair do país. Quem sabia o que

os chineses poderiam fazer se eu fosse apanhado? Sabiam o meu

nome? Podia até já ser tarde demais para sair pelo ar.

Estava prestes a levantar-me e ir procurar Jampa quando ele

entrou, de rompante, no quarto.

54 - 55

 

 

- O Lama aceitou vê-lo - anunciou. - É uma grande honra. Não

se preocupe, ele fala um inglês perfeito.

Eu acenei, sentindo-me um pouco nervoso.

Jampa estava de pé junto à porta, expectante.

- Eu devo acompanhá-lo imediatamente - declarou.

Ergui-me e segui Jampa através de uma sala muito grande, com

um tecto alto, até uma sala mais pequena do outro lado. Cinco

ou seis monges, com rolos de orações e lenços brancos,

observaram-nos ansiosamente a avançar até à frente e a

sentarmo-nos. Yin acenou do canto mais distante.

- Esta é a sala de recepção - disse Jampa.

O interior da sala era de madeira, pintado de azul-claro.

Murais trabalhados à mão e mandalas decoravam as paredes.

Esperámos alguns minutos e depois o Lama entrou. Era mais alto

do que a maioria dos outros monges, mas estava vestido com um

manto vermelho, exactamente como aqueles que eles usavam.

Depois de olhar muito atentamente para todas as pessoas na

sala, fez sinal a Jampa para avançar. As suas testas

tocaram-se e ele murmurou qualquer coisa ao ouvido de Jampa.

Jampa voltou-se imediatamente e fez sinal a todos os outros

monges para o seguirem para fora da sala. Também o Yin começou

a sair mas, ao fazê-lo, olhou para mim e acenou ligeiramente

com a cabeça, um gesto que eu entendi como sendo de apoio para

a conversa eminente. Muitos dos monges entregaram-me os seus

lenços e acenaram animadamente.

Quando a sala ficou vazia, o Lama fez sinal para eu avançar

e sentar-me numa cadeira minúscula à sua direita. Fiz uma

ligeira vénia ao adiantar-me e sentei-me.

- Obrigado por me receber - disse.

Ele acenou com a cabeça e sorriu, observando-me durante

muito tempo.

- Posso perguntar-lhe pelo meu amigo Wilson James? - inquiri

finalmente. - Sabe onde ele está?

- O que sabe acerca de Shambhala? - perguntou por sua vez o

Lama.

- Suponho que sempre pensei nela como um lugar imaginário,

uma fantasia. Sabe, como Shangri-La.

Ele esticou a cabeça e respondeu descontraidamente:

- É um lugar real na Terra, que existe como parte da

comunidade humana.

- Porque é que nunca ninguém descobriu onde fica? E porque

tantos budistas proeminentes falam de Shambhala como um modo

de vida, uma mentalidade?

- Porque Shambhala representa realmente uma forma de ser e

de viver. Pode ser descrita de forma precisa nesses termos.

Mas é também um lugar concreto, onde pessoas verdadeiras

alcançaram esta forma de viver em comunidade umas com as

outras.

- Já lá esteve?

- Não, não, ainda não fui chamado.

- Então como pode ter tanta certeza?

- Porque sonhei com Shambhala muitas vezes, tal como outros

fiéis na Terra. Comparamos os nossos sonhos e eles são tão

semelhantes que sabemos que este tem de ser um lugar real. E

detemos o conhecimento sagrado, as lendas, que explicam a

nossa relação com esta comunidade sagrada.

- Como é essa relação?

- Devemos preservar o conhecimento enquanto esperamos o

momento de Shambhala se revelar e dar-se a conhecer a todos os

povos.

 

 

- Yin disse-me que alguns acreditam que os guerreiros de

Shambhala chegarão um dia para derrotar os chineses.

- A raiva do Yin é muito perigosa para ele.

- Ele está enganado, nesse caso?

- Ele está a falar do ponto de vista humano, que vê a

derrota em termos de guerra e de combate físico. Exactamente

de que maneira esta profecia se tornará realidade é ainda

desconhecido. Temos primeiro de compreender Shambhala. Mas

sabemos que esta batalha será de um tipo diferente.

Achei esta última afirmação críptica, mas os seus modos eram

tão compreensivos que me senti mais impressionado do que

confuso.

- Nós acreditamos - continuou o Lama Rigden -, que está

próximo o tempo em que Shambhala se dará a conhecer ao mundo.

- Lama, como podem saber isso?

56 - 57

- Mais uma vez por causa dos nossos sonhos. O seu amigo Wil

esteve aqui, como indubitavelmente já sabe. Recebemos isso

como um grande sinal, porque anteriormente tínhamos sonhado

com ele. Ele cheirou a fragrância e ouviu a frase.

Fui apanhado de surpresa.

- Que tipo de fragrância?

Ele sorriu.

- Aquela que você também cheirou hoje.

Agora tudo fazia sentido. A reacção dos monges e a decisão

do Lama em receber-me.

- Está também a ser chamado - acrescentou. - Receber a

fragrância é algo raro. Só o vi acontecer duas vezes; - uma

vez quando estava com o meu mestre e outra vez quando o seu

amigo Wil aqui esteve. Agora aconteceu novamente, consigo. Não

sabia se devia recebê-lo ou não. É muito perigoso falar destas

coisas com ligeireza. Também ouviu o grito?

- Não - disse eu. - Não compreendo o que é isso.

- É também um chamamento de Shambhala. Continue à escuta de

um som especial. Quando o ouvir, saberá o que é.

- Lama, não tenho a certeza de querer ir seja onde for. Isto

aqui parece ser muito perigoso para mim. Os chineses parecem

saber quem eu sou. Acho que quero voltar para os Estados

Unidos logo que possível. Pode simplesmente dizer-me onde

posso encontrar o Wil? Ele está algures aqui perto?

O Lama abanou a cabeça, parecendo muito triste.

- Não, receio que ele se tenha comprometido a prosseguir.

Fiquei calado e, durante um longo momento, o Lama limitou-se

a olhar para mim.

- Há mais uma coisa que deve saber - disse ele. - Os sonhos

deixaram bem claro que, sem a sua ajuda, o Wil não sobreviverá

a esta tentativa. Para que ele tenha sucesso, você também terá

de estar lá.

Uma onda de medo percorreu-me, fazendo-me desviar o olhar.

Não era isto o que eu queria ouvir.

- Diz a lenda - prosseguiu o Lama -, que em Shambhala cada

geração tem um certo destino que é publicamente conhecido e

discutido. O mesmo é verdade para as culturas humanas fora de

Shambhala. Por vezes podemos ganhar grande força e clareza,

olhando para a coragem e intenções da geração anterior à

nossa.

Perguntei a mim mesmo o que ele quereria dizer com isto.

- O seu pai está vivo? - perguntou.

 

 

Abanei a cabeça.

- Morreu há alguns anos.

- Ele serviu durante a grande guerra dos anos 40?

- Sim - respondi. - Serviu.

- Esteve em combate?

- Sim, durante a maior parte da guerra.

- Ele falou-Lhe da situação mais assustadora que viveu?

A pergunta fez-me recuar a conversas com o meu pai durante a

minha juventude. Pensei durante um momento.

- Provavelmente o desembarque da Normandia, em 1944, na

praia Omaha.

- Ah, sim - disse o Lama -, vi os vossos filmes americanos

acerca desse desembarque. Também os viu?

- Sim, vi - repliquei. - Eles comoviam-me muito.

- Falam do medo e da coragem destes soldados - prosseguiu

ele.

- Pois é.

- Acha que teria sido capaz de fazer semelhantes coisas?

- Não sei. Não percebo como eles conseguiram fazê-las.

- Talvez tivesse sido mais fácil para eles porque foi um

chamamento para toda uma geração. A um certo nível, todos o

sentiram: aqueles que combateram, os que fizeram as armas, os

que forneceram a comida. Eles salvaram o mundo, no momento em

que ele enfrentava o maior perigo.

Esperou, como se estivesse à espera que eu fizesse uma

pergunta, mas eu apenas continuei a olhar para ele.

- O chamamento para a sua geração é diferente - declarou. -

Também vocês devem salvar o mundo. Mas têm de fazê-lo de forma

diferente. Têm de compreender que dentro de vós existe um

poder superior, que pode ser cultivado e ampliado, uma energia

mental que sempre foi conhecida como oração.

- Já ouvi dizer isso - declarei. - Mas suponho que ainda não

sei como usá-la.

58 - 59

Ao ouvir isto ele sorriu e ergueu-se, olhando para mim com

um brilho nos olhos.

- Sim - disse. - Eu sei. Mas há-de saber, há-de saber.

* * *

Deitei-me na pequena cama do meu quarto e pensei naquilo

que o Lama me tinha dito. Tinha terminado a conversa de forma

abrupta, afastando as perguntas que me restavam com um aceno.

- Agora vá descansar - tinha dito, chamando vários monges

com o toque de uma campainha estridente. - Amanhã falaremos

novamente.

Mais tarde, Jampa e Yin tinham-me obrigado a repetir tudo o

que o Lama dissera. Mas a verdade era que o Lama me deixara

mais perguntas do que respostas. Ainda não sabia para onde o

Wil tinha ido e o que realmente significava o chamamento de

Shambhala. Tudo isto soava extravagante e perigoso.

Yin e Jampa tinham recusado discutir qualquer uma destas

perguntas. Passámos o resto da noite a comer e a olhar para a

paisagem, antes de nos recolhermos cedo. Agora estava a olhar

para o tecto, incapaz de adormecer, com inúmeros pensamentos a

voltearem na minha cabeça.

 

 

Repeti toda a minha experiência tibetana mentalmente várias

vezes e depois deslizei para um sono irregular. Sonhei que

corria por entre as multidões de Lhasa, procurando abrigo num

dos mosteiros. Os monges à entrada olhavam para mim e fechavam

a porta. Soldados perseguiam-me. Corria pelas ruas e becos

escuros sem esperança, até que, no fim de uma rua, olhei para

a direita e vi uma área iluminada, semelhante às que tinha

visto antes. Quando me aproximei, a luz desapareceu

gradualmente, mas à minha frente estava um portão. Os soldados

estavam a virar a esquina atrás de mim; corri para o portão e

encontrei-me numa paisagem gelada...

Acordei sobressaltado. Onde estava? Lentamente, reconheci o

quarto, pus-me de pé e caminhei até à janela. A madrugada

estava a despontar a leste e eu tentei afastar o sonho e

regressar à cama, uma ideia que se revelou totalmente

infrutífera. Estava perfeitamente desperto.

Vesti umas calças e um casaco, desci as escadas até ao pátio

junto das hortas e sentei-me num banco de metal ornamentado.

Enquanto olhava para o nascer do Sol, ouvi qualquer coisa

atrás de mim. Voltando-me, vi a figura de um homem a avançar

para mim vindo do mosteiro. Era o Lama Rigden.

Ergui-me e fiz uma vénia profunda.

- Acordou cedo - disse ele. - Espero que tenha dormido bem.

- Sim - respondi, observando-o enquanto avançava para o lado

e deitava uma mão-cheia de grão para os peixes. A água

rodopiou enquanto eles consumiam a comida.

- Quais foram os seus sonhos? - perguntou ele, sem olhar

para mim.

Falei-lhe da perseguição e de ter visto a área iluminada.

Ele olhou para mim, espantado.

- Também já teve esta experiência na sua vida desperta? -

perguntou.

- Várias vezes nesta viagem - respondi. - Lama, o que se

passa?

Ele sorriu e sentou-se no banco, a meu lado. - Está a ser

ajudado pelos dakini.

- Não compreendo. Quem são os dakini? O Wil deixou um

bilhete ao Yin, em que se refere aos dakini, mas eu nunca

tinha ouvido falar deles antes disso.

- Eles pertencem ao mundo espiritual. Geralmente surgem como

mulheres, mas podem assumir a forma que quiserem. No ocidente

são conhecidos como anjos, mas são ainda mais misteriosos do

que a maioria pensa. Receio que só os habitantes de Shambhala

os conheçam verdadeiramente. As lendas dizem que eles se movem

com a luz de Shambhala.

Fez uma pausa e olhou profundamente para mim.

- Já decidiu se vai responder a este chamamento?

- Não saberia o que fazer a seguir - disse eu.

- As lendas hão-de guiá-lo. Elas dizem que reconheceremos o

momento de Shambhala ser conhecida porque muitas pessoas

começarão a compreender como se vive lá, a verdade por detrás

da energia da oração. A oração não é um poder que se

concretize apenas quando nos sentamos e decidimos rezar numa

situação particular.

60 - 61

A oração funciona nessas alturas, é claro, mas também

noutras.

- Está a falar de um campo de oração constante?

 

 

- Sim. Tudo o que esperamos, bom ou mau, consciente ou

inconscientemente, ajudamos a tornar realidade. A nossa oração

é uma energia ou poder que emana de nós em todas as direcções.

Na maioria das pessoas, que pensam de forma vulgar, este poder

é muito fraco e contraditório. Mas noutras, que parecem

alcançar muitas coisas nas suas vidas, que são criativas e bem

sucedidas, este campo de energia é forte, embora geralmente

continue a ser inconsciente. A maior parte das pessoas neste

grupo têm um campo forte porque cresceram num ambiente que

lhes ensinou a esperarem o sucesso e mais ou menos contarem

implicitamente com ele. Tiveram modelos de comportamento

fortes, a quem imitaram. Mas as lendas dizem que, em breve,

todas as pessoas conhecerão este poder e compreenderão que a

nossa habilidade para usar esta energia pode ser reforçada e

alargada. Contei-lhe isto para lhe explicar como responder ao

chamamento de Shambhala. Para encontrar este lugar sagrado,

deve alargar sistematicamente a sua energia, até que emane

suficiente força criativa para ir para lá. O procedimento para

fazê-lo está estabelecido nas lendas e envolve três passos

importantes. Há ainda um quarto passo, mas que apenas os

habitantes de Shambhala conhecem completamente. É por isso que

encontrar Shambhala é tão difícil. Mesmo que alguém consiga

alargar a sua energia durante os três primeiros passos,

precisa de ajuda para conseguir de facto encontrar o caminho

de Shambhala. Os dakini têm de abrir o portão.

- Chamou aos dakini criaturas espirituais. Quer dizer, almas

que estão na outra vida e que agem como nossos guias?

- Não, os dakini são outros seres que agem para despertar e

proteger os humanos. Não são, e nunca foram, humanos.

- E são o mesmo que anjos?

O Lama sorriu.

- Eles são aquilo que são. Uma realidade. Cada religião tem

um nome diferente para eles, assim como cada religião tem uma

forma diferente de descrever Deus e o modo de vida que os

humanos deviam seguir. Mas em todas as religiões a experiência

de Deus, a energia do amor, é exactamente a mesma.

62

Cada religião tem a sua história desta relação e a sua maneira

de falar dela, mas existe apenas uma fonte divina. Passa-se o

mesmo com os anjos.

- Portanto vocês não são estritamente budistas?

- A nossa seita e as lendas em que acreditamos têm as suas

raízes no budismo, mas nós somos uma síntese de todas as

religiões. Acreditamos que cada uma delas tem a sua verdade,

que deve ser incorporada com todas as outras. É possível fazer

isto sem perder a soberania ou verdade básica das nossas

crenças tradicionais. Poderia também chamar a mim mesmo

cristão, por exemplo, e judeu ou muçulmano. Acreditamos que os

habitantes de Shambhala também trabalham para a integração de

todas as verdades religiosas. Trabalham para isto com o mesmo

que o Dalai Lama faz as iniciações de Kalachakra, conhecidas

por todos aqueles que têm um coração sincero.

Limitei-me a olhar para ele, tentando absorver tudo.

- Não tente compreender tudo agora - disse o Lama. - Saiba

apenas que a integração de todas as verdades religiosas é

importante, se queremos que a força da energia de oração se

torne suficientemente grande para resolver os perigos criados

por aqueles que temem. Lembre-se também que os dakini são

 

 

reais.

- O que os leva a agirem em nosso favor? - perguntei.

O Lama respirou fundo, pensando profundamente. A pergunta

parecia ser frustrante para ele.

- Toda a minha vida trabalhei para compreender essa questão.

- disse finalmente - Mas devo admitir que não sei. Penso que

isso seja o grande segredo de Shambhala e que não será

compreendido enquanto Shambhala não for compreendido.

- Mas pensa - interrompi - que os dakini me estão a ajudar?

- Sim - disse ele com firmeza. - E ao seu amigo Wil.

- E o Yin? Como é que ele se encaixa em tudo isto?

- Yin conheceu o seu amigo Wil neste mosteiro. Yin também

sonhou consigo, mas num contexto diferente de mim mesmo ou dos

outros lamas. Yin foi educado em Inglaterra e está bem

familiarizado com os hábitos ocidentais. Ele deverá ser o seu

guia, embora esteja muito relutante, como sem dúvida notou.

Isto acontece apenas porque não quer desiludir ninguém. Ele

será o seu guia e levá-lo-á tão longe quanto puder ir.

63

Fez uma nova pausa e olhou para mim, expectante.

- E o governo chinês? - perguntei. - O que é que eles estão

a fazer? Porque estão tão interessados naquilo que se está a

passar?

O Lama baixou os olhos.

- Não sei. Parecem sentir que está a acontecer qualquer

coisa relacionada com Shambhala. Eles sempre tentaram reprimir

a espiritualidade tibetana, mas agora parecem ter descoberto a

nossa seita. Tem de ser muito cauteloso. Eles receiam-nos

bastante.

Olhei noutra direcção durante um momento, continuando a

pensar nos chineses.

- Já decidiu? - perguntou ele.

- Quer dizer, para onde ir?

Ele sorriu compassivamente.

- Sim.

- Não sei. Não estou certo de ter a coragem para arriscar

perder tudo.

O Lama continuou apenas a olhar para mim e acenou.

- Você disse qualquer coisa acerca de um desafio à minha

geração - disse eu. - Ainda não compreendi isso.

- A Segunda Guerra Mundial, assim como a Guerra Fria -

começou o Lama - foram os desafios que a geração anterior

enfrentou. Os grandes avanços da tecnologia colocaram armas de

destruição maciça nas mãos das nações. Com o seu fervor

nacionalista, as forças do totalitarismo tentaram conquistar

os países democráticos. Esta ameaça teria vencido, se os

cidadãos comuns não tivessem lutado e morrido em defesa da

liberdade, garantindo o sucesso da democracia no mundo.

Mas a vossa tarefa é diferente da dos vossos pais. A missão

da sua geração é diferente, na sua própria natureza, da missão

da geração da Segunda Guerra Mundial. Eles tiveram de combater

uma tirania particular com violência e armas. Vocês devem

lutar contra os próprios conceitos de guerra e inimigo. Mas é

precisa uma dose igual de heroísmo. Compreende? Os vossos pais

não tinham hipótese de fazer o que fizeram, mas persistiram.

Tal como vocês devem fazer. As forças do totalitarismo não

desapareceram; elas apenas já não se exprimem através de

nações em busca de um império. As forças da tirania são agora

 

 

internacionais e muito mais subtis, aproveitando-se da nossa

dependência das tecnologias, da confiança e do desejo de

conveniência. Através do medo, procuram centralizar todo o

crescimento tecnológico nas mãos de uns poucos, para que as

suas posições económicas possam ser salvaguardadas e a

evolução futura do mundo controlada. É impossível opormo-nos a

eles pela força. A democracia deve ser defendida agora, com o

próximo passo na evolução da liberdade. Temos de usar o poder

da nossa visão, e as expectativas que fluem a partir de nós,

como uma oração constante. Este poder é mais forte do que

qualquer pessoa actualmente sabe; temos de dominá-lo e começar

a usá-lo antes que seja tarde demais. Há sinais de que alguma

coisa está a mudar em Shambhala. Ela está a abrir-se, a

deslocar-se.

O Lama estava a olhar para mim com uma determinação férrea.

- Tem de responder ao chamamento de Shambhala. É a única

maneira de honrar aquilo que os seus antepassados fizeram

antes de si.

Este comentário encheu-me de ansiedade.

- O que faço primeiro? - perguntei.

- Complete as extensões da sua energia - replicou o Lama. -

Isto não lhe será fácil, por causa do seu medo e da sua raiva.

Mas se persistir, a entrada estará perante si.

- A entrada?

- Sim. As nossas lendas dizem que existem várias entradas

para Shambhala: uma nos Himalaias orientais, na Índia, uma a

noroeste, na fronteira com a China, e uma no extremo norte da

Rússia. Os sinais guiá-lo-ão até à entrada correcta. Quando

tudo parecer perdido, procure os dakini.

Enquanto o Lama falava, Yin saiu com as nossas malas.

- Muito bem - disse eu, sentindo-me cada vez mais assustado.

- Vou tentar. - Mesmo enquanto falava, não acreditava que as

palavras estavam a sair da minha boca.

- Não se preocupe - disse o Lama Rigden. - O Yin vai

ajudá-lo. Lembre-se apenas que, antes de conseguir encontrar

Shambhala, tem primeiro de ampliar o nível de energia que

emana de si para o mundo. Não poderá ter sucesso enquanto não

o fizer. Tem de dominar a força das suas expectativas.

Olhei para Yin e ele esboçou um sorriso.

- Está na hora - disse ele.

64 - 65

3.

CULTIVAR A ENERGIA

Saímos e apercebi-me de um jipe castanho, de capota dura,

com uns dez anos, parado na berma da estrada. Quando nos

aproximámos, vi que estava cheio de arcas frigoríficas, caixas

de comida enlatada, sacos-cama e casacos mais pesados. Vários

tanques externos de combustível estavam presos na retaguarda.

- De onde veio esta tralha toda? - perguntei.

Ele piscou-me um olho.

- Estamos a preparar esta viagem há muito tempo.

Saindo do mosteiro do Lama Rigden, Yin seguiu para norte

durante alguns quilómetros e depois levou o jipe da ampla

estrada de terra batida para um carreiro estreito, pouco mais

 

 

largo do que uma trilha pedonal. Prosseguimos durante vários

quilómetros, sem dizer nada.

Na verdade eu não sabia o que dizer. Tinha concordado fazer

esta viagem apenas por causa das palavras do Lama e por tudo o

que o Wil tinha feito por mim no passado, mas agora a angústia

da decisão começava a instalar-se. Tentei afastar o medo e

repetir, na minha mente, tudo o que o Lama Rigden me tinha

dito. O que queria ele dizer com dominar a força das minhas

expectativas?

Olhei para Yin, que estava a fixar atentamente a estrada.

- Para onde vamos? - perguntei.

Sem olhar para mim, ele disse:

- Isto é um atalho para a auto-estrada da Amizade. Temos de

seguir para sudoeste até Tingri, perto do monte Evereste.

67

A viagem vai demorar a maior parte do dia. Estaremos também a

subir para maiores altitudes.

- A área é segura?

Yin olhou para mim.

- Teremos muito cuidado. Vamos encontrar-nos com o senhor

Hanh.

- Quem é ele?

- Ele conhece a maior parte daquilo que você tem de aprender

acerca da Primeira Extensão da energia da oração. É da

Tailândia e muito educado.

Abanei a cabeça e desviei o olhar. - Não estou muito seguro

de compreender essas extensões. O que são?

- Sabe que tem um campo de energia, certo? Um campo de

oração que flui constantemente a partir de si.

- Sim.

- E sabe que este campo tem um efeito sobre o mundo, sobre

aquilo que acontece? Sabe que pode ser pequeno e fraco ou

extenso e forte.

- Suponho que sim.

- Bem, existem formas precisas de alargar e expandir o seu

campo, de modo a ser mais criativo e poderoso. As lendas dizem

que um dia todos os humanos saberão fazer isto. Mas você tem

de fazê-lo agora, se quer chegar a Shambhala e encontrar Wil.

- Tu já consegues fazer essas extensões? - perguntei.

Yin franziu a testa.

- Eu não disse isso.

Limitei-me a olhar para ele. Isto era óptimo. Como é que era

suposto eu aprender a fazer isto, se até o Yin tinha

dificuldade?

Durante horas avançámos sem falar, comendo nozes e vegetais

enquanto conduzíamos, parando apenas uma vez, numa paragem

para camionistas, para meter gasolina. Bem depois do

anoitecer, atravessámos Tingri.

- Temos de ser muito cuidadosos, aqui - disse Yin. - Estamos

perto do mosteiro de Rongphu e do acampamento-base do

Evereste. Seguramente estarão soldados chineses a observar os

turistas e os alpinistas. Mas também poderemos ver a incrível

paisagem da face norte do Evereste.

68

Yin fez várias curvas até uma área de antigos edifícios de

 

 

madeira. Para lá deles havia uma simples casa de tijolos de

argila.

O terreno em redor da casa de Hanh estava imaculado, com

canteiros cuidadosamente plantados e jardins rochosos.

Enquanto subíamos, um homem grande com um manto colorido

bordado à mão saiu para o terraço. Parecia ter perto de

sessenta anos, mas movia-se como uma pessoa muito mais nova.

Tinha a cabeça completamente rapada.

Yin acenou quando o homem tentou ver quem era. Quando

reconheceu Yin, desenhou um grande sorriso e caminhou na nossa

direcção enquanto descíamos do jipe.

Os dois homens falaram durante um momento em tibetano,

depois Yin apontou para mim e disse: - Este é o meu amigo

americano.

Disse o meu nome a Hanh, ele fez uma ligeira vénia e agarrou

a minha mão.

- Bem vindo - disse ele. - Por favor, entre.

Enquanto Hanh voltava para dentro de casa, Yin enfiou o

braço dentro do jipe e agarrou na sua mochila. - Traga a sua

sacola - disse.

O interior da casa era modesto mas cheio de coloridas

pinturas e tapetes tibetanos. Entrámos numa pequena sala de

estar e a partir do sítio onde eu estava conseguia ver a maior

parte das restantes divisões. À esquerda ficava uma pequena

cozinha e um quarto e à direita estava outro quarto, com o

aspecto de uma zona de tratamentos de alguma espécie. No

centro do quarto estava uma mesa de massagens ou exames e, ao

longo de uma das paredes, armários e uma pequena pia.

Yin disse qualquer coisa a Hanh em tibetano e ouvi-o repetir

o meu nome. Hanh inclinou-se para a frente, mais atento. Olhou

para mim e respirou bem fundo.

- Está muito receoso - disse Hanh, observando-me

cuidadosamente.

- Não me diga - repliquei.

Hanh riu-se do meu sarcasmo.

- Temos de fazer qualquer coisa acerca disso, se quer

completar a sua viagem.

Caminhou em redor de mim, inspeccionando o meu corpo.

- Os habitantes de Shambhala - começou ele -, vivem de forma

diferente dos outros humanos. Sempre viveram. Na realidade,

69

ao longo dos milénios, houve um grande fosso nos níveis de

energia entre a maioria das pessoas e os habitantes de

Shambhala. Mais recentemente, à medida que os humanos

evoluíram e aperfeiçoaram as suas consciências, esta distância

diminuiu, mas é ainda muito grande.

Enquanto Hanh falava, olhei para Yin. Parecia estar tão

nervoso quanto eu.

Hanh também o percebeu.

- Yin está tão receoso quanto você - declarou. - Mas ele

sabe que este medo pode ser dominado. Não me parece que você

se aperceba disso ainda. Tem de começar a agir e a pensar como

o fazem os habitantes de Shambhala. Tem primeiro de cultivar e

depois de estabilizar a sua energia.

Hanh parou, concentrou-se novamente na inspecção do meu

corpo e depois sorriu.

- Teve muitas experiências - disse. - Devia ser mais forte.

- Talvez eu não compreenda a energia suficientemente bem. -

 

 

respondi.

- Oh, não, você compreende - Hanh fez um grande sorriso. -

Só que não quer mudar o seu modo de vida. Quer entusiasmar-se

com as ideias e depois viver de forma inconsciente, mais ou

menos da mesma maneira que sempre fez.

Esta conversa não estava a correr como eu queria e o meu

medo estava a ser substituído por uma ligeira irritação.

Enquanto fiquei ali parado, Hanh caminhou em meu redor mais

algumas vezes, continuando a olhar atentamente o meu corpo de

alto a baixo.

- Para onde está a olhar? - perguntei.

- Quando avalio o nível de energia de alguém, vejo primeiro

a sua postura - disse Hanh, descontraidamente. - A sua não é

muito má neste momento, mas teve de esforçar-se para

melhorá-la, não foi?

A pergunta dele era muito perspicaz. Quando era mais novo,

cresci muito depressa num ano e, em consequência, fiquei

terrivelmente encurvado. Tinha as costas sempre cansadas e

doridas e só melhorei quando comecei a praticar algumas

posições básicas do ioga, todas as manhãs.

- A energia ainda não flui muito bem pelo seu corpo. -

acrescentou Hanh.

70

- Consegue ver isso ao olhar para mim? - repliquei.

- E ao senti-lo. A quantidade e a força da sua energia são

semelhantes ao grau da sua presença nesta sala. Seguramente já

conheceu alguém que, ao entrar numa sala, tinha presença ou

carisma.

- Claro que sim.

Pensei novamente naquele homem, na piscina do hotel em

Katmandu.

- Quanto mais energia uma pessoa tem, tanto mais os outros

sentem a presença dessa pessoa. Muitas vezes esta energia

acaba por ser exibida pelo ego, por isso inicialmente parece

forte mas depois dissipa-se muito depressa. Mas com outros,

esta é uma energia genuína e constante, que se mantém estável.

Acenei em concordância.

- Uma coisa a seu favor é a sua abertura - continuou Hanh. -

Viveu uma abertura mística, um influxo repentino de energia

divina, algures no passado, não foi assim?

- Sim - respondi, recordando a minha experiência nos cumes

do Peru. Ainda agora ela permanece viva na minha memória.

Estava no limite, com a certeza de ser morto por soldados

peruanos, quando de repente fiquei imbuído de uma calma

invulgar, euforia e leveza. Foi a primeira vez em que

experimentei aquilo a que os místicos de várias religiões

chamaram um estado de transformação.

- Como é que a energia o encheu? - perguntou Hanh. - Como é

que tudo aconteceu, exactamente?

- Foi uma onda de paz, e todo o meu medo desapareceu.

- Como é que ela se movia?

Esta era uma questão que nunca me ocorrera, mas rapidamente

comecei a recordar-me. - Parecia subir pela minha espinha e

sair pelo topo da cabeça, puxando o meu corpo para cima.

Sentia-me a flutuar. Era como se um fio me puxasse para o

alto, a partir do cimo da minha cabeça.

Hanh acenou com ar aprovador e depois fixou os meus olhos.

- E quanto tempo durou?

 

 

- Pouco - respondi. - Mas aprendi a respirar no meio da

beleza que me rodeia, como forma de recuperar essa sensação.

- O que falta na sua prática - declarou Hanh -, é a

capacidade de inspirar a energia e depois mantê-la a um nível

elevado. Esta é a primeira extensão que deve fazer.

71

Tem de manter a sua energia a fluir de forma mais

consistente. Isto deve ser feito de forma precisa, tendo

cuidado para que as suas outras acções não desgastem o seu

campo de energia, logo que o tenha constituído.

Fez uma breve pausa.

- Compreende? O resto da sua vida deve apoiar essa energia

superior. Tem de ser congruente.

Olhou para mim de forma maliciosa.

- Tem de viver com sabedoria. Vamos comer.

Desapareceu na cozinha e regressou com um grande prato de

vegetais, acompanhados com uma espécie de molho. Fez-nos

sinal, a Yin e a mim, para uma mesa e serviu os vegetais em

três pequenas taças. Em breve ficou claro que a comida também

fazia parte da informação que Hanh estava a partilhar comigo.

Enquanto comíamos ele continuou.

- Manter uma energia elevada dentro de nós mesmo é

impossível se consumirmos matéria morta como comida.

Afastei os olhos, desligando-me. Se isto ia ser uma palestra

sobre dietas, preferia ignorá-la.

A minha atitude pareceu enfurecer Hanh.

- Está louco? - disse ele, quase gritando. - A sua própria

sobrevivência depende desta informação e você não está

disposto a esforçar-se um pouco para apreendê-la. O que pensa?

Que pode viver da forma que quiser e ainda fazer coisas

importantes?

Calou-se e olhou para mim de lado. Compreendi que a fúria

era genuína, mas também uma parte do seu papel. Fiquei com a

impressão de que ele estava a transmitir-me informação em mais

do que um nível. Ao olhar novamente para ele, não consegui

deixar de sorrir. Era muito fácil gostar de Hanh.

Ele bateu-me no ombro e devolveu-me o sorriso.

- A maior parte das pessoas - continuou -, estão cheias de

energia e entusiasmo na sua juventude, mas durante a meia

idade caem numa queda lenta que fingem não notar. Afinal de

contas, os amigos também estão a abrandar e os filhos são

activos, por isso passam cada vez mais tempo a preguiçar e a

comer comidas que sabem bem.

- Dentro de pouco tempo, começam a ter queixas irritantes e

problemas crónicos como dificuldades digestivas ou urticárias,

que menosprezam como sendo sinais da idade, e depois um dia

surge uma doença séria que se recusa a desaparecer. Geralmente

vão a um médico que não enfatiza a prevenção e começam a tomar

drogas. Umas vezes o problema alivia-se e outras não. E

depois, enquanto os anos passam, apanham doenças que

progressivamente ficam piores e compreendem que estão a

morrer. O seu único consolo é pensar que isso acontece a toda

a gente que é inevitável.

- O mais terrível é que este colapso da energia acontece,

até certo ponto, mesmo às pessoas que pretendem ser

espirituais.

Inclinou-se para mim e fingiu olhar em redor como se

tentasse não ser ouvido.

 

 

- Isto inclui alguns dos nossos lamas mais respeitados.

Apeteceu-me rir, mas não me atrevi.

- Se procuramos uma energia mais elevada e, ao mesmo tempo,

consumimos comida que nos priva dessa energia - prosseguiu

Hanh, - não chegaremos a lugar algum. Temos de avaliar todas

as energias que rotineiramente recebemos nos nossos campos de

energia, especialmente a comida, e evitar tudo o que não seja

o melhor, se queremos que os nossos campos se mantenham

fortes.

Inclinou-se mais para mim. - Isto é muito difícil para a

maioria das pessoas, porque estamos todos viciados nas comidas

que actualmente consumimos. E estas são, na sua maioria,

venenos horríveis.

Desviei o olhar.

- Sei que há por aí muita informação contraditória em

relação à comida - continuou ele. - Mas a verdade também anda

por aí. Todos nós temos de fazer essa pesquisa, obrigarmo-nos

a ter uma visão mais ampla. Somos criaturas espirituais que

vieram a este mundo para aumentar a sua energia. Mas boa parte

daquilo que encontramos aqui foi criado simplesmente para o

prazer sensual e a distracção; uma parte dessas coisas mina a

nossa energia e arrasta-nos para a desintegração física. Se

acreditamos realmente que somos criaturas de energia, temos de

seguir um carreiro estreito por entre estas tentações.

- Se olhar para o princípio da evolução, verá que desde o

início tivemos de experimentar as comidas unicamente por

tentativa e erro, apenas para descobrir quais os alimentos que

eram bons para nós e quais nos matariam.

72 - 73

Come esta planta e sobrevive; come aquela além e morre. Neste

ponto da história já sabemos o que nos mata, mas estamos

apenas a descobrir quais os alimentos que aumentam a nossa

longevidade e mantêm os nossos níveis de energia altos e quais

os que acabam por nos desgastar.

Fez uma breve pausa, como se quisesse determinar se eu

estava a compreendê-lo.

- Em Shambhala eles têm esta visão mais ampla - prosseguiu.

- Eles sabem quem nós somos, enquanto seres humanos. Parecemos

uma coisa material, de carne e osso, mas somos átomos! Energia

pura! A vossa ciência já provou este facto. Quando olhamos bem

para os átomos, vemos primeiro partículas e depois, a níveis

mais profundos, as próprias partículas desaparecem em padrões

e pura energia, vibrando a um certo nível. E se olharmos para

aquilo que comemos por esta perspectiva, vemos que aquilo que

damos ao nosso corpo como comida afecta o nosso estado

vibracional. Certos alimentos aumentam a nossa energia e

vibração, outros diminuem-nas. A verdade é tão simples quanto

isto.

Todas as doenças resultam de uma queda na energia

vibracional e, quando essa energia desce abaixo de um certo

ponto, há forças naturais no mundo cuja função é desincorporar

os nossos corpos.

Olhou para mim como se tivesse dito qualquer coisa de muito

profundo.

- Quer dizer, desincorporar fisicamente? - perguntei.

- Sim. Olhe novamente para a visão mais ampla. Quando alguma

coisa morre, um cão atropelado por um carro, ou uma pessoa

depois de uma longa doença, as células do seu corpo perdem

 

 

imediatamente a sua vibração e ganham uma composição química

muito ácida. Esse estado ácido é o sinal para os micróbios do

mundo, os vírus, bactérias e fungos, indicando-lhes que está

na hora de decomporem o tecido morto. É essa a sua função no

universo físico. Devolver um corpo à Terra.

- Eu disse anteriormente - acrescentou -, que, quando os

nossos corpos perdem energia por causa do tipo de comida que

consumimos, isso nos torna susceptíveis à doença. Aqui está

como isso funciona. Quando comemos os alimentos, estes são

metabolizados e deixam um resíduo ou cinza nos nossos corpos.

74

Esta cinza tem uma natureza ácida ou alcalina, dependendo do

alimento. Se for alcalina, então pode ser extraída rapidamente

dos nossos corpos, gastando pouca energia. Contudo, se estes

produtos residuais são ácidos, só muito dificilmente são

eliminados pelo sangue e pelo sistema linfático e ficam

armazenados nos nossos órgãos e tecidos, como sólidos - formas

cristalinas de baixa vibração que criam bloqueios ou

perturbações nos níveis vibracionais das nossas células.

Quando mais resíduos ácidos destes forem armazenados, mais

esses tecidos ficam ácidos, e sabe o que acontece?

Olhou novamente para mim com uma expressão dramática.

- Aparece um micróbio de algum tipo, sente todo este ácido e

diz "oh, este corpo está pronto para ser decomposto." Está a

perceber? Quando qualquer organismo morre, o seu corpo

transforma-se num ambiente altamente ácido e é rapidamente

consumido pelos micróbios. Se começamos a parecermo-nos com

este ácido, ou estado mortal, então começamos a sofrer o

ataque dos micróbios. Todas as doenças humanas resultam deste

ataque.

Aquilo que Hanh dizia fazia todo o sentido. Há muito tempo

atrás, eu tinha encontrado na Internet alguma informação sobre

o pH dos corpos. Para além disso, eu parecia sabê-lo

intuitivamente.

- Está a dizer-me que aquilo que comemos prepara-nos

directamente para a doença? - perguntei.

- Sim, os alimentos errados podem baixar o nosso nível

vibracional, até um ponto em que as forças da natureza começam

a devolver os nossos corpos à Terra.

- E as doenças que não são causadas por micróbios?

- Todas as doenças surgem através da acção dos micróbios. As

vossas próprias pesquisas no Ocidente estão a mostrar isso.

Vários micróbios foram associados às lesões arteriais das

doenças cardíacas, bem como à produção de tumores

cancerígenos. Mas lembre-se, os micróbios estão apenas a fazer

o seu papel. As dietas que criam um ambiente ácido são a

verdadeira causa.

Fez uma pausa e depois disse:

- Compreenda isto bem. Nós, humanos, ou estamos num estado

alcalino de grande energia ou num estado ácido, que diz aos

micróbios dentro de nós, ou que passam por perto, que estamos

prontos para sermos decompostos.

75

A doença é, literalmente, um apodrecimento de uma parte dos

nossos corpos, porque os micróbios à nossa volta receberam o

 

 

sinal de que já estamos mortos.

Olhou novamente para mim de forma maliciosa.

- Desculpe ser tão directo - disse ele. - Mas não temos

muito tempo. A comida que consumimos determina quase por

completo qual daquelas duas condições é a nossa. Geralmente,

os alimentos que deixam resíduos ácidos no nosso corpo são

mais pesados, muito cozinhados, muito tratados e doces, tais

como carnes, farinhas, álcool, café e frutas mais doces. Os

alimentos alcalinos são mais verdes, mais frescos e mais

vivos, tais como os vegetais frescos e os seus sucos, saladas,

rebentos e frutos como o abacate, o tomate, a toranja e os

limões. Não podia ser mais simples. Somos criaturas

espirituais num mundo enérgico e espiritual. Vocês, os

ocidentais, podem ter crescido a pensar que a carne cozinhada

e os alimentos tratados são bons para nós. Mas nós sabemos

agora que eles criam um ambiente de lenta desincorporação que,

com o tempo, nos cobra a sua factura.

- Todas as doenças debilitantes que atormentam a humanidade:

arterosclorose, enfarte, artrite, sida e, especialmente, o

cancro existem porque nós poluímos os nossos corpos, dando

sinal aos micróbios dentro de nós de que estamos prontos para

decair, perder energia e morrer. Sempre quisemos saber porque

algumas pessoas, expostas aos mesmos micróbios, não apanhavam

uma dada doença. A diferença está no ambiente dentro do corpo.

A boa notícia é que, mesmo que tenhamos demasiada acidez no

nosso corpo e comecemos a decompormo-nos, a situação pode ser

invertida se melhorarmos a nossa nutrição e mudarmos para um

estado alcalino, de maior energia.

Ele estava agora a agitar os dois braços, de olhos muito

abertos, ainda a brilharem.

- No que diz respeito aos princípios de um corpo vibrante e

cheio de energia, vivemos na idade das trevas. É suposto os

seres humanos viverem mais de cento e cinquenta anos. Mas

comemos de uma forma que imediatamente começa a destruir-nos.

Por todo o lado, vemos pessoas a desincorporarem-se perante os

nossos olhos. Mas não tinha de ser assim.

Fez uma pausa e respirou fundo. - Não é assim em Shambhala.

Depois de mais um momento, Hanh começou a caminhar em redor,

inspeccionando-me mais uma vez.

- Portanto, aí tem - concluiu. - As lendas dizem que os

humanos aprenderão primeiro a verdadeira natureza dos

alimentos e que tipos consumir. Depois, segundo as lendas,

podemos abrirmo-nos completamente às fontes interiores de

energia que aumentam ainda mais a nossa vibração.

Afastou a cadeira da mesa e olhou para mim.

- Está a reagir muito bem à altitude do Tibete, mas eu

gostaria que fosse descansar.

- Isso seria bom - disse eu. - Estou estafado.

- Sim - concordou Yin -, tivemos um longo dia.

- Certifique-se de que aguarda um sonho - acrescentou Hanh,

conduzindo-me a um quarto.

- Aguardo um sonho?

Hanh voltou-se. - Sim, você é mais poderoso do que pensa.

Eu ri.

Acordei subitamente e olhei pela janela. O sol ia já alto no

céu. Nenhum sonho. Calcei-me e passei ao outro quarto.

Hanh e Yin estavam sentados a uma mesa, a conversar.

- Como dormiu? - perguntou Hanh.

- Bem - disse eu, caindo sobre uma das cadeiras. - Mas não

 

 

me recordo de ter sonhado.

- Isso é porque não tem energia suficiente - disse ele, meio

distraído. Estava a olhar intensamente para o meu corpo, mais

uma vez. Apercebi-me que ele estava concentrado na maneira

como eu me sentava.

- O que está a ver? - perguntei.

- É assim que acorda pela manhã? - inquiriu Hanh.

Endireitei-me.

- Qual é o problema?

- Depois de dormir, temos de despertar o nosso corpo e

começar a aceitar a energia antes de fazermos qualquer outra

coisa.

76 - 77

Estava de pé, com as pernas muito afastadas e as mãos nas

ancas. Enquanto eu o observava, deslizou os pés até os juntar

e ergueu os braços. O corpo ergueu-se num movimento único, até

ele ficar nas pontas dos pés, com as palmas das mãos

encostadas por cima da cabeça.

Pisquei os olhos. Havia qualquer coisa invulgar nos

movimentos do seu corpo, mas eu não conseguia descortiná-la

com rigor. Ele parecia flutuar para cima, mais do que usar os

músculos. Quando me consegui concentrar novamente, ele

irradiava um sorriso rasgado. Igualmente depressa, o seu corpo

desenhou um caminhar gracioso na minha direcção. Pisquei mais

uma vez os olhos.

- A maior parte das pessoas acorda devagar - disse Hanh -,

arrastam-se por ali e põem-se em movimento com uma chávena de

café ou chá. Vão para um emprego onde continuam a arrastar-se

ou onde usam apenas um dado conjunto de músculos. Formam-se

padrões e, como eu já disse, desenvolvem-se barreiras no fluxo

de energia através do corpo.

-Temos de garantir que o nosso corpo está aberto em todos os

lugares, para receber toda a energia disponível. Fazemos isso

movendo todos os músculos, cada manhã, a partir do centro.

Apontou para uma zona imediatamente abaixo do umbigo.

- Se nos concentrarmos em movermo-nos a partir desta área,

então os músculos estarão disponíveis para funcionarem ao mais

alto nível de coordenação. Este é o princípio central de todas

as artes marciais e disciplinas da dança. Podemos inventar os

nossos próprios movimentos.

Com este comentário, lançou-se numa variedade de movimentos

que eu nunca vira antes. Pareciam ser uma espécie de

deslocações no peso, juntamente com as piruetas que se vêem no

tai chi. Mas estava claramente a executar uma expansão destes

movimentos clássicos.

- O seu corpo - acrescentou - saberá como mover-se de forma

a derrubar as suas barreiras individuais.

Ficou de pé sobre uma perna, inclinou-se para a frente e

balançou os braços como se estivesse a lançar uma bola baixa

no basebol, só que a mão quase tocava no chão ao executar o

movimento. Depois girou sobre a outra perna. Não vi o seu peso

a deslocar-se e, mais uma vez, ele pareceu flutuar.

Abanei a cabeça e tentei ver melhor, mas ele tinha ficado

quieto, como se um fotógrafo tivesse congelado os seus

movimentos numa imagem, algo que parecia impossível.

Subitamente, recomeçou a avançar para mim.

- Como é que faz isso? - perguntei.

Ele disse:

 

 

- Começo devagar e lembro a mim mesmo o princípio básico. Se

nos movermos a partir do centro e deixarmos a energia fluir

para dentro de nós, conseguiremos mover-nos de forma cada vez

mais ligeira. É claro que, para aperfeiçoar isto, temos de ser

capazes de nos abrirmos a toda a energia divina disponível

dentro de nós.

Parou e olhou para mim.

- Lembra-se bem da sua abertura mística?

Pensei novamente no Peru e na minha experiência no alto da

montanha.

- Bastante bem, penso eu.

- Isso é bom - disse ele. - Vamos lá para fora.

Yin sorriu quando nos erguemos e seguimos Hanh, através de

um pequeno jardim, subindo alguns degraus que conduziam a uma

área de relva rala castanha e grandes rochedos irregulares. Ao

longo das pedras havia bonitos veios de vermelho e castanho.

Durante dez minutos Hanh ensinou-me alguns dos movimentos que

eu vira antes e depois ofereceu-me um lugar no chão,

sentando-se à minha direita. Yin sentou-se atrás de nós. O sol

da manhã banhava as montanhas à distância com uma luz amarela

quente. Fiquei surpreendido com a sua beleza.

- Dizem as lendas - começou Hanh -, que a abertura a um

estado superior de energia é uma capacidade que todos os

humanos hão-de conquistar. Tudo começará com o conhecimento

genérico de que essa consciência é possível. Depois passaremos

à compreensão de todos os factores envolvidos no

desenvolvimento e manutenção de níveis superiores de energia.

Fez uma pausa e olhou para mim.

- Você já conhece os procedimentos básicos, mas deve

expandir os seus sentidos. As lendas dizem que primeiro nos

acalmamos e olhamos para aquilo que nos rodeia. São apenas

coisas que ficam para trás quando a nossa mente está

preocupada em fazer algo.

78 - 79

Mas devemos lembrarmo-nos que tudo no universo está vivo,

cheio de energia espiritual, e faz parte de Deus. Devemos

pedir intencionalmente para nos ligarmos ao que existe de

divino dentro de nós.

Como sabe, podemos avaliar se estamos a ligarmo-nos a esta

energia através da nossa noção de beleza. Coloque sempre a si

mesmo esta pergunta: tudo me parece belo? Não importa como Lhe

parece de início, podemos ver sempre mais beleza se tentarmos.

O grau de beleza que conseguimos ver mede a quantidade de

energia divina que recebemos em nós.

Hanh fez-me passar algum tempo a olhar, a olhar a sério,

para tudo o que me rodeava.

- Assim que começamos a estabelecer a ligação - disse ele -

e sentimos a energia divina dentro de nós, tudo começa a ter

mais presença na nossa percepção. As coisas destacam-se e nós

apercebemo-nos das suas formas e cores únicas. Quando surge

esta percepção, conseguimos inalar ainda mais energia.

- Está a ver que, na realidade, a energia não advém tanto

das coisas em redor, embora possamos absorver energia

directamente de algumas plantas e locais sagrados. A energia

sagrada advém da nossa ligação com o divino dentro de nós.

Tudo à nossa volta, natural ou feito pelo homem - flores,

rochas, relva, montanhas, arte - tem já uma beleza e presença

majestosas, para lá de qualquer coisa que os humanos possam

 

 

sentir. Tudo o que fazemos, quando nos abrimos ao divino, é

aumentar a vibração da nossa energia e também a nossa

capacidade perceptiva, para que possamos ver o mundo como ele

já é. Compreende? Os seres humanos já vivem num mundo de

imensa beleza, cor e forma. O Paraíso é aqui. Só que ainda não

nos abrimos o suficiente à energia interior para o

conseguirmos ver.

Escutei-o fascinado. Isto estava mais claro agora do que

alguma vez estivera.

- Concentre-se na beleza - explicou Hanh - e comece a inalar

a beleza dentro de si.

Respirei fundo.

- Agora procure beleza cada vez maior, enquanto respira -

indicou-me Hanh.

80

Olhei novamente para as rochas e montanhas e vi, com alguma

surpresa, que o monte mais alto à distância era o monte

Evereste. Por alguma razão, não tinha reconhecido a sua forma

antes.

- Sim, sim, olhe para o Evereste. - disse Hanh.

Enquanto olhava para a montanha, notei que as suas encostas

raiadas de neve pareciam formar pequenos degraus em direcção

ao pico em forma de coroa. A vista expandiu bruscamente a

minha percepção e a montanha mais alta do mundo pareceu

instantaneamente mais próxima, de alguma forma, parte de mim,

como se eu pudesse estender a mão e tocá-la.

- Continue a respirar - disse Hanh. - A sua vibração e

capacidade de percepção aumentarão ainda mais. Tudo ficará

brilhante, como se fosse iluminado a partir do seu interior.

Respirei fundo mais uma vez, comecei a sentir-me mais leve e

endireitei as costas sem qualquer esforço. Incrivelmente,

sentia-me exactamente como durante a minha experiência na

montanha do Peru.

Hanh estava a acenar com a cabeça.

- A sua capacidade para sentir a beleza é o sinal essencial

de que a energia divina está a entrar em si. Mas existem ainda

outros sinais.

Sentir-se-á mais leve - prosseguiu Hanh. - A energia subirá

dentro de si e erguê-lo-á, tal como disse, como se um fio o

puxasse para o alto a partir do cimo da sua cabeça. E sentirá

uma maior sabedoria acerca de quem é e do que faz. Receberá

intuições e sonhos acerca do que fazer a seguir no caminho da

sua vida.

Parou e olhou para o meu corpo. Estava agora sentado

direito, sem esforço.

- Agora chegamos à parte mais importante - disse ele. - Tem

de aprender a manter esta energia, a fazê-la fluir através de

si. Aqui tem de usar o poder das suas expectativas, o poder da

sua energia de oração.

Aqui estava novamente aquela palavra: expectativa. Nunca a

tinha ouvido usar neste contexto, antes.

- Como faço isso? - perguntei, sentindo-me confuso, o meu

corpo a perder energia, as cores e formas em redor a

desvanecerem-se.

Os olhos de Hanh abriram-se mais e ele começou a rir. Tentou

parar várias vezes, mas finalmente rolou no chão, numa

gargalhada incontrolável. Recompôs-se várias vezes, mas

começava novamente a rir sempre que olhava para mim.

 

 

81

Cheguei mesmo a ouvir uma risada do Yin, atrás de mim.

Finalmente Hanh conseguiu respirar fundo algumas vezes e

acalmar-se.

- Lamento imenso - disse ele. - Mas a sua expressão estava

tão engraçada. Na verdade não acredita que tem qualquer poder,

pois não?

- Não é isso? - protestei. - Só que não percebo o que quer

dizer com expectativa.

Hanh continuava a sorrir. - Mas pensa que transporta consigo

algumas expectativas acerca da vida, não é? Espera que o sol

nasça. Espera que o seu sangue circule.

- É claro.

- Bem, tudo o que eu peço é que tente ganhar consciência

dessas expectativas. É a única maneira de manter e alargar o

nível de energia superior que acaba de experimentar. Tem de

aprender a esperar esse nível de energia na sua vida e tem de

fazê-lo de forma muito deliberada e consciente. É a única

maneira de completar a primeira extensão da oração. Gostaria

de tentar novamente?

Devolvi-lhe o sorriso e passámos vários minutos a respirar e

a aumentar a energia. Quando já estava a ver o nível superior

de beleza que tinha sentido antes, fiz-lhe um aceno.

- Agora - disse ele -, tem de esperar que essa energia que

agora o está a encher continue a enchê-lo e a fluir a partir

de si, em todas as direcções. Visualize isso a acontecer.

Tentei suster o meu nível de energia quando perguntei:

- Este fluxo para o exterior... como sei que está mesmo a

acontecer?

- Será capaz de senti-lo. Por agora limite-se a

visualizá-lo.

Respirei fundo mais uma vez e visualizei a energia, a entrar

em mim e a fluir em todas as direcções, para o mundo.

- Continuo sem saber se isso está mesmo a acontecer - disse

eu.

Hanh olhou directamente para mim, parecendo ligeiramente

impaciente.

- Sabe que a energia está a fluir a partir de si porque a

energia se mantém estável, as cores e formas continuam belas e

você sente-a a enchê-lo e a transbordar para fora.

- Qual é a sensação? - perguntei.

Ele olhou para mim com incredulidade.

- Você sabe a resposta para isso.

Olhei novamente para as montanhas, visualizando a energia a

fluir para fora de mim, na direcção delas. Continuavam belas

e começaram a ser também imensamente atraentes. Depois uma

onda de profunda emoção encheu-me e recordou-me o que eu

sentira no Peru.

Hanh estava a acenar com a cabeça.

- É claro! - exclamei -, A medida da energia que flui para o

exterior é a sensação de amor.

O sorriso de Hanh alargou-se.

- Sim, é um amor que se torna uma emoção de fundo, que fica

consigo enquanto a sua energia de oração continuar a fluir

para o mundo. Tem de manter-se num estado de amor.

- Isso parece terrivelmente idealista para o ser humano

vulgar - disse eu.

Hanh riu.

 

 

- Não lhe estou a dizer como ser um ser humano vulgar. Estou

a dizer-lhe como estar na vanguarda da evolução. Estou a

dizer-lhe como ser um herói. Basta lembrar-se que tem de ter a

expectativa da energia divina a entrar em si a um nível mais

elevado e a fluir a partir de si como uma chávena a

transbordar. Quando estiver desligado, recorde esta sensação

de amor. Tente recuperar conscientemente esse estado.

Os olhos dele cintilaram novamente.

- A sua expectativa é a chave para a manutenção desta

experiência.

Tem de visualizar isso a acontecer, acreditar que estará

consigo em todas as situações. Esta expectativa deve ser

cultivada e conscientemente afirmada todos os dias.

Concordei com um aceno.

- Agora - disse ele - compreende todos os procedimentos de

que lhe falei?

Antes que eu pudesse responder, ele declarou:

- A chave é a forma como acorda pela manhã. Foi por isso que

Lhe pedi para dormir, para poder ver como acorda. Tem de

fazê-lo com disciplina. Desperte o seu corpo para o influxo de

energia, da forma que eu lhe mostrei.

82 - 83

Mova-se a partir do centro, sinta imediatamente a energia.

Espere-a imediatamente.

- Coma apenas alimentos ainda vivos e, após algum tempo,

será mais fácil absorver a energia interior divina para o seu

ser. Encha-se de energia todos os dias e acorde com movimento.

Lembre-se dos sinais. Visualize esta energia a entrar em si e

sinta-a a fluir para o mundo. Faça isto e terá completado a

Primeira Extensão. Será capaz de sentir a energia, não apenas

ocasionalmente, mas também de acarinhá-la e de a manter num

nível elevado.

Fez uma profunda vénia e, sem dizer mais, voltou para casa.

Yin e eu seguimo-lo. Quando chegámos, Hanh começou a

seleccionar comida e a colocá-la num grande cesto.

- E o portão? - perguntei a Hanh.

Ele parou e olhou para mim.

- Existem muitos portões.

- Quero dizer, sabe onde podemos encontrar o portão para

Shambhala?

Ele olhou para mim com ar severo.

- Apenas completou uma extensão da sua energia de oração.

Agora tem de aprender o que fazer com essa energia que flui a

partir de si. E é muito teimoso, continua a sentir medo e

raiva. Tem de ultrapassar essas tendências antes de poder

sequer chegar perto de Shambhala.

Com essa declaração, Hanh acenou para Yin e entregou-lhe o

cesto, entrando de seguida no outro quarto.

84

4.

ALERTA CONSCIENTE

 

 

Avancei até ao jipe, sentindo-me incrivelmente bem. O ar

estava fresco e as montanhas em todas as direcções ainda me

pareciam luminosas. Entrámos no veículo e Yin arrancou.

- Sabes para onde ir agora? - perguntei.

- Sei que temos de seguir para o noroeste do Tibete. Segundo

as lendas, esse é o portão mais próximo de nós. Mas, tal como

o Lama Rigden disse, teremos de esperar que nos seja mostrado.

Yin fez uma pausa e olhou para mim.

- Está na altura de lhe falar do meu sonho.

- O sonho que o Lama Rigden mencionou? - perguntei. - Aquele

que tiveste comigo?

- Sim, neste sonho estamos juntos, a viajar através do

Tibete, procurando o portão. E não o conseguíamos encontrar.

Viajámos até muito longe e em círculos, perdidos. Mas no nosso

momento de maior desespero, encontrámos alguém que sabia para

onde ir.

- O que aconteceu depois disso?

- O sonho terminou.

- Quem era essa pessoa? Era o Wil?

- Não, não me parece.

- O que achas que o sonho significa?

- Significa que temos de estar bem alerta.

Seguimos em silêncio durante alguns momentos e depois eu

perguntei:

- Há muitos soldados estacionados no noroeste do Tibete?

85

- Geralmente não - respondeu ele. - Excepto na fronteira ou

nas bases militares. O problema é passar os próximos

quinhentos ou seiscentos quilómetros, para lá do monte Kailash

e do lago Manasarovar. Existem várias barreiras militares.

Durante quatro horas rolámos sem incidentes, viajando

durante algum tempo em estradas de terra batida, depois

virando temporariamente para alguns carreiros poeirentos.

Chegámos a Saga sem dificuldades e apanhámos o que Yin me

disse ser a rota sul de acesso ao Tibete ocidental.

Encontrámos principalmente grandes camiões de transporte ou

tibetanos locais em carros velhos ou carroças. Alguns

estrangeiros à boleia viam-se em redor das paragens dos

camionistas.

Uma hora mais tarde Yin afastou o jipe da estrada principal,

para um simples carreiro de cabras. O jipe saltitou por cima

de buracos profundos.

- Há geralmente um posto de controlo chinês mais à frente,

na estrada principal - disse Yin. - Temos de contorná-lo.

Subimos uma encosta íngreme e, quando chegámos ao cimo, Yin

parou o jipe e conduziu-me à beira de um penhasco. Abaixo de

nós, a várias centenas de metros, víamos dois grandes camiões

militares com as insígnias chinesas. Aproximadamente uma dúzia

de soldados estavam de pé na berma da estrada.

- Isto não é bom - disse Yin. - Geralmente há apenas alguns

soldados neste cruzamento. Eles podem andar ainda à nossa

procura.

Tentei afugentar a ansiedade e manter a minha energia

elevada. Pareceu-me ter visto vários soldados a olharem para o

cimo da colina, na nossa direcção, e por isso agachei-me.

- Passa-se qualquer coisa. - sussurrou Yin.

Quando voltei a olhar para o cruzamento, os soldados estavam

a revistar uma carrinha que tinha parado no posto de controlo.

 

 

Um homem louro de meia-idade estava a ser interrogado no meio

da estrada. Uma outra pessoa estava ainda na carrinha.

Conseguimos ouvir vagamente uma língua europeia, muito

semelhante a holandês.

- Porque é que eles estão a ser detidos? - perguntei a Yin.

- Não sei - disse ele. - Podem não ter as autorizações

certas, ou talvez tenham feito as perguntas erradas.

Hesitei, desejando poder ajudar.

- Por favor - disse Yin. - Temos de ir.

Entrámos no jipe, Yin contornou devagar o resto da colina e

descemos a encosta no outro lado. Ao fundo apanhámos outra

estrada estreita que virava para a direita, para longe do

cruzamento, ainda a avançar para noroeste. Seguimos por esta

estrada durante mais oito quilómetros, até que ela se fundiu

com a estrada principal para Zhongba, uma pequena vila com

vários hotéis e algumas lojas. Várias pessoas seguiam a pé,

conduzindo iaques e outras cabeças de gado, e passaram por nós

vários outros jipes.

- Agora somos apenas mais dois peregrinos a caminho do monte

Kailash - disse Yin. - Seremos mais discretos.

Eu não estava convencido. E, na verdade, meio quilómetro

mais à frente, um camião militar chinês entrou na estrada

directamente atrás de nós e mais uma onda de medo

percorreu-me. Yin virou para uma ruela perpendicular e o

camião seguiu em frente, desaparecendo de vista.

- Tem de manter-se forte - declarou Yin. - Está na altura de

aprender a Segunda Extensão.

Guiou-me pela Primeira Extensão até eu conseguir visualizar

e sentir a minha energia a fluir à nossa frente e para longe.

- Agora que tem a sua energia em movimento, tem que preparar

esse campo de energia para fazer um certo efeito.

O comentário dele fascinou-me.

- Preparar o meu campo?

- Sim. Podemos dirigir o nosso campo de oração para o mundo

de várias formas. Fazêmo-lo, usando as nossas expectativas. Já

fez isso uma vez, lembra-se? Hanh ensinou-lhe a esperar que

essa energia continuasse a fluir através de si. Agora tem de

preparar o seu campo com outras expectativas e fazê-lo com

verdadeira disciplina.

De outro modo, a sua energia pode rapidamente perder-se no

medo e na raiva.

Olhou para mim com uma expressão triste que eu nunca vira

antes.

- O que se passa? - perguntei.

- Quando eu era mais novo, vi um soldado chinês a matar o

meu pai. Odeio-os e receio-os intensamente.

86 - 87

E tenho de confessar uma coisa: eu próprio sou em parte

chinês. Esta é a pior parte. É esta memória e culpa que

desgasta a minha energia, pelo que eu tendo a esperar o pior.

Vai aprender que, nestes níveis superiores de energia, os

nossos campos de oração agem muito depressa, trazendo-nos

exactamente o que nós esperamos. Se temos medo, eles

trazem-nos aquilo que receamos. Se odiamos, eles trazem-nos

aquilo que nós odiamos.

Felizmente, quando entramos nestas expectativas negativas os

nossos campos de oração decaem bastante depressa, porque

perdemos a ligação com o divino e já não irradiamos amor. Mas

 

 

uma expectativa de medo ainda pode ser poderosa. É por isso

que deve vigiar cuidadosamente as suas expectativas e preparar

o seu campo de forma consciente.

Ele sorriu e acrescentou:

- Você tem uma vantagem, porque não odeia o exército chinês,

como eu. Mas ainda tem muito medo e parece ser capaz de grande

raiva... tal como eu. Talvez seja por isso que estamos juntos.

Estava a olhar para a estrada em frente enquanto

avançávamos, pensando naquilo que Yin estava a dizer, sem

acreditar que os nossos pensamentos pudessem ter um tal poder.

A minha divagação foi interrompida quando Yin abrandou e

estacionou o jipe em frente de uma linha de edifícios

quadrados poeirentos.

- Porque estamos a parar? - perguntei - Não iremos atrair

mais atenção sobre nós assim?

- Sim - respondeu ele. - Mas temos de arriscar. Os soldados

têm espiões em toda a parte, mas não temos outra alternativa.

Não é seguro entrar nas zonas ocidentais do Tibete com apenas

um veículo. Não há nenhum sítio para fazer reparações. Temos

de encontrar alguém para ir connosco.

- E se eles nos denunciarem?

Yin olhou para mim horrorizado.

- Isso não acontecerá se arranjarmos as pessoas certas.

Vigie os seus pensamentos. Eu disse-lhe que temos de preparar

o campo certo à nossa volta. É importante.

Começou a sair do carro, mas hesitou. - Tem de portar-se

melhor do que eu nesta questão, ou não teremos hipótese.

Concentre-se em preparar o seu campo para rten brel.

Fiquei silencioso por um momento. - Rten brel? O que é isso?

- É a palavra tibetana para sincronicidade. Tem de preparar

o seu campo para se manter no processo de sincronicidade, para

provocar as intuições, as coincidências, para nos ajudar.

Yin olhou para o edifício e saiu do jipe, indicando com a

mão que queria que eu ficasse. Esperei durante quase uma

hora, observando os tibetanos a passarem. Ocasionalmente via

alguém que parecia indiano ou europeu. Uma vez pareceu-me

mesmo ter avistado o holandês que tínhamos visto no posto de

controlo a passar por uma rua distante. Tentei ver melhor, mas

não consegui ter a certeza.

Onde estava Yin? perguntei a mim mesmo. A última coisa de

que precisava era separar-me novamente dele. Imaginei-me a

conduzir sozinho através desta vila, perdido, sem saber para

onde ir. O que poderia eu fazer?

Finalmente vi Yin a sair do edifício. Hesitou durante um

momento, olhando cautelosamente para os dois lados antes de

avançar até ao jipe.

- Encontrei duas pessoas que eu conheço - declarou ele, ao

sentar-se atrás do volante. - Penso que servirão.

Estava a tentar ser convincente, mas o tom da sua voz traía

as suas dúvidas.

Ligou o carro e arrancou. Cinco minutos depois passámos por

um pequeno restaurante completamente feito de chapas de metal

enrugadas. Yin estacionou o jipe a trezentos metros do

restaurante, escondendo-o atrás de alguns tanques de

armazenamento de combustível. Agora estávamos nos limites da

vila e não havia quase ninguém na rua. Dentro do edifício,

encontrámos uma sala com seis mesas vacilantes. Um bar

estreito pintado de branco separava-nos da cozinha, onde

trabalhavam várias mulheres. Uma delas viu-nos a sentar e veio

ao nosso encontro.

Yin falou brevemente com ela em tibetano e eu reconheci a

 

 

palavra sopa. A mulher acenou e olhou para mim.

- O mesmo - disse eu a Yin, tirando o casaco e dobrando-o

sobre as costas da cadeira. - E água.

88 - 89

Yin traduziu, a mulher sorriu e afastou-se.

Yin ficou sério.

- Compreende aquilo que eu disse há pouco? Agora tem de

preparar um campo que lhe traga mais sincronicidade.

Eu acenei em concordância.

- Como preparo esse campo?

- A primeira coisa que tem de fazer é certificar-se que

aumenta a Primeira Extensão. Certifique-se que a energia flui

para dentro de si e de si para o mundo. Sinta os sinais.

Prepare as suas expectativas para que esta energia seja

constante. Agora tem de esperar que o seu campo de oração aja

e lhe traga os pensamentos e acontecimentos necessários para o

desenrolar do seu melhor destino. Para preparar esse campo à

sua volta, tem de manter-se num estado de alerta consciente.

- Alerta em relação ao quê?

- À sincronicidade. Tem de manter-se num estado em que

esteja constantemente à procura da próxima informação

misteriosa que o ajude a avançar para o seu destino. Alguma

sincronicidade irá ter consigo de qualquer maneira, mas pode

aumentar a sua frequência se preparar um campo constante,

mantendo-se nessa expectativa.

Levei a mão ao bolso de trás das calças para tirar o meu

bloco de apontamentos. Embora ainda não o tivesse usado, tive

a intuição de anotar o que Yin estava a dizer. Depois

lembrei-me que tinha deixado o bloco no jipe.

- Está trancado - disse ele, entregando-me as chaves com um

aceno da cabeça. - Não se vá embora.

Segui directamente para o jipe, encontrei o bloco de

apontamentos e estava prestes a regressar quando fui

surpreendido pelo som de veículos a pararem junto ao

restaurante. Recuei para trás dos tanques e observei a cena.

Em frente do restaurante estavam dois camiões cinzentos de

fabrico chinês. Cinco ou seis homens à civil saíram dos

camiões e entraram no restaurante. De onde eu estava,

conseguia ver o interior pelas janelas. Os homens alinharam

toda a gente contra as paredes e começaram a revistá-los.

Tentei localizar Yin, mas não o via em lado nenhum. Teria

escapado?

Um novo jipe parou cá fora e um oficial chinês alto e

esguio, com uma farda militar, saiu e avançou para a porta.

Era claramente o comandante da operação. Junto da porta olhou

para dentro, depois parou e voltou-se, olhando para os dois

lados da rua, como se tivesse pressentido qualquer coisa.

Virou-se na minha direcção e eu agachei-me novamente atrás dos

bidões, com o coração aos pulos.

Após um momento arrisquei espreitar na direcção do

restaurante. Os chineses estavam a fazer sair toda a gente e

a carregá-la nos camiões. Yin não estava entre eles. Um dos

carros afastou-se e o oficial no comando falou com os homens

restantes. Parecia estar a mandá-los revistar a rua.

Escondi-me atrás dos tanques e respirei bem fundo. Sabia

que, se ficasse aqui, seria apenas uma questão de tempo até me

encontrarem. Procurando opções, apercebi-me de um beco

estreito e sujo que se estendia dos tanques até à rua

 

 

seguinte. Saltei para o jipe, pu-lo em ponto morto e usei a

pequena inclinação da rua para rolar pelo beco, virando à

direita na esquina seguinte. Liguei o motor mas não fazia

ideia para onde ia. Tudo o que eu queria fazer era ganhar

alguma distância dos soldados.

Após alguns quarteirões, virei à esquerda para uma ruela

estreita que me pareceu uma zona com poucos edifícios. Mais

cem metros e fiquei completamente fora da vila. Um quilómetro

e meio depois saí da estrada e parei atrás de um grupo de

grandes montículos rochosos, cada um deles do tamanho de uma

casa.

E agora?, pensei. Estava completamente perdido,

absolutamente sem qualquer ideia do caminho a seguir. Um

clarão de raiva e frustração percorreu-me. Yin devia ter-me

preparado para esta possibilidade. Provavelmente algum

conhecido dele na vila podia ajudar-me, mas eu não tinha

qualquer possibilidade de o encontrar agora.

Um bando de corvos aterrou no montículo à minha direita,

depois voou em círculos por cima do jipe, grasnando

ruidosamente. Olhei pelas janelas em ambas as direcções, certo

de que alguém estaria a perturbar os pássaros, mas não vi

ninguém. Após alguns minutos a maior parte dos corvos voou

para oeste, ainda a grasnar. Mas um deles ficou no cimo do

montículo, olhando silenciosamente na minha direcção. Isso é

bom, pensei. Pode ser uma sentinela. Eu podia ficar quieto até

decidir o que fazer.

90 - 91

Na parte de trás do jipe encontrei alguns frutos secos e

nozes juntamente com algumas bolachas. Comi-as distraidamente,

de vez em quando bebendo nervosamente do cantil com água.

Sabia que tInha de arranjar um plano. Ocorreu-me seguir

estrada fora para oeste, mas decidi não o fazer. Um grande

medo estava agora a engolir-me e eu apenas queria o mesmo de

sempre: esquecer esta viagem, regressar a Lhasa e depois ao

aeroporto. Sabia que conseguiria recordar algumas das

viragens, mas outras teria de adivinhar. Não conseguia

acreditar que não tinha tentado falar com alguém no mosteiro

do Lama Rigden ou em casa de Hanh, para preparar um plano de

fuga.

Enquanto pensava no que fazer, senti o coração a parar.

Ouvia os primeiros murmúrios de um veículo a descer a estrada

na minha direcção. Pensei em ligar o jipe e afastar-me, mas vi

que o veículo estava a aproximar-se demasiado depressa. Em vez

disso, agarrei no cantil e num saco com comida, corri para

trás do montículo mais afastado e escondi-me num lugar fora de

vista, mas de onde ainda conseguia ver o que se estava a

passar.

O veículo abrandou. Enquanto ele passava junto a mim,

apercebi-me que era a carrinha que tinha visto antes, no

bloqueio de estrada. O condutor era o homem louro que os

soldados chineses estavam a interrogar e no lugar do

passageiro estava uma mulher.

Enquanto os observava, a carrinha parou completamente e eles

começaram a falar. Pensei em ir falar com eles, mas senti

imediatamente uma vaga de medo. E se os soldados os tivessem

alertado a nosso respeito, insistindo para que os notificassem

se fôssemos vistos? Seriam eles capazes de me denunciar?

 

 

A mulher abriu ligeiramente a porta, como se fosse sair,

ainda a falar com o homem. Teriam visto o jipe? A minha mente

corria desenfreada. Decidi que, se ela saísse e viesse nesta

direcção, eu começaria a correr. Assim, apenas encontrariam o

jipe e eu conseguiria ganhar alguma distância deste lugar,

antes que os militares viessem.

Com essa ideia em mente, voltei a olhar para a carrinha. Os

dois estavam a olhar fixamente para os montículos, com uma

expressão de preocupação no rosto. Olharam um para o outro

mais uma vez, depois a mulher bateu com a porta e afastaram-se

para oeste. Observei a carrinha a ultrapassar a pequena

elevação à minha esquerda e desaparecer.

92

Algures dentro de mim senti-me desiludido. Talvez eles

tivessem podido ajudar-me, pensei. Considerei a hipótese de

correr para o jipe e tentar apanhá-los, mas afastei essa

ideia. Seria melhor não tentar o destino, concluí. Era mais

prudente voltar ao meu plano original e tentar regressar a

Lhasa e a casa.

Cerca de meia hora mais tarde regressei ao jipe e liguei o

motor. O corvo à minha esquerda grasnou e voou estrada fora,

na direcção que a carrinha holandesa tinha seguido. Virei na

direcção contrária e conduzi de regresso a Zhongba, seguindo

uma série de estradas secundárias, esperando evitar as ruas

principais e o restaurante. Cobri mais alguns quilómetros até

chegar ao cimo de uma colina. Abrandei ao ultrapassar o cimo

da elevação para poder inspeccionar a longa estrada à

distância.

Quando estava em posição de ver, fiquei chocado. Não só

havia um novo bloqueio de estrada a menos de um quilómetro, ao

fundo da montanha, com dúzias de soldados, como ainda

conseguia contar quatro grandes camiões e dois jipes cheios de

tropas a seguirem na minha direcção, aproximando-se

rapidamente.

Virei rapidamente o jipe e acelerei na direcção de onde

tinha vindo, esperando não ser visto. Sabia que teria muita

sorte se conseguisse escapar-lhes. Calculei que teria de

viajar mais para oeste, o mais depressa possível, depois virar

para sul e para leste. Talvez houvesse suficientes estradas

secundárias para eu conseguir regressar a Lhasa por aí.

Acelerei pela rua principal e virei para uma série de ruas

laterais, seguindo mais uma vez para sul. Ao fazer uma curva

apercebi-me que seguia na direcção errada. Tinha

inadvertidamente regressado à rua principal. Antes de

conseguir parar, estava a menos de cem metros de outro posto

de controlo chinês. Havia soldados por todo o lado. Parei na

berma da estrada, travei o jipe e depois encolhi-me no

assento.

E agora? pensei. Prisão? O que me fariam? Iriam

considerar-me um espião?

Após alguns momentos apercebi-me que os chineses pareciam

ignorar a minha presença, muito embora eu estivesse

estacionado à vista de todos.

93

Carros velhos e carroças, e até mesmo peões e bicicletas

 

 

passavam por mim, os soldados paravam-nos a todos e pediam a

identificação, verificando os documentos e, por vezes,

revistando-os. Mas não me prestaram nenhuma atenção.

Olhei para a direita e vi que estava estacionado junto à

estradinha que conduzia até uma pequena casa de pedra, várias

centenas de metros mais à frente. À esquerda da casa havia um

pequeno relvado por aparar e, para lá da relva, via-se outra

estrada.

Nesse exacto momento um grande camião passou por mim e parou

directamente à minha frente, bloqueando a vista para o posto

de controlo. Momentos depois um Toyota Land Cruiser azul,

conduzido por outro homem louro, surgiu e ultrapassou o

camião. A seguir ouvi vozes a falarem alto e gritos em chinês.

O veículo parecia estar a recuar, como se quisesse inverter a

marcha, mas os soldados rodearam-no. Embora a minha linha de

visão estivesse bloqueada, conseguia ouvir gritos furiosos em

chinês, misturados com pedidos assustados em inglês com

sotaque holandês.

- Não, por favor - disse a voz. - Desculpem. Sou um turista.

Vejam, tenho uma licença especial para conduzir na estrada.

Outro carro parou. O meu coração deu um salto dentro do

peito. Era o mesmo oficial chinês que eu tinha visto antes, no

restaurante. Encolhi-me ainda mais no meu banco, tentando

esconder-me enquanto ele passava por mim.

- Dê-me os seus papéis! - ordenou ele ao holandês, num

inglês perfeito.

Enquanto escutava, notei qualquer coisa a mover-se à minha

direita e olhei pela janela do passageiro para ver o que era.

O caminho em direcção à casa parecia revestido de um brilho

luminoso quente, exactamente o mesmo brilho que eu tinha visto

quando Yin e eu fugimos de Lhasa. Os dakini.

O motor do jipe estava a funcionar, por isso bastou-me

arrancar devagar para a direita e descer o caminho. Quase não

respirava enquanto passava pela casa e atravessava a relva, em

direcção à outra rua e à esquerda. Um quilómetro mais à frente

virei novamente à esquerda, seguindo para norte para fora da

vila, pela mesma rua lateral que tinha seguido antes. Dez

minutos depois estava de novo nos montículos, pensando no que

fazer. Na estrada para oeste ouvi outro corvo a grasnar.

Instantaneamente decidi seguir nessa direcção, a direcção que

podia ter seguido há tanto tempo.

A estrada levava a uma inclinação íngreme e depois do cume

estendia-se por uma recta numa planície rochosa. Conduzi

durante várias horas, enquanto a luz da tarde começava a

desaparecer. Não se viam quaisquer carros ou pessoas e quase

nenhumas casas. Meia hora mais tarde estava completamente

escuro e eu estava a pensar em arranjar um sítio para

pernoitar, quando notei um carreiro estreito de gravilha que

se estendia à minha direita. Abrandei o jipe e olhei mais

atentamente. Havia qualquer coisa na berma da entrada para o

carreiro. Parecia uma peça de roupa.

Parei o jipe e apontei uma lanterna pela janela. Era um

casaco. O meu casaco. Aquele que eu tinha deixado no

restaurante, antes dos chineses chegarem. Sorrindo, apaguei a

luz. Yin devia ter colocado ali o casaco. Saí do jipe,

recolhi-o e segui pela estrada estreita com os faróis

apagados.

O caminho subia um pouco menos de um quilómetro, uma

inclinação gradual até uma casa com celeiro. Guiei

cautelosamente. Várias cabras observavam-me do outro lado de

uma vedação. No alpendre da casa, vi um homem sentado num

 

 

banco. Parei o jipe e ele ergueu-se. Reconheci a silhueta. Era

Yin.

Saí do jipe e corri até junto dele. Ele recebeu-me com um

abraço rígido, sorrindo.

- Estou satisfeito por vê-lo - declarou. - Como vê, eu disse

que estávamos a ser ajudados.

- Quase fui apanhado - repliquei. - Como é que escapaste?

O nervosismo voltou ao seu rosto.

- As mulheres do restaurante são muito astutas. Viram os

soldados chineses e esconderam-me no forno. Nunca ninguém

procura lá.

- O que achas que vai acontecer às mulheres? - perguntei.

Ele fixou os meus olhos mas não disse nada durante um longo

momento.

- Não sei - respondeu. - Muitas pessoas estão a pagar um

alto preço por nos ajudarem.

Afastou o olhar e apontou para o jipe.

94 - 95

- Ajude-me a trazer alguma comida e vamos preparar qualquer

coisa para comer.

Enquanto Yin fazia uma fogueira explicou-me que, depois da

polícia ter partido, tinha voltado a casa dos seus amigos, que

lhe sugeriram esta velha casa como esconderijo enquanto eles

procuravam outro veículo.

- Eu sabia que você poderia ser dominado pelo medo e tentar

regressar a Lhasa - acrescentou Yin. - Mas também sabia que,

se decidisse continuar esta viagem, teria de acabar por seguir

novamente para noroeste. Esta seria a única estrada, por isso

coloquei ali o seu casaco, esperando que fosse você a vê-lo e

não os soldados.

- Foi um grande risco - disse eu.

Ele acenou enquanto punha os vegetais a cozer numa pesada

panela cheia de água e a pendurava num gancho de metal por

cima do fogo. Chamas saltaram dos excrementos de iaque e

lamberam o fundo da panela.

Ver Yin novamente aliviou boa parte do meu medo e, enquanto

nos sentávamos em velhas cadeiras poeirentas em frente da

fogueira, eu disse:

- Tenho de admitir que pensei em fugir. Pensei que era a

minha única hipótese de sobreviver.

Prossegui e contei-lhe tudo o que tinha acontecido, aliás,

tudo excepto a experiência com a luz em redor da casa. Quando

chegámos à parte em que eu estava nos montículos e a carrinha

chegou, ele deu um salto na cadeira.

- Tem a certeza que era a mesma carrinha que nós vimos no

bloqueio de estrada? - perguntou, com ar severo.

- Sim, eram eles - respondi.

Ele pareceu completamente exasperado.

- Viu as pessoas que tínhamos visto antes e não falou com

elas?

O rosto dele estava transtornado pela raiva.

- Não se lembra de eu lhe contar o meu sonho, de nós

conhecermos alguém que nos ajudaria a encontrar o portão?

- Não quis dar-lhes hipótese de me denunciarem - protestei.

- O quê? - Ele olhou fixamente para mim, depois inclinou-se

para a frente e encostou o rosto às mãos durante um momento.

- Fiquei petrificado - disse eu. - Não acredito que me meti

 

 

nesta situação. Queria sair. Queria sobreviver.

- Ouça-me com atenção - disse Yin. - As suas hipóteses de

sair do Tibete fugindo são agora muito reduzidas. A sua única

possibilidade de sobreviver é avançar e, para fazer isso, tem

de usar a sincronicidade.

Desviei o olhar, sabendo que provavelmente ele tinha razão.

- Conte-me o que aconteceu quando a carrinha se aproximou -

disse Yin. - Cada pensamento. Cada pormenor.

Contei-lhe que a carrinha tinha parado e que, quando isso

aconteceu, eu fiquei imediatamente assustado. Descrevi a forma

como a mulher parecia querer sair, mas depois mudou de ideias

e foram embora.

Ele abanou mais uma vez a cabeça.

- Matou a sincronicidade com um uso errado do seu campo de

oração. Preparou o seu campo com expectativas receosas e isso

parou tudo.

Desviei o olhar.

- Pense naquilo que estava a acontecer - prosseguiu Yin -

quando ouviu a carrinha a aproximar-se. Tinha duas opções:

podia pensar nesse acontecimento como uma ameaça ou como um

auxílio potencial. Obviamente que tem de pensar nas duas

possibilidades. Mas, assim que reconheceu a carrinha, isso

devia ter-lhe dito qualquer coisa. O facto de ser a mesma

carrinha que tínhamos visto antes no cruzamento é

significativo, especialmente porque essas mesmas pessoas

criaram a diversão que nos permitiu passar sem sermos vistos.

Desse ponto de vista, eles já o tinham ajudado e era possível

que agora estivessem ali para o ajudar novamente.

Acenei com a cabeça. Ele tinha razão. Era óbvio que eu tinha

estragado tudo.

Yin olhou noutra direcção, distraído pelos seus próprios

pensamentos, e depois disse:

- Perdeu completamente a sua energia e as expectativas

positivas. Lembra-se daquilo que eu lhe disse no restaurante?

Preparar um campo para a sincronicidade é uma questão de nos

colocarmos num estado de espírito particular. É fácil pensar

na sincronicidade intelectualmente mas, a menos que entremos

no estado de espírito em que o nosso campo de oração nos pode

96 - 97

ajudar, tudo o que fazemos é avistar algumas coincidências de

vez em quando. Em algumas situações isso é o bastante e você

poderá avançar durante algum tempo, mas acabará por perder o

rumo. A única forma de estabelecer um fluxo constante de

sincronicidade é ficar num estado em que o nosso campo de

oração mantenha este fluxo em movimento para nós, um estado de

alerta consciente.

- Continuo sem ter a certeza de como entrar nesse estado de

espírito.

- Temos de parar e lembrarmo-nos de assumir uma atitude de

alerta a cada momento. Temos de visualizar a nossa energia a

irradiar e a trazer para nós, os palpites certos, os

acontecimentos certos. Temos de esperar que eles ocorram a

qualquer momento. Preparamos os nossos campos para nos

trazerem a sincronicidade estando vigilantes, sempre à espera

do próximo encontro. Sempre que nos esquecemos de nos

mantermos neste estado de expectativa, temos de nos obrigar a

recordar.

Quanto mais nos mantivermos neste estado de espírito, tanto

 

 

mais a sincronicidade aumentará. E finalmente, se mantivermos

a energia elevada, esta postura de alerta consciente

tornar-se-á a nossa atitude dominante perante a vida. As

lendas dizem que as extensões da oração acabarão por ser uma

segunda natureza para nós. Iremos prepará-las pela manhã de

forma tão rotineira como nos vestimos. É esse o local que

devemos atingir, o estado de espírito em que temos

constantemente esta expectativa.

Fez uma pausa e olhou para mim durante um momento.

- Quando ouviu o veículo a seguir na sua direcção, sentiu

imediatamente medo. Pelo que me parece, eles tiveram a

intuição que deviam parar nos montículos, embora provavelmente

não fizessem ideia da razão. Mas depois você ficou com medo,

pensando que podiam ser os maus da fita, o seu campo

desapareceu e teve um efeito sobre eles. Entrou nos campos

deles, provavelmente fê-los sentir que havia qualquer coisa

mal, que estavam a fazer qualquer coisa errada, e por isso

partiram.

Aquilo que ele me estava a dizer era incrível, mas soava-me

verdadeiro.

- Conta-me mais acerca do modo como os nossos campos afectam

as pessoas - pedi.

Ele abanou a cabeça.

- Está a adiantar-se. O efeito dos nossos campos sobre as

outras pessoas é a Terceira Extensão. Por agora, concentre-se

em preparar o seu campo para a sincronicidade e em não ter

pensamentos receosos. Tem tendência para esperar o pior.

Lembra-se de quando íamos a caminho do mosteiro do Lama Rigden

e eu o deixei sozinho? Viu um grupo de refugiados que o teriam

guiado directamente ao mosteiro, se ao menos tivesse falado

com eles. Mas imaginou que eles poderiam denunciá-lo e perdeu

a sincronicidade. Estes pensamentos negativos são um padrão em

si.

Limitei-me a olhar para ele, sentindo-me cansado. Ele sorriu

e não voltou a falar nos meus erros. Falámos descontraidamente

acerca do Tibete durante a maior parte da noite, saindo a dada

altura para vermos as estrelas. O céu estava limpo e a

temperatura quase gelada. Por cima de nós estavam as estrelas

mais brilhantes que eu já tinha visto e comentei isso com Yin.

- É claro que parecem grandes - disse ele. - Estamos no

tecto do mundo.

Na manhã seguinte dormi até tarde e fiz uma série de

exercícios de tai chi com Yin. Esperámos tanto tempo quanto

possível pelos amigos de Yin, mas não apareceram.

Compreendemos que afinal tínhamos de arriscar sair com apenas

um veículo e carregámos o jipe, arrancando ao entardecer.

- Deve ter acontecido qualquer coisa - disse Yin, olhando

para mim.

Ele estava a tentar ser forte, mas via-se que estava

preocupado. Seguimos novamente pela estrada principal, através

de uma neblina espessa e cheia de areia que tinha coberto a

maior parte da paisagem e não nos deixava ver as montanhas.

- Desta maneira será difícil chineses verem-nos - observou

Yin.

- Isso é bom - disse eu.

98 - 99

 

 

Tinha estado a perguntar a mim mesmo como os chineses sabiam

que estávamos no restaurante em Zhongba, por isso perguntei a

Yin o que ele pensava.

- Tenho a certeza que foi culpa minha - disse ele. - Eu

falei-Lhe da raiva e medo que sinto em relação a eles. Tenho a

certeza que o meu campo de oração me trouxe o que eu estava a

pedir.

Lancei-lhe um olhar duro. Isto era demais.

- Estás a dizer-me - perguntei - que, por tu teres medo, a

tua energia trouxe os chineses até nós?

- Não, não apenas por ter medo. Todos temos um medo geral.

Não é isso que eu quero dizer. Estou a falar em permitir que a

minha mente tenha visões aterrorizadoras daquilo que poderia

acontecer, do que os chineses poderiam fazer. Vejo-os a agir

no Tibete há tanto tempo que já conheço os seus métodos. Sei

como eles oprimem as pessoas através da intimidação.

Permiti-me vê-los a virem atrás de nós na minha mente, como

uma pequena visão, e não fiz nada para contrariar essa imagem.

Devia ter-me controlado, tê-los visualizado na minha mente a

não serem tão adversos em relação a nós e depois ter-me

agarrado a essa expectativa. Não foi o meu medo geral que os

trouxe. Inconscientemente formei uma imagem específica,

segundo a qual eles nos encontrariam. Foi esse o problema. Se

nos agarrarmos a uma imagem negativa por demasiado tempo, ela

pode acabar por se tornar realidade.

Esta ideia continuava a surpreender-me. Estaria correcta? Há

muito tempo que eu observava que as pessoas que receavam um

acontecimento particular - um assalto à sua casa, por exemplo,

uma doença particular, ou perder um amante - muitas vezes

sofriam exactamente isso nas suas vidas. Seria esse o efeito

que Yin estava a descrever?

Lembrei-me da imagem terrível que vira em Zhongba, quando

Yin saiu para ir procurar alguém que fosse connosco. Tinha

imaginado ficar sozinho no jipe e andar às voltas perdido,

exactamente o que veio a acontecer. Um arrepio percorreu-me.

Tinha estado a fazer o mesmo erro que Yin.

- Estás a dizer que tudo o que nos acontece de negativo é

resultado dos nossos próprios pensamentos? - perguntei.

Ele franziu a testa.

- É claro que não. Muitas coisas acontecem apenas no curso

natural da convivência com outros seres humanos. As

expectativas e acções deles também desempenham um papel. Mas

nós temos alguma influência criadora, acreditemos ou não.

Temos de despertar e compreender que, em termos da nossa

energia de oração, uma expectativa é uma expectativa,

baseie-se ela no medo ou na fé. Neste caso, eu não me vigiei

com suficiente atenção. Eu disse-lhe que o meu ódio aos

chineses era um problema.

Ele virou-se e o nosso olhar encontrou-se.

- Lembre-se também do que eu lhe disse - acrescentou. - Que

nestes níveis superiores de energia o efeito do campo de

oração é muito rápido. No mundo vulgar, os indivíduos ainda

têm uma mistura de imagens de medo e de sucesso, que tendem a

anular-se umas às outras e manter o efeito limitado. Mas a

este nível podemos afectar muito rapidamente o que acontece,

muito embora uma imagem de medo acabe por destruir a força do

nosso campo.

A chave é garantir que a nossa mente esteja concentrada na

via positiva para a nossa vida, não numa expectativa receosa.

É por isso que a Segunda Extensão é tão importante. Se nos

certificarmos que estamos num estado de alerta consciente para

 

 

a próxima sincronicidade, as nossas mentes mantêm-se positivas

e afastam o medo e a dúvida. Está a ver o que eu quero dizer?

Acenei com a cabeça mas não disse nada.

Yin concentrou-se novamente na estrada.

- Temos de usar este poder imediatamente. Mantenha-se o mais

alerta possível. Podíamos passar muito facilmente pela

carrinha neste nevoeiro, e não queremos perdê-la. Tem a

certeza que eles seguiram nesta direcção?

- Sim - respondi.

- Nesse caso se tiverem parado para passar a noite, tal como

nós fizemos, não devem estar muito longe.

Viajámos toda a manhã, ainda em direcção a noroeste. Por

muito que tentasse, não conseguia manter-me no estado de

alerta consciente que Yin tinha descrito. Qualquer coisa não

estava bem. Yin notou e continuou a olhar para mim. Finalmente

voltou-se e perguntou.

100 - 101

- Tem a certeza que está à espera do processo de

sincronicidade completo?

- Sim - respondi. - Penso que sim.

Ele franziu ligeiramente a testa e continuou a olhar para

mim de lado.

Eu sabia o que ele estava a pensar. No Peru e, mais tarde,

nos montes Apalaches, com a Décima Revelação, eu tinha vivido

um processo de sincronicidade. Todos nós, em algum momento,

temos uma questão essencial nas nossas vidas, algo que nos

preocupa devido à nossa situação particular na vida. No nosso

caso, a questão era como encontrar a carrinha holandesa e

depois Wil e o portão.

Idealmente, assim que reconhecêssemos a questão central nas

nossas vidas receberíamos uma orientação através de um

pensamento ou intuição acerca da resposta. Recebemos uma

imagem mental que nos sugere um percurso, uma acção, uma

palavra para dizer a um estranho. Idealmente, mais uma vez, se

seguirmos essa intuição surgirão coincidências que nos darão

informação acerca da nossa questão. Esta sincronicidade

faz-nos avançar pelo caminho da vida... e, por sua vez, em

direcção a uma nova questão.

- O que dizem as lendas acerca disto? - inquiri.

Yin respondeu:

- Elas dizem que os humanos aprenderão que o poder da oração

pode influenciar muito o fluxo das suas vidas. Usando a força

das nossas expectativas, podemos fazer o processo de

sincronicidade ocorrer mais vezes. Mas temos de nos manter

alerta durante todo o processo, começando pela próxima

intuição. Está conscientemente à espera de uma intuição?

- Ainda não recebi nada - disse eu.

- Mas está à espera de uma? - insistiu ele.

- Não sei. Não estava bem a pensar em intuições.

Ele acenou.

- Tem de lembrar-se que isso faz parte da preparação do seu

campo de oração para a sincronicidade. Tem de manter-se alerta

e esperar que todo o processo se desenrole: a questão, receber

a intuição, segui-la, procurar coincidências. Lembre a si

mesmo que tem de esperar tudo isso, estar alerta em relação a

tudo isso e, se o fizer, a sua energia irá à sua frente e

ajudará a provocar esse fluxo.

Sorriu-me de uma maneira que tencionava animar-me.

 

 

Respirei fundo algumas vezes, sentindo a minha energia a

começar a regressar. O humor de Yin era contagioso. Fiquei

mais alerta.

Devolvi-lhe o sorriso. Pela primeira vez percebi quem era

realmente o Yin. Por vezes ele estava tão assustado quanto eu

e muitas vezes era demasiado directo, mas estava de todo o

coração nesta viagem e queria, mais do que qualquer outra

coisa, ser bem sucedido. Enquanto pensava nisto, imaginei-nos

a caminhar por dunas de areia grossa à noite, algures perto de

um rio. Havia um brilho à distância, uma fogueira, que nós

queríamos alcançar. Yin ia à frente e eu estava satisfeito por

poder segui-lo.

Olhei novamente para ele. Ele estava a olhar fixamente para

mim. Contei-lhe o que tinha acontecido.

- Acho que tenho qualquer coisa - disse eu. - Pensei em nós

dois a caminharmos na direcção de uma fogueira. Achas que isso

quer dizer alguma coisa.

- Só você pode saber - disse ele.

- Mas eu não sei. Como é suposto eu saber?

- Se o seu pensamento era uma intuição para nos orientar,

devia ter qualquer coisa a ver com a nossa busca da carrinha.

Quem estava junto à fogueira? Qual era a sensação?

- Não sei quem estava lá. Mas nós queríamos muito chegar à

fogueira. Há alguma zona arenosa aqui perto?

Yin afastou o jipe da estrada e parou. A neblina estava a

começar a levantar.

- Esta paisagem é toda areia rochosa durante mais cento e

cinquenta quilómetros - declarou Yin.

Encolhi os ombros.

- E um rio? Há algum rio aqui por perto?

Os olhos de Yin iluminaram-se.

- Sim, a seguir à próxima vila, Paryang, cerca de duzentos e

vinte e cinco quilómetros mais à frente.

Fez uma breve pausa, sorrindo largamente.

- Temos de nos manter alerta - disse. - É a nossa única

pista.

102 - 103

Fizemos um bom tempo e chegámos a Paryang ao pôr do Sol.

Passámos directamente pela vila e depois mais vinte

quilómetros, até que Yin virou à direita para uma estrada de

terra batida. Estava quase completamente escuro, mas víamos o

rio a menos de um quilómetro à nossa frente.

- Há um posto de controlo mais à frente - explicou ele. -

Temos de contorná-lo.

Quando nos aproximámos do rio a estrada ficou mais estreita

e extremamente irregular.

- O que é aquilo? - perguntou Yin, parando o jipe e

recuando.

Numa clareira rochosa à nossa direita, quase invisível,

estava um veículo. Desci a minha janela para podermos ver

melhor.

- Não é uma carrinha - disse Yin. - É um Land Cruiser azul.

Eu tentei ver melhor.

- Espera um minuto - disse eu. - É o veículo que eu vi no

bloqueio de estrada, quando nos separámos.

Yin apagou os faróis e a escuridão pareceu engolir-nos.

- Vamos avançar um pouco mais - disse ele, levando o jipe

sobre as valas profundas mais algumas centenas de metros.

 

 

- Olha! - exclamei, apontando. À nossa esquerda estava a

carrinha, parada entre duas grandes rochas. Não havia ninguém

por perto.

Estava prestes a sair quando Yin fez subitamente avançar o

jipe e o estacionou longe da vista, várias centenas de metros

a leste.

- É melhor esconder o nosso veículo - comentou, trancando-o

depois de sairmos.

Regressámos à carrinha e olhámos em redor.

- As pegadas seguem nesta direcção - disse Yin, apontando

para sul. - Venha.

Caminhei atrás dele enquanto avançávamos por entre grandes

rochedos e areia. Uma lua a três quartos iluminava o percurso.

Dez minutos depois ele olhou para mim e fungou. Eu também

sentia o cheiro: o fumo de uma fogueira.

Caminhámos mais vinte e cinco metros na escuridão, até

vermos um acampamento. Um homem e uma mulher estavam aninhados

junto do fogo. Era o casal holandês que eu tinha visto na

carrinha. O rio estava logo atrás deles.

- O que fazemos? - sussurrei.

- Teremos de anunciar a nossa presença - disse ele. - Seria

melhor você fazer isso, para eles terem menos medo. - Não

sabemos quem eles são - disse eu, resistindo.

- Avance, diga-lhes que nós estamos aqui.

Olhei para eles mais atentamente. Vestiam calças de campo e

camisolas grossas de algodão. Pareciam simples turistas a

passearem pelo Tibete.

- Olá - disse com voz forte. - Estamos satisfeitos por

vê-los.

Yin olhou para mim de soslaio.

As duas pessoas deram um salto e olharam fixamente enquanto

nós emergíamos da escuridão. Com um grande sorriso, disse:

- Precisamos da vossa ajuda.

Yin seguiu atrás de mim, fez uma pequena vénia e disse:

- Desculpem o incómodo, mas estamos à procura do nosso amigo

Wilson James. Esperávamos que nos pudessem ajudar.

Estavam ambos em choque, sem acreditarem que tínhamos

entrado no acampamento deles daquela maneira. Mas lentamente a

mulher pareceu compreender que éramos inofensivos e

ofereceu-nos um lugar junto da fogueira.

- Não conhecemos Wilson James - disse ela. - Mas o homem que

viemos procurar esta noite conhece-o. Eu ouvi-o a mencionar

esse nome.

O companheiro dela acenou, parecendo muito nervoso.

- Espero que o Jacob consiga encontrar-nos. Está atrasado

várias horas.

Estava prestes a dizer-Lhe que tínhamos visto o Land Cruiser

parado não muito longe quando a expressão no rosto do homem

mudou. Parecia petrificado. Os olhos dele ficaram colados em

qualquer coisa atrás de mim. Virei-me bruscamente. Na direcção

dos carros o terreno estava coberto de veículos e de faróis e

de dúzias de vozes a falarem em chinês, todas elas avançando

na nossa direcção.

O homem pôs-se de pé com um salto e apagou a fogueira.

Agarrou em várias malas e correu para longe do acampamento com

a mulher.

104 - 105

- Venha - disse Yin, tentando acompanhá-los. Alguns minutos

 

 

depois eles tinham desaparecido na escuridão. Finalmente Yin

desistiu. Atrás de nós, as luzes estavam a aproximar-se e nós

avançámos atabalhoadamente para o rio.

- Acho que consigo voltar ao jipe - disse Yin. - Se tivermos

sorte eles ainda não o encontraram. Siga para norte, rio acima

durante um quilómetro, e tente ganhar alguma distância. Vai

encontrar outra estrada que desce até à beira do rio. Fique à

escuta e eu irei recolhê-lo.

- Porque não posso ir contigo? - perguntei.

- Porque é demasiado perigoso. Um homem pode conseguir

passar, mas dois seriam vistos.

Concordei com relutância e comecei a avançar por entre as

rochas e os montículos de pedra miúda à luz da Lua, usando a

lanterna apenas quando era absolutamente necessário. Sabia que

o plano de Yin era louco, mas parecia ser a nossa única

hipótese. Perguntei a mim mesmo o que teríamos descoberto se

tivéssemos falado mais um pouco com o casal holandês ou

conhecido o outro homem. Depois de uns dez minutos parei para

descansar. Tinha frio e estava cansado.

Ouvi um movimento à minha frente. Tentei ouvir melhor.

Alguém estava mesmo a andar. Devia ser o casal holandês,

pensei. Avancei lentamente, até me aproximar do som. A vinte

metros de mim via a silhueta de uma única pessoa, um homem.

Sabia que tinha de dizer qualquer coisa ou correria o risco de

perdê-lo.

- Você é holandês? - balbuciei, pensando que este devia ser

o homem que o casal esperava.

Ele ficou imóvel e não disse nada, por isso repeti a

pergunta. Parecia uma tolice, mas pensei que talvez

conseguisse alguma reacção.

- Quem está aí? - foi a resposta.

- Sou americano - disse eu. - Vi os seus amigos.

Ele virou-se e olhou para mim, enquanto eu abria caminho por

entre as pedras para chegar até ele. Era jovem, talvez vinte e

cinco anos, e parecia aterrorizado.

- Onde viu os meus amigos? - perguntou, com a voz trémula.

Enquanto se concentrava em mim, senti quão assustado ele

estava. Uma onda de medo percorreu também o meu corpo e tive

de lutar para manter a minha energia.

106

- Rio abaixo - respondi. - Eles disseram-nos que estavam à

sua espera.

- Os chineses estavam lá? - perguntou ele.

- Sim, mas acho que os seus amigos escaparam.

Ele pareceu ainda mais assustado.

- Eles disseram-nos - disse rapidamente - que você conhecia

o homem que eu procuro, Wilson James.

Ele estava a recuar.

- Tenho que sair daqui - disse, voltando-se para ir embora.

- Já o vi antes - disse eu. - Ficou retido num posto de

controlo em Zhongba.

- Sim - replicou ele. - Estava lá?

- Estava atrás de si no trânsito. Você estava a ser

interrogado por um oficial chinês.

- É verdade - respondeu, olhando nervosamente em todas as

direcções.

- E o Wil? - perguntei, lutando para me manter calmo. -

Wilson James. Conhece-o? Ele disse-Lhe alguma coisa acerca de

 

 

um portão?

O jovem não disse mais nada. Os olhos estavam gelados de

medo. Voltou-se e correu por entre as rochas, continuando a

subir o rio. Persegui-o durante algum tempo, mas, em breve,

ele desapareceu na escuridão. Finalmente parei e olhei para

trás, na direcção da carrinha e do nosso jipe. Ainda conseguia

ver as luzes e ouvir vozes abafadas.

Virei-me e segui novamente para norte, compreendendo

demasiado bem que tinha desperdiçado a minha hipótese. Não

tinha conseguido qualquer informação dele. Tentei ignorar o

falhanço. O mais importante era encontrar Yin e tentar fugir,

eu próprio. Finalmente encontrei a velha estrada e minutos

depois ouvi o som fraco de um jipe.

107

5.

O CONTÁGIO DA CONSCIÊNCIA

Espreguicei-me o melhor que pude no veículo apertado.

Estava completamente exausto e perguntei a mim mesmo como Yin

teria forças para conduzir. Eu sabia que tínhamos tido sorte.

Tal como Yin supunha, os militares chineses pareciam

desorganizados e despreocupados na sua busca. Tinham colocado

um único guarda na carrinha do casal holandês, enquanto os

outros procuravam distraidamente na outra direcção, ignorando

completamente o nosso jipe. Yin tinha conseguido pô-lo em

funcionamento sem fazer muito barulho e contornou-os sem ser

detectado, para me recolher junto ao rio.

Neste momento Yin ainda ia a conduzir com os faróis

apagados, olhando fixamente através do pára-brisas para ver a

estrada escurecida.

Um momento depois ele olhou para mim.

- O jovem holandês que você viu não lhe disse nada?

- É verdade - respondi. - Ele estava demasiado assustado e

fugiu.

Yin abanou a cabeça.

- Isto é tudo culpa minha. Se ao menos eu lhe tivesse falado

da próxima extensão da oração, a Terceira, você teria sido

mais bem sucedido a conseguir essa informação.

Comecei a perguntar-lhe o que ele queria dizer, mas ele

silenciou-me com um gesto.

- Lembre-se do sítio onde está - explicou ele. - Já

experimentou a Primeira Extensão: ligar-se à energia e

deixá-la fluir através de si, visualizá-la a formar um campo

de energia que o precede em toda a parte.

109

A Segunda Extensão, como eu lhe expliquei, trata de preparar o

seu campo de energia de forma a aumentar o seu fluxo vital.

Pode fazer isso mantendo-se alerta e na expectativa. A

Terceira Extensão trata de preparar o seu campo de oração para

sair e aumentar os níveis de energia e de vibração nos outros.

Quando o seu campo de oração chega aos outros desta forma,

eles sentem um impacto de energia espiritual, clareza e

 

 

intuição e é mais provável que lhe dêem a informação correcta.

Mais uma vez soube exactamente o que ele estava a sugerir.

Sob a orientação de Wil e Sanchez no Peru, eu tinha explorado

a forma de enviar energia a outras pessoas, como uma nova

atitude ética em relação a elas. Agora Yin parecia estar a

esclarecer mais eficazmente a forma de fazer isso.

- Sei o que queres dizer - declarei. - Ensinaram-me que há

uma expressão do eu superior que pode ser encontrada no rosto

de todas as pessoas. Se falarmos com esse eu, essa expressão,

a nossa energia ajuda a erguer essa pessoa a uma consciência

do eu superior.

- Sim - respondeu Yin -, mas esse efeito aumenta se um de

vós souber como alargar o seu campo de oração do modo que as

lendas explicam. Devemos esperar que o nosso campo de oração

se estenda à nossa frente e aumente a vibração das outras

pessoas à distância, mesmo que não estejamos suficientemente

perto para vermos os seus rostos.

Olhei para ele com ar interrogativo.

- Encare-o desta maneira: se estiver a praticar

verdadeiramente a Primeira Extensão, a energia entra em si e

fá-lo ver o mundo mais de acordo com aquilo que ele realmente

é: colorido, vibrante, belo, como uma floresta mágica ou um

deserto colorido. Agora, para praticar a Terceira Extensão,

tem de visualizar conscientemente a sua energia a transbordar

para o campo de todas as pessoas à sua volta e a aumentar a

sua vibração, para que também elas comecem a ver o mundo como

ele de facto é. Logo que isto acontecer, elas podem abrandar e

sentir a sincronicidade. Depois de prepararmos os nossos

campos desta maneira, é mais fácil observarmos a expressão do

eu superior no rosto dos outros.

Fez uma pausa e olhou para mim, como se tivesse acabado de

pensar noutra coisa.

110

- Lembre-se também - continuou - que existem armadilhas a

evitar quando elevamos outra pessoa. Cada rosto é um padrão de

traços, como um... hum... borrão de tinta, onde podemos ver

muitas coisas. Vemos a raiva de um pai violento, a distância

de uma mãe indiferente, ou o rosto de alguém que nos ameaçou.

É uma projecção do nosso passado, uma percepção criada por uma

situação traumática que determina as reacções que esperamos

nos outros. Quando vemos alguém que, mesmo que de forma ténue,

se assemelha a alguém que nos tratou mal, a tendência é

esperarmos que essa pessoa aja da mesma maneira.

É muito importante compreender este problema e vigiá-lo

atentamente. Temos de ultrapassar as expectativas ditadas

pelas nossas experiências passadas. Compreende?

Acenei com a cabeça, ansioso pelo resto.

- Agora pense mais uma vez naquilo que lhe aconteceu no

hotel, em Katmandu. Temos de observá-lo mais atentamente. Não

disse que aquele homem na piscina mudou o estado de espírito

de toda a gente quando se sentou?

Acenei novamente, pensando. Isso estava absolutamente

correcto. Parecia que o homem trouxera um estado de espírito

renovado à zona da piscina, antes mesmo de dizer uma única

palavra.

- Isso aconteceu porque a energia dele já estava preparada

para entrar nos campos de energia dos outros e dar-lhes um

impulso positivo. Pense agora na sensação exacta que isso lhe

 

 

causou.

Desviei o olhar por um momento, tentando recriar o que tinha

acontecido. Finalmente disse:

- Toda a gente naquela zona pareceu passar de um estado de

irritação e insatisfação para um estado de espírito mais

aberto e conversador. É difícil de explicar.

- A energia dele abriu-vos à exploração de algo novo -

prosseguiu Yin - em vez de estarem presos no terror ou no

desespero ou naquilo que vocês estavam a sentir, fosse o que

fosse.

Yin parou de falar por um momento, observando-me

atentamente.

- É claro - continuou - que podia ter acontecido o

contrário. Se o homem não tivesse uma energia suficientemente

forte, ao entrar na zona da piscina poderia ter sido dominado

pelo estado de baixa energia do resto das pessoas e descido ao

vosso nível. Foi o que lhe aconteceu quando encontrou o jovem

holandês. Ele estava aterrorizado e esse medo afectou-o.

111

Você deixou-se dominar pelo estado de espírito dele.

- Sabe, os campos de energia de todos nós misturam-se e só

os mais fortes resistem. É esta a dinâmica inconsciente que

caracteriza o mundo humano. O estado da nossa energia, as

nossas principais expectativas, sejam elas quais forem, vão

influenciar o estado de espírito e a atitude de toda a gente.

O nível de consciência entre humanos e todas as expectativas

que o acompanham são contagiosos. Este facto explica os

grandes mistérios do comportamento das multidões, porque razão

pessoas decentes, influenciadas por uns quantos muito

assustados ou zangados, podem envolver-se em linchamentos,

motins ou outras acções desprezíveis. Também explica porque a

hipnose funciona ou porque os filmes e a televisão têm uma tal

influência sobre os fracos de espírito. O campo de oração de

cada pessoa na Terra funde-se com os outros, criando todas as

normas, filiações de grupo, nacionalismos e hostilidades

étnicas que se vêem por aí.

Yin sorriu.

- A cultura é contagiosa. Basta viajar para um país estranho

e ver como as pessoas não só pensam de forma diferente, como

também sentem de forma diferente, no que diz respeito ao

estado de espírito e à atitude. Esta é uma realidade que

devemos compreender e dominar. Temos de lembrarmo-nos de usar

conscientemente a Terceira Extensão. Quando estamos a

relacionarmo-nos com outras pessoas e sentimos que estamos a

absorver o seu humor, a ser dominados pelas suas expectativas,

temos de recuar, enchermo-nos novamente e transbordar, até que

o estado de espírito melhore. Se ao menos tivesse feito isto

com o jovem holandês, poderia ter sabido mais acerca do Wil.

Eu estava impressionado. Yin parecia dominar completamente

esta informação.

- Yin - disse eu. - És um especialista.

O sorriso dele desvaneceu-se.

- Há uma diferença entre saber como tudo isto funciona -

replicou ele - e ser capaz de fazê-lo.

Devo ter dormido durante horas, porque quando acordei o Sol

já tinha nascido e o jipe estava parado numa zona plana acima

 

 

da estrada. Espreguicei-me e depois voltei a cair sobre o

assento. Fiquei alguns minutos a olhar para vários montículos

de pedras na estrada de terra batida lá em baixo. Passou um

nómada com um cavalo e uma pequena carroça mas, para além

dele, a estrada estava vazia. O céu estava límpido e algures

atrás de nós soava o canto de um pássaro. Respirei fundo.

Alguma da tensão do dia anterior tinha sido aliviada.

Yin começou lentamente a mexer-se e depois sentou-se,

olhando para mim com um sorriso. Saiu do jipe e

espreguiçou-se, depois tirou um fogão de campismo das

traseiras e começou a aquecer um fervedor com água para fazer

cereais e chá. Juntei-me a ele e mais uma vez tentei segui-lo

numa série de difíceis exercícios de tai chi.

Atrás de nós ouvimos um veículo a acelerar estrada fora.

Esperámos atrás de uma rocha e vimos o Land Cruiser passar,

reconhecendo-o ambos ao mesmo tempo.

- É o jovem holandês - exclamou Yin, correndo para o jipe.

Agarrei no fogão de campismo, atirei-o para as traseiras e

saltei para dentro do veículo, enquanto Yin o virava.

- Teremos sorte se o conseguirmos apanhar a esta velocidade

- comentou Yin enquanto começávamos a perseguição.

Passámos por uma pequena colina e descemos para um vale

estreito, avistando finalmente o veículo descendo a estrada

várias centenas de metros à nossa frente.

- Temos de alcançá-lo com a nossa energia de oração - disse

Yin.

Respirei fundo, visualizando a minha energia a estender-se

sobre a estrada e o Land Cruiser e a afectar o jovem.

Imaginei-o a abrandar e a parar.

Quando enviei esta imagem o veículo acelerou ainda mais,

afastando-se. Fiquei confuso.

- O que estava a fazer? - gritou Yin, olhando para mim.

- Estou a usar o meu campo para o fazer parar.

- Não use a sua energia dessa maneira - disse rapidamente

Yin. - Ela tem o efeito contrário.

112 - 113

Olhei para ele sem compreender.

- O que faz - perguntou Yin -, quando alguém tenta

manipulá-lo para o levar a fazer alguma coisa?

- Resisto - respondi.

- Exactamente - prosseguiu Yin. - Inconscientemente o

holandês consegue senti-lo a tentar dizer-lhe o que fazer. Ele

sente-se manipulado e isso dá-lhe a impressão que quem vem

atrás dele não lhe quer bem, o que gera mais medo e aumenta a

sua determinação em fugir - Tudo o que podemos fazer é

visualizar a nossa energia a estender-se para ele e a aumentar

o seu nível geral de vibração. Isso permite-lhe ultrapassar o

medo e entrar em contacto com a intuição do seu eu superior,

que, com sorte, o fará ter menos medo de nós e talvez arriscar

uma conversa. Fazer qualquer outra coisa é presumir que

sabemos o melhor rumo para a sua vida, mas só ele sabe isso.

Talvez a sua intuição superior lhe diga - logo que enviemos

energia suficiente - para se livrar de nós e sair do país.

Temos de aceitar isso. Tudo o que podemos fazer é ajudá-lo a

tomar a decisão com o maior nível de energia possível.

Fizemos uma curva e, de repente, deixámos de ver o Land

Cruiser azul. Yin abrandou. À nossa direita havia uma estrada

mais pequena que parecia destacar-se.

 

 

- Por ali! - disse eu, apontando.

Cem metros mais à frente, no sopé de uma pequena colina,

havia um rio afluente largo mas raso. No meio dele estava o

veículo do holandês, acelerando a fundo, girando as rodas e

fazendo lama saltar, mas sem avançar. Estava atascado.

O jovem olhou para nós e abriu a porta, preparando-se para

fugir. Mas quando me reconheceu desligou o motor e saiu para a

água que o cobriu até aos joelhos.

Quando parámos o nosso jipe ao lado dele, Yin olhou

atentamente para mim e eu percebi que ele me estava a recordar

para usar a minha energia. Acenei com a cabeça.

- Nós podemos ajudar-te - disse eu ao jovem.

Ele encarou-nos desconfiado durante um momento, mas

gradualmente ganhou confiança, depois que Yin e eu saímos e

empurrámos o pára-choques do Land Cruiser enquanto ele tentava

ligar o motor. As rodas giraram durante um momento, atirando

lama de encontro às minhas pernas, depois saltou para fora do

buraco e atravessou o rio. Nós seguimos no nosso jipe. O jovem

olhou para nós durante um momento, como se estivesse a decidir

se devia ir embora, mas saiu e caminhou na nossa direcção.

Quando ele se aproximou, apresentámo-nos. Ele disse que se

chamava Jacob.

Enquanto falávamos, comecei a procurar no rosto dele a

expressão mais inteligente que conseguia encontrar.

Jacob estava a abanar a cabeça, ainda aterrorizado, e passou

vários minutos a perguntar quem éramos e a interrogar-nos

acerca dos seus amigos desaparecidos.

- Não sei porque vim ao Tibete - disse finalmente. - Sempre

pensei que seria demasiado perigoso. Mas os meus amigos

queriam que eu viesse com eles. Não faço ideia porque aceitei.

Meu Deus, havia soldados chineses por todo o lado. Como é que

eles sabiam que nós estaríamos lá?

- Perguntaram o caminho a alguém que não conheciam? -

perguntou Yin.

Ele olhou fixamente para nós.

- Sim. Acham que eles disseram aos soldados?

Yin acenou e Jacob pareceu mergulhar novamente no pânico,

olhando nervosamente em redor, em todas as direcções.

- Jacob - perguntei. - Tenho de saber se te encontraste com

Wilson James?

Jacob continuava incapaz de se concentrar.

- Como sabemos se os chineses não estão mesmo atrás de nós?

Tentei captar o olhar dele, conseguindo finalmente fazer com

que ele olhasse para mim.

- Isto é importante, Jacob. Lembras-te de veres o Wil? Ele

parece peruano, mas fala com sotaque americano.

Jacob continuava a parecer confuso.

- Porque é que isso é importante? Temos de arranjar maneira

de sairmos daqui.

Ouvimos Jacob a fazer várias sugestões acerca de possíveis

locais de acampamento até os chineses saírem da área, ou

melhor ainda, acerca de uma corrida louca pelos Himalaias, em

direcção à Índia.

114 - 115

Continuei a visualizar a minha energia a entrar nele e a

concentrar-me no rosto dele, procurando uma expressão de calma

e sabedoria nos seus traços, especialmente nos olhos.

Finalmente ele começou a olhar para mim.

 

 

- Porque querem encontrar esse homem? - perguntou ele.

- Acreditamos que ele precisa da nossa ajuda. É o homem que

me pediu para vir ao Tibete.

Ele olhou para mim durante um momento, aparentemente

tentando concentrar-se.

- Sim - respondeu finalmente. - Eu conheci o vosso amigo.

Ele estava no átrio de um hotel em Lhasa. Ficámos sentados em

frente um do outro e começámos a falar acerca da ocupação

chinesa. Há muito tempo que os chineses me perturbam e suponho

que foi por isso que vim cá, para fazer alguma coisa, qualquer

coisa. O Wil disse que me tinha visto três vezes nesse dia, em

vários pontos do hotel, e que isso significava qualquer coisa.

Eu não percebia o que ele estava a dizer.

- Ele mencionou um lugar chamado Shambhala? - perguntei.

Ele pareceu interessado.

- Não exactamente. Mencionou qualquer coisa de passagem,

qualquer coisa acerca do Tibete não ser livre até Shambhàla

ser compreendida. Qualquer coisa assim.

- Mencionou um portão?

- Não me parece. Não me lembro muito bem da conversa. Foi

mesmo muito breve.

- E acerca do destino dele? - perguntou Yin. - Mencionou

para onde ia?

Jacob desviou o olhar, pensando, e depois disse: - Penso que

ele referiu um lugar chamado... Dormar, penso que era... e

qualquer coisa acerca das ruínas de um antigo mosteiro lá.

Olhei para Yin.

- Conheço o lugar - disse ele. - Fica no extremo noroeste, a

quatro ou cinco dias de viagem. Será difícil... e frio.

A ideia de ter de viajar tão longe para uma região desolada

do Tibete fez a minha energia cair a pique.

- Queres vir connosco? - perguntou Yin a Jacob.

- Oh, não - disse ele. - Tenho de sair daqui.

- Tens a certeza? - insistiu Yin. - Os chineses parecem

estar muito activos neste momento.

- Não posso - disse Jacob, olhando noutra direcção. - Sou o

único que resta para contactar o meu governo e procurar os

meus amigos, se conseguir arranjar uma forma de pedir ajuda.

Yin escrevinhou qualquer coisa num pedaço de papel e

entregou-o a Jacob.

- Procura um telefone e liga para este número - disse. -

Menciona o meu nome e dá um número para te ligarem. Logo que

verifiquem quem tu és, eles ligam-te e dizem o que fazer. Yin

disse ainda a Jacob a melhor maneira de regressar a Saga e

depois acompanhámo-lo de regresso ao seu Land Cruiser.

Depois de entrar, ele disse:

- Boa sorte... espero que encontrem o vosso amigo.

Eu acenei.

- Se conseguirem - acrescentou ele - talvez percebamos que

foi por isso que eu vim ao Tibete, hum? Para poder ajudar.

Ele voltou-se e ligou o Cruiser, olhou para nós mais uma vez

e afastou-se. Yin e eu corremos para o nosso veículo e, ao

entrarmos na estrada principal, notei que ele estava a sorrir.

- Acha que agora já compreende a Terceira Extensão? -

perguntou ele. - Pense em tudo o que ela implica.

Olhei para ele durante um momento, pensando na pergunta. A

chave desta extensão, ao que parece, era a ideia dos nossos

campos poderem reforçar os outros, erguendo as pessoas até uma

consciência superior onde podem ligar-se às suas próprias

intuições orientadoras.

Aquilo que expandia esta ideia para mim, para além de

 

 

qualquer coisa que eu tinha ouvido no Peru, era o conceito dos

nossos campos de oração fluirem à nossa frente e de nós

podermos prepará-los para influenciarem toda a gente à nossa

volta - mesmo que não estejamos a falar com eles directamente

ou sequer a vê-los. Podemos fazê-lo visualizando completamente

que isso está a acontecer - esperando-o.

É claro que não podemos exercer qualquer controlo sobre esta

energia; caso contrário ela faz ricochete, como eu tinha visto

quando tentei fazer Jacob parar o veículo. Referi tudo isto a

Yin.

116 - 117

- Aquilo que está a compreender é o aspecto contagioso da

mente humana - explicou Yin. - De certo modo, todos

partilhamos uma mente. É óbvio que temos controlo sobre nós

mesmos e podemos recuar, distanciarmo-nos, pensar

independentemente. Mas, tal como eu já disse antes, a visão

dominante que os humanos têm do mundo é sempre um campo

gigantesco de crença e expectativa. A chave para o progresso

humano é ter suficientes pessoas que consigam misturar neste

campo humano uma expectativa superior de amor. Este esforço

permite-nos desenvolver um nível de energia ainda maior e

inspirarmo-nos uns aos outros, em direcção ao nosso maior

potencial.

Yin pareceu relaxar por um momento e sorriu para mim.

- A cultura de Shambhala - disse ele -, baseia-se na

construção de um tal campo.

Não pude evitar devolver-Lhe o sorriso. Esta viagem começava

a fazer sentido, de uma forma que eu ainda não conseguia

exprimir.

Os dois dias seguintes passaram sem problemas, sem sinais do

exército chinês. Continuando na estrada do sul em direcção a

noroeste, atravessámos mais um rio perto do topo de Mayun-La,

uma passagem no alto da montanha. A vista era espectacular,

com picos gelados de ambos os lados da estrada. Passámos a

primeira noite em Hor Que, num motel sem identificação que Yin

conhecia, e continuámos na manhã seguinte para o lago

Manasarovar.

Quando nos aproximámos do lago, Yin disse:

- Aqui teremos de ser novamente muito cuidadosos. O lago e o

monte Kailash, mais à frente, são destinos importantes para

pessoas de toda a região: Índia, Nepal, China e Tibete. É um

lugar sagrado sem igual. Estarão lá muitos peregrinos, assim

como postos de controlo chineses.

Vários quilómetros mais à frente Yin saiu da estrada, para

uma pista antiga, contornámos um posto de controlo e depois

avistámos o lago. Olhei para Yin, que estava a sorrir. A vista

era inacreditavelmente bela: uma enorme pérola turquesa à

frente do terreno rochoso castanho, tudo delimitado pelas

montanhas cobertas de neve lá atrás. Uma das montanhas,

explicou Yin, era Kailash.

Ao passarmos pelo lago, vimos numerosos grupos de peregrinos

em redor de grandes postes com bandeiras.

- O que é aquilo? - perguntei.

- Bandeiras de oração - respondeu Yin. - Colocar bandeiras

que representam as nossas orações é uma tradição no Tibete há

séculos. As bandeiras de oração ficam a drapejar ao vento e

 

 

isso envia continuamente as orações que elas contêm para Deus.

As bandeiras de oração podem também ser dadas a pessoas.

- Que tipo de orações contêm as bandeiras?

- Orações para que o amor prevaleça em toda a humanidade.

Fiquei silencioso.

- Irónico, não é? - acrescentou Yin. - A cultura do Tibete é

totalmente dedicada à vida espiritual. Somos possivelmente o

povo mais religioso do mundo. E fomos atacados pelo governo

mais ateu da Terra: o da China. É um contraste perfeito,

visível para todo o mundo. Uma visão ou outra há-de vencer.

Sem falar mais, atravessámos mais uma pequena vila e depois

entrámos em Darchen, a cidade mais próxima do monte Kailash,

onde Yin contratou dois mecânicos seus conhecidos para

procurarem potenciais problemas mecânicos no nosso jipe.

Acampámos com os outros habitantes, tão próximo da montanha

quanto possível sem levantarmos suspeitas. Eu não conseguia

tirar os olhos dos cumes gelados.

- Visto daqui, o monte Kailash parece uma pirâmide - disse.

Yin concordou com um aceno.

- O que é que isso lhe diz? Que ele tem poder.

Quando o sol desceu para lá do horizonte, observámos uma

vista incrível. Um pôr do Sol magnífico encheu o céu a

ocidente com camadas sucessivas de nuvens cor de pêssego e, ao

mesmo tempo, o sol abaixo do horizonte continuava a brilhar na

face do monte Kailash, fazendo das suas encostas nevadas um

espectáculo deslumbrante de amarelo e laranja.

- Ao longo da história - disse Yin -, grandes imperadores

viajaram milhares de quilómetros a cavalo ou liteira, para

testemunharem estas vistas no Tibete. Pensava-se que a

primeira luz da manhã e a última da tarde tinham grandes

poderes de visionários e de rejuvenescimento.

118 - 119

Acenei com a cabeça enquanto ele falava, incapaz de desviar

o olhar da luz majestosa à minha volta. Sentia-me realmente

rejuvenescido e quase calmo. À nossa frente, na direcção de

Kailash, os vales planos e as faldas baixas estavam banhados

por camadas alternadas de sombra e reflexos castanhos claros,

dando um contraste etéreo aos picos mais altos iluminados pelo

sol, que pareciam brilhar por dentro. Era uma visão surreal e,

pela primeira vez, compreendi porque razão os tibetanos eram

tão espirituais. A luz deste país seria suficiente para os

conduzir inexoravelmente a uma consciência superior.

Na manhã seguinte, bem cedo, estávamos de novo a caminho e

cinco horas depois chegámos aos limites de Ali. O céu estava

encoberto e a temperatura caía rapidamente. Yin virou várias

vezes para estradas quase intransitáveis, tentando evitar o

centro da cidade.

- Já estamos numa zona essencialmente chinesa - disse Yin -,

com bares e salões de strip-tease para os soldados. Temos de

passar sem que ninguém dê por nós.

Quando chegámos novamente a uma estrada decente, estávamos

já a norte da cidade. A dada altura avistei um edifício de

escritórios recente, com vários camiões ainda mais novos

estacionados lá fora. Não se via qualquer movimento em redor

do edifício.

Yin viu-o ao mesmo tempo, saiu da estrada principal para uma

estrada mais antiga e parou.

- Aquilo é uma instalação chinesa nova - disse. - Não sabia

 

 

que estava aqui. Olhe e veja se alguém nos observa enquanto

passamos.

Nesse momento levantou-se vento e começou a nevar

fortemente, ajudando a ocultar a nossa identidade. Enquanto

passávamos, olhei com muita atenção para o edifício. A maior

parte das suas janelas estavam cobertas.

- O que é aquele lugar? - perguntei.

- Penso que seja uma estação de exploração de petróleo. Mas

quem sabe?

- O que se passa com o tempo?

- Parece que vem aí uma tempestade. Isto pode ajudar-nos.

- Estás a pensar na hipótese deles andarem à nossa procura

aqui em cima, não estás? - perguntei.

Ele olhou para mim com uma tristeza profunda, que se

transformou numa raiva furiosa.

- Foi nesta cidade que o meu pai foi morto - disse ele.

Eu abanei a cabeça.

- Foi terrível tu teres de ver isso.

- Aconteceu a milhares de tibetanos - acrescentou ele,

olhando fixamente em frente.

O ódio dele era bem visível. Abanou a cabeça.

- É importante não pensarmos nisso. Temos de evitar

semelhantes imagens. Especialmente você. Tal como eu já disse,

eu posso não ser capaz de controlar a minha raiva. Você tem de

ser melhor do que eu neste problema, para poder prosseguir

sozinho se for necessário.

- O quê?

- Escute bem - disse ele. - Tem de compreender exactamente

onde está. Aprendeu as três primeiras extensões. Foi capaz de

aumentar de forma consistente a sua energia e criar um campo

forte mas, tal como eu, ainda cai no medo e na ira. Há outras

coisas que eu lhe posso ensinar acerca de ancorar o seu fluxo

de energia.

- O que queres dizer com ancorar? - perguntei.

- Tem de estabilizar melhor o seu fluxo de energia, para que

ele se mantenha a fluir bem em direcção ao mundo,

independentemente da sua situação. Quando fizer isto, as três

extensões que aprendeu tornam-se uma estrutura constante e um

modo de vida.

- Essa é a Quarta Extensão? - inquiri.

- É o começo da Quarta. O que eu estou prestes a dizer-lhe é

a última informação que temos acerca das extensões. O resto da

Quarta Extensão só é do conhecimento dos habitantes de

Shambhala.

- Idealmente, as extensões deveriam funcionar em conjunto da

seguinte maneira: a sua energia de oração devia fluir a partir

da ligação divina dentro de si, provocando a sincronicidade da

expectativa e transportando toda a gente que ela toca ao seu

eu mais elevado. Desta forma ela maximiza a evolução

misteriosa das nossas vidas, a consciência e a realização das

nossas missões individuais neste planeta.

Infelizmente temos percalços ao longo do caminho, desafios

que provocam estados de medo que, como já vimos, provocam

dúvidas e fazem ceder os nossos campos.

120 - 121

Pior ainda, este medo pode provocar imagens negativas, más

expectativas, que podem ajudar a criar nas nossas vidas aquilo

que nós receamos. O que tem de aprender agora é uma forma de

 

 

ancorar a sua energia superior, para se manter mais

frequentemente no fluxo positivo.

- O problema do medo - prosseguiu Yin -, é que ele pode ser

muito subtil e apanhar-nos desprevenidos muito depressa. Está

a ver, uma imagem receosa é sempre acerca de um resultado que

nós não queremos. Receamos falar, embaraçar a nós mesmos ou às

nossas famílias perder a nossa liberdade ou alguém que amamos,

ou as nossas vidas.

A parte difícil é que, quando começamos a sentir esse medo,

ele muitas vezes transforma-se em raiva, que usamos para

tornar as nossas forças mais agressivas e lutar contra quem

sentimos como uma ameaça.

Sentindo medo ou raiva, temos de compreender que essas

emoções vêm de uma única fonte: os aspectos da nossa vida que

queremos manter. As lendas dizem que, uma vez que o medo e a

raiva advêm do receio de perdermos alguma coisa, a forma de

evitar estas emoções é distanciar-se de todos os resultados.

Estávamos bem a norte da cidade e a neve caía cada vez com

mais força. Yin esforçava-se por ver a estrada e olhava apenas

brevemente para mim enquanto falava.

- Veja o nosso caso, por exemplo - disse. - Estamos à

procura do Wil e do portão para Shambhala. As lendas diriam

que, ao mesmo tempo que preparamos os nossos campos para

esperarem as intuições e os acontecimentos certos para nos

guiarem, deveríamos distanciarmo-nos totalmente de qualquer

resultado particular. Era isto que eu estava a sugerir quando

lhe disse para ter cautela na sua preocupação com o facto do

Jacob parar ou não. A importância de manter a distância é a

grande mensagem do Buda e o dom de todas as religiões

orientais à humanidade.

Eu conhecia o conceito, mas nesse momento estava a ter

dificuldade em ver o seu valor.

- Yin - protestei. - Como poderemos distanciarmo-nos

completamente? Esta ideia muitas vezes parece-me uma teoria da

torre de marfim. Ajudar o Wil pode ser uma questão de vida ou

morte. Como poderemos não estar preocupados com isso?

Yin saiu da estrada e parou. A visibilidade era agora quase

nula.

- Eu não disse para não se preocupar - continuou ele. - Eu

disse para não se prender a nenhum resultado particular.

Aquilo que recebemos na vida é sempre ligeiramente diferente

daquilo que queremos, de qualquer maneira. Manter-se

distanciado é compreender que existe sempre um objectivo maior

que pode ser descoberto em qualquer acontecimento, em qualquer

resultado. Podemos sempre encontrar um lado bom, um

significado positivo, como base de partida.

Acenei com a cabeça. Esta era uma ideia que eu conhecia do

Peru.

- Eu compreendo - disse eu -, o valor de olhar dessa forma

para as coisas em geral, mas uma tal perspectiva não tem os

seus limites? E se estivermos prestes a ser mortos ou

torturados? É difícil mantermos a distância em relação a isso,

ou ver um lado positivo.

Yin olhou fixamente para mim. - Mas, e se a tortura for

sempre o resultado de não estarmos suficientemente desligados

durante os acontecimentos que conduzem a uma tal situação

crítica? As nossas lendas dizem que quando aprendermos a

distanciarmo-nos, a nossa energia pode manter-se

suficientemente alta para evitar todas essas ocorrências

extremamente negativas. Se conseguirmos mantermo-nos fortes,

sempre à espera do positivo, então começarão a acontecer

 

 

milagres, seja o resultado exactamente o que pensávamos ou

não.

Não conseguia acreditar nisto.

- Estás a dizer que tudo o que acontece de mal apenas

acontece porque perdemos uma oportunidade de sincronicidade

para o evitarmos?

Ele olhou para mim com um sorriso.

- Sim, é exactamente isso que eu estou a dizer.

- Mas isso é terrível. Isso não atribui a culpa, digamos, a

alguém que tem uma doença terminal, pensando que é culpa dele

estar doente, porque perdeu a oportunidade de encontrar uma

cura?

- Não, não há culpa. Todos fazemos o melhor que podemos. Mas

aquilo que eu lhe disse é uma verdade que temos de aceitar se

quisermos chegar aos níveis mais elevados da energia de

oração. Temos de manter os nossos campos tão fortes quanto

possível; para fazê-lo temos de acreditar sempre, com uma fé

poderosa, que seremos salvos desses problemas.

- Por vezes perderemos algumas coisas - continuou. - O

conhecimento humano é incompleto e nós podemos morrer ou ser

torturados por falta de informação. Mas a verdade é esta:

122 - 123

se tivéssemos todo o conhecimento que os humanos terão um dia,

seríamos sempre guiados para fora das situações perigosas.

Alcançamos o nosso maior poder quando assumimos que já é esse

o caso. É esta a maneira de nos mantermos flexíveis e à

distância, formando um campo de expectativa poderoso.

Tudo começava a fazer sentido. Yin estava a dizer-me que

todos devemos assumir que o processo da sincronicidade nos

afastará sempre dos perigos, que saberemos antecipadamente

qual o movimento a fazer, porque essa capacidade é o nosso

destino. Se acreditarmos, mais cedo ou mais tarde isso será

verdade para todos os humanos.

- Todos os grandes místicos - prosseguiu Yin -, dizem que

agir com uma fé total é importante. O apóstolo João, na vossa

Bíblia ocidental, descreve o resultado deste tipo de fé.

Colocaram-no num tonel cheio de óleo fervente e ele nada

sofreu. Outros foram colocados junto de leões esfomeados e

permaneceram em segurança. Isto serão apenas mitos?

- Mas quão grande terá de ser a nossa fé, para conseguirmos

esse grau de invulnerabilidade? - perguntei.

- Temos de alcançar um grau próximo do dos habitantes de

Shambhala - respondeu Yin. - Não vê como tudo se encaixa? Se a

nossa expectativa de oração corrente for suficientemente

forte, ambos esperamos a sincronicidade e enviamos energia aos

outros, para que também eles esperem a sincronicidade. O nível

de energia vai subindo. E entretanto há sempre os dakini...

Ele desviou rapidamente o olhar, aparentemente horrorizado

por ter mencionado novamente estes seres.

- O que têm os dakini? - perguntei.

Ele ficou silencioso.

- Yin - insisti. - Tens de me explicar o que querias dizer.

Como é que os dakini se encaixam em tudo isto?

Finalmente ele respirou fundo e disse:

- Estou a dizer-lhe só aquilo que eu próprio compreendo. As

lendas dizem que os dakini apenas são compreendidos pelos

habitantes de Shambhala e que devemos ter muito cuidado. Não

lhe posso dizer mais.

 

 

Olhei para ele, irritado.

- Bem, teremos de descobrir isso mais tarde, não é, quando

chegarmos a Shambhala?

Ele olhou para mim com grande tristeza.

- Eu já lhe disse que tive demasiadas experiências com os

militares chineses. O meu ódio e raiva desgastam a minha

energia. Se, a qualquer altura, eu vir que estou a retê-lo,

terei de partir e você terá de seguir sozinho.

Olhei para ele, sem querer pensar nessa possibilidade.

- Lembre-se - continuou ele -, daquilo que eu disse acerca

de manter a distância e acerca de acreditar que seremos sempre

guiados para lá dos perigos.

Fez uma pausa, enquanto ligava o jipe e avançava através da

neve soprada pelo vento.

- Pode ter a certeza - disse finalmente - que a sua fé em

breve será posta à prova.

124 - 125

6.

A PASSAGEM

Depois de viajarmos para norte durante quarenta minutos,

Yin virou para uma pista de camiões muito desgastada e seguiu

em direcção a uma alta cadeia montanhosa a trinta ou quarenta

quilómetros de distância. A neve era cada vez mais intensa.

Primeiro fraco, depois cada vez mais intenso, um murmúrio

baixo cresceu acima do ruído do motor e do vento.

Yin e eu olhámos um para o outro, quando os sons se tornaram

finalmente reconhecíveis.

- Helicópteros - gritou Yin, tirando o jipe da pista e

levando-o para uma abertura nas rochas. O jipe baloiçou

loucamente.

- Eu sabia. Eles têm maneira de voar com este tempo.

- O que queres dizer com isso, que tu sabias?

À medida que o som crescia por cima de nós, pareceu-me ouvir

duas aeronaves. Uma delas pairava directamente por cima de

nós.

- Isto é culpa minha - gritou Yin, acima do barulho. - Você

tem de sair! Já!

- O quê? - gritei. - Estás maluco? Para onde é que eu hei-de

ir?

Ele gritou-me ao ouvido.

- Não se esqueça de se manter alerta. Está a ouvir-me?

Continue a avançar para norte, para Dormar! Tem de chegar às

montanhas Kunlun!

Com um movimento hábil abriu a minha porta e empurrou-me

para fora.

127

Aterrei de pé, depois cambaleei até cair sobre um banco de

neve. Sentei-me e tentei ver o jipe, mas ele já estava a

afastar-se e a neve que caía tapou-me a visão. Uma onda de

pânico puro encheu-me.

Nesse momento um movimento à minha direita chamou-me a

 

 

atenção. Através da neve via a figura de um homem alto, a uns

dez metros de distância, vestido com umas calças de pele negra

de iaque e um colete e chapéu de pele de cabra. Estava quieto,

olhando intensamente para mim, mas tinha o rosto parcialmente

coberto por um lenço de lã. Reconheci aqueles olhos. De

onde?Após mais alguns segundos ele olhou para o helicóptero,

que estava a fazer mais uma passagem, e afastou-se

rapidamente.

Sem aviso, três ou quatro terríveis explosões irromperam na

direcção seguida pelo jipe, fazendo saltar as rochas e a neve

à minha volta e enchendo o ar de um fumo asfixiante.

Levantei-me e cambaleei para longe, enquanto várias outras

explosões ecoavam em redor. O vento estava agora completamente

cheio de uma espécie de gás tóxico. A minha cabeça começou a

andar às voltas.

Ouvi a música antes de estar completamente consciente. Era

um compositor clássico chinês que eu já conhecia. Despertei de

um salto e apercebi-me que estava num quarto decorado ao

estilo chinês. Sentei-me na cama ornamentada e afastei os

lençóis de seda. Tinha vestida apenas uma túnica de hospital e

tinha sido lavado. O quarto tinha pelo menos vinte por vinte

metros e cada parede revestida a madeira tinha um mural

diferente. Uma mulher chinesa estava a espreitar-me através de

uma abertura na porta.

A porta abriu-se e um empertigado oficial do exército

chinês, de farda completa, entrou. Um arrepio percorreu-me.

Era o mesmo oficial que eu já tinha visto várias vezes. O meu

coração batia com força. Tentei aumentar a minha energia, mas

a visão do oficial abateu-me completamente.

- Bom dia - disse o homem. - Como se sente?

- Tendo em conta que fui gaseado - respondi -, sinto-me

bastante bem.

Ele sorriu.

128

- Não tem qualquer efeito duradouro. Garanto-lhe.

- Onde estou?

- Está em Ali. Os médicos já o viram e você está bem. Mas

tenho de fazer-lhe algumas perguntas. Porque estava a viajar

com Yin Doloe e para onde iam?

- Queríamos visitar alguns dos antigos mosteiros.

- Porquê?

Decidi não lhe dizer mais nada.

- Porque sou um turista. Tenho um visto. Porque fui atacado?

A Embaixada Americana sabe que estou detido?

Ele sorriu e olhou de forma ameaçadora para os meus olhos.

- Sou o coronel Chang. Ninguém sabe que você está aqui e, se

tiver violado as nossas leis, ninguém o pode ajudar. O senhor

Doloe é um criminoso, membro de uma organização religiosa

ilegal que está a perpetrar uma fraude no Tibete.

Os meus piores receios pareciam estar a tornar-se realidade.

- Não sei nada acerca disso - disse eu. - Gostava de

telefonar a alguém.

- Porque é que o senhor Doloe e os outros andam à procura de

Shambhala?

- Não sei do que é que está a falar.

Ele deu um passo na minha direcção - Quem é Wilson James?

 

 

- É um amigo meu - respondi.

- Ele está no Tibete?

- Penso que sim, mas eu não o vi.

Chang olhou para mim com um toque de indignação e, sem dizer

mais nada, virou-se e saiu.

Isto é mau, pensei, muito mau. Estava prestes a sair da cama

quando a enfermeira regressou com uma dúzia de soldados, um

dos quais empurrava algo semelhante a um enorme pulmão de

ferro, só que era maior e erguia-se sobre pernas altas e

largas, aparentemente para poder ser empurrado para cima de

alguém que estivesse deitado.

Antes que eu pudesse dizer qualquer coisa, os soldados

seguraram-me e deslizaram a máquina sobre o meu corpo. A

enfermeira ligou-a, produzindo um gemido suave e uma luz forte

directamente no meu rosto.

129

Mesmo com os olhos fechados, via a luz a avançar da direita

para a esquerda sobre a minha cabeça, como o scanner de uma

fotocopiadora.

Assim que a máquina parou, os soldados afastaram o aparelho

e saíram da divisão. A enfermeira demorou-se mais um momento,

observando-me.

- O que era aquilo? - balbuciei.

- Apenas um encefalograma - disse ela com um inglês

cauteloso, enquanto levava a mão a um armário e retirava de lá

as minhas roupas. Tinham sido limpas e dobradas

cuidadosamente.

- Para que era? - insisti.

- Para verificar tudo, para garantir que está bem.

Nesse momento a porta abriu-se novamente e o coronel Chang

regressou. Pegou numa cadeira junto à parede e pousou-a perto

da minha cama.

- Talvez fosse melhor eu explicar aquilo com que estamos a

lidar aqui - disse ele, ao sentar-se na cadeira. Parecia

cansado.

- Existem muitas seitas religiosas no Tibete e muitos dos

seus seguidores procuram passar para o mundo a impressão de

serem um povo religioso oprimido pelos chineses. E admito que

as nossas políticas iniciais dos anos 50, e durante a

Revolução Cultural, foram duras. Mas estas políticas mudaram

nos anos mais recentes. Estamos a tentar ser tão tolerantes

quanto possível, tendo em conta que a política oficial do

governo chinês é o ateísmo.

- Estas seitas devem lembrar-se que o Tibete também mudou.

Muitos chineses vivem aqui agora, viveram sempre aqui, e

muitos deles não são budistas. Temos de viver todos juntos.

Não há maneira de o Tibete voltar ao domínio dos Lamas.

- Compreende aquilo que eu estou a dizer? O mundo mudou.

Mesmo que quiséssemos dar ao Tibete a sua liberdade, isso não

seria justo para com os chineses.

Ele esperou que eu dissesse qualquer coisa. Pensei

confrontá-lo com a política governamental de importar cidadãos

chineses para o Tibete, como forma de diluir a cultura

tibetana. Em vez disso, disse:

- Penso que eles apenas querem ter a liberdade de seguir a

sua religião sem interferência.

- Permitimos uma parte disso, mas eles estão sempre a mudar

aquilo que fazem. Quando pensamos saber quem manda, a situação

 

 

altera-se. Penso que estamos a chegar a um bom relacionamento

com a hierarquia oficial budista, mas depois há os expatriados

tibetanos na Índia, e este outro grupo a que pertence o senhor

Doloe, aquele que segue um conhecimento verbal críptico e que

está a provocar toda esta conversa sobre Shambhala. É

perturbador para o povo. Há muito trabalho importante a fazer

no Tibete. As pessoas são muito pobres. A qualidade de vida

deve ser melhorada.

Olhou para mim e sorriu.

- Porque é que esta lenda de Shambhala é levada tão a sério?

Parece quase pueril, uma ideia de crianças.

- Os tibetanos acreditam que existe uma outra realidade,

mais espiritual, para lá dos mundos físicos visíveis e que

Shambhala, embora pertença à Terra, fica nesse reino

espiritual.

Não conseguia acreditar que estava a arriscar um debate de

ideias com ele.

- Mas como podem pensar que um tal lugar existe? - continuou

-, Inspeccionámos cada centímetro do Tibete, a partir do ar e

com satélites, e não vimos nada.

Fiquei silencioso.

- Sabe onde supostamente fica esse lugar? - insistiu ele. -

É por isso que aqui está?

- Adoraria saber onde é - respondi. - Ou até saber o que é,

mas receio não saber. Também não quero ter problemas com as

autoridades chinesas.

Ele escutou-me atentamente e por isso continuei.

- Na realidade, tudo isto me apavora e eu preferia ir-me

embora.

- Oh, não, nós só queremos que partilhe connosco aquilo que

sabe - disse ele. - Se um tal lugar existe, se é uma cultura

oculta, queremos conhecer essa informação. Partilhe connosco o

seu conhecimento e deixe-nos ajudá-lo. Talvez possamos chegar

a um compromisso.

Olhei para ele durante um momento e disse:

- Gostaria de contactar a Embaixada Americana, se puder ser.

Ele tentou esconder a sua impaciência, mas eu conseguia

vê-la nos seus olhos. Olhou para mim mais um momento, depois

caminhou até à porta e voltou-se.

130 - 131

- Isso não é necessário - disse. - Está livre para partir.

Minutos depois caminhava pelas ruas de Ali, fechando bem o

meu blusão. Agora não estava a nevar, mas estava muito frio.

Antes, tinha sido forçado a vestir-me em frente da enfermeira

e depois escoltado para fora da casa. Enquanto continuava a

andar, inspeccionei o conteúdo dos meus bolsos.

Surpreendentemente, estava lá tudo: um canivete, a minha

carteira, um pequeno pacote de amêndoas.

Sentia-me estonteado e fatigado. Seria por causa da

ansiedade?

perguntei a mim mesmo. Os efeitos do gás? A altitude? Tentei

afastar a sensação.

Ali era uma cidade moderna, com muitos chineses e tibetanos

pelas ruas e veículos por toda a parte. Os seus edifícios e

lojas bem tratados eram vagamente desconcertantes, tendo em

conta as péssimas estradas e condições que tínhamos suportado

 

 

para chegar aqui.

Olhando em redor, não via ninguém que me parecesse capaz de

falar inglês e, após vários quarteirões, comecei a sentir-me

ainda mais estonteado. Tive de sentar-me na beira da estrada,

num velho bloco de cimento. O medo cresceu, quase se

transformando em pânico. O que fazer agora? O que acontecera a

Yin? Porque é que o coronel chinês me deixara partir assim?

Não fazia sentido.

Com essa ideia, surgiu na minha mente uma imagem completa de

Yin e eu senti uma admoestação. Estava a deixar a minha

energia descer. O medo estava a dominar-me e eu esquecera-me

de fazer qualquer coisa a esse respeito. Respirei fundo e

tentei aumentar a minha energia.

Alguns minutos depois comecei a sentir-me melhor e os meus

olhos pousaram sobre um grande edifício, a vários quarteirões

de distância. Tinha na parede lateral um cartaz em chinês que

eu não consegui ler mas, ao concentrar-me na forma do

edifício, tive a nítida sensação que seria uma pensão ou

pequeno hotel. Senti-me animado. Talvez houvesse lá um

telefone, talvez até outros turistas a quem eu me pudesse

agarrar.

Ergui-me e caminhei nessa direcção, tendo o cuidado de

manter as ruas à minha volta debaixo de olho. Minutos depois

estava a algumas portas da pensão Shing Shui, mas senti-me

hesitante e olhei cautelosamente em redor. Ninguém parecia

estar a seguir-me. Quando estava quase à porta, ouvi um

barulho. Qualquer coisa tinha caído na neve. Olhei à minha

volta. Estava no meio da rua, directamente em frente de um

beco estreito, sozinho a não ser por alguns homens que

caminhavam noutras direcções, a quatro metros de mim. Ouvi

novamente o barulho. Estava próximo. Quando olhei para os meus

pés, vi uma pequena pedra sair do beco a voar e mergulhar na

neve.

Dei um passo em frente e tentei espreitar pela abertura

obscurecida. Dei mais alguns passos, tentando adaptar os olhos

à sombra.

- Sou eu - disse uma voz.

Soube imediatamente que era Yin.

Corri para o beco, encontrando-o encostado a uma parede de

tijolo.

- Como sabias onde eu estava? - perguntei.

- Não sabia - foi a resposta dele. - Estava apenas a

adivinhar. Deslizou parede abaixo e sentou-se e eu notei que o

blusão dele estava queimado nas costas. Quando ele mexeu o

braço, vi uma mancha de sangue no ombro.

- Estás ferido! - disse eu. - O que se passa?

- Não é tão mau como parece. Eles largaram uma bomba de

impacte e eu caí sobre umas rochas quando fui atirado do jipe.

Consegui arrastar-me para longe antes deles aterrarem. Vi-os a

levarem-no para um camião que seguiu nesta direcção. Calculei

que, se conseguisse escapar, seguiria para a maior pensão. O

que lhe aconteceu?

Falei a Yin acerca do meu despertar na casa chinesa, do

interrogatório com o coronel Chang e da minha libertação.

- Porque me empurraste para fora do jipe? - perguntei.

- Já lhe disse - replicou Yin. - Não consigo controlar as

minhas expectativas receosas. O meu ódio aos chineses é

demasiado grande.

Eles conseguem seguir-me. - Fez uma pausa. - Porque é que o

libertaram?

- Não sei - retorqui.

 

 

Yin mexeu-se um pouco e fez um esgar de dor.

- Provavelmente porque o Chang sente que também o consegue

seguir.

132 - 133

Abanei a cabeça. Isto seria real?

- Ele não poderia saber como isso funciona, obviamente -

continuou Yin -, mas quando esperamos a vinda dos soldados, as

nossas expectativas sugerem ao ego dele a forma de se

aproximar de nós.

Provavelmente ele pensa que tem um poder especial.

Lançou-me um olhar duro.

- Tem de aprender com o meu problema. Tem de dominar os seus

pensamentos.

Yin olhou para mim mais um momento e depois, segurando o

braço, conduziu-me pelo beco, passando por uma abertura

estreita entre dois edifícios e chegando ao que parecia ser um

prédio abandonado.

- Temos de levar-te a um médico - disse eu.

- Não! - disse Yin com ênfase. - Ouça-me. Eu fico bem. Há

aqui pessoas que me podem ajudar. Mas eu não posso ir consigo

às ruínas do antigo mosteiro; terá de ir sozinho.

Voltei-me, com o medo a crescer dentro de mim.

- Não me parece que consiga fazer isso.

Yin pareceu alarmado.

- Tem de controlar o seu medo, voltar ao distanciamento. A

sua ajuda é necessária, para encontrar Shambhala. Tem de

continuar.

Tentou sentar-se, fazendo um esgar quando se aproximou de

mim.

- Não compreende que o povo tibetano já sofreu muito? Mas

esperam o dia em que Shambhala será revelada ao mundo inteiro.

Franziu a testa quando fixou os meus olhos.

- Pense em quantas pessoas nos ajudaram a chegar até aqui.

Muitas delas arriscaram tudo. Algumas podem ter sido presas,

até fuziladas.

Ergui a mão e mostrei-lha; estava a tremer.

- Olha para mim. Mal consigo mexer-me.

O olhar de Yin trespassou-me.

- Não lhe parece que o seu pai estava aterrorizado, quando

abriu caminho para fora da lancha de desembarque e correu para

as praias de França, na Segunda Guerra Mundial? Tal como os

outros? Mas ele fê-lo! E se não o tivesse feito? Se todos eles

não o tivessem feito? A guerra podia ter sido perdida. A

liberdade para todos teria sido perdida.

Nós, no Tibete, perdemos a nossa liberdade, mas aquilo que

está a acontecer agora ultrapassa o Tibete. Ultrapassa-nos

aos dois. É aquilo que deve acontecer para que os sacrifícios

de muitas gerações sejam honrados. Compreender Shambhala,

aprender a usar os campos de oração neste momento da história,

é o próximo passo na evolução da humanidade. É a grande tarefa

da nossa geração. Se falharmos, deixaremos ficar mal todos os

que nos antecederam.

Yin fez uma careta de dor, depois desviou o olhar. Nos seus

olhos estavam a formar-se lágrimas.

- Eu iria, se pudesse - acrescentou -, mas neste momento

acho que você é a nossa única hipótese.

Ouvimos o ruído de grandes camiões e vimos dois transportes

de tropas a passarem.

 

 

- Não sei para onde ir - disse eu.

- O antigo mosteiro não fica longe - retorquiu Yin. - Pode

chegar lá num dia de viagem. Posso arranjar alguém para

levá-lo.

- O que é suposto eu fazer lá? Disseste antes que eu seria

posto à prova. O que querias dizer com isso?

- Para passar pelo portão, terá de permitir o fluxo completo

da energia divina através de si e preparar o seu campo da

forma que aprendeu. Lembre-se que este campo se estende a

partir de si e tem um efeito sobre o que acontece. Mais

importante, controle as imagens do seu medo e mantenha-se

distanciado. Ainda receia certos resultados. Não quer perder a

vida.

- É claro que não quero perder a vida - disse eu, quase aos

gritos. - Tenho muito por que viver.

- Sim, eu sei - respondeu ele delicadamente. - Mas esses

pensamentos são perigosos. Deve abandonar todas as ideias de

fracasso. Eu não consigo fazer isso, mas penso que você

conseguirá. Tem de ter a certeza, com toda a sua fé, que será

salvo, que será bem sucedido.

Fez uma pausa, para ver se eu compreendia.

- Mais alguma coisa? - perguntei.

- Sim - disse ele. - Se tudo o mais falhar, continue a

afirmar que Shambhala o ajudará. Procure-os...

Ele parou, mas eu sabia o que ele queria dizer.

134 - 135

Na manhã seguinte, estava na cabina de uma velha carrinha de

tracção às quatro rodas, entalado entre um pastor e o seu

filho de quatro anos. Yin sabia exactamente o que fazer.

Apesar das dores, esgueirámo-nos por vários quarteirões até

uma velha casa de tijolos de adobe, onde nos deram uma

refeição quente e um lugar para passar a noite. Ele ficou

acordado até tarde, a falar com vários homens. Eu podia apenas

supor que os homens eram membros do grupo secreto de Yin, mas

não fiz qualquer pergunta. Levantámo-nos cedo e minutos depois

a carrinha agrícola apareceu e eu entrei.

Seguíamos agora por uma picada coberta de neve, subindo cada

vez mais as montanhas. A carrinha seguiu aos saltos e, ao

fazer uma curva, chegámos a um ponto alto de onde se avistava

o lugar onde Yin e eu nos tínhamos despedido. Pedi ao condutor

para abrandar, de modo a que eu pudesse olhar.

Horrorizado, vi que toda a área lá em baixo estava cheia de

veículos militares e soldados.

- Espere um minuto - disse eu ao condutor. - Yin pode

precisar de ajuda. Temos de parar.

O velho abanou a cabeça.

- Ter de seguir! Ter de seguir!

Ele e o filho falaram nervosamente em tibetano, olhando

ocasionalmente para mim, como se soubessem algo que eu não

sabia. Ele acelerou a carrinha, atravessámos uma passagem e

começámos a descer as montanhas.

Senti uma pontada de medo no estômago. Fiquei dividido

acerca do que fazer. E se Yin tivesse escapado e precisasse de

mim? Por outro lado, achava que sabia o que Yin teria querido.

Ele teria insistido para eu continuar. Tentei manter a minha

energia alta, mas uma parte de mim interrogou-se se toda esta

conversa de portões e Shambhala acabaria por se revelar apenas

um mito. E mesmo que fosse verdade, porque seria eu autorizado

 

 

a entrar e não outra pessoa, como Jampa ou o Lama Rigden? Nada

fazia sentido.

Afastei estas ideias com um encolher de ombros e tentei

manter a energia elevada, olhando para os picos cobertos de

neve. Observei atentamente as várias cidadezinhas que

atravessámos, incluindo Dormar.

136

Finalmente, depois de comer um almoço de sopa fria e tomate

seco, adormeci durante muito tempo. Quando acordei, já a tarde

ia avançada e grandes flocos de neve caíam novamente, em breve

cobrindo a estrada com uma camada renovada de branco.

Prosseguindo a viagem, o terreno ficou ainda mais montanhoso e

eu apercebia-me do ar a ficar mais rarefeito. À distância,

aproximava-se mais uma grande cordilheira montanhosa.

Deve ser a cordilheira de Kunlun, pensei, aquela que Yin

referiu. Uma parte de mim continuava a não acreditar que tudo

isto estava a acontecer. Mas uma outra sabia que sim, e que

agora eu estava sozinho, enfrentando a presença monolítica dos

chineses, com todos os seus soldados e cepticismo ateu.

Atrás de nós, ouvi o gemido suave de um helicóptero. O meu

coração começou a bater com força, mas mantive-me alerta.

O pastor pareceu ignorar a ameaça e continuou a conduzir

durante mais trinta minutos, depois sorriu e apontou para

cima. Através da neve que caía conseguia ver os contornos

escuros de uma grande estrutura de pedra, no cimo de uma das

primeiras elevações.

Várias paredes do lado esquerdo tinham caído. Atrás do

mosteiro erguiam-se enormes espirais de rocha coberta de neve.

O mosteiro tinha três ou quatro andares de altura, apesar do

telhado ter há muito apodrecido, e, durante um momento,

procurei atentamente sinais de pessoas ou movimento. Não vi

nada. Parecia estar completamente abandonado há muito tempo.

Na base da montanha, cento e cinquenta metros abaixo do

mosteiro, a carrinha parou e o homem apontou para a estrutura

em ruínas. Hesitei, olhando para a neve que caía. Ele fez

novamente um gesto, apressando-me com a sua expressão

excitada.

Agarrei na mochila que Yin me tinha preparado, na parte de

trás da carrinha. Comecei a subir a encosta. A temperatura

estava ligeiramente mais baixa, mas eu esperava, com a tenda e

o saco-cama, não morrer de frio. Mas, e os soldados? Observei

a carrinha a afastar-se e escutei atentamente, não ouvindo

qualquer som para lá do vento.

Olhei em redor, descobri uma escada de pedra monte acima e

comecei a subir. Após sessenta metros parei e olhei para sul.

Daqui não conseguia ver nada, a não ser quilómetros de

montanhas brancas.

137

Ao aproximar-me do mosteiro, consegui ver que este não

estava realmente sobre um monte, mas erguia-se junto a um

grande precipício que se estendia da montanha atrás dele. O

carreiro levava até à abertura que em tempos fora uma grande

porta e, cuidadosamente, entrei. Grandes pedras de matizes

diversos estavam espalhadas pelo chão coberto de pó e eu

estava em frente a um longo corredor que se estendia a todo o

 

 

comprimento da estrutura.

Segui pelo corredor, passando por várias divisões que se

abriam de ambos os lados. Finalmente cheguei a uma sala maior

que tinha uma passagem para a parte traseira do mosteiro. Na

realidade, metade da parede traseira tinha ruído e mais

pedras, algumas tão grandes como mesas, estavam espalhadas no

chão lá fora.

Pelo canto do olho, vi um movimento perto da parede caída.

Gelei. O que seria aquilo? Cautelosamente, avancei até à

abertura e olhei para fora em todas as direcções. Da porta à

parede de rocha nua da montanha eram uns trinta metros. Não

parecia estar lá ninguém.

Enquanto continuava a olhar, vi outro movimento vago, também

pelo canto do olho. Desta vez era mais afastado, perto da base

da encosta. Um arrepio percorreu-me. O que estava a passar-se?

O que estaria eu a ver? Pensei em agarrar na minha mochila e

correr monte abaixo, mas decidi não o fazer. Estava

definitivamente assustado, mas a minha energia mantinha-se

forte.

Concentrei-me o melhor que pude, no meio da neve que caía, e

segui para o penhasco onde me parecera ver o movimento. Quando

lá cheguei, não consegui encontrar nada. As paredes do

penhasco estavam cobertas de fendas verticais, incluindo uma

muito grande que de início parecia uma gruta estreita. Olhando

mais de perto vi que tinha apenas alguns centímetros de fundo,

demasiado apertada para alguém se esconder e cheia de neve.

Olhei em redor, procurando pegadas, e embora a neve tivesse

trinta ou quarenta centímetros de altura, apenas vi as minhas.

A neve caía agora com muito mais força, por isso regressei

ao mosteiro e descobri um canto da sala que ainda tinha uma

plataforma de pedra no sítio, para me proteger da neve e do

vento. Senti uma pontada de fome e roí algumas cenouras,

enquanto tirava o pequeno fogão a gás e aquecia a sopa de

vegetais congelada que Yin tinha colocado na minha mochila.

138

Enquanto ela fervia, pensei sobre o que tinha acontecido.

Restava apenas uma hora antes de anoitecer e eu não fazia

ideia da razão para estar aqui em cima. Inspeccionei a minha

mochila e não encontrei qualquer espécie de lanterna. Porque é

que Yin não tinha juntado uma? O gás do fogão não aguentaria a

noite inteira; tinha de encontrar alguma lenha ou excrementos

de iaque.

A mente já estava a pregar-me partidas, pensei. O que

poderia acontecer se tivesse de passar a noite inteira aqui no

alto, na escuridão absoluta? E se estas antigas paredes

começassem a ceder ao vento?

Assim que formulei esta ideia, ouvi um som de derrocada na

outra extremidade do mosteiro. Saí para o corredor e, quando

espreitei, vi uma enorme pedra a desabar sobre o chão.

- Jesus - disse eu em voz alta. - Tenho de sair daqui.

Apaguei o fogão, recolhi o resto do equipamento e corri

pelas traseiras para o meio da neve que soprava. Apercebi-me

imediatamente que teria de encontrar abrigo, por isso corri

para a encosta da montanha, esperando não ter visto alguma

fenda ou plataforma suficientemente grande para montar o meu

acampamento.

Quando cheguei ao penhasco, procurei em vão uma abertura.

Nenhuma das fendas era suficientemente profunda. O vento

 

 

uivava. A dada altura um grande monte de neve caiu de cima

dumas rochas e aterrou aos meus pés. Olhei para as toneladas

de neve acumulada, que bordejava as montanhas por cima de mim.

E se houvesse uma avalanche aqui? No olho da minha mente,

conseguia ver a neve a rolar montanha abaixo.

Mais uma vez, assim que tive esse pensamento, ouvi um som de

estremecimento acima de mim e para a direita. Agarrei no meu

equipamento e corri para o mosteiro, no exacto momento em que

um rugido poderoso enchia o ar e a neve descia pela encosta, a

cento e cinquenta metros de mim. Corri o mais depressa que

pude e caí sobre a neve a meio caminho do mosteiro,

aterrorizado. Porque estava tudo isto a acontecer?

Com esse pensamento, surgiu na minha mente uma memória de

Yin. Ele estava a dizer: "Nestes níveis de energia, o efeito

das nossas expectativas é imediato. Você será posto à prova."

Sentei-me. É claro! Era esta a prova. Eu não estava a

controlar as imagens do meu medo. Corri para o velho mosteiro

e agachei-me lá dentro.

139

A temperatura estava a cair rapidamente e eu sabia que tinha

de arriscar ficar lá dentro. Pousei as minhas coisas e passei

vários minutos a imaginar as pedras firmes nos seus lugares.

Um arrepio de frio percorreu-me. Agora, pensei, o que tenho

a fazer é tratar do frio. Imaginei-me sentado junto a uma

fogueira quente. Combustível. Tinha de encontrar algum

combustível.

Saí para inspeccionar o resto do mosteiro. Tinha apenas

chegado a meio do corredor quando parei abruptamente. Sentia o

cheiro de fumo, o fumo de madeira a arder. E agora?

Lentamente segui pelo corredor, espreitando todas as

divisões por onde passava, sem encontrar nada. Quando apenas

restava uma divisão, espreitei pela porta. Ao canto estava uma

fogueira a arder e uma pilha de lenha.

Entrei e olhei em volta. Não estava lá ninguém. Esta sala

tinha outra passagem para o exterior e mais telhado por cima.

Parecia muito mais quente. Mas quem fez a fogueira? Caminhei

até à abertura exterior e olhei para a neve. Continuava a não

ver qualquer pegada. Ia a voltar-me em direcção à porta

quando, na penumbra, vi uma figura alta de pé à entrada.

Tentei concentrar a minha visão directamente nela, mas apenas

conseguia vê-la com a visão periférica. Apercebi-me que era o

mesmo homem que eu tinha visto na neve quando Yin me empurrou

para fora do jipe. Tentei mais uma vez concentrar-me

directamente nele e ele desapareceu. Fiquei completamente

arrepiado. Não conseguia acreditar no que estava a acontecer.

Cautelosamente, passei pela entrada e espreitei para o

corredor em ambas as direcções, sem ver nada. Pensei novamente

em fugir do mosteiro e descer a montanha, mas sabia que a

temperatura continuava a descer rapidamente e se fizesse isso

provavelmente morreria gelado. A minha única opção era ir

buscar as minhas coisas e ficar perto desta fogueira. Por isso

recolhi o meu equipamento e regressei, olhando nervosamente

para todos os cantos.

Quando me sentei, uma rajada de vento atingiu a fogueira e

espalhou cinza por todo o lado. Fiquei a observar as chamas

durante um momento, vendo-as recuperar a sua força. Tinha

imaginado uma fogueira e depois esta tinha-se manifestado. Mas

 

 

acreditar que o meu campo pudesse ser tão forte era demasiado.

Só havia uma explicação. Eu estava a ser ajudado. Afigura que

eu tinha visto era um dakini.

Apesar de ser uma ideia fantástica deixou-me mais calmo; pus

mais lenha no fogo, terminei a minha sopa e depois abri o meu

saco-cama. Alguns minutos depois deitei-me e adormeci

profundamente. Quando acordei olhei em redor, assustado. O

fogo tinha-se extinguido e a primeira luz da alvorada estava a

surgir lá fora. A neve caía tão forte como na noite anterior.

Qualquer coisa me tinha despertado. O quê?

Ouvi o zumbido monótono de helicópteros a tornar-se mais

forte, seguindo na minha direcção. Pus-me de pé num salto e

recolhi as minhas coisas. Segundos depois os helicópteros

estavam directamente por cima de mim, aumentando o vento que

soprava em círculos.

Sem aviso, metade do mosteiro começou a desabar e a cair

para dentro, criando uma tempestade de poeira que escondia

tudo. Apalpei o caminho até à abertura das traseiras e corri

para o exterior, abandonando o meu equipamento. A tempestade

continuava a soprar neve na horizontal, permitindo-me ver

apenas alguns metros à minha frente, mas eu sabia que, se

continuasse a correr nesta direcção, em breve chegaria à

encosta da montanha que tinha visto na véspera.

Avancei com dificuldade até conseguir ver a parede rochosa.

Estava directamente à minha frente, a cerca de quinze metros,

mas eu sabia que, com a luz da manhã, ela não devia estar tão

visível. Era como se a montanha estivesse envolta numa cor

suave, ligeiramente âmbar, especialmente perto de uma das

fendas que eu tinha visto antes.

Olhei mais um momento, sabendo o que aquilo queria dizer, e

depois comecei a correr na direcção da luz, enquanto mais uma

parte do mosteiro caía atrás de mim. Quando cheguei à parede

do penhasco, os helicópteros pareciam estar directamente por

cima de mim.

O que restava do antigo mosteiro desabou completamente atrás

de mim, estremecendo o solo e deslocando a neve na fenda mais

próxima de mim, revelando uma abertura estreita. Afinal era

uma gruta!

Cambaleei pela passagem, no meio da escuridão total,

apalpando o caminho. Encontrei a parede traseira e depois uma

abertura que tinha menos de um metro e meio.

140 - 141

Inclinava-se para a direita e eu rastejei por ela,

apercebendo-me de um raio de luz minúsculo mais à frente, à

distância. Prossegui com dificuldade.

Num dado momento tropecei numa grande rocha e caí de cabeça

no chão de poeira e pedras, esfolando o cotovelo e o braço,

mas o som difuso dos helicópteros fez-me continuar a avançar.

Afastei a dor com um gesto e continuei na direcção da luz.

Depois de ter avançado várias dezenas de metros ainda

conseguia ver a minúscula abertura, mas ela não parecia mais

próxima. Continuei durante quase uma hora, tacteando o caminho

em direcção à pequena luz à minha frente.

Finalmente a luz pareceu aproximar-se e, ao chegar a três

metros dela, fui subitamente atingido por um sopro de ar mais

quente e pela fragrância que eu sentira antes, no mosteiro. À

distância, algures, ouvi um grito humano forte e melodioso,

que ecoou pelo meu corpo, desencadeando calor interior e

 

 

euforia. Seria este o chamamento que o Lama Rigden mencionara?

O chamamento de Shambhala.

Passei por cima da última rocha e enfiei a cabeça na

abertura. À minha frente estava uma paisagem inacreditável.

Estava a ver um grande vale agrícola e um límpido céu azul.

Para lá do vale, erguiam-se enormes picos montanhosos cobertos

de neve. Eram todos incrivelmente belos, sob a luz forte do

sol. A temperatura era baixa mas agradável e por todo o lado

cresciam plantas verdes. À minha frente a colina descia

delicadamente em direcção ao vale lá em baixo.

Quando saí pela abertura e comecei a descer a colina,

senti-me dominado pela energia deste lugar e comecei a ter

dificuldade em ver bem. Luzes e cores giravam à minha volta e

senti-me cair de joelhos. Descontrolado, comecei a rebolar

encosta abaixo. Rolei e rolei, quase como se estivesse meio

adormecido, perdendo toda a noção do tempo.

142

7.

ENTRADA EM SHAMBHALA

Senti alguém a tocar-me, mãos humanas que me envolveram e

me transportaram para outro local. Comecei a sentir-me seguro,

até mesmo eufórico. Após algum tempo, senti novamente aquela

fragrância doce, só que agora ela era omnipresente, enchendo a

minha consciência.

- Tente abrir os olhos - disse uma voz feminina.

Enquanto eu tentava focar a minha visão, consegui discernir

a figura de uma mulher grande, talvez com dois metros. Estava

a empurrar uma chávena na direcção do meu rosto.

- Tome - disse ela. - Beba isto.

Abri a boca e bebi uma sopa quente e saborosa, feita com

tomate, cebola e uma espécie de brócolos doces. Enquanto

bebia, apercebi-me que a minha percepção gustativa estava

ampliada. Conseguia distinguir com precisão todos os sabores.

Bebi a maior parte da chávena e momentos depois a minha cabeça

ficou mais clara e eu consegui ver tudo o que existia em

redor.

Estava numa casa, ou naquilo que parecia ser uma casa. A

temperatura era amena e eu estava deitado sobre um divã de

tecido azul esverdeado. O chão era de lajes castanhas de pedra

lisa e havia numerosas plantas em vasos de cerâmica por perto.

Mas por cima de mim estava o céu azul e os ramos pendentes de

várias árvores de grande porte. Ahabitação parecia não ter

tecto ou paredes exteriores.

- Já deve estar a sentir-se melhor agora. Mas tem de

respirar.

A mulher falava um inglês fluente.

143

Olhei para ela, enfeitiçado. Tinha aparência de asiática,

vestida com um traje de cerimónia tibetano, colorido e

bordado, com chinelos simples e de aspecto macio. A julgar

pela profundidade do olhar e pela sabedoria da voz, teria

 

 

cerca de quarenta anos, mas o seu corpo e os seus movimentos

davam-lhe o aspecto de alguém muito mais jovem. E embora o seu

corpo tivesse proporções perfeitas e uma forma magnífica,

todos os traços eram excepcionalmente grandes.

- Tem de respirar - repetiu ela. - Sei que você sabe como

fazer isso, ou não estaria aqui.

Finalmente compreendi o que ela queria dizer; comecei a

respirar a beleza daquilo que me rodeava e visualizei a

energia a entrar em mim.

- Onde estou? - perguntei. - Isto é Shambhala?

Ela fez um sorriso de aprovação e eu não consegui acreditar

na beleza do seu rosto. Era ligeiramente luminoso.

- Uma parte - respondeu. - Aquilo a que chamamos os anéis de

Shambhala. Mais para norte ficam os templos sagrados.

Continuou e disse-me que se chamava Ani; eu apresentei-me

enquanto ela olhava para mim.

- Conte-me como veio aqui ter - pediu ela.

De forma confusa, contei-lhe a história toda, começando com

uma breve descrição da minha conversa com Natalie e Wil, as

Revelações e a minha viagem ao Tibete, incluindo o encontro

com Yin e o Lama Rigden e as lendas, e finalmente a forma como

encontrei o portão. Mencionei até as minhas percepções da luz,

aparentemente trabalho dos dakini.

- Sabe porque está aqui? - perguntou ela.

Olhei-a por um momento. - Tudo o que sei é que o Wil me

pediu para vir e que era importante encontrar Shambhala.

Disseram-me que aqui havia conhecimento que era necessário.

Ela acenou e desviou o olhar, pensativa.

- Como é que fala tão bem inglês? - perguntei, sentindo-me

novamente fraco.

Ela sorriu.

-Aqui falamos muitas línguas.

- Viu um homem chamado Wilson James?

- Não - disse ela. - Mas o portão pode dar acesso aos anéis

noutros pontos. Talvez esteja cá, algures.

Tinha avançado até às plantas em vasos e estava a puxar uma

delas para mais perto de mim.

- Acho que tem de descansar um pouco. Tente absorver alguma

energia destas plantas. Prepare o seu campo de intenção para a

energia delas entrar em si e depois durma.

Fechei os olhos, seguindo as instruções dela, e momentos

depois adormeci.

Algum tempo mais tarde um barulho sussurrado despertou-me. A

mulher estava novamente à minha frente. Sentou-se na beira do

divã.

- Que barulho foi aquele? - perguntei.

- Veio do exterior.

- Através do vidro?

- Não é bem vidro. É um campo de energia que parece vidro,

mas que não pode ser partido. Ainda não foi inventado nas

culturas exteriores.

- Como é criado? É electrónico?

- Parcialmente, mas temos de participar mentalmente para o

activarmos.

Olhei para a paisagem no exterior da casa. Havia outras

casas espalhadas pelas colinas e prados suaves, até ao fundo

do vale plano.

Algumas tinham paredes exteriores transparentes, como a casa

de Ani. Outras pareciam feitas de madeira, num estilo tibetano

de desenho invulgar. Estavam todas discretamente aninhadas na

paisagem.

 

 

- E aquelas casas, com uma arquitectura diferente? -

perguntei.

- São todas criadas por um campo de forças - disse ela. - Já

não usamos madeira ou metais. Simplesmente criamos o que

queremos através dos nossos campos.

Eu estava fascinado.

- E a construção interna, água e electricidade?

- Temos água, mas ela condensa-se directamente a partir do

vapor de água no ar, os nossos campos fazem funcionar tudo o

mais de que precisamos.

Olhei novamente para o exterior, incrédulo.

- Fale-me deste lugar. Quantas pessoas vivem aqui?

- Milhares. Shambhala é um lugar muito grande.

144 - 145

Interessado, girei as pernas para fora do divã e pousei os

pés no chão, mas senti uma forte tontura. A minha visão ficou

turva.

Ela levantou-se, estendeu a mão para trás do divã e

entregou-me mais sopa.

- Beba isto e respire novamente as plantas - disse ela.

Obedeci e aos poucos senti a minha energia a voltar.

Enquanto absorvia mais ar, tudo ficou ainda mais brilhante e

mais belo do que antes, incluindo Ani. O rosto dela tinha

ficado mais luminoso, brilhando a partir de dentro,

exactamente com o mesmo aspecto que eu vira em Wil, noutras

ocasiões.

- Meu Deus - disse eu, olhando em redor.

- É bastante mais fácil aumentar a energia aqui do que nas

culturas exteriores - comentou ela - porque toda a gente dá

energia a todos os outros e prepara um campo para um nível

cultural superior.

Disse a expressão - nível cultural superior - como se

tivesse um significado mais elevado.

Eu não conseguia desviar os olhos daquilo que me rodeava.

Todas as formas, das plantas nos vasos perto de mim às cores

das lajes do chão, passando pelas luxuriantes árvores verdes

lá fora, pareciam brilhar a partir do interior.

- Tudo isto parece incrível - balbuciei. - Sinto-me como se

estivesse num filme de ficção científica.

Ela olhou para mim com uma expressão séria.

- Muita ficção científica é profética. O que está a ver é

simplesmente o progresso. Somos humanos como você e estamos a

evoluir da mesma maneira que vocês, nas culturas exteriores,

acabarão por evoluir, se não se sabotarem a vocês mesmos.

Nesse momento, um rapaz com uns catorze anos entrou na sala

a correr, acenou delicadamente para mim e disse:

- Pema chamou outra vez.

Ela voltou-se para ele.

- Sim, eu ouvi. Vais buscar os nossos casacos e um para o

nosso hóspede?

Não conseguia tirar os olhos do rapaz. A sua atitude parecia

de alguém muito mais velho do que ele e a sua aparência era-me

familiar. Lembrava-me alguém, mas não conseguia recordar quem.

- Pode vir connosco? - disse Ani, interrompendo o meu olhar

fixo. - Pode ser importante ver isto.

- Onde vamos? - perguntei.

-A casa de uma vizinha. Só para verificar as coisas. Ela

pensa ter concebido um filho há alguns dias e quer que eu a

 

 

veja.

- Você é médica?

- Nós não temos verdadeiros médicos, porque já não temos as

doenças que vos são familiares. Aprendemos a manter a nossa

energia acima desse nível. Eu ajudo as pessoas a

monitorizarem-se a si mesmas, a ampliarem a sua energia e a

mantê-la dessa forma.

- Porque é que diz que é importante eu ver isto?

- Porque você calhou a estar aqui neste momento. - Olhou para

mim como se eu fosse opaco.

- Certamente compreende o processo da sincronicidade.

O rapaz voltou e foi-me apresentado. Chamava-se Tashi.

Entregou-me um casaco azul-claro, que parecia quase igual a um

blusão vulgar, excepto nas costuras. Na realidade não tinha

qualquer costura. Era como se as peças de tecido estivessem

simplesmente unidas por contacto. E surpreendentemente, apesar

de ter o toque do algodão, não pesava quase nada.

- Como fazem isto? - perguntei.

- São campos de forças - disse Ani, enquanto ela e Tashi

atravessavam a parede com um sussurro. Tentei segui-los, mas

bati no que parecia uma peça sólida de acrílico. O rapaz, lá

fora, riu.

Com outro movimento sussurrado, Ani voltou a entrar, também

sorrindo.

- Eu devia ter-lhe dito o que fazer - disse ela. - Desculpe.

Tem de visualizar o campo de forças a abrir-se para si. Basta

ter essa intenção.

Eu lancei-lhe um olhar céptico.

- Basta vê-lo a abrir-se na sua mente e depois atravessá-lo.

Fiz como ela dizia e depois avancei. Conseguia mesmo ver o

campo a abrir-se. Parecia uma distorção espacial, algo de

semelhante aos raios de calor que se vêem na auto-estrada ao

sol. Com um sussurro, passei para o exterior. Ani seguiu-me.

Abanei a cabeça. Onde estava?

146 - 147

Seguindo Tashi, percorremos um carreiro cheio de curvas que

descia gradualmente a encosta da colina. Ao olhar para trás,

vi que a casa de Ani estava quase completamente oculta pelas

árvores e depois uma outra coisa chamou-me a atenção. Perto da

casa estava uma unidade quadrada preta, de aspecto metálico,

do tamanho de uma grande mala.

- O que é aquilo? - perguntei a Ani.

- É a nossa unidade de energia - respondeu ela.

- Ajuda-nos a aquecer e a arrefecer a casa e estabelece os

campos de forças.

Fiquei totalmente confuso.

- O que quer dizer com ajudar?

Ela caminhava à minha frente, enquanto prosseguíamos pela

encosta. Abrandou e deixou-me caminhar a seu lado.

-A unidade de energia junto à casa não cria nada sozinha.

Tudo o que faz é ampliar o campo de oração que você já

conhece, até um nível superior, para que possamos então

manifestar directamente aquilo de que precisamos.

Olhei para ela com uma expressão interrogativa.

- Porque é que isso parece tão fantástico? - perguntou Ani,

sorrindo.

- Eu já Lhe disse: é apenas progresso.

- Não sei - respondi. - Durante todo este tempo a tentar

 

 

chegar a Shambhala, suponho que nunca pensei muito em como

seria estar aqui. Suponho que pensei que seria apenas um grupo

de grandes lamas em meditação, algures. Esta é uma cultura

tecnológica. É fantástico...

- Não é a tecnologia que importa. É o modo como usámos a

tecnologia para nos ajudar a aumentar os nossos poderes

mentais que é importante.

- O que quer dizer?

- Tudo isto não é tão estranho como lhe parece. Limitámo-nos

a compreender as lições da história. Se olhar atentamente para

a história humana, verá que a tecnologia foi sempre um mero

precursor para aquilo que acabaria por ser feito apenas com a

mente humana.

- Pense nisso. Ao longo da história, as pessoas criaram a

tecnologia para aumentarem a sua capacidade de agirem e se

sentirem confortáveis no mundo. De início eram apenas potes

para guardar a comida e ferramentas para cavar, depois casas e

edifícios mais sofisticados. Para criar estes objectos,

escavámos minério e minerais e transformámo-los naquilo que

tínhamos imaginado nas nossas mentes. Queríamos viajar de

forma mais eficaz, por isso inventámos a roda e depois

veículos de vários tipos. Queríamos voar, por isso inventámos

aviões que nos ajudaram a fazê-lo.

Queríamos comunicar mais rapidamente, a grandes distâncias,

sempre que nos conviesse, e por isso inventámos cabos e

telégrafos, telefones, rádios sem fios e televisões, para nos

permitirem ver o que se passava noutros locais.

Olhou para mim com ar interrogador.

- Está a ver o padrão? Nós, humanos, inventámos a tecnologia

porque queríamos chegar a locais diversos e relacionarmo-nos

com mais pessoas e sabíamos, no nosso coração, que

conseguiríamos fazê-lo. A tecnologia foi sempre apenas um

trampolim para aquilo que podemos fazer sozinhos, aquilo que

sabemos ser nosso por direito. O verdadeiro papel da

tecnologia foi sempre ajudar-nos a construir a fé para

podermos fazer todas estas coisas por nós mesmos, com o nosso

poder interior.

Assim, nos primórdios da história de Shambhala, começámos a

criar tecnologia para servir conscientemente o desenvolvimento

da mente humana. Compreendemos o verdadeiro potencial dos

nossos campos de oração e começámos a reformular a nossa

tecnologia simplesmente para amplificar os nossos campos. Aqui

nos anéis, ainda usamos os aparelhos de amplificação, mas

estamos muito perto de podermos desligá-los e usar apenas os

campos de oração para manifestar tudo o que precisamos ou

queremos fazer. Os que habitam nos templos já fazem isso.

Queria fazer-Lhe mais perguntas mas, ao contornarmos uma

curva, vi um grande ribeiro que descia a colina à nossa

direita. O som de água a cair ecoava mais à frente.

- O que é este som? - perguntei.

- Há uma queda de água além - disse ela. - Sente a

necessidade de vê-la?

Não sabia bem o que ela queria dizer.

148 - 149

- Quer dizer, intuitivamente? - inquiri.

- É claro que quero dizer intuitivamente - respondeu ela,

sorrindo. - Nós vivemos pela intuição.

Tashi tinha parado e estava a olhar para trás.

 

 

Ani voltou-se para ele. - Porque não vais dizer à Pema que

nós já vamos?

Ele sorriu e correu à nossa frente.

Subimos a encosta rochosa à nossa direita, aproximando-nos

do ribeiro, e abrimos caminho por entre árvores densas e mais

pequenas, até que chegámos à beira da água. O ribeiro tinha

cerca de sete metros e meio de largura e fluía com força.

Através dos ramos à nossa esquerda via a água a passar por

cima duma crista. Ani fez-me sinal para a seguir. Caminhámos

ao longo do ribeiro e descemos vários socalcos de pedra, até

que ficámos directamente por baixo da catarata. Daqui

conseguíamos ver a queda de quinze metros até um grande lago

mais abaixo.

Um movimento chamou-me a atenção e avancei para a beira da

rocha, para olhar para baixo. Para minha surpresa, através da

neblina e salpicos junto ao lago via duas pessoas a caminharem

na direcção uma da outra, ambas rodeadas por uma luz suave,

branca com uma tonalidade rosada. Embora a luz não fosse muito

forte, era incrivelmente densa, especialmente em redor dos

ombros e ancas. Esforcei-me por distinguir os contornos das

duas pessoas e, quando o fiz, apercebi-me que estavam nuas.

- Então foi isto que me quis mostrar? - perguntou Ani,

divertida.

Eu não conseguia tirar os olhos do que estava a acontecer.

Sabia que estava a ver os campos de energia de um homem e de

uma mulher. Quando se aproximaram um do outro, os campos

fundiram-se até que eles ficaram enleados. Finalmente, muito

devagar, vi outra luz a formar-se na secção intermédia da

mulher. Após alguns minutos eles separaram-se e a mulher

acariciou o estômago. A pequena luz ficou mais forte e os dois

voltaram a abraçar-se e pareceram conversar, mas eu não ouvia

nada a não ser a queda de água. Sem aviso, as duas pessoas

simplesmente desapareceram.

Compreendi que eles tinham estado a fazer amor e fiquei

embaraçado.

- Quem eram aquelas pessoas? - perguntei.

- Não as reconheci - respondeu Ani. - Mas são algures desta

região.

- Pareceu-me que tinham concebido um filho - disse eu. - Era

essa a intenção deles?

Ela começou a rir. - Isto não é a cultura exterior. É claro

que eles tencionavam conceber. Nestes níveis de energia e

intuição, trazer uma alma à Terra é um processo muito

deliberado.

- Como é que desapareceram daquela maneira?

- Viajaram para aqui projectando-se mentalmente através de

um campo de viagem. O aparelho de amplificação permite-nos

fazer isso. Descobrimos que o mesmo campo electromagnético que

envia as imagens de televisão pode ser usado para ligar o

espaço de um local remoto ao espaço onde nos encontramos.

Quando fazemos isso, podemos simplesmente olhar para uma cena

sempre que o desejamos, ou caminhar verdadeiramente para o

outro local, usando o nosso campo de oração amplificado. Os

teóricos de sistemas helicoidais das culturas exteriores já

estão a trabalhar em teorias semelhantes, só que não estão

totalmente cientes daquilo que vão encontrar.

Limitei-me a olhar para ela, tentando absorver a nova

informação.

- Você parece completamente confundido - disse ela.

Confirmei com um aceno, conseguindo formar um sorriso.

- Venha, vou mostrar-lhe isto em casa da Pema.

 

 

Quando chegámos, a casa era muito semelhante à de Ani,

excepto que tinha sido construída dentro da encosta de uma

colina e tinha mobílias diferentes. Notei uma caixa negra

idêntica no exterior e nós entrámos através de um campo de

forças, tal como antes. Fomos recebidos por Tashi e por outra

mulher, que se apresentou como Pema.

Pema era mais alta e mais magra do que Ani. O cabelo era

negro como breu e comprido. Usava apenas um vestido branco

comprido e estava a sorrir, mas apercebi-me que qualquer coisa

não estava bem. Ela pediu para falar a sós com Ani e as duas

saíram para outra divisão, deixando-me sentado com Tashi numa

sala de estar.

Estava prestes a perguntar o que se passava quando senti

electricidade no ar atrás de mim.

150 - 151

Vi a distorção ondulante a abrir-se, tal como a outra que eu

vira no campo de forças em redor da casa de Ani, só que desta

vez ela apareceu no meio da sala. Pisquei os olhos, tentando

compreender o que estava a acontecer. Enquanto tentava ver

melhor, vi um campo com pequenas plantas através da distorção,

como se fosse uma janela. Para minha surpresa, um homem passou

pela abertura para a sala.

Tashi levantou-se e apresentou-nos. O nome do homem era

Dorjee. Acenou delicadamente para mim e perguntou onde estava

Pema. Tashi apontou para o quarto.

- O que aconteceu? - perguntei a Tashi.

Ele olhou para mim com um sorriso.

- O marido da Pema chegou da sua quinta. Não há algumas

pessoas que podem fazer isto nas culturas exteriores?

Eu falei-lhe brevemente de rumores e mitos acerca de ioguis

que conseguiam projectar-se para locais distantes.

- Mas eu nunca tinha visto pessoalmente algo assim -

acrescentei, tentando recuperar a compostura. - Como é que

fazem isto, exactamente?

- Visualizamos o lugar para onde queremos ir e o

amplificador ajuda-nos a criar uma janela para esse lugar

directamente à nossa frente. Cria também uma abertura na outra

direcção. Foi assim que conseguimos ver onde ele estava antes

de atravessar.

- E o amplificador é a caixa negra lá fora?

- Exacto.

- E todos vocês conseguem fazer isto?

- Sim, e o nosso destino é fazê-lo sem o amplificador.

Parou, olhou para mim e depois perguntou:

- Não quer falar-me acerca da cultura de onde veio, do mundo

exterior?

Antes que eu pudesse responder, ouvimos uma voz no quarto a

declarar:

- Aconteceu outra vez.

Tashi e eu olhámos um para o outro.

Alguns minutos depois Ani conduziu Pema e o marido para fora

do quarto e eles sentaram-se na sala de estar, ao nosso lado.

- Tinha tanta certeza de estar grávida - disse Pema. -

Conseguia ver a energia e senti-la momentaneamente, mas

depois, em poucos minutos, desapareceu. Deve ser a transição.

Tashi estava a olhar intensamente para ela, totalmente

fascinado.

- O que lhe parece que aconteceu? - perguntei.

 

 

- Intuímos - disse Ani -, que é uma espécie de gravidez

paralela e que a criança foi para outro sítio.

Dorjee e Pema olharam um para o outro durante um longo

momento.

- Tentaremos novamente - disse Dorjee. - Isto muito

raramente acontece duas vezes na mesma família.

- Nós temos de ir andando - disse Ani, erguendo-se e

abraçando o casal. Tashi e eu seguimo-la através do campo de

forças.

Eu estava ainda confuso. De uma certa perspectiva esta

cultura parecia vulgar; de outra, totalmente fantástica.

Tentei absorver tudo, enquanto Ani nos conduzia até uma linda

plataforma rochosa que, a uma dúzia de metros dali, dava para

o enorme vale verdejante lá em baixo.

- Como pode haver um ambiente temperado tão grande no

Tibete? - exclamei.

Ani sorriu.

- A temperatura é controlada com os nossos campos e é

invisível para aqueles que têm menos energia. Embora as lendas

digam que isso vai começar a mudar quando a transição se

aproximar.

Fiquei espantado.

- Conhece as lendas? - perguntei.

Ani acenou.

- É claro. Shambhala é o detentor original das lendas, bem

como de muitas profecias ao longo da história. Nós ajudamos a

levar informação espiritual às culturas exteriores. Também

sabemos que seria apenas uma questão de tempo até começarem a

encontrar-nos.

- Eu pessoalmente? - perguntei.

- Não, qualquer pessoa das culturas exteriores. Sabíamos

que, à medida que começavam a aumentar genericamente o vosso

nível de energia e de consciência, começariam a levar

Shambhala a sério e que alguns conseguiriam vir até cá. É isto

o que dizem as lendas. No momento da alteração, ou transição,

de Shambhala, chegarão pessoas das culturas exteriores.

152 - 153

E não apenas os crentes ocasionais do Oriente, que sempre nos

encontraram periodicamente, mas também pessoas do Ocidente,

que serão ajudadas a chegar cá.

- Disse que as lendas prevêem uma transição. O que é isso?

- As lendas dizem que, à medida que as culturas exteriores

começarem a compreender os passos que levam à extensão do

campo de oração da humanidade - o modo de se ligarem à energia

divina e deixá-la fluir com amor, o modo de preparar o campo

para provocar o processo de sincronicidade e elevar os outros,

o modo de ancorar este campo forte com o distanciamento -

então tudo o mais que fazemos aqui em Shambhala será

conhecido.

- Está a falar do resto da Quarta Extensão?

Ela deitou-me um olhar sabedor.

- Sim. É isso, afinal de contas, que você veio ver.

- Pode dizer-me o que é?

Ela abanou a cabeça.

- Tem de dar um passo de cada vez. Primeiro tem de

compreender para onde vai a humanidade. Não intelectualmente,

mas com os seus olhos e sentimentos. Shambhala é o modelo para

esse futuro.

 

 

Acenei enquanto olhava para ela.

- Está na altura do mundo saber aquilo de que os humanos são

capazes, em que direcção a evolução nos leva. Logo que o

compreender completamente, será capaz de expandir ainda mais o

seu campo e ficar ainda mais forte.

Abanou a cabeça e acrescentou:

- Mas entenda que eu não tenho toda a informação acerca da

Quarta Extensão. Serei capaz de guiá-lo ao longo dos próximos

passos, mas há mais coisas que só são conhecidas por quem vive

nos templos.

- O que são os templos? - perguntei.

- São o coração de Shambhala. O lugar místico que você

imaginou. É lá que se realiza o verdadeiro trabalho de

Shambhala.

- Onde ficam?

Ela apontou para o outro lado do vale, para um estranho

grupo circular de montanhas a norte, à distância.

- Além, para lá daqueles picos - disse ela.

Enquanto estivemos a falar, Tashi manteve-se silencioso,

escutando cada palavra. Ani olhou para ele e penteou-lhe o

cabelo para trás com a mão.

- A minha intuição dizia-me que, por esta altura, Tashi já

teria sido chamado aos templos... mas ele parece estar mais

interessado na vida no seu mundo.

Despertei com um abanão, transpirando. Estivera a sonhar com

um passeio pelos templos, juntamente com Tashi e outra pessoa,

prestes a compreender a Quarta Extensão. Estávamos num

labirinto de estruturas de pedra, a maioria delas cor de

bronze arenoso, mas à distância via-se um templo que parecia

ter uma cor azulada. Uma pessoa com imponentes trajes

tibetanos estava no exterior. No sonho comecei a fugir do

oficial chinês que tinha visto várias vezes antes. Ele

perseguia-me por entre os templos, que estavam a ser

destruídos. Eu odiava-o por aquilo que ele estava a fazer.

Sentei-me e tentei concentrar-me, quase sem conseguir

recordar o regresso para casa de Ani. Eu estava agora num dos

quartos e era de manhã. Tashi estava sentado em frente da

cama, numa grande cadeira, olhando fixamente para mim.

Respirei fundo e tentei acalmar-me.

- O que se passa? - perguntou ele.

- Apenas um sonho mau - respondi.

- Vai falar-me das culturas exteriores?

- Não podes simplesmente ir até lá, através de uma janela ou

passagem, ou seja o que for que vocês lhe chamam?

Ele abanou a cabeça.

- Não, isso não é possível, mesmo nos templos. A minha avó

intuiu que isso podia ser feito, mas ninguém ainda o conseguiu

por causa das diferenças nos níveis de energia entre os dois

lugares. Os habitantes dos templos conseguem ver o que se

passa nas culturas exteriores, mas é tudo.

- A tua mãe parece saber muito acerca do mundo exterior.

- Recebemos informação dos moradores dos templos. Eles

regressam muitas vezes, especialmente quando sentem que alguém

está pronto para se juntar a eles.

154 - 155

- Quase toda a gente aqui aspira a conseguir um lugar nos

templos. É a maior das honras e uma oportunidade para

influenciar as culturas exteriores.

 

 

Enquanto ele falava, a sua voz e nível de maturidade

lembravam-me alguém com trinta anos. Muito embora ele fosse

grande, era desconcertante olhar para o seu rosto de catorze

anos.

- E tu? - perguntei - Também queres ir para os templos?

Ele sorriu e olhou na direcção do outro quarto, como se não

quisesse que a mãe o ouvisse.

- Não, estou sempre a pensar em ir às culturas exteriores,

de alguma forma. Quer falar-me acerca delas?

Durante meia hora contei-lhe tudo o que consegui acerca do

actual estado do mundo: a forma como a maior parte da

população vivia, as dietas da maioria, a luta para instituir a

democracia em todo o planeta, a influência corruptora do

dinheiro sobre o governo, os problemas ambientais. Em vez de

ficar alarmado ou desiludido, ele absorveu tudo com

entusiasmo.

Nesse momento Ani entrou no quarto, sentiu que estava a

decorrer uma conversa importante e parou. Nenhum de nós disse

nada e eu caí sobre a almofada.

Ela olhou-me de cima a baixo.

- Temos de fazer entrar mais energia em si - observou. -

Venha comigo.

Vesti-me e juntei-me a ela na zona de estar, depois segui-a

para o exterior e para as traseiras da casa. Ali as árvores

eram muito grandes, afastadas cerca de dez metros umas das

outras. Entre elas havia uma relva áspera, semelhante a salva,

e dúzias de outras plantas que pareciam enormes aspargos. Ela

instou-me a mexer o meu corpo e eu tentei fazer os exercícios

que Yin me mostrara.

- Agora sente-se aqui. - disse ela quando eu terminei. - E

aumente novamente a sua energia.

Quando ela se sentou ao meu lado, comecei a inspirar e a

concentrar-me na beleza à minha volta, visualizando a energia

a penetrar em mim, vinda do fundo de mim. Tal como antes, as

cores e formas começaram a destacar-se facilmente.

156

Olhei para Ani e vi no rosto dela uma expressão de sabedoria

mais profunda.

- Assim está melhor - disse ela. - Ainda não estava todo

aqui ontem, quando visitámos a Pema. Lembra-se do que

aconteceu?

- Claro - retorqui. - A maior parte.

- Lembra-se do que aconteceu quando ela pensou que tinha

concebido?

- Sim.

- Num momento parecia estar lá e no momento seguinte tinha

desaparecido.

- O que lhe parece que aconteceu? - inquiri.

- Ninguém sabe ao certo. Estes desaparecimentos ocorrem há

bastante tempo. Na realidade começaram comigo, há catorze

anos. Nessa altura, eu tinha a certeza que estava grávida de

gémeos, um rapaz e uma rapariga, e depois, num instante, um

deles desapareceu. Nasceu o Tashi, mas eu senti sempre que a

irmã dele estava viva, algures.

- Desde então, vários casais aqui tiveram a mesma

experiência. Tinham a certeza de ter concebido e depois, de

repente, apercebiam-se de que tinham os ventres vazios. Todos

 

 

eles tiveram outros filhos, mas nunca esqueceram o que

aconteceu. Este fenómeno tem ocorrido com regularidade em toda

Shambhala, nos últimos catorze anos.

Fez uma breve pausa e depois disse:

- Tem qualquer coisa a ver com a transição, talvez até com a

sua presença aqui.

Eu desviei o olhar.

- Não sei.

- Não tem qualquer intuição?

Pensei durante um minuto e depois lembrei-me do sonho. Ia

falar-Lhe dele, mas não conseguia decidir o que significava e

por isso não o fiz.

- Nenhuma verdadeira intuição - disse. - Apenas muitas

perguntas.

Ela acenou com a cabeça, à espera.

- Como funciona a economia aqui? O que é que as pessoas

fazem com o seu tempo?

157

- Evoluímos até um ponto em que já não usamos dinheiro -

explicou Ani - e já não manufacturamos ou construímos coisas

como nas culturas exteriores. Há dezenas de milhares de anos,

viemos de culturas que faziam as coisas de que precisavam, tal

como vocês fazem. Mas, tal como eu lhe disse, gradualmente

compreendemos que o verdadeiro destino da tecnologia era ser

usada para desenvolver as nossas capacidades mentais e

espirituais.

Toquei na manga suave do meu blusão.

- Quer dizer que tudo o que vocês têm é um campo de energia

criado?

- Exactamente.

- O que é que o mantém intacto?

- Depois de criados, estes campos duram enquanto a energia

não for perturbada por algum tipo de negatividade.

- E a comida?

- Podemos criar comida da mesma maneira, mas descobrimos que

é melhor cultivar a comida pelos indivíduos, num processo

natural. As plantas alimentares respondem à nossa energia e

devolvem-na. É claro que já não precisamos de comer muito para

mantermos a nossa vibração. A maioria daqueles que estão nos

templos já não come nada.

- E a energia? Como alimentam os amplificadores?

- A energia existe livremente. Há muito tempo, descobrimos

um aparelho que usava processos a que poderia chamar fusão.

Criava energia virtualmente livre para a nossa cultura, o que

nos libertava dos estragos ao ambiente e nos permitia

automatizar a nossa produção de bens em série. Gradualmente,

todo o nosso tempo concentrou-se nos nossos percursos

espirituais, na percepção da sincronicidade, na descoberta de

novas verdades acerca da nossa existência e da veiculação

dessa informação aos outros.

Enquanto falava, reconheci que ela estava a descrever um

futuro humano que eu abordara pela primeira vez nas Nona e

Décima Revelações.

- À medida que nos desenvolvíamos, aqui em Shambhala -

prosseguiu ela - começámos a compreender que o objectivo da

humanidade neste planeta era evoluir para uma cultura

espiritual em todos os seus aspectos. E depois compreendemos

que tínhamos dentro de nós um poder superior, para nos ajudar

 

 

a alcançar aquilo que tinha de ser feito. Aprendemos as

extensões da oração e usámo-las para desenvolver ainda mais a

nossa tecnologia, tal como já expliquei, para aumentar este

poder criativo. Neste ponto vivemos simplesmente na natureza e

a única tecnologia que resta são estas unidades que nos ajudam

a criar mentalmente tudo aquilo de que precisamos.

- Toda essa evolução aconteceu aqui? - perguntei.

- Não, nada disso - disse ela. - Shambhala deslocou-se

muitas vezes.

A afirmação chocou-me, por alguma razão, e fiz-lhe mais

perguntas.

- Oh, sim - esclareceu ela. - As nossas lendas são muito

antigas e têm muitas fontes. Todos os mitos da Atlântida e as

lendas hindus acerca de Meru têm origem em antigas

civilizações que existiram realmente no passado, quando a

própria evolução de Shambhala começou. Desenvolver a nossa

tecnologia foi o passo mais difícil porque, para colocar a

tecnologia completamente ao serviço do desenvolvimento

espiritual individual, toda a gente deve avançar para um ponto

onde a compreensão espiritual é mais importante do que o

dinheiro ou o controlo. Isso demora algum tempo, porque as

pessoas que estão presas ao medo - e que pensam que precisam

de manipular pessoalmente o curso da evolução humana com os

seus egos - muitas vezes desejam usar os avanços tecnológicos

de formas negativas, para controlarem os outros. Em muitas

civilizações anteriores, alguns controladores tentaram

subverter o uso das máquinas de amplificação, tentando usá-las

para vigiar e controlar os pensamentos das outras pessoas.

Muitas vezes essas tentativas terminaram em guerra e

destruição maciça e a humanidade teve de começar tudo de novo.

- As culturas exteriores enfrentam esse problema neste

momento. Existem pessoas que querem controlar toda a gente,

com sistemas de vigilância, chips incorporados e sondas das

ondas cerebrais. E os artefactos dessas antigas culturas de

que você fala? Porque é que quase nada foi encontrado?

- A deriva continental e o gelo soterraram a maior parte e,

para além disso, quando uma cultura progride até ao ponto em

que os bens materiais são criados mentalmente,

158 - 159

se qualquer coisa correr mal e uma onda de negatividade fizer

a energia decair, tudo simplesmente desaparece.

Respirei fundo e encolhi os ombros. O que ela dizia fazia

todo o sentido mas, ao mesmo tempo, era absolutamente

desconcertante.

Uma coisa era especular acerca de civilizações humanas que

evoluíram em direcção a um futuro espiritual. Outra coisa bem

diferente era estar mergulhado numa cultura que já o tinha

alcançado.

Ani aproximou-se.

- Lembre-se que aquilo que nós fizemos faz parte do curso

natural da evolução humana. Estamos à vossa frente, mas por

termos feito aquilo que fizemos, o caminho pode ser mais fácil

para vocês nas culturas exteriores.

Ela parou e eu sorri.

- A sua energia parece muito melhor agora - disse.

- Acho que nunca me senti tão alerta.

Ela acenou.

- Tal como eu já disse, é o nível de energia mantido pelos

 

 

habitantes de Shambhala. É contagioso. Há aqui tanta gente que

sabe como absorver energia e projectá-la para os outros que

isso cria um efeito multiplicador, no qual toda a gente recebe

energia de oração dos outros e a envia novamente para todos os

outros. Está a ver como ela cresce? Todas as assunções e

expectativas das pessoas de uma cultura fluem juntas e fazem

um único grande campo de oração cultural.

- O nível geral alcançado por uma cultura é determinado

quase exclusivamente pela consciência que os seus membros têm,

em primeiro lugar, da existência dos seus campos de oração em

geral e, em segundo lugar, pela forma como os expandem de

forma consciente. Quando as extensões forem finalmente postas

em prática, o nível de energia aumentará radicalmente. Se toda

a gente nas culturas exteriores soubesse absorver energia e

fazê-la fluir para fora de si, fazendo das extensões de oração

uma prioridade, conseguiriam alcançar o nível que temos aqui

em Shambhala com esta facilidade! Estalou os dedos para

sublinhar as suas palavras e depois acrescentou:

- É nisso que estamos a trabalhar, nos templos. Usamos as

nossas extensões de oração para ajudar a aumentar a

consciência das culturas exteriores. Fazemos isso há milhares

de anos.

Pensei nas suas palavras e depois perguntei:

- Conte-me tudo o que sabe acerca da Quarta Extensão.

Ela ficou silenciosa mais um momento, olhando para mim com

ar muito sério.

- Você sabe que tem de dar um passo de cada vez -

respondeu.Recebeu ajuda mas, para conseguir chegar aqui, teve

de conhecer as três primeiras extensões e parte da Quarta. Tem

de parar agora e compreender perfeitamente o funcionamento

exacto das extensões. Quando uma extensão fica completa, a

nossa energia chega mais longe e torna-se mais forte. Isto

acontece porque, quando enviamos energia para provocar a

experiência da sincronicidade e animar os outros, e quando

ancoramos essa energia com distanciamento e fé, estamos a

promover o plano divino; quanto mais conseguirmos agir e

pensar em harmonia com o divino, mais forte fica a nossa

energia. Há um mecanismo de segurança interno, como sem dúvida

você percebe. Deus não vai aumentar a sua energia, a não ser

que você esteja em sintonia com a intenção universal.

Tocou-me no ombro.

- Portanto o que tem a fazer agora é clarificar o rumo que a

humanidade deve seguir, a evolução necessária da cultura

humana.

Está na hora disto acontecer. É por isso que você e outros

estão finalmente a ver e a compreender Shambhala. É o próximo

passo da Quarta Extensão. Tem de compreender verdadeiramente o

futuro que aguarda a humanidade. Já compreendeu a forma como

dominámos a tecnologia e a colocámos ao serviço da nossa

evolução espiritual interior. Viver isso expande ainda mais a

sua energia, porque pode agora colocar essa expectativa no seu

campo de oração. É importante compreender como isto funciona.

Já sabe como enviar um campo à sua frente, enquanto caminha

pelo mundo, e sabe como prepará-lo para aumentar a energia e o

fluxo de sincronicidade em si mesmo e nos outros. Irá expandir

o seu campo mais um passo quando não se limitar a visualizar o

seu campo a elevar as pessoas à sua volta até às suas

intuições superiores, mas quando o fizer com a certeza do

destino das intuições superiores de toda a gente,

160 - 161

 

 

suas e deles: na direcção de uma cultura espiritual ideal,

como aquela que vê aqui em Shambhala. Sempre que o fizer,

estará a ajudá-los a encontrar o seu papel nesta evolução.

Acenei com a cabeça, ansiando por mais informação.

- Não vá demasiado depressa - admoestou-me ela. - Ainda não

viu tudo acerca do nosso modo de vida aqui. Não só dominámos a

tecnologia, mas também reestruturámos o nosso mundo para se

concentrar inteiramente na evolução espiritual... nos

mistérios da existência... no próprio processo vital.

162

8.

O PROCESSO VITAL

Segui pelo carreiro da esquerda no cruzamento atrás da

casa de Ani e Tashi e subi por entre as rochas e árvores

durante mais de um quilómetro. Ani tinha terminado

abruptamente a nossa conversa, dizendo que tinha de preparar

algumas coisas de que me falaria mais tarde, e eu decidi dar

um passeio a sós.

Enquanto olhava para a folhagem verde a minha cabeça

encheu-se de perguntas. Ani tinha dito que eu precisava de ver

como Shambhala era o modelo para uma cultura orientada para o

próprio processo vital. O que quereria isso dizer?

Enquanto pensava nesta questão, notei um homem a caminhar

pelo carreiro na minha direcção. Era mais velho, parecia ter

cerca de cinquenta anos, caminhando com um passo rápido.

Quando chegou junto de mim, os seus olhos demoraram-se nos

meus durante um momento e depois prosseguiu. Pelo canto do

olho, vi-o voltar-se uma vez e olhar para mim.

Caminhei um pouco mais, irritado por não ter parado e

começado uma conversa. Voltei-me e segui na direcção que o

homem seguira, esperando conseguir apanhá-lo. Ele ia

justamente a fazer uma curva mais à frente e desaparecer de

vista. Quando eu próprio cheguei a essa curva, ele tinha

desaparecido completamente. Fiquei desiludido mas regressei a

casa de Ani sem pensar mais no assunto.

Ela saudou-me à porta, com umas calças de ganga e uma

t-shirt.

- Vai precisar disto - declarou.

163

- Deixe-me adivinhar - disse eu. - Usou o campo para criar

estas coisas.

Ela acenou.

- Está a começar a compreender-nos.

Sentei-me numa cadeira e olhei para ela. Não sentia que os

percebesse minimamente.

- O pai do Tashi chegou - disse ela.

- Onde está? - perguntei.

- Com o Tashi. - Fez um sinal com a cabeça na direcção do

quarto.

 

 

- De onde é que ele veio?

- Esteve algum tempo nos templos.

Sobressaltei-me.

- Ele acabou de entrar?

- Sim, imediatamente antes de você voltar.

-Acho que passei por ele no carreiro.

Ani fez uma pausa e depois disse:

-Acho que ele está aqui para nos preparar.

- Para o quê?

- Para a transição. Ele pensa que se aproxima o momento em

que Shambhala se deslocará.

Ia fazer-lhe mais perguntas mas apercebi-me que ela tinha

desviado o olhar e que parecia profundamente embrenhada nos

seus pensamentos.

- Disse que viu o pai do Tashi no carreiro? - perguntou.

Confirmei com um aceno.

- Então a mensagem que ele traz deve ser importante também

para si. Temos de ter muita consciência do processo, aqui.

Olhou para mim, expectante.

- Você referiu o processo vital - disse eu. - Pode dizer-me

exactamente o que isso representa em Shambhala?

Ela acenou.

- Vamos ver o quadro geral da evolução de uma sociedade,

quando começa a aumentar o seu nível de energia de oração. A

primeira coisa que acontece é que os criadores de tecnologia

vão começar a fazê-la cada vez mais eficiente e automatizada,

pelo que os robôs produzem cada vez mais bens materiais da

sociedade. Isto já está a acontecer em todas as indústrias

das culturas exteriores e é um desenvolvimento positivo, não

obstante ser especialmente perigoso. Pode colocar demasiado

poder nas mãos de uns poucos indivíduos ou empresas, a menos

que seja descentralizado. Também provoca desemprego e muitas

pessoas têm de adaptar a sua forma de rendimento.

-Aquilo que medeia estes problemas, contudo, é o facto de,

porque a produção material está automatizada, a economia no

seu todo começar a deslocar-se para uma economia de informação

e serviço - fornecendo a informação certa no momento certo

aos outros - o que exige que todos se tornem mais intuitivos,

alerta e concentrados na percepção da sincronicidade como

forma de vida.

À medida que o conhecimento espiritual aumenta e as pessoas

ganham consciência do poder criativo que podem alcançar com os

seus campos de oração, a tecnologia evolui mais um passo. Será

nessa altura que os amplificadores das ondas mentais serão

descobertos, para os indivíduos poderem criar mentalmente tudo

aquilo de que necessitam.

Quando isto acontecer, a cultura ficará livre para se

concentrar completamente nas questões espirituais, ou naquilo

a que chamamos o processo vital propriamente dito. Em

Shambhala estamos agora neste ponto e o resto da cultura

humana está destinada a seguir-nos. Toda a nossa sociedade é

educada para a realidade mais abrangente do espírito. Em algum

momento todas as culturas deverão compreender que nós somos

seres espirituais e que os nossos próprios corpos são apenas

átomos com uma vibração específica, uma vibração que pode ser

aumentada à medida que aumenta a nossa ligação e poder de

oração.

Aqui em Shambhala compreendemos esse facto, da mesma maneira

que compreendemos que viemos de um plano puramente espiritual

para realizarmos alguma coisa. Viemos numa missão para trazer

o mundo inteiro à plena consciência espiritual, geração após

 

 

geração, e para o fazermos de forma tão consciente quanto

possível.

É por isso que participamos completamente neste processo

vital, desde o seu começo - antes do próprio nascimento, na

realidade.

Ela olhou para mim para ver se eu compreendia e depois

prosseguiu.

164 - 165

- Há sempre uma relação intuitiva entre a mãe e o pai e a

criança antes do seu nascimento.

- Que tipo de relação? - perguntei.

Ela sorriu.

- Toda a gente aqui sabe que as almas começam a contactar

com os pais antes da concepção. Dão a conhecer a sua presença,

especialmente à mãe. Faz parte do processo de decidir se os

futuros pais são realmente os adequados.

Olhei para ela, surpreendido.

- Isto já acontece nas culturas exteriores - explicou Ani. -

Mas as pessoas só agora começam a falar acerca disso e a

desenvolver a sua percepção. Pergunte a qualquer grupo de mães

e veja o que elas dizem.

Este mesmo tipo de intuição está também envolvida no

processo de casamento, se pensar bem. Quando os humanos

aprendem a procurar conscientemente um companheiro o principal

critério é a paixão, mas não é o único factor. Também

recebemos intuições acerca de como será a vida com uma pessoa

em particular. Avaliamos - tenhamos total consciência disso ou

não - se o estilo de vida com esse indivíduo representará um

avanço em relação ao estilo e atitudes com que nós crescemos.

Está a ver onde eu quero chegar? Escolher o companheiro certo

é importante, do ponto de vista da evolução. À medida que

evoluem espiritualmente, os humanos estão destinados a

juntar-se de forma consciente, para prepararem um lar, ou uma

atitude doméstica, que representa uma forma de vida mais

verdadeira quando comparada com a geração anterior.

Intuitivamente, sabemos que devemos construir uma vida que

aumente a sabedoria que encontrámos no mundo quando chegámos.

Está a ver o processo? Depois, quando surgem as intuições

acerca de uma criança que quer nascer em nós, surgem sempre

perguntas: porque é que esta criança quereria nascer na nossa

família? O que quereria esta criança ser quando crescesse?

Como poderia esta criança estender e alargar o conhecimento

que encontrou em nós?

- Espere um momento - disse eu. - Não temos de ser

cuidadosos quando assumimos que sabemos como serão os nossos

filhos? E se estivermos enganados e tentarmos encaixar os

nossos filhos num poleiro que não lhes serve? A minha mãe

pensava que eu seria um padre de aldeia e isso não foi bem

verdade.

- Sim, é claro, isto são apenas intuições; a realidade será

apenas próxima daquilo que nós pensamos. Nunca será

exactamente igual. Passaram-se séculos a combinar casamentos e

a forçar crianças a seguirem profissões escolhidas pelos pais.

Mas não vê? Isto foi um uso errado de uma intuição real.

Podemos aprender com os erros deles. Nós não recebemos um

conhecimento completo acerca dos nossos fiLhos, nem devemos

exercer um controlo absoluto. Apenas recebemos intuições,

imagens genéricas acerca do que fazer com as suas vidas -

 

 

embora aposte que a sua mãe não se enganou muito acerca de si.

Eu ri. Ela tinha razão, obviamente.

- Portanto está a ver onde isto nos leva. Sabemos que,

enquanto a mãe e o pai intuem o uso que o filho fará da

sabedoria que encontrará junto deles, e depois a ampliará, a

alma por nascer faz a mesma coisa, numa visão pré-vida daquilo

que quer alcançar. A seguir vem o processo de concepção.

Olhou para mim durante um momento.

- Lembra-se do casal que vimos junto à queda dágua?

- Sim.

- O que pensa acerca disso?

- Pareceu tudo muito calculado.

- É verdade, foi. Quando um casal decide tentar conceber a

vinda de uma alma em relação à qual têm uma intuição, o acto

físico é uma espécie de fusão dos campos de energia que, de

forma muito real, abre de forma orgásmica um portão para o

paraíso e permite a entrada da alma.

Pensei no que tinha visto na queda dágua. A energia do casal

fundiu-se e uma nova energia começou a crescer.

- Na concepção materialista de ciência nas culturas

exteriores - continuou ela - a união sexual foi reduzida à

simples biologia, apenas um acto físico. Mas aqui conhecemos a

energia espiritual daquilo que está realmente a passar-se. Os

dois fundiram os seus campos de energia num só e a criança foi

o produto dessa fusão.

- Mais uma vez, a ciência prefere pensar na concepção como

uma combinação aleatória de genes e sem dúvida assim parece,

quando estudada superficialmente num tubo de ensaio. Na

realidade, contudo, os genes da mãe e do pai combinam-se para

formarem uma criança cujas características se sincronizam com

o destino das três pessoas.

166 - 167

Está a ver? A criança tem um destino previsto, que ele ou ela

visualiza numa visão pré-vida, e os genes combinam-se de forma

precisa para dar à criança as tendências e talentos

necessários à realização dessa visão. Os cientistas das

culturas exteriores acabarão por descobrir uma forma de

confirmar este processo.

É por isso que a recombinação física de genes por cientistas

e médicos é tão perigosa. Ajudar a combater a doença é uma

coisa, mas recombinar para aumentar a inteligência ou o

talento ou apenas por preferência é algo que vem do ego e pode

ser desastroso. Esta prática foi responsável pela destruição

de algumas civilizações antigas.

- O que eu quero dizer - concluiu ela - é que aqui em

Shambhala levamos o processo da paternidade muito a sério. Na

sua forma ideal, a intuição dos pais e dos filhos funcionam em

conjunto para dar à criança a melhor preparação para realizar

o seu propósito na vida.

O que ela estava a dizer fez-me pensar novamente nos

desaparecimentos de fetos que ocorreram em Shambhala.

- O que Lhe parece estar a acontecer aos fetos que

desapareceram aqui? - perguntei.

Ela encolheu os ombros, olhando para a porta fechada do

quarto de Tashi.

- Não sei, mas talvez descubramos isso com a ajuda do pai do

Tashi.

Ocorreu-me outra questão, por isso perguntei:

 

 

- Não compreendo quem vai para os templos e quem fica nos

anéis.

Ela riu.

- Suponho que seja bastante confuso. A nossa cultura

divide-se naqueles que ensinam e aqueles que são chamados para

os templos. Muitos dos que estão nos templos, no entanto, vêm

e vão com frequência, para manterem as suas relações,

especialmente se tiverem filhos. A situação pode mudar em

qualquer altura, de acordo com as intuições. Aqueles que

trabalham nos templos podem voltar a ensinar e aqueles que têm

estado a ensinar podem ir para os templos. É tudo muito fluido

e regido pela sincronicidade.

Fez uma pausa breve e eu acenei-lhe para que ela

continuasse.

168

- A seguir, no processo vital, está o ajudar uma criança a

despertar. Lembre-se que cada um de nós esquece, até um certo

grau, a razão da sua vinda, o que é suposto fazermos com a

nossa vida, por isso a criança deve conhecer as circunstâncias

históricas que rodearam o acontecimento que foi o seu

nascimento. O que importa é dar à criança um contexto para a

sua vida, para que ela saiba o que aconteceu antes da sua

chegada e onde ela se vai encaixar. Isso inclui a história

pessoal da família, recuando várias gerações. Mantemos esses

registos numa gravação semelhante a uma cassete de vídeo, só

que ficam guardados electronicamente. O Tashi, por exemplo,

pode ver sete gerações de parentes seus a falarem-lhe das suas

vidas, quais tinham sido os seus sonhos, quais os que se

realizaram ou não e, no fim das suas vidas, aquilo que teriam

feito de forma diferente. Tudo isto é informação imensamente

importante para um jovem saber acerca dos seus parentes. Ajuda

os mais novos a traçarem o rumo das suas próprias vidas,

aprendendo com os erros e aumentando a sabedoria daqueles que

o precederam. O Tashi aprendeu muita coisa com muitos dos seus

antepassados, embora o seu parente preferido continue a ser a

avó.

Fiquei espantado.

- Gravar os parentes é uma grande ideia. Pergunto a mim

mesmo porque não nos damos ao trabalho de fazer isso, lá de

onde eu venho.

- Não se dão a esse trabalho porque continuam a adiar falar

sobre a morte até ao último minuto e depois, muitas vezes, é

tarde demais. E a vida nas culturas exteriores continua

demasiado orientada para o material, não para o próprio

processo vital. Isto ficará mais fácil à medida que o tempo

passa e as culturas exteriores começam a sustentar a sua

vibração e a aprender as extensões da oração. Neste momento

ainda reduzem a vida ao vulgar, ao mundano, quando na

realidade é um processo constante, misterioso e informativo.

Olhou para mim como se houvesse um qualquer significado mais

profundo oculto na sua última frase.

- Você mesmo tem de ultrapassar esta tendência e manter-se

concentrado no processo daquilo que lhe está a acontecer.

Chegou a Shambhala no momento em que ela está a sofrer uma

transição.

169

 

 

- O pai do Tashi está aqui para falar acerca do seu futuro e

da situação nos templos. Mas o Tashi não se sente

intuitivamente impulsionado para ir aos templos. Em vez disso,

ele está interessado em ir para o seu mundo. E você surge

exactamente no meio disto. Tem de querer dizer qualquer coisa.

Como se para sublinhar aquilo que Ani acabara de dizer,

ouvimos um rugido fraco ao longe, que desapareceu rapidamente.

Ela pareceu confusa.

- Nunca ouvi nada assim antes.

Fui percorrido por um arrepio.

- Penso que pode ser um helicóptero - disse eu.

Mais uma vez pensei em contar-lhe o meu sonho mas, antes que

o pudesse fazer, ela recomeçou a falar.

-Temos de nos apressar-disse. -Tem de saber quem nós somos,

a cultura que criámos. Estávamos a falar acerca da importância

dos jovens compreenderem a sucessão das gerações que os

antecederam. Esta história é uma coisa que toda a gente nos

anéis exteriores conhece bem cedo - quando despertam para a

sua própria espiritualidade e sentido daquilo que vieram fazer

aqui.

Ergueu um dedo.

- Toda a gente aqui sabe bem que o mundo humano evolui

através da sucessão das gerações. Uma geração estabelece uma

forma de vida e enfrenta certos desafios, a geração seguinte

surge e amplia essa visão do mundo. Infelizmente, nas culturas

exteriores esta evolução está apenas a começar a ser levada a

sério. Mais frequentemente, aquilo que acontece é os pais

quererem que os filhos sejam como eles, que tenham a mesma

visão acerca de tudo. Este desejo é natural, de certa forma,

porque todos nós queremos que os nossos filhos reforcem as

escolhas que fizemos. Mas muitas vezes o processo torna-se

antagónico. Os pais criticam os interesses dos filhos e os

filhos criticam os modos antiquados dos pais. Até um certo

grau isso faz parte do processo: os filhos olham para a vida

dos seus pais e pensam, gosto da maior parte das suas vidas,

mas eu teria feito certas coisas de maneira diferente. Todos

os filhos pressentem aquilo que está incompleto no modo de

vida dos seus pais. Afinal de contas, é esse o sistema:

escolhemos os nossos pais em parte para despertarmos para

aquilo que nos falta, para aquilo que deve ser acrescentado ao

entendimento humano, e começamos esse processo sentindo-nos

insatisfeitos com aquilo que encontramos nas nossas vidas com

eles.

Ainda assim, tudo isto não tem de ser antagónico. Quando

conhecemos o processo vital, podemos participar nele de forma

consciente. Os pais podem manter-se abertos às críticas dos

seus filhos e apoiar os seus sonhos. É claro que fazer isso

leva os pais a alargarem o seu modo de pensar e a evoluírem

juntamente com os filhos, o que pode ser difícil.

Já tinha ouvido falar disso. Ela estava a fazer um grande

esforço para tornar o processo da evolução claro para mim. Fiz

mais algumas perguntas e ela passou mais dez minutos a dar-me

pormenores acerca da vida nos anéis exteriores de Shambhala.

Explicou-me que para as crianças, assim que adquirem a

compreensão da história e da família, o passo seguinte é

aprenderem a alargar o seu campo de oração criativo, tal como

eu fiz. Depois tratam de descobrir uma forma de fazerem a sua

cultura progredir, ensinando nos anéis exteriores ou usando o

seu campo de oração nos templos.

- Tudo isto acabará por ser também o estilo de vida nas

 

 

culturas exteriores - acrescentou. - Alguns dedicar-se-ão a

ensinar as crianças, outros entrarão nas muitas instituições

da cultura humana e ajudarão a fazê-las avançar em direcção ao

ideal espiritual.

Ia pedir mais pormenores acerca daquilo que se fazia nos

templos quando a porta do quarto de Tashi se abriu. Tashi

saiu, seguido pelo seu pai.

- O pai quer falar consigo - disse Tashi, olhando para mim.

O homem mais velho fez uma ligeira vénia, Tashi

apresentou-nos e depois sentámo-nos os dois à mesa. O pai de

Tashi estava vestido com as tradicionais calças de pele de

cabra e colete de um pastor tibetano, só que a sua roupa

estava imaculadamente limpa e tinha uma cor ligeiramente

bronzeada. Era baixo e entroncado; olhou para mim com olhos

gentis e uma expressão de entusiasmo juvenil.

- Sabe que Shambhala está prestes a sofrer uma transição? -

perguntou.

Olhei para Ani e depois novamente para ele. - Só aquilo que

dizem algumas das lendas.

170 - 171

- As lendas dizem - respondeu o homem mais velho - que num

dado momento da evolução de Shambhala e das culturas

exteriores ocorrerá uma grande deslocação. Esta deslocação só

pode acontecer quando o nível de consciência das culturas

exteriores tiver chegado a um ponto particular. Mas quando

isso acontecer, Shambhala mover-se-á.

- Mover-se para onde? - perguntei - Sabe?

Ele sorriu. - Ninguém sabe exactamente.

A afirmação dele encheu-me com uma onda de ansiedade, por

alguma razão, e uma ligeira tontura. Por um momento tive

dificuldade em focar a minha visão.

- Ele ainda não está assim tão forte - disse Ani.

O pai de Tashi olhou para mim - Estou aqui por causa da

minha intuição, segundo a qual é importante que o Tashi se

junte a nós nos templos durante esta transição. As lendas

dizem que será um período de grandes oportunidades, mas também

de sérios perigos. Durante algum tempo, aquilo que temos feito

aqui nos templos será perturbado. Também não poderemos ajudar.

Olhou para o seu filho.

- Isto acontecerá exactamente quando a situação nas culturas

exteriores se tornar crítica. Muitas vezes, durante a história

oculta da humanidade, os humanos desenvolveram a

espiritualidade até este ponto e depois perderam-se no caminho

e voltaram a cair na ignorância. Começaram a usar mal a sua

tecnologia, perturbando o curso natural da evolução. Por

exemplo, neste exacto momento nas culturas exteriores, algumas

pessoas estão a pegar no processo natural dos alimentos e a

distorcê-lo, manipulando geneticamente sementes para que elas

tenham características não-naturais. Isto é feito

principalmente para patentear estas sementes e controlá-las no

mercado. A mesma coisa acontece nas indústrias farmacêuticas,

onde um remédio herbal conhecido, disponível para todos, é

geneticamente alterado para poder ser vendido. No rigoroso

sistema de energia do corpo, estas manipulações podem ter

consequências terríveis para a saúde. O mesmo é verdade para

os alimentos sujeitos a radiação, o cloro e outros aditivos no

abastecimento de água, já para não falar das chamadas drogas

sintéticas. Ao mesmo tempo, a tecnologia dos meios de

 

 

informação chegou a um ponto em que pode ter uma influência

dramática. Se reagir apenas às necessidades das empresas e

políticos corruptos pode criar realidades para os humanos que

são distorcidas e artificiais. À medida que as empresas se

fundem, para controlarem cada vez mais tecnologia e usarem

mais publicidade para criar falsas necessidades, este problema

vai crescendo.

Mais urgente é a situação do poder governamental e de

vigilância, mesmo nos países democráticos. Citando a

necessidade de combater os traficantes de droga ou os

terroristas, o governo viola cada vez mais a privacidade do

homem vulgar. As transacções em dinheiro já são restringidas e

a Internet é totalmente vigiada. O próximo passo será forçar a

passagem a uma sociedade sem dinheiro, controlada por uma

autoridade central.

Este crescimento em direcção a uma autoridade governamental

central, sem espírito, num mundo virtual de alta tecnologia

divorciado dos processos naturais, onde a comida, a água e as

rotinas da vida foram banalizadas e distorcidas, conduz ao

desastre. Quando a saúde é subvertida para mais um ciclo de

comida cada vez pior, novas doenças e mais drogas, o Armagedão

é o resultado. Isto aconteceu já várias vezes na pré-história.

Pode acontecer novamente, só que desta vez numa escala muito

maior.

Sorriu para Ani.

- Mas não tem de ser assim. De facto, estamos a um pequeno

passo de saltarmos a barreira nas nossas consciências. Se

conseguíssemos entrar completamente na ideia de sermos seres

espirituais num mundo espiritual, então a comida, a saúde, a

tecnologia, a imprensa e o governo assumiriam os seus papéis

correctos na evolução e no aperfeiçoamento deste mundo. Mas

para que isto aconteça é preciso que as extensões da oração

sejam completamente compreendidas nas culturas exteriores.

Elas devem compreender aquilo que fazemos nos templos. A

transição de Shambhala faz parte deste processo, mas a

oportunidade tem de ser aproveitada.

Olhou profundamente para Tashi.

- Para que isto aconteça, a tua geração deve fundir-se com

as duas últimas, num campo de oração integrado - um que inclua

uma unidade final em todas as religiões.

172 - 173

Tashi pareceu confuso e o pai aproximou-se dele.

- Em todo o mundo, a geração nascida nas primeiras décadas

do século vinte, aquela a que o nosso amigo ocidental chamaria

a geração da Segunda Guerra Mundial, usou a coragem e a

tecnologia para salvar a democracia e a liberdade da ameaça

dos ditadores que queriam formar um império. Venceram, usando

o poder da tecnologia, e continuaram a expandir esta

tecnologia para uma economia à escala mundial. Depois a

geração seguinte - a que os americanos chamam baby boomers -

chegou à Terra e as suas intuições disseram-lhe que a

orientação para o materialismo, somente para a tecnologia, não

era a mais correcta. Havia demasiada poluição, demasiada

influência empresarial no governo, demasiada vigilância por

organizações de informação. Esta crítica era a forma normal de

uma nova geração se expandir e fazer-nos avançar

intuitivamente. Cresceram com um materialismo conquistado com

dificuldade ou, em alguns países, com o desejo do material, e

 

 

começaram a reagir, a dar voz à ideia de haver mais a esperar

da vida. Havia um propósito espiritual por detrás da história

humana, que podia ser compreendido com mais pormenor. Foi isso

que esteve por trás daquilo que aconteceu nos anos sessenta e

setenta no Ocidente: a rejeição de um sistema de estatuto

baseado no material, a exploração de outras religiões, a

popularidade da filosofia, a explosão do pensamento do

Movimento do Potencial Humano. Tudo isso foi o resultado de

uma série de revelações, que mostraram que havia mais na vida

do que aquilo que a nossa visão materialista conhecia.

Olhou para mim com um piscar de olhos, como se soubesse tudo

acerca das minhas experiências com as Revelações.

- As intuições dos baby boomers foram muito importantes -

prosseguiu - porque começaram a colocar a tecnologia e a

abundância material na sua perspectiva correcta e a

compreender a intuição profunda que nos diz que a tecnologia

está a ser desenvolvida neste planeta para suportar uma

cultura que se possa concentrar não apenas na sobrevivência,

mas também no desenvolvimento espiritual.

Fez uma breve pausa.

- E agora, desde o fim dos anos setenta e nos anos oitenta,

chegou uma nova geração para levar a cultura humana ainda mais

longe.

174

Olhou para Tashi.

- Tu e as pessoas da tua idade são os membros finais desta

geração. Estás a ver a ênfase que vieram trazer ao mundo?

Enquanto Tashi reflectia sobre a pergunta, eu próprio pensei

nela. Os filhos e filhas dos baby boomers tinham sido

caracterizados como reagindo ao idealismo e ambivalência dos

pais em relação à tecnologia, tornando-se mais práticos e, de

facto, desenvolvendo o amor pela tecnologia para lá de

qualquer coisa vista antes.

Toda a gente olhou para mim, como se tivessem ouvido os meus

pensamentos. Tashi estava a acenar em concordância.

- Sentimos que a tecnologia tem um propósito espiritual -

disse ele.

- Agora - continuou o tibetano mais velho, olhando para

todos nós - vêem como as três gerações fluem em conjunto? A

geração da Segunda Guerra Mundial lutou contra a tirania e

provou que a democracia podia não apenas florescer no mundo

moderno, mas também expandir-se tremendamente e ligar as

economias mundiais. Depois, no meio da abundância, os baby

boomers chegaram e disseram que essa expansão tinha problemas,

que estávamos a poluir o mundo natural e a perder o contacto

com a natureza e uma realidade espiritual que existe por trás

dos caprichos da história. E agora chegou a geração seguinte,

para se concentrar novamente na economia, para reformular a

tecnologia de modo a poder suportar conscientemente a nossa

capacidade mental e espiritual, da maneira que isso aconteceu

aqui em Shambhala - em vez de permitir que a tecnologia caia

apenas nas mãos daqueles que a iriam usar para restringir a

liberdade e controlar os outros.

- Mas esta nova geração não tem plena consciência daquilo

que está a fazer - disse eu.

- Não, não completamente - retorquiu ele. - Mas a sua

consciência e visão expandem-se a cada dia que passa. Temos de

preparar um campo de oração que os erga nesta direcção. Tem de

 

 

ser um campo grande e forte. A nova geração tem de ajudar-nos

a unificar as religiões.

- Isto é muito importante, porque sempre existirão

controladores, prontos a manipular esta geração e levá-los a

criarem usos negativos para a tecnologia ou a aproveitar-se da

sua alienação.

175

Ali sentados, ouvimos novamente o zumbido baixo de

helicópteros, ainda longínquos.

- A transição está a começar - disse o pai de Tashi, olhando

para ele. - Temos muitos preparativos a fazer. Queria apenas

que soubesses que a geração que tu representas deve ajudar a

fazer-nos avançar. Tu, pessoalmente, tens um papel na expansão

para as culturas exteriores daquilo que Shambhala tem feito.

Mas só tu podes decidir o que deves fazer.

O jovem desviou o olhar.

O pai foi até junto dele e rodeou-o com o braço durante um

momento. Depois abraçou Ani e saiu da casa.

Tashi seguiu-o com os olhos, vendo-o passar pela porta, e

depois voltou sozinho para o quarto. Segui Ani para o

exterior, até uma zona de repouso no jardim, cheio de

perguntas.

- Para onde foi o pai do Tashi? - perguntei.

- Ele está a preparar-se para a transição - respondeu ela,

olhando para mim. - Isto pode não ser fácil. Podemos ficar

todos deslocados durante algum tempo. Muitos virão dos templos

para nos ajudarem.

Abanei a cabeça. - O que lhe parece que vai acontecer?

- Ninguém sabe - replicou ela. - As lendas não são

pormenorizadas. Tudo o que sabemos é que haverá uma transição.

A incerteza começou novamente a diminuir o meu nível de

energia e por isso sentei-me num dos bancos próximos.

Ani seguiu-me e sentou-se ao meu lado.

- Mas sei o que você deve fazer - disse ela. - Deve

continuar a seguir o resto da Quarta Extensão. Tudo o mais

tratará de si mesmo.

Eu acenei, sem grande convicção.

- Concentre-se naquilo que aprendeu aqui. Viu qual deverá

ser a evolução da tecnologia e começou agora a ver como a

nossa cultura se orienta para o processo vital, o milagre do

nascimento e da evolução consciente. Sabe que é esta a

orientação que cria a maior inspiração e o maior divertimento.

A vida materialista das culturas exteriores não se compara com

ela. Somos criaturas espirituais e as nossas vidas devem girar

em torno dos mistérios da família, do talento e da procura da

missão individual. Mais uma vez, você conhece agora o aspecto

e a sensação duma tal cultura. As lendas dizem que o

conhecimento seguro acerca da evolução possível das culturas

alarga o campo de oração das pessoas e dá-lhes mais poder.

Agora, quando se liga interiormente e vê o seu campo a fluir à

sua frente, actuando para provocar a sincronicidade e elevando

os outros ao processo da sincronicidade, pode fazê-lo com

maior expectativa, porque sabe com segurança onde esse

processo nos leva, se nos mantivermos fiéis a ele e evitarmos

o ódio e o medo.

Ela tinha razão. As extensões estavam a encaixar-se.

- Mas eu ainda não vi tudo - protestei.

Ela olhou-me no fundo dos meus olhos.

 

 

- Não, tem de continuar para compreender o resto da Quarta

Extensão. Há mais. O seu campo de oração pode ser ainda mais

poderoso.

Nesse momento ouvimos novamente os helicópteros e o som

deles encheu-me de ódio. Pareciam estar mais próximos. Como

seria isso possível? Como poderiam eles saber onde Shambhala

ficava?

- Malditos sejam - disse eu, o que produziu uma expressão

horrorizada no rosto de Ani.

- Você tem muita raiva - disse ela.

- Bem, é difícil não estar zangado quando vemos o que o

exército chinês está a fazer.

- Essa raiva é um padrão dentro de si. Tenho a certeza que

já o avisaram acerca do seu efeito.

Pensei em tudo o que Yin me tentara explicar.

- Sim, já. Mas eu estou sempre a fazer asneira.

Conseguia ver que ela estava preocupada.

- Terá de dominar esse problema - disse ela. - Mas não se

absorva demasiado consigo mesmo. Isso cria uma oração negativa

que o mantém no mesmo local. Por outro lado, não pode

simplesmente ignorar a sua raiva. Tem de manter o problema em

mente, recordá-lo a si mesmo, manter-se consciente, e ao mesmo

tempo preparar o seu campo de oração para vencer o antigo

padrão e livrar-se dele.

Eu sabia que isso era caminhar na corda bamba e que exigiria

um esforço consciente da minha parte.

176 - 177

- O que devo fazer agora? - perguntei.

- O que lhe parece?

- Tenho de ir aos templos?

- É essa a sua intuição?

Pensei novamente no meu sonho e finalmente falei-Lhe dele.

Ela abriu muito os olhos.

- Sonhou que ia aos templos com o Tashi? - perguntou.

- Sim - repliquei.

- Bem - disse ela, com seriedade - não acha que lhe devia

contar isso?

Fui até ao quarto de Tashi e toquei na parede.

- Entre - disse ele, e uma abertura surgiu.

Tashi estava estendido em cima da cama. Sentou-se

imediatamente e fez-me sinal para uma cadeira à frente dele.

Sentei-me.

Durante um momento ele ficou silencioso, com o peso do mundo

sobre os seus ombros. Finalmente disse:

- Continuo sem saber o que fazer.

- Em que estás a pensar? - perguntei.

- Não sei, estou confuso. Só penso em ir às culturas

exteriores. A minha mãe diz que tenho de encontrar o meu

próprio caminho. Quem me dera que a minha avó estivesse aqui.

- Onde está a tua avó?

- Está algures nos templos.

Olhámos um para o outro durante muito tempo e depois ele

acrescentou:

- Se ao menos conseguisse compreender o sonho que eu tive.

Endireitei-me na cadeira. - Que sonho?

- Estou com um grupo de pessoas. Não lhes vejo as caras, mas

sei que uma delas é minha irmã. - Fez uma pausa. - Também

conseguia ver um lugar com água. De alguma forma, tinha

 

 

conseguido chegar às culturas exteriores.

- Eu também tive um sonho - disse eu. - Tu estavas comigo.

Estávamos num dos templos... era azul... e encontrámos lá mais

alguém.

O vestígio de um sorriso cruzou o rosto de Tashi.

- O que está a dizer? - perguntou. - Que é suposto eu ir

consigo aos templos e não às culturas exteriores?

- Não - disse eu. - Não era isso que eu queria dizer. Tu

disseste-me que toda a gente pensa ser impossível chegar às

culturas exteriores a partir dos templos. Mas, e se não for?

O rosto dele iluminou-se.

- Quer dizer, ir aos templos e tentar chegar às culturas

exteriores a partir daí?

Eu limitei-me a olhar para ele.

- Deve ser isso - disse ele, levantando-se. - Talvez eu

tenha sido chamado, afinal.

178 - 179

9.

A ENERGIA DO MAL

Assim que saímos do quarto, o ruído distante dos

helicópteros cresceu.

Ani entrou em casa e tirou três pesadas mochilas de uma

caixa de armazenagem. Entregou-as a nós, juntamente com dois

blusões. Notei que estes pareciam ter sido feitos de forma

convencional, com tecido cosido. Ia interrogá-la acerca deles,

mas ela encaminhou-nos rapidamente para fora da habitação e

conduziu-nos pelo carreiro à nossa esquerda.

Enquanto caminhávamos, Ani aproximou-se de Tashi e eu ouvi-o

a contar-lhe a sua decisão de ir aos templos. O ribombar dos

helicópteros aproximava-se cada vez mais e o céu azul tinha

ficado muito encoberto.

A dada altura perguntei-lhe para onde íamos.

- Para as grutas - disse ela. - Vocês vão precisar de tempo

para se prepararem.

Descemos um carreiro pedregoso, que cruzava a vertente

íngreme de um penhasco e descia para um planalto do outro

lado. Aqui, Ani fez-nos sinal para dentro duma pequena fenda,

onde nos aninhámos, à escuta. Os helicópteros pairaram durante

um momento num círculo apertado por cima dos penhascos e

depois seguiram exactamente o nosso percurso, até ficarem

directamente por cima de nós.

Ani parecia horrorizada.

- O que se passa? - gritei.

181

Sem responder, ela saiu da fenda e fez-nos sinal para a

seguirmos. Corremos cerca de quilómetro e meio, pelo planalto

e numa outra zona montanhosa, depois parámos e esperámos. Tal

como antes, os helicópteros giraram atrás de nós até ficarem

directamente por cima.

Uma rajada de ar gelado atingiu-nos, quase me derrubando. Ao

mesmo tempo, as roupas desapareceram dos nossos corpos, com

 

 

excepção dos pesados casacos.

- Calculei que isto poderia acontecer - disse Ani, tirando

mais roupas das mochilas. Eu ainda tinha as minhas botas

calçadas, mas as de Tashi e Ani tinham desaparecido. Ela

deu-Lhe um par de botas de cabedal e também calçou umas.

Quando terminámos, subimos a encosta, trepando por entre as

rochas até chegarmos a uma área mais plana. Estava a começar

um pesado nevão e a temperatura estava a cair. Os helicópteros

pareceram momentaneamente desorientados.

Olhei para o vale que fora verde. A neve tinha coberto quase

tudo e as plantas já pareciam estar a morrer por causa do

frio.

- É o efeito da energia dos soldados - disse Ani. - Está a

destruir o nosso campo ambiental.

Olhando na direcção do som dos helicópteros, senti uma nova

onda de raiva. Eles inclinaram-se imediatamente e seguiram na

nossa direcção.

- Vamos - gritou Ani.

Cheguei-me para mais perto da fogueira, sentindo o frio

matinal. Tínhamos caminhado mais uma hora e passado a noite

numa pequena gruta. Apesar de várias camadas de roupa interior

quente, ainda me sentia gelado. Tashi estava aninhado a meu

lado e Ani estava a espreitar pela abertura, para o mundo

gelado lá fora. A neve caía há horas.

- Desapareceu tudo - disse Ani. - Não há lá nada a não ser

gelo.

Avancei até à abertura e olhei para o exterior. Aquilo que

tinha sido um vale florestal com centenas de habitações, não

passava agora de neve e montanhas irregulares. Aqui e ali

viam-se os restos inclinados de árvores, mas nem uma única

mancha de cor. Todas as casas tinham simplesmente desaparecido

e o rio que atravessava o centro do vale estava gelado.

- A temperatura deve ter caído uns sessenta graus -

acrescentou Ani.

- O que aconteceu? - perguntei.

- Quando os chineses nos encontraram, a força dos seus

pensamentos e expectativas de tempo frígido contrariou o campo

que tínhamos preparado para manter as temperaturas amenas.

Normalmente a força dos campos das pessoas nos templos teria

sido suficientemente forte para manter os chineses à

distância, mas elas sabiam que estava na altura da transição.

- O quê? Elas deixaram os chineses entrar de propósito?

- Era a única possibilidade. Se você e os outros que nos

encontraram puderam entrar, não havia maneira de manter os

soldados longe. Você não é suficientemente forte para manter

os pensamentos fora da sua cabeça. E os chineses seguiram-no

até aqui.

- Quer dizer que é culpa minha? - disse eu.

- Está tudo bem. Faz parte da dispersão.

Isso não me consolou. Voltei para junto da fogueira e Ani

seguiu-me. Tashi tinha preparado um guisado de vegetais secos.

- Tem de compreender - disse ela - que o povo de Shambhala

ficará bem. Tudo isto estava previsto. Toda a gente que aqui

estava está bem. Pessoas suficientes voltaram dos templos para

as levarem através das janelas espaciais até um lugar seguro.

As nossas lendas prepararam-nos bem.

Ela apontou para o vale.

- Tem de concentrar-se naquilo que está a fazer. Você e

Tashi têm de chegar aos templos sem serem capturados pelos

soldados. O resto daquilo que Shambhala estava a fazer pela

humanidade tem de ser conhecido.

 

 

Ela parou, no momento em que ambos ouvimos o estremecimento

fraco de um helicóptero distante. O som ficou mais ténue e,

finalmente, desapareceu.

- E tem de ser muito mais cauteloso - disse. - Pensei que

você sabia como manter as imagens negativas longe da sua

mente, especialmente pensamentos de ódio ou de descrédito.

Sabia que ela tinha razão, mas ainda me sentia confuso

acerca do funcionamento de tudo isso.

Ela deitou-me um olhar intenso.

182 - 183

- Mais cedo ou mais tarde, terá de lidar com o seu padrão de

raiva.

Ia fazer uma pergunta quando, pela abertura da gruta, vimos

várias dezenas de pessoas a descerem uma encosta gelada à

nossa direita.

Ani levantou-se e olhou para Tashi.

- Não temos mais tempo - declarou. - Tenho de ir. Tenho de

ajudar estas pessoas a encontrarem uma saída. O teu pai estará

comigo.

- Não podes vir connosco? - perguntou Tashi, aproximando-se

dela. Eram visíveis as lágrimas nos seus olhos.

Ani olhou para ele e depois para fora da fenda gelada, para

as outras pessoas.

- Não posso - disse, abraçando-o com força. - O meu lugar é

aqui, ajudando durante a transição. Mas não te preocupes.

Hei-de encontrar-te, estejas onde estiveres.

Caminhou até à entrada da gruta e voltou-se para olhar para

nós.

- Vocês ficarão bem - disse ela. - Mas tenham cuidado. Não

conseguirão manter a energia em alta se estiverem dominados

pelo ódio. Não podem ter inimigos.

Parou, olhou para mim e depois disse uma coisa que eu já

tinha ouvido muitas vezes nesta viagem.

- E lembre-se - instruiu ela com um sorriso - que você está

a ser ajudado.

Tashi olhou por cima do ombro e sorriu para mim, enquanto

avançávamos penosamente sobre a neve profunda. Estava a ficar

mais frio e eu lutava para manter os meus níveis de energia.

Para chegarmos à cordilheira onde se erguiam os templos,

tivemos de escalar a cordilheira onde estávamos agora,

atravessar o vale gelado e subir outra montanha quase na

vertical. Tínhamos descido mais de meio quilómetro sem

dificuldade, mas agora parecíamos estar à beira de um

precipício rochoso. Por baixo de nós estava uma queda de quase

quinze metros.

Tashi voltou-se e olhou para mim. - Temos de deslizar por

aqui abaixo. Não há outra forma.

- Isso é demasiado perigoso - protestei. - Pode haver pedras

debaixo da neve. Se começarmos a deslizar sem controlo,

podemos ficar feridos.

A minha energia estava em queda livre.

Tashi sorriu nervosamente. - Está tudo bem - disse. - Não há

problema em ter medo. Mas mantenha a sua visualização de um

desenlace positivo. Na realidade, o medo fará os dakini

aproximarem-se.

- Espera um minuto - disse eu. - Nunca ninguém referiu isso.

O que queres dizer?

- Nunca foi ajudado de forma misteriosa, inexplicável?

 

 

- O Yin disse-me que Shambhala estava a ajudar-me.

- Sim?

- Não compreendo a relação. Tenho estado a tentar perceber o

que determina quando os dakini nos ajudam.

- Só os habitantes dos templos sabem isso. Sei apenas que o

medo faz sempre com que esses guardiões se aproximem, se

conseguirmos manter alguma fé. É o ódio que os afasta.

Tashi empurrou-me para fora da plataforma e começámos a

deslizar descontroladamente sobre a neve solta. O meu pé bateu

numa rocha, fez-me rodar e eu comecei a deslizar de cabeça

para baixo. Sabia que, se atingisse outra rocha com a cabeça,

podia morrer. Mas, apesar do medo, consegui manter a visão de

uma aterragem em segurança.

Com essa ideia, comecei a aperceber-me de uma sensação que

me encheu de paz e bem estar. O terror diminuiu. Momentos

depois cheguei ao fundo da inclinação e rebolei até parar.

Tashi chocou com as minhas costas. Fiquei um momento deitado,

de olhos fechados. Abri-os devagar, recordando outras

situações perigosas da minha vida em que uma paz inexplicável

me tinha inundado.

Tashi estava a içar-se para fora do banco de neve e sorri

para ele.

- O que foi? - perguntou ele.

- Estava ali alguém.

Tashi ergueu-se, sacudiu a neve das roupas e começou a

andar.

- Está a ver o que acontece quando se mantém positivo?

Qualquer força temporária que venha da raiva não se pode

comparar a este mistério.

Eu acenei, esperando conseguir recordar isso.

184 - 185

Durante duas horas avançámos pelo fundo do vale,

atravessando o rio gelado e enfrentando a subida gradual para

a base das montanhas íngremes. A neve começava a cair com mais

força.

Subitamente Tashi parou.

- Mexeu-se qualquer coisa além - disse ele.

Eu esforcei-me por ver melhor. - O que era?

- Parecia uma pessoa. Venha.

Avançámos pela encosta da montanha. O pico parecia estar

seis quilómetros acima de nós.

- Tem de haver uma passagem algures - disse Tashi. - Não

podemos passar pelo cume.

À nossa frente ouvimos o som de neve e rochas a derrocarem.

Tashi e eu olhámos um para o outro e contornámos devagar uma

série de grandes rochedos. Ao passarmos pelo último, vimos um

homem a sair do meio da neve. Parecia exausto. Tinha um dos

joelhos envolto numa ligadura ensanguentada. Eu não acreditava

nos meus olhos. Era Wil.

- Está tudo bem - disse eu para Tashi. - Conheço este

homem.Levantei-me e rastejei por cima das pedras.

Wil ouviu-nos e saltou para o lado, preparado para fugir por

um carreiro estreito, apesar da perna.

- Sou eu. - gritei-Lhe.

Wil ergueu-se um momento, depois caiu novamente sobre a

neve. Tinha vestido um grosso blusão branco e calças

impermeáveis.

- Já era tempo - disse ele, sorrindo. - Estava à tua espera

 

 

há muito tempo.

Tashi correu para ele e olhou para a perna de Wil.

Apresentei-os. O mais depressa que consegui, expliquei a Wil

tudo o que me tinha acontecido: o encontro com Yin, a fuga aos

chineses, as extensões, a passagem pelo portão e finalmente a

chegada aos anéis de Shambhala.

- Não sabia como encontrar-te - acrescentei, apontando para

o vale. - Está tudo arruinado. É o efeito dos chineses.

- Eu sei - disse Wil. - Eu próprio já me cruzei com eles.

Wil contou-nos as suas experiências. Tal como eu, ele tinha

expandido o seu campo de oração o melhor que pôde e conseguiu

entrar em Shambhala. Esteve noutra parte dos anéis, onde

continuou a ser instruído acerca das lendas por outra família.

- É muito difícil chegar aos templos - disse Wil. -

Especialmente agora, com a vinda dos soldados chineses. Temos

de nos certificar que não estamos a formular orações

negativas.

- Acho que não me estou a sair muito bem nessa área -

repliquei.

Ele olhou-me com seriedade, preocupado. - Mas foi por isso

que estiveste com o Yin. Ele não te mostrou o que pode

acontecer?

- Parece-me que agora consigo evitar as imagens de medo, em

geral. É a minha raiva contra os soldados chineses que

continua a escapar-me.

Wil pareceu ainda mais alarmado e estava prestes a dizer

qualquer coisa quando ouvimos o som de helicópteros a

aproximarem-se ao longe. Começámos a escalar a montanha,

ziguezagueando por entre as rochas e bancos de neve profunda.

Tudo parecia frágil e instável. Subimos durante mais vinte

minutos sem falarmos. O vento estava a aumentar e a neve

feria-nos o rosto.

Wil parou e caiu sobre um dos joelhos.

- Ouçam - disse. - O que é isto?

- É outra vez o helicóptero - disse eu, lutando com a minha

irritação.

Enquanto escutávamos, o helicóptero cortou as nuvens por

cima de nós e voou na nossa direcção.

Coxeando ligeiramente, Wil avançou pela encosta gelada, mas

eu parei um instante, ouvindo mais qualquer coisa acima do

ruído do helicóptero. Parecia um comboio de mercadorias.

- Cuidado! - gritou Wil à minha frente. - É uma avalanche.

Tentei correr para longe, mas era demasiado tarde. A força

bruta da neve que caía atingiu-me no rosto e derrubou-me

encosta abaixo. Caí e deslizei, umas vezes completamente

coberto pelo peso da avalanche que ribombava, outras vezes à

superfície da massa de neve em movimento.

Depois de uma aparente eternidade, senti-me a parar. Fiquei

soterrado, incapaz de me mexer, com o corpo contorcido sob a

neve. Tentei inspirar, mas não havia ar. Sabia que ia morrer.

Mas alguém agarrou o meu braço direito esticado e começou a

desenterrar-me. Sentia outros a cavarem à minha volta e,

finalmente, a minha cabeça ficou livre.

186 - 187

Respirei ansioso, tirando a neve dos meus olhos, esperando ver

Wil.

Em vez dele, vi uma dúzia de soldados chineses, um dos quais

 

 

continuava a segurar o meu braço. Atrás deles vi, a caminhar

na minha direcção, o coronel Chang. Sem falar, fez sinal a

outros soldados para me levarem a um helicóptero que pairava.

Uma escada de corda caiu, alguns soldados subiram agilmente e

depois atiraram um arnês, que foi colocado à volta do meu

corpo. O coronel deu a ordem e eu fui puxado para bordo,

enquanto ele e os restantes soldados subiam. Minutos depois

voámos para longe.

Fiquei a olhar por uma janela do tamanho de uma vigia, numa

tenda aquecida de nove por nove metros. Ao todo, conseguia

contar pelo menos sete tendas grandes e três atrelados

portáteis, mais pequenos, de um tamanho facilmente

aerotransportável. Um gerador a gasolina gemia num canto do

complexo e numa área à esquerda estavam pousados vários

helicópteros. A neve tinha parado de cair, mas tinha acumulado

trinta ou trinta e cinco centímetros sobre o solo.

Tentei ver melhor para a direita. Avaliando a disposição da

cordilheira lá atrás, concluí que tinha sido enviado para o

centro do vale. Um vento nocturno uivava, agitando as costuras

exteriores da tenda.

Quando cheguei, fui alimentado, forçado a tomar um duche

tépido e recebi um camuflado chinês e roupa interior térmica

para vestir. Pelo menos estava finalmente quente.

Voltei-me e olhei para o guarda chinês armado que estava

sentado à entrada. Os olhos dele tinham seguido todos os meus

movimentos com uma expressão fria que me gelava a alma.

Fatigado, caminhei até uma das duas camas de campanha ao canto

e sentei-me. Tentei avaliar a minha situação mas não conseguia

pensar. Estava atordoado, petrificado, tão assustado, na

realidade, que sabia não estar muito alerta. Não conseguia

compreender porque me sentia tão incapacitado. Era o pânico

mais intenso que jamais sentira.

Tentei respirar fundo e acumular energia, mas não consegui

sequer começar. As lâmpadas nuas penduradas no tecto da tenda

enchiam o espaço com uma luz baça e tremeluzente e sombras

ameaçadoras. Não conseguia encontrar qualquer beleza naquilo

que me rodeava.

A porta da tenda abriu-se e o soldado pôs-se em sentido. O

coronel Chang entrou e despiu o grosso blusão, acenando para o

guarda. Depois concentrou-se em mim. Desviei o olhar.

- Temos de falar - disse ele, puxando uma cadeira

desdobrável e sentando-se a um metro de mim. - Preciso de

respostas às minhas perguntas. Já. - Olhou friamente para mim

durante um momento. - Porque está aqui?

Decidi responder o mais sinceramente possível.

- Estou aqui a estudar as lendas tibetanas. Já lhe disse

isso.

- Está aqui à procura de Shambhala.

Fiquei silencioso.

- É isso? - perguntou ele. - Fica aqui neste vale?

O medo fez o meu estômago dar uma volta. O que ele faria se

eu me recusasse a responder?

- Não sabe? - perguntei.

Ele sorriu ligeiramente.

- Suponho que você e o resto da sua seita ilegal pensam que

isto é Shambhala. - Parecia confuso, como se tivesse recordado

outra coisa.

- Avistámos outras pessoas aqui. Mas elas conseguiram

escaparnos na neve. Onde estão? Para onde foram?

- Não sei - respondi. - Nem sequer sei onde estamos.

Ele aproximou-se. - Também encontrámos vestígios de plantas,

 

 

vivas recentemente. Como é isso possível? Como poderiam ter

crescido aqui?

Eu limitei-me a olhar para ele.

Ele sorriu friamente.

- Quanto sabe realmente acerca das lendas de Shambhala?

- Um pouco - balbuciei.

- Eu sei bastante. Acredita nisso? Até este momento tive

acesso a todos os escritos antigos e devo dizer que eles são

deliciosamente interessantes, como mitologia. Pense nisso: uma

comunidade ideal, constituída por seres humanos esclarecidos

muito mais avançados, mentalmente, do que qualquer outra

cultura deste planeta.

188 - 189

- E também sei o resto: essa ideia de que estes indivíduos

de Shambhala têm uma espécie de poder secreto para o bem, que

se mistura com o resto da humanidade e a empurra nessa

direcção. Material fascinante, não lhe parece? Lendas antigas

que até poderiam ser apreciadas, já agora... se não fossem tão

corruptoras e perigosas para o povo do Tibete.

Não lhe parece que, se alguma coisa assim fosse real, nós a

teríamos já descoberto? Deus, espírito, é tudo um sonho

infantil. Veja a mitologia tibetana acerca dos dakini, a ideia

de que existem criaturas angélicas que podem interagir

connosco, ajudar-nos.

- No que é que você acredita? - perguntei, tentando tornar a

situação mais difusa.

Ele apontou para a cabeça.

- Acredito no poder da mente. É por isso que devia falar

connosco, ajudar-nos. Estamos muito interessados na ideia do

poder psíquico, o alcance mais vasto das ondas cerebrais e o

seu efeito sobre a electrónica e as pessoas à distância. Mas

não confunda isso com espiritualismo. Os poderes da mente são

um fenómeno natural que pode ser investigado e descoberto de

forma científica.

Terminou a frase com um gesto irritado da mão, enviando uma

sensação cada vez mais profunda de medo ao meu estômago. Eu

sabia que este homem era extremamente perigoso e absolutamente

impiedoso.

Ele estava a olhar para mim, mas qualquer coisa na parede da

tenda atrás dele chamou-me a atenção, directamente em frente

da porta onde o guarda estava de pé. A área tinha subitamente

ficado mais clara. A lâmpada no tecto piscava ligeiramente e

ignorei a minha percepção, tomando-a por um sobressalto no

gerador.

O coronel levantou-se e deu alguns passos na minha direcção,

parecendo mais zangado.

- Acha que eu gosto de passear por este deserto? Não consigo

perceber como alguém pode sobreviver aqui. Mas não nos vamos

embora. Vamos alargar este campo até termos tropas suficientes

para cobrirem completamente esta área a pé. Quem quer que

esteja aqui, será descoberto e tratado com a máxima dureza.

Forçou um meio sorriso.

- Mas os nossos amigos serão igualmente recompensados.

ComPreende?

Neste momento outra onda de medo percorreu-me, mas esta era

diferente. Era medo misturado com um grande desdém. Eu

começava a desprezar a dimensão da maldade neste homem.

Olhei para trás dele, para a área que me parecera mais

 

 

clara, mas esta estava agora plana e cheia de sombras. A luz

tinha desaparecido e eu senti-me totalmente sozinho.

- Porque fazem isto? - perguntei - O povo tibetano tem

direito às suas crenças religiosas. Estão a tentar destruir a

sua cultura. Como podem fazer isso? - Sentia a minha raiva a

fazer-me mais forte.

O confronto apenas pareceu dar-lhe mais energia.

- Oh, você tem opiniões - disse ele com um sorriso afectado.

- É uma pena que sejam tão ingénuas. Você acha que aquilo que

nós fazemos é invulgar. O seu próprio governo também está a

desenvolver métodos para o controlar. Chips que podem ser

inseridos no corpo das tropas e dos desordeiros incautos.

- E não é tudo - Agora estava quase a gritar. - Sabemos

agora que, quando as pessoas pensam, um padrão específico de

ondas cerebrais irradia delas. Todos os governos estão a

trabalhar em máquinas que podem identificar estas ondas

cerebrais, especialmente os sentimentos de ira ou

anti-governamentais.

A afirmação dele arrepiou-me. Estava a falar do mesmo uso

errado da amplificação das ondas cerebrais contra o qual Ani

me avisara, aquele que tinha arruinado tantas civilizações

antigas.

- Sabe porque os vossos governos pseudo-democráticos fazem

isto? - continuou ele - Porque têm muito mais medo das pessoas

do que nós. Os nossos cidadãos sabem que o papel do governo é

governar. Sabem que certas liberdades devem ser limitadas. O

vosso povo pensa que pode existir orientação pessoal. Bem, se

isso era verdade no passado, num mundo altamente tecnológico,

onde uma arma dentro de uma mala pode destruir uma cidade, já

não funciona. Com esse tipo de liberdade, os humanos não

sobreviverão. A orientação, os valores da sociedade, deve ser

controlada e direccionada para um bem mais vasto. É por isso

que esta lenda de Shambhala é tão perigosa. Baseia-se na

auto-orientação absoluta.

190 - 191

Enquanto ele falava, pareceu-me ouvir a porta a abrir-se

atrás de mim, mas não me virei. Estava totalmente concentrado

na atitude deste homem. Aqui estava o pior da tirania moderna

a ser expresso e, quanto mais ele falava, mais o meu desprezo

aumentava.

- O que você não vê - disse eu - é que os humanos podem

encontrar uma motivação interior para criarem o bem no mundo.

Ele riu-se cinicamente.

- Não me diga que acredita nisso! Nada na história sugere

que as pessoas sejam outra coisa, a não ser egoístas e

gananciosas.

- Se tivesse a sua espiritualidade, veria o bem. - A minha

voz também estava a subir com a raiva.

- Não - disse ele com brusquidão, quase gritando. - A

espiritualidade é o problema. Enquanto houver religião, não

pode haver unidade entre o povo. Não compreende? Cada

instituição religiosa é como um bloqueio inflexível no caminho

do progresso. Cada uma combate as outras. Os cristãos gastam o

seu tempo e dinheiro a tentarem converter toda a gente à sua

doutrina de julgamentos. Os judeus querem continuar isolados

num sonho de eleição. Os muçulmanos pensam que é tudo

companheirismo, poder colectivo e ódio sagrado. E nós, no

oriente, somos os piores. Desprezamos o mundo real em favor

 

 

duma vida interior fictícia, que ninguém compreende. Com todo

este caos metafísico, ninguém pode concentrar-se no progresso,

na resolução dos problemas dos pobres, na educação de todas as

crianças tibetanas.

- Mas não se preocupe - prosseguiu. - Nós vamos

certificar-nos que o problema seja resolvido. E você

ajudou-nos. Desde que James Wilson o visitou na América,

observámos todos os seus movimentos e os do grupo holandês. Eu

sabia que você viria, que devia estar envolvido.

Devo ter parecido surpreendido.

- Oh, sim, sabemos tudo sobre si. Agimos com muito mais

liberdade na América do que você pensa. A NSA(1) pode

monitorizar a Internet. Acha que nós não podemos? Você e esta

seita nunca me escaparão. Como acha que conseguimos segui-lo

com este tempo? Com o poder da mente. A minha mente.

Ocorreu-me onde você estaria.

*1. National Security Agency - Agência de Segurança Nacional

dos Estados Unidos. (N. do T.)

192

Mesmo depois de nos perdermos neste deserto, eu sabia.

Sentia a sua presença. A princípio era o seu amigo Yin que eu

conseguia seguir. Agora é você.

E não é tudo. Já nem sequer preciso de usar os meus

instintos para o localizar. Tenho uma análise das suas ondas

cerebrais. - Indicou a porta com a cabeça. - Dentro de minutos

os nossos técnicos terão montado o nosso novo equipamento de

vigilância. Depois seremos capazes de localizar qualquer

pessoa que tenhamos analisado.

A princípio não consegui perceber o que ele estava a

referir, mas depois recordei a minha experiência na casa

chinesa em Ali, depois de ter sido gaseado. Os soldados

colocaram-me sob uma máquina. Uma nova onda de medo

percorreu-me, mas imediatamente se transformou num ódio ainda

mais profundo.

- Você é louco! - gritei.

- Exacto. Para você, eu sou maluco. Mas eu sou o futuro. -

Estava agora a pairar ameaçador à minha frente, com o rosto

vermelho, quase a explodir de raiva. - Que inocência tão

estúpida. Você vai contar-me tudo. Percebeu? Tudo!

Sabia que ele não me teria dado esta informação se alguma

vez pretendesse libertar-me, mas naquele momento não me

importava.

Estava a falar com um monstro e um ódio avassalador estava a

encher-me. Estava prestes a verbalizar novamente a minha raiva

quando uma voz no outro lado da divisão exclamou.

- Não faça isso! Isso só o enfraquece!

O coronel voltou-se e olhou e eu segui o seu olhar. Junto à

porta estava outro guarda e a seu lado, encostado a uma

mesinha, estava Yin. O guarda empurrou-o para o chão.

Saltei e corri para Yin, enquanto o coronel dizia qualquer

coisa em chinês aos guardas e depois saía apressado. Yin tinha

nódoas negras e golpes no rosto.

- Yin, estás bem? - perguntei, amparando-o até uma das

camas.

- Estou - disse ele, puxando-me para junto dele. - Eles

apareceram logo depois de você ter partido. - Os olhos dele

 

 

estavam cheios de entusiasmo.

- Diga-me o que aconteceu. Encontrou Shambhala?

Olhei para ele e levei os dedos aos meus lábios.

193

- Eles provavelmente juntaram-nos para verem o que dizemos -

murmurei. - Podes apostar que têm este lugar sob escuta. Não

devíamos falar.

- Teremos de arriscar - disse Yin. - Venha para junto do

aquecedor. É barulhento. Conte-me o que aconteceu.

Durante a meia hora seguinte contei-lhe tudo acerca do mundo

que encontrara em Shambhala e depois, com o mais leve dos

sussurros, mencionei os templos.

Os olhos dele abriram-se muito.

- Então ainda não completou a Quarta Extensão?

Eu murmurei:

- É nos templos.

Falei-lhe acerca de Tashi e Wil e daquilo que Ani nos

dissera acerca de aprendermos o que as pessoas nos templos

faziam.

- E que mais disse ela? - perguntou Yin.

- Disse que não devemos ter inimigos - respondi.

Yin sorriu dolorosamente durante um momento e depois disse:

- Mas você está a fazer exactamente isso com o coronel.

Estava a usar a sua ira e desdém para se sentir forte. Esses

são os erros que eu cometi. Tem sorte dele não o ter morto

imediatamente.

Caí para trás, sabendo que as minhas emoções estavam

descontroladas.

- Não se lembra quando as suas expectativas negativas

afastaram o casal holandês da carrinha e você perdeu uma

sincronicidade importante? Nesse caso estava a ter uma

expectativa de medo de que eles iriam talvez prejudicá-lo.

Eles sentiram essa expectativa da sua parte; provavelmente

começaram a sentir que, caso parassem, fariam qualquer coisa

de mal e por isso partiram.

- Sim, eu lembro-me.

- Sempre que assumimos ou esperamos qualquer coisa negativa

- continuou Yin - acerca de outro ser humano, estamos a

formular uma oração que vai agir para criar essa realidade

nessa pessoa. Lembre-se que as nossas mentes estão ligadas. Os

nossos pensamentos e expectativas vão influenciar os outros a

pensarem da mesma maneira que nós. É isso que tem estado a

fazer com o coronel. Tem esperado que ele seja mau.

- Espera um minuto. Eu estava apenas a vê-lo como ele é.

194

- A sério? Que parte dele? O ego ou a alma, o eu mais

elevado?

Yin tinha razão. Eu tinha aprendido tudo isto com a Décima

Revelação, mas não estava a agir de acordo com ela.

- Quando estava a fugir dele - disse eu - ele conseguiu

seguir-me. Ele disse que conseguia fazer isso com a mente e a

intuição.

- Estava a pensar nele? - perguntou Yin - À espera que ele o

seguisse?

- Devia estar.

 

 

- Não se lembra? Foi isso que aconteceu comigo, antes. E

agora você está a fazer a mesma coisa. Essa expectativa estava

a criar na mente do Chang a ideia de onde você estava. Era um

pensamento do ego, mas ocorreu-lhe porque você esperava -

rezava, na realidade - que ele o encontrasse.

- Não vê? - prosseguiu Yin. - Falámos sobre isto tantas

vezes. O nosso campo de oração trabalha constantemente sobre o

mundo, enviando as nossas expectativas e, no caso de uma outra

pessoa, o efeito é quase instantâneo. Felizmente, como eu já

disse antes, uma tal oração negativa não é tão forte como uma

oração positiva, porque imediatamente o separa das suas

energias do eu superior, mas continua a ter um efeito. É este

o processo oculto por detrás da sua Regra Dourada.

Olhei para ele por um momento, sem compreender. Demorei um

minuto a lembrar-me ao que ele se referia: ao apelo bíblico

para fazermos aos outros o que gostaríamos que nos fosse feito

a nós. Não conseguia ver muito bem a ligação e pedi-lhe que mo

explicasse.

- Aparentemente - continuou ele - a regra devia ser seguida

porque cria uma boa sociedade. Certo? Enquanto posição ética.

Mas de facto há uma verdadeira razão espiritual, do karma, que

vai para além da noção disto ser uma boa ideia. É importante

obedecer a esta regra porque ela nos afecta pessoalmente.

Fez uma pausa dramática e depois acrescentou:

- A mais completa expressão desta regra deveria ser: faz aos

outros aquilo que gostarias que te fizessem, porque a forma

como os tratas ou pensas neles é exactamente a forma como eles

te vão tratar.

A oração que envias com o teu sentimento ou acção tende a

desencadear neles exactamente aquilo que esperas.

Acenei. Esta ideia começava a entrar em mim.

195

- No caso do coronel, quando você conclui que ele é mau, a

sua energia de oração entra na energia dele e reforça as suas

tendências. E assim ele começa a agir da forma como você

esperava: de forma furiosa, impiedosa. Porque ele não está

ligado a uma energia divina mais profunda, a energia do ego

dele é fraca e maleável. Ele assume o papel que se espera

nele. Pense no modo como as coisas geralmente funcionam na

cultura humana. Este efeito está em toda a parte. Lembre-se

que os humanos partilham atitudes e estados de espírito. É

tudo muito contagioso. Quando olhamos para os outros e fazemos

julgamentos, pensando que eles são gordos ou magros ou

fracassados ou feios ou mal vestidos, na realidade enviamos a

nossa energia a essas pessoas e eles começam muitas vezes a

ter maus pensamentos acerca deles mesmos. Estamos envolvidos

naquilo a que só podemos chamar a energia do mal. É o contágio

da oração negativa.

- Mas o que é suposto nós fazermos? - protestei. - Não

devemos ver as coisas como elas são?

- É claro que temos de ver as coisas como elas são, mas

depois disso devemos mudar imediatamente as nossas

expectativas daquilo que é para aquilo que podia ser. No caso

do coronel, devia ter compreendido que embora ele aja de forma

maligna, desligado de qualquer espiritualidade, o eu superior

dele é capaz de ver a luz num instante. É essa a expectativa

que interessa reter, porque então está realmente a enviar o

seu campo de oração nessa direcção, para aumentar a energia e

 

 

consciência dele. Deve voltar sempre a essa postura mental,

não importa aquilo que tiver visto.

Fez outra pausa dramática, sorrindo, o que me pareceu

estranho devido à nossa situação e ao seu rosto magoado e

cortado.

- Eles bateram-te? - perguntei.

- Não é nada que eu não tenha desejado - disse ele,

sublinhando mais uma vez a sua posição.

- Está a ver a importância de tudo isto? - perguntou Yin. -

Não pode ir mais longe nas extensões enquanto não compreender

isto. A ira será sempre uma tentação. Sabe bem. Faz os nossos

egos acreditarem que estamos a ficar mais fortes. Tem de ser

mais esperto do que isso. Não pode chegar aos níveis mais

fortes da energia criativa até conseguir evitar todos os

tipos de orações negativas. Já existe suficiente mal, sem que

nós o aumentemos inconscientemente. Esta é a grande verdade

por detrás do código tibetano de compaixão.

Afastei o olhar, sabendo que tudo o que Yin estava a dizer

era verdade. Tinha caído novamente neste padrão de raiva.

Porque estava sempre a fazer o mesmo?

Yin fixou os meus olhos.

- Aqui está o corolário desta ideia. Ao corrigirmos um

padrão contraproducente em nós mesmos - neste caso, raiva e

condenação - é imperioso que não criemos uma oração negativa

acerca das nossas possibilidades. Está a ver o que eu quero

dizer? Se fizermos comentários derrotistas como Eu não consigo

superar este problema ou Eu serei sempre assim, então estamos

a rezar para nos mantermos assim. Temos de formular uma visão

em como encontraremos uma energia mais elevada e superaremos

os nossos padrões. Temos de nos elevar com a nossa própria

energia de oração.

Ele recostou-se na cama.

- Foi esta a lição que eu próprio tive de aprender. Nunca

consegui compreender a atitude compassiva do Lama Rigden para

com o governo chinês. Eles estavam a destruir o nosso país e

eu queria-os derrotados. Nunca tinha estado suficientemente

perto de um soldado para olhá-los nos olhos, para vê-los como

pessoas apanhadas por um sistema tirânico.

- Mas quando vi para lá dos egos deles, da sua socialização,

consegui finalmente aprender a não aumentar a energia do mal

com as minhas ideias negativas. Consegui finalmente formar uma

visão mais elevada com eles e comigo mesmo. Talvez porque

aprendi isto, eu consiga também formar uma visão mais elevada

de que você também há-de aprendê-lo.

A cordei com o primeiro barulho no campo. Alguém estava a

bater com barris ou latas grandes. Levantei-me num salto,

vesti-me e olhei na direcção da porta. Os guardas tinham sido

substituídos por dois outros soldados, que olharam para mim

sonolentos. Fui até à janela e olhei para fora. O dia estava

escuro e encoberto e o vento uivava.

196 - 197

Havia movimento numa das tendas; uma das portas estava a

abrir-se. Era o coronel, que caminhou na direcção da nossa

tenda.

Recuei até à cama de campanha de Yin e ele virou-se, lutando

para despertar. Tinha a cara inchada e piscou os olhos para me

 

 

conseguir ver.

- O coronel vem aí - disse eu.

- Ajudarei no que puder - disse ele. - Mas você deverá ter

um campo de oração diferente para com ele. É a sua única

hipótese.

A porta da tenda abriu-se de rompante e os soldados

puseram-se em sentido. O coronel entrou e fez-lhes sinal para

esperarem no exterior. Olhou uma vez para Yin, antes de

avançar para mim.

Eu estava a respirar fundo e a tentar aumentar o meu campo o

mais possível. Visualizei a energia a transbordar de mim e

concentrei-me em vê-lo não como torturador, mas apenas como

uma alma receosa.

- Quero saber onde ficam estes templos - disse ele com uma

voz baixa e ameaçadora, tirando o casaco.

- A única forma de conseguir vê-los é aumentar a sua energia

o bastante - respondi, dizendo a primeira coisa que me

ocorreu.

Ele pareceu ter sido apanhado desprevenido.

- Do que é que você está a falar?

- Você disse-me que acredita nos poderes da mente. E se um

desses poderes for a capacidade de aumentar o seu nível de

energia?

- Que energia?

- Você disse que as ondas cerebrais eram reais e que podiam

ser manipuladas por uma máquina. E se elas pudessem ser

manipuladas internamente pela nossa intenção e reforçadas,

aumentando o nosso nível de energia?

- Como é isso possível? - disse ele. - Isso nunca foi

demonstrado pela ciência.

Eu não conseguia acreditar, ele parecia estar a abrir a sua

mente. Concentrei-me na expressão no rosto dele, que parecia

estar a avaliar honestamente aquilo que eu estava a dizer.

- Mas é mesmo possível - continuei. - As ondas cerebrais, ou

talvez umas ondas diferentes que têm mais alcance, podem ser

aumentadas até ao ponto em que influenciam aquilo que

acontece.

198

Ele ergueu a cabeça.

- Está a dizer-me que sabe como usar as ondas cerebrais para

fazer determinadas coisas acontecerem?

Enquanto ele falava, vi novamente um brilho por detrás dele,

junto à parede da tenda.

- Sim - continuei. - Mas só aquelas coisas que levam as

nossas vidas na direcção que é suposto elas seguirem. De

outra forma, a energia acaba por ceder.

- Suposto elas seguirem? - perguntou ele, piscando um olho.

A área da tenda atrás dele continuava a parecer mais

luminosa e eu não conseguia deixar de olhar para lá. Ele

voltou-se e olhou também nessa direcção.

- Para onde está a olhar? - perguntou. - Diga-me o que

significa suposto elas seguirem. Eu considero-me livre. Posso

levar a minha vida na direcção que eu quiser.

- Sim, claro. Isso é verdade. Mas há uma direcção que parece

ser a melhor, mais inspirada, e que nos dá mais satisfação do

que as outras, não há?

Eu não conseguia acreditar na força do brilho atrás dele,

mas não me atrevia a olhar directamente para lá.

 

 

- Não sei do que é que você está a falar - disse ele.

Ele parecia confuso, mas eu continuei concentrado na parte

da sua expressão que estava a escutar-me.

- Nós somos livres - disse eu. - Mas também pertencemos a um

desígnio, que vem de uma parte mais elevada de nós mesmos e à

qual nos podemos ligar. O nosso verdadeiro eu é muito maior do

que pensamos.

Ele limitou-se a olhar. Algures, no fundo da sua

consciência, ele parecia estar a compreender.

Fomos interrompidos quando os guardas lá fora bateram na

porta. Quando o fizeram, apercebi-me que o vento se tinha

transformado num temporal. Ouvíamos coisas a serem atiradas e

viradas em todo o campo.

Um guarda tinha aberto a porta e estava a gritar com força

em chinês. O coronel correu para ele. Ao fazê-lo, vimos tendas

a voarem por todo o lado. Ele virou-se e olhou para Yin e para

mim; nesse momento uma tremenda rajada de vento atingiu o lado

199

esquerdo da nossa tenda, arrancando-a às suas fundações e

rasgando-a, cobrindo o coronel e os guardas com a lona,

atirando-os ao chão.

Yin e eu fomos atingidos pelo vento e a neve que soprava

pelo buraco aberto.

- Yin - gritei. - Os dakini.

Yin tentou pôr-se de pé.

- Esta é a sua hipótese! - disse ele. - Fuja!

- Vem - disse eu, agarrando-o pelo braço. - Podemos ir

juntos.

Ele afastou-me. - Não posso. Eu só iria atrasá-lo.

- Nós conseguimos - insisti.

Ele gritou por cima do uivo do vento - Eu já fiz o que tinha

a fazer. Agora você deve fazer o mesmo. Ainda não conhecemos o

resto da Quarta Extensão.

Acenei e abracei-o rapidamente, depois agarrei no pesado

casaco do coronel e corri pelo buraco da tenda, para a

tempestade.

200

10.

RECONHECER A LUZ

Corri para norte durante uns trinta metros e parei para

olhar para o campo. Ainda ouvia o barulho de gritos e de

detritos a serem atirados por toda a instalação.

À minha frente estava um sólido manto branco e ia a

arrastar-me na direcção das montanhas quando ouvi o coronel a

gritar.

- Hei-de encontrar-te - gritou ele, furioso, acima do ruído

do vento. - Não vais escapar.

Continuei a caminhar, o mais depressa que pude na neve

profunda. Demorei quinze minutos para avançar cem metros.

Felizmente o vento continuava a soprar furiosamente e eu sabia

que só daí a algum tempo os chineses poderiam pôr os

 

 

helicópteros no ar.

Ouvi um som fraco. A princípio pensei que fosse o vento, mas

gradualmente ficou mais forte. Agachei-me. Alguém estava a

chamar-me pelo nome. Finalmente vi alguém a avançar através da

neve soprada pelo vento. Era Wil.

Abracei-o.

- Meu Deus, estou feliz por ver-te. Como é que me

encontraste?

- Vi em que direcção o heli voou - disse ele - e continuei a

andar até ver o campo. Estive aqui toda a noite. Se não

tivesse comigo o meu fogão de campo, teria morrido gelado.

Estava a tentar arranjar maneira de te tirar de lá. Mas o

nevão resolveu esse problema. Anda, temos de tentar novamente

chegar aos templos.

Eu hesitei.

- O que se passa? - perguntou Wil.

201

- O Yin está lá - respondi. - Está ferido.

Wil pensou durante um momento, enquanto olhávamos para o

campo. - Eles vão organizar um grupo de busca - disse ele. -

Não podemos voltar. Teremos de tentar ajudá-lo mais tarde. Se

não sairmos daqui e encontrarmos os templos antes do coronel,

tudo estará perdido.

- O que aconteceu ao Tashi? - perguntei.

- Ficámos separados quando a avalanche começou - respondeu

Wil - mas, mais tarde, vi-o a subir a montanha sozinho.

Caminhámos durante mais de duas horas e estranhamente, logo

que saímos da área em redor do acampamento chinês, o vento

começou a amainar, embora ainda estivesse a nevar pesadamente.

Durante a nossa caminhada, contei a Wil tudo o que Yin tinha

dito na tenda e o que tinha acontecido com o coronel.

Finalmente chegámos à área da montanha onde ocorrera a

avalanche. Passámos por ela e seguimos para oeste, subindo a

encosta.

Sem falar mais, Wil seguiu à frente durante mais duas horas.

Finalmente parou e sentou-se para descansar atrás de um grande

banco de neve.

Olhámos um para o outro durante um longo momento, ambos

respirando com dificuldade. Wil sorriu e perguntou:

- Compreendes agora o que o Yin te estava a dizer?

Fiquei silencioso. Apesar de ter visto tudo a desenrolar-se

com o coronel, continuava a ser difícil de acreditar.

- Eu estava a formar orações negativas - disse finalmente.

- Foi por isso que o coronel conseguiu seguir-me.

- Não podemos continuar até que ambos consigamos evitar isso

- disse Wil. - A nossa energia deve manter-se alta de forma

consistente, antes de podermos progredir o resto da Quarta

Extensão. Temos de ter muito cuidado para não visualizarmos a

maldade daqueles que têm medo. Temos de olhar para eles de

forma realista e tomar precauções, mas se nos detivermos no

seu comportamento ou guardarmos imagens deles prestes a

magoarem-nos, isso envia energia à paranóia deles e pode mesmo

dar-lhes a ideia de fazer aquilo que esperamos. É por isso que

é tão importante não deixar as nossas mentes visualizarem as

coisas más que poderiam acontecer-nos. É uma oração que cria

exactamente esse acontecimento.

Abanei a cabeça, sabendo que estava ainda a resistir a esta

ideia. Se era verdade, isso parecia colocar um pesado fardo

 

 

em cada um de nós, exigir que vigiássemos cada um dos nossos

pensamentos. Referi a minha preocupação a Wil. Ele quase riu.

- É claro que temos de vigiar os nossos pensamentos. Temos

de fazê-lo, de qualquer maneira, para não perdermos uma

intuição importante. Para além disso, basta voltar ao alerta

consciência e visualizar sempre a consciência de todas as

pessoas a aumentar. As lendas são muito claras. Para manter o

alargamento mais poderoso da nossa energia de oração, não

podemos nunca usá-la negativamente. Não podemos prosseguir

enquanto não conseguirmos evitar completamente este problema.

- Quantas lendas ouviste descrever? - perguntei.

Em resposta à minha pergunta, Wil começou a falar acerca das

suas experiências durante esta aventura, com muito mais

pormenor do que tinha sido possível antes.

- Quando fui a tua casa - começou - estava perplexo porque a

minha energia tinha caído em relação ao seu estado quando

estávamos a explorar a Décima Revelação. Depois comecei a

pensar no Tibete e dei comigo no mosteiro do Lama Rigden, onde

conheci o Yin e ouvi falar dos sonhos. Não compreendi tudo,

mas eu próprio tinha tido sonhos semelhantes. Sabia que, de

alguma forma, tu estavas envolvido e tinhas algo a fazer aqui.

Foi então que comecei a estudar as lendas em pormenor e a

aprender as extensões da oração. Estava preparado para me

encontrar contigo em Katmandu, mas vi os chineses a

seguirem-me e pedi ao Yin para ir em meu lugar. Tive de

acreditar que acabaríamos por nos encontrarmos.

Wil fez uma pausa, tirou uma camisola interior branca e

começou a colocar uma nova ligadura no joelho. Olhei para a

extensão infinita de montanhas brancas atrás de nós. As nuvens

afastaram-se por um instante e o sol matinal criou um efeito

de cumes montanhosos iluminados e vales mais escuros,

sombrios. A vista encheu-me de admiração e, de uma forma

estranha, comecei a sentir-me em casa aqui, como se uma parte

de mim finalmente compreendesse este país.

Quando voltei a olhar para Wil, ele estava a observar-me

fixamente.

202 - 203

- Talvez - disse Wil - devêssemos ver tudo o que as lendas

dizem acerca do campo de oração. Temos de compreender agora de

que modo tudo isto se relaciona.

Eu acenei.

- Tudo começa - continuou ele - quando nos apercebemos de

que a nossa energia de oração é real, que flui a partir de nós

e afecta o mundo. Assim que tivermos essa percepção, podemos

compreender que este campo, este efeito que temos sobre o

mundo, pode ser expandido, mas temos de começar com a Primeira

Extensão. Temos primeiro de melhorar a qualidade da energia

que absorvemos fisicamente. Comidas pesadas e tratadas

mecanicamente geram sólidos ácidos nas nossas estruturas

moleculares, baixando a nossa vibração e acabando por provocar

doenças. Os alimentos vivos têm um efeito alcalino e aumentam

a nossa vibração. Quanto mais pura é a nossa vibração, tanto

mais fácil é ligarmo-nos às energias mais subtis dentro de

nós. As lendas dizem que nós aprenderemos a respirar de forma

consistente neste nível superior de energia, usando a nossa

percepção acrescida da beleza como medida. Quanto maior é o

nosso nível de energia, mais beleza vemos. Podemos aprender a

 

 

visualizar este nível superior de energia a fluir a partir de

nós para o mundo, usando igualmente o estado emocional de amor

como medida para essa ocorrência.

Assim ficamos ligados interiormente, tal como aprendemos no

Peru. Só que agora aprendemos que, ao visualizarmos a energia

como campo que se estende a partir de nós para onde quer que

vamos, podemos manter-nos sempre mais fortes.

A Segunda Extensão começa quando preparamos este campo de

oração alargado para aumentar o fluxo da sincronicidade nas

nossas vidas. Fazemos isso mantendo-nos num estado de alerta

consciente e de expectativa em relação à próxima intuição ou

coincidência que fará as nossas vidas avançarem. Esta

expectativa leva a nossa energia ainda mais longe e torna-a

mais forte, porque agora estamos a alinhar as nossas intenções

com o processo ideal de crescimento e evolução estruturado no

próprio universo.

A Terceira Extensão envolve outra expectativa: que o nosso

campo de oração se estenda e aumente o nível de energia dos

outros, elevando-os à sua própria ligação com o divino dentro

deles e com a intuição do seu eu superior. Isto, é claro,

aumenta a probabilidade deles nos darem informações intuitivas

que podem aumentar ainda mais o nosso nível de sincronicidade.

É a ética interpessoal que aprendemos no Peru, só que agora

sabemos como usar o campo de oração para torná-la mais forte.

A Quarta Extensão começa quando aprendemos a importância de

ancorarmos e mantermos o fluxo da nossa energia, apesar das

situações de medo ou raiva. Fazemos isso mantendo sempre uma

postura particular de distanciamento em relação aos

acontecimentos que surgem, mesmo enquanto esperamos que o

processo se desenrole. Devemos procurar sempre um significado

positivo e esperar sempre, sempre, que o processo nos salve,

não importa o que esteja a acontecer. Uma tal postura mental

ajuda-nos a manter a concentração no fluxo e impede-nos de nos

determos em imagens negativas daquilo que poderia acontecer se

falhássemos. Em geral, se sentirmos uma imagem negativa a

surgir na nossa mente devemos avaliar se é um aviso intuitivo

e, se assim for, devemos agir em conformidade, mas devemos

voltar sempre à expectativa de uma sincronicidade mais elevada

que nos guiará para longe desse problema. Isto ancora o nosso

campo, o nosso fluxo de energia, com uma expectativa poderosa

a que sempre chamámos fé.

Em suma, a primeira parte da Quarta Extensão trata de manter

a nossa energia forte em qualquer altura. Quando tivermos

dominado isso, podemos avançar e expandir a nossa energia

ainda mais. O passo seguinte na Quarta Extensão começa quando

esperamos completamente que o mundo humano possa progredir em

direcção ao ideal expresso na Décima Revelação e modelado por

Shambhala. Levar a nossa energia mais longe e com mais força

deste modo exige uma crença genuína. É por isso que

compreender Shambhala é tão importante. Saber que Shambhala já

o fez aumenta a nossa expectativa de que o resto da humanidade

também o possa fazer. Podemos ver imediatamente como os

humanos conseguem dominar a nossa tecnologia e usá-la ao

serviço do nosso desenvolvimento espiritual e depois começar a

concentrarmo-nos no próprio processo vital, a verdadeira razão

para estarmos neste planeta: para criar uma cultura terrestre

204 - 205

que tenha consciência do nosso papel na evolução espiritual e

 

 

para ensinar esse entendimento aos nossos filhos.

Ele parou e olhou para mim durante um momento.

- Agora vem a parte mais difícil - disse ele. - Para

expandir ainda mais, temos de fazer mais do que simplesmente

mantermo-nos positivos de forma geral e evitar imagens de

acontecimentos negativos. Temos também de manter fora das

nossas cabeças todos os pensamentos negativos em relação aos

outros. Tal como acabas de ver, se o nosso medo alguma vez se

transforma em ira e nós caímos no erro de pensar o pior dos

outros, surge uma oração negativa que cria neles exactamente o

comportamento que esperamos. É por isso que os professores que

esperam grandes coisas dos seus alunos geralmente

conseguem-nas, enquanto que, se esperam o negativo, também o

conseguem. A maioria das pessoas acredita que é mau dizer algo

negativo acerca dos outros, mas que não há problema em

pensá-lo. Sabemos agora que há problema; os pensamentos são

importantes.

Enquanto Wil dizia isto, pensei na recente vaga de tiroteios

nas escolas dos Estados Unidos e referi o que me ocorrera.

- Os miúdos em toda a parte - disse ele - estão mais

poderosos do que alguma vez foram e até os grupos e pressões

ocasionais que sempre aconteceram nas escolas já não podem ser

ignorados pelos professores. Quando certos miúdos são

desprezados, gozados e usados como bodes expiatórios são

afectados por esta oração negativa mais do que alguma vez

aconteceu. Agora, por vezes eles reagem de forma explosiva. E

isto não está a acontecer apenas com os miúdos; está a

acontecer em toda a cultura humana. Só a compreensão do efeito

dos campos de oração nos permitirá compreender o que está a

acontecer. Estamos todos a ficar gradualmente mais poderosos

e, se não tomarmos total consciência das nossas expectativas,

podemos inadvertidamente causar grandes danos aos outros.

Wil parou de falar e arqueou a sobrancelha.

- Isso leva-nos ao ponto onde estamos agora, segundo creio.

Concordei com um aceno, apercebendo-me de quanto tinha

sentido a falta dele.

- As lendas dizem para onde vamos a partir daqui? -

perguntei.

- Para o assunto que mais me tem interessado - respondeu

ele. - As lendas dizem que não podemos alargar mais os nossos

campos até reconhecermos completamente os dakini.

Contei-lhe rapidamente as minhas muitas experiências com as

estranhas figuras e zonas iluminadas desde que chegara ao

Tibete.

- Já tinhas tido essas experiências antes do Tibete -

declarou Wil.

Ele tinha razão. Houve momentos, quando procurávamos a

Décima Revelação, em que parecia ser ajudado por estranhas

centelhas de luz.

- É verdade - disse eu. - Quando estivemos juntos nos

Apalaches.

- E no Peru também - acrescentou ele.

Tentei recordar, mas não me ocorreu nada.

- Tu contaste-me daquela vez que estavas num cruzamento e

não sabias por onde ir - disse ele. - E uma estrada parecia

mais iluminada, mais luminosa, e tu escolheste essa direcção.

- Sim - disse eu, recordando claramente a ocorrência. -

Achas que foi um dakini?

Wil estava de pé, a colocar a mochila às costas.

- Sim - declarou. - Eles são as luminosidades que vemos e

que guiam os nossos passos.

 

 

Fiquei perplexo: Isso significava que sempre que víamos um

objecto luminoso ou um percurso que parecia mais claro e mais

atraente, ou um livro que nos saltava à vista e nos chamava a

atenção eram estes seres em acção.

- Que mais dizem as lendas acerca dos dakini? - perguntei.

- Que eles são o mesmo em todas as culturas, todas as

religiões, independentemente daquilo que lhes chamarmos.

Lancei-lhe um olhar interrogador.

- Podemos chamar-lhes anjos - continuou Wil - mas não

importa se lhes chamamos dakini ou anjos, são sempre os mesmos

seres... e agem da mesma maneira.

Tinha outra pergunta a fazer, mas Wil ia a subir

apressadamente a encosta, evitando as áreas de neve mais

pesada. Segui-o, com dúzias de perguntas a acorrerem-me à

cabeça. Não queria deixar morrer a conversa.

A dada altura Wil olhou para trás, para mim.

206 - 207

- As lendas dizem que estes seres ajudam os humanos desde o

início dos tempos e que são referidos na literatura mística de

todas as religiões. Segundo as lendas, cada um de nós começará

a percepcioná-los mais facilmente. Se realmente os

reconhecermos, os dakini dar-se-ão a conhecer mais facilmente.

A forma como ele sublinhava a palavra reconhecer fez-me

pensar que esta tinha um significado especial.

- Mas como fazemos isso? - perguntei, trepando a uma pedra

que se destacava do carreiro.

Wil parou à minha frente, deixou-me apanhá-lo e depois

disse:

- Segundo as lendas, devemos reconhecer realmente que eles

estão aqui. Isso é muito difícil para as nossas mentes

modernas. Uma coisa é pensar que os dakini ou anjos são uma

matéria fascinante. Outra coisa completamente diferente é

esperar que eles sejam perceptíveis nas nossas vidas.

- O que achas que devemos fazer?

- Observar atentamente todas as variações da luminosidade.

- Portanto, se mantivermos a nossa energia em alta e os

reconhecermos - disse eu - poderemos começar a ver mais

luminosidades dessas?

- Exactamente - disse ele. - A parte difícil é treinarmo-nos

para procurar as mudanças subtis na luz à nossa volta. Mas se

o fizermos, poderemos detectá-la melhor.

Pensei no que ele estava a dizer e compreendi, tanto quanto

me parecia, mas ainda tinha uma pergunta. - E os casos -

perguntei - em que os dakini ou anjos intervêm directamente

nas nossas vidas, quando nós não os esperamos ou reconhecemos?

Isso já me aconteceu.

Tratei de falar a Wil acerca da figura alta que tinha

avistado quando Yin me empurrou do jipe, a norte de Ali, e que

tinha aparecido novamente quando a fogueira surgiu no mosteiro

em ruínas, antes de entrar em Shambhala.

Wil acenou com a cabeça.

- Parece que o teu anjo da guarda se revelou. As lendas

dizem que todos temos um.

A minha mente corria a cento e cinquenta quilómetros por

hora. A realidade destes seres nunca fora tão evidente.

208

 

 

- Mas o que os faz ajudarem-nos em certas alturas - inquiri

- e não em outras?

Wil arqueou a sobrancelha. - Isso - disse -, é o segredo que

viemos tentar descobrir.

Estávamos a chegar ao cume da montanha. Atrás de nós, o sol

começava a romper as densas nuvens e a temperatura parecia

estar a subir.

- Disseram-me - disse Wil, parando um pouco antes do cimo da

montanha -, que os templos ficam do outro lado desta serra.

Parou e olhou para mim.

- Esta pode ser a parte mais difícil.

As palavras dele pareceram-me ameaçadoras.

- Porquê? - perguntei. - O que queres dizer?

- Temos de juntar todas as extensões e manter a nossa

energia tão forte quanto possível. As lendas dizem que só

conseguiremos ver os templos se conseguirmos manter a nossa

energia suficientemente alta.

Exactamente nesse momento, ouvimos helicópteros algures à

distância.

- E não te esqueças daquilo que aprendeste - disse Wil. - Se

começares a pensar na maldade do exército chinês, se sentires

raiva ou desdém, deves deslocar imediatamente a tua atenção

para a alma que pode emergir dentro de cada soldado. Visualiza

a tua energia a fluir e a entrar nos campos deles, elevando-os

a uma ligação com a luz interior, de modo a conseguirem

descobrir as suas intuições mais elevadas. Fazer outra coisa é

enviar uma oração que lhes dá mais energia para serem maus.

Acenei e baixei os olhos. Estava determinado a manter este

campo positivo.

- Agora vai além disso, reconhece os dakini e espera as

luminosidades.

Olhei para o pico à minha frente, Wil acenou e seguiu

adiante.

Quando chegámos ao cume, não vimos nada no outro lado a não

ser uma série de picos e vales cobertos de neve.

Inspeccionámos cuidadosamente a paisagem.

209

- Além - gritou Wil, apontando para a nossa esquerda.

Esforcei-me para ver. Qualquer coisa no limite do pico

parecia brilhar ligeiramente. Quando tentei concentrar-me

directamente nela, vi apenas que a área parecia luminosa. Mas

quando olhei para ela pelo canto do olho, vi que o próprio ar

estava a brilhar.

- Vamos - disse Wil.

Puxou-me o braço enquanto avançávamos pela neve funda e

subíamos em direcção ao ponto que tínhamos avistado. Quando

nos aproximámos, a área pareceu ficar ainda mais brilhante.

Para lá dela ficava uma série de enormes pináculos rochosos

que, à distância, pareciam alinhados uns ao lado dos outros.

Olhando melhor, contudo, vimos que um deles estava recuado em

relação aos outros, deixando uma passagem estreita que curvava

mais para a esquerda e descia a encosta da montanha. Quando

chegámos à passagem, descobrimos que na realidade eram degraus

de pedra, cravados nas rochas, que marcavam o caminho

descendente. Os degraus também pareciam luminosos e estavam

limpos de neve.

- Os dakini estão a mostrar-nos o caminho - disse Wil,

 

 

continuando a puxar-me.

Passámos agachados pela abertura e seguimos o percurso para

baixo. De ambos os lados, uma parede de rocha lisa erguia-se a

seis ou sete metros e bloqueava a maior parte da luz. Durante

mais de uma hora seguimos os degraus, descendo continuamente

até que finalmente os penhascos se alargaram por cima das

nossas cabeças.

Vários metros mais à frente o chão ficou direito e os

degraus terminaram. Estávamos de frente para um precipício

liso que envolvia a parede rochosa à esquerda.

- Além - disse Wil, apontando.

Duzentos metros à nossa frente parecia estar um velho

mosteiro, totalmente em ruínas, como se tivesse milhares de

anos. Enquanto caminhávamos na sua direcção, a temperatura

subiu ainda mais e uma neblina fina ergueu-se das rochas. À

frente do mosteiro, o precipício transformava-se numa larga

plataforma que penetrava na encosta da montanha. Quando

chegámos às ruínas, passámos cautelosamente pelas paredes

derruídas e grandes pedras até chegarmos ao outro lado.

210

Ali, parámos abruptamente. A superfície rochosa que

pisávamos tinha-se transformado num chão de pedras lisas, de

cor ligeiramente amarelada, distribuídas de forma regular sob

os nossos pés. Olhei para Wil, que estava a olhar adiante. À

nossa frente estava um templo intacto, com quinze metros de

altura e o dobro de largura. Era de um castanho ferruginoso,

com listas cinzentas ao longo dos pontos de união das paredes

de pedras sobrepostas. Na frente estavam duas portas

gigantescas, com cinco ou seis metros de altura.

Qualquer coisa moveu-se na neblina perto do templo. Olhei

para Wil e ele acenou, fazendo-me sinal para o seguir.

Aproximámo-nos até vinte metros da estrutura.

- Que movimento foi aquele? - perguntei a Wil.

Ele fez-me sinal com a cabeça na direcção da área à nossa

frente. A menos de três metros estava uma forma qualquer.

Tentei concentrar-me nela e, finalmente, consegui discernir

os contornos mínimos de uma figura humana.

- Deve ser um dos crentes que habitam nos templos - disse

Wil - A pessoa tem uma vibração mais alta do que nós. É por

isso que a vemos apenas como uma forma indistinta.

Enquanto olhávamos, a figura avançou para a porta do templo

e desapareceu. Wil seguiu à frente. A porta parecia ser feita

de uma espécie de pedra mas, quando Wil a puxou pelo puxador

esculpido na rocha, deslizou como se não tivesse peso.

Lá dentro estava uma grande sala circular, que descia numa

série de degraus em direcção a uma área central semelhante a

um palco. Enquanto estudava a estrutura, avistei outra figura

a meio caminho do palco, só que esta pessoa era bem visível.

Ela voltou-se, de modo a podermos ver o seu rosto. Era Tashi.

Wil estava já a mover-se na direcção dele.

Antes de chegarmos junto de Tashi, uma janela espacial

abriu-se por cima do centro da sala. A imagem ficou lentamente

mais focada, captando a nossa atenção e ficando tão brilhante

que deixámos de ver Tashi. Era uma imagem da Terra, vista do

espaço.

A cena deslocou-se em sucessão rápida para uma cidade,

algures na Europa, depois para uma área metropolitana nos

Estados Unidos e, finalmente, para a Ásia.

 

 

211

Em cada caso víamos pessoas a andarem por ruas cheias de

movimento, bem como outras em escritórios ou diferentes locais

de trabalho. Quando a cena se deslocou novamente por

diferentes cidades em áreas diferentes do planeta, vimos que

esses indivíduos, enquanto trabalhavam e interagiam, estavam

lentamente a aumentar os seus níveis de energia.

Começámos a ver e a ouvir indivíduos envolvidos em

deslocações de um tipo de ocupação para outro, seguindo as

suas intuições e fIcando mais inspirados e criativos à medida

que o faziam, inventando novas tecnologias mais rápidas e

serviços mais eficientes. Ao mesmo tempo, começámos também a

ver imagens de pessoas que ainda tinham medo, resistiam à

mudança e tentavam assumir o controlo.

A seguir concentrámo-nos numa instalação de pesquisa, no

interior de uma sala de conferências. Um grupo de homens e

mulheres estavam envolvidos numa acalorada discussão. Enquanto

observávamos e escutávamos, ficou claro o conteúdo da

conversa. A maior parte das pessoas era a favor de uma nova

coligação entre as maiores companhias de comunicações e

computadores e um grupo internacional de serviços de

informações. Os representantes dos serviços de informações

argumentavam que a luta contra o terrorismo precisava de ter

acesso a todas as linhas telefónicas, incluindo comunicações

pela Internet, e aparelhos de identificação secretos em todos

os computadores, para que as autoridades pudessem entrar e

vigiar os ficheiros de toda a gente.

Mas isso não era tudo. Queriam mais sistemas de vigilância.

Várias pessoas estavam até a especular que, se o problema dos

vírus informáticos persistisse, a Internet poderia vir a ser

completamente dominada, juntamente com os computadores

comerciais ligados em todo o mundo. O acesso seria controlado

por um número especial de identificação, que seria necessário

para qualquer transacção electrónica.

Uma pessoa sugeriu que novos sistemas de identificação

poderiam ter de ser implementados para este objectivo, como

sondas da íris ou da palma da mão, ou talvez qualquer coisa

baseada nos próprios padrões das ondas cerebrais.

Duas outras pessoas, um homem e uma mulher, começaram a

argumentar com veemência contra estas medidas. Uma referiu o

livro do Apocalipse e o sinal da besta. Enquanto continuávamos

a ver e ouvir, apercebi-me que conseguia ver através da

janela da sala de conferências. Um carro passou por uma

estrada junto ao edifício. Lá atrás viam-se cactos e

quilómetros de deserto.

Olhei para Wil.

- Esta discussão está a acontecer neste momento - disse ele.

- Algures no presente. Parece o sudoeste dos Estados Unidos.

Directamente por detrás da mesa onde o grupo estava reunido

apercebi-me de outra coisa. O espaço à volta deles estava a

ficar maior. Não, estava a ficar mais luminoso.

- Os dakini! - disse eu para Wil.

Continuámos a observar a conversa, que começava a mudar.

As duas pessoas que estavam a argumentar contra a vigilância

extrema pareciam estar a receber mais atenção do grupo. Os

proponentes pareciam estar a reconsiderar.

Sem aviso, a nossa atenção foi desviada da imagem à nossa

frente por uma vibração aguda que pareceu abanar o chão e as

 

 

paredes do templo. Corremos para outra porta ao fundo do

edifício, tentando ver através da poeira. Ouvíamos pedras a

derrocarem e a caírem lá fora. Quando estávamos a dez metros

da porta, esta abriu-se e uma figura passou rapidamente

através dela.

- Deve ter sido o Tashi - disse Wil, rTendo para a porta e

abrindo-a.

Ao passarmos pela abertura a correr, outro estrondo encheu o

ar atrás de nós. A antiga ruína que tínhamos visto antes

estava a desabar, numa implosão de rochas e pó. Atrás dela,

algures, ouvia-se o rugido de helicópteros.

- O coronel parece estar novamente a seguir-nos - disse eu.

- Mas eu estou a manter somente imagens positivas na minha

mente, então como é que ele faz isso?

Wil deitou-me um olhar interrogador e recordei a observação

do coronel Chang acerca da tecnologia que eles agora tinham, a

que nunca conseguiria escapar. Ele tinha uma análise do meu

cérebro.

Contei rapidamente a Wil o que tinha acontecido e depois

disse:

- Talvez fosse melhor eu seguir noutra direcção, conduzir os

soldados para longe dos templos.

- Não - disse Wil. - Tens de estar aqui. Vais ser preciso.

Teremos de nos manter à frente deles até encontrarmos o Tashi.

212 - 213

Seguimos um carreiro de pedra que passava por outros templos

e apercebi-me dos meus olhos presos a uma porta à nossa

esquerda.

Wil voltou-se, notando isso.

- Porque estavas a olhar para aquela porta? - inquiriu.

- Não sei - respondi. - Ela chamou-me a atenção.

Ele deitou-me um olhar incrédulo.

- Sim, pois - disse ele rapidamente. - Vamos verificar.

Corremos para dentro e descobrimos outra sala circular, esta

muito maior, talvez com várias dezenas de metros de diâmetro.

Outra janela espacial pairava por cima do centro. Quando

entrámos, vi Tashi à nossa direita, a alguns metros de

distância, e fiz sinal a Wil.

- Estou a vê-lo - disse Wil, seguindo por entre a

semi-obscuridade na direcção do rapaz.

Tashi voltou-se e viu-nos, depois sorriu aliviado, antes de

se concentrar novamente na cena visível através da janela.

Desta vez víamos um quarto cheio de coisas de jovens:

fotografias, bolas, vários jogos, pilhas de roupa. Num canto

estava uma cama desfeita e uma caixa de pizza esquecida sobre

a ponta de uma mesa. Na outra ponta da mesa, um adolescente

com uns quinze anos estava a trabalhar em qualquer coisa, uma

espécie de aparelho cheio de fios. Vestia uns calções, sem

camisa, e o rosto parecia zangado e determinado.

Enquanto olhávamos, a cena na janela deslocou-se para outro

quarto, onde outro adolescente, vestido com calças de ganga e

uma camisola, estava sentado numa cama a olhar para o

telefone. Levantou-se, deu várias voltas ao quarto e depois

sentou-se novamente. Tive a impressão que ele estava a lutar

com uma decisão. Finalmente, pegou no telefone e marcou um

número.

Nessa altura ajanela alargou-se, de modo a podermos ver as

 

 

duas cenas. O rapaz sem camisa atendeu o telefone. O rapaz com

a camisola pareceu pedir-lhe algo e o outro rapaz ficou ainda

mais zangado. Finalmente o rapaz de tronco nu bateu com o

telefone, sentou-se e recomeçou a trabalhar à mesa.

O outro adolescente levantou-se, vestiu um casaco e saiu a

correr. Minutos depois o rapaz sentado à mesa ouviu bater à

porta, levantou-se, foi até à porta do quarto e abriu-a. Era o

jovem com quem ele estivera a falar ao telefone. Tentou fechar

a porta, mas o rapaz empurrou-o e entrou, continuando a falar

com gestos suplicantes, apontando para o aparelho em cima da

mesa.

O outro adolescente empurrou-o, tirou uma arma de uma gaveta

e apontou-a ao visitante. Este rapaz recuou, mas continuou a

suplicar. O jovem com a arma explodiu de raiva e empurrou a

sua vítima com força contra a parede, encostando o cano da

arma à cabeça dele.

Nesse momento, numa área atrás deles, começámos a detectar

uma mudança. Essa zona estava a ficar mais luminosa.

Olhei para Tashi, que respondeu ao meu olhar durante um

instante e depois se concentrou novamente na cena. Ambos

sabíamos que estávamos mais uma vez a testemunhar a acção dos

dakini.

Enquanto olhávamos, um dos rapazes continuava a suplicar e o

outro a segurá-lo com força contra a parede. Mas,

gradualmente, o rapaz da arma começou a descontrair.

Finalmente baixou a arma e foi sentar-se na beira da cama. O

outro jovem sentou-se numa cadeira em frente dele.

Agora conseguíamos ouvir os pormenores da conversa. Ficou

claro que o rapaz da arma queria ser aceite pelos outros na

escola, mas não conseguira. Muitos dos seus colegas

destacavam-se em actividades extracurriculares, expandindo os

seus talentos, e ele não tinha confiança para acompanhá-los.

Tinham gozado com ele, chamando-lhe falhado, e ele sentia-se

um zé-ninguém, prestes a desaparecer. A situação enchia-o de

raiva e uma falsa sensação de força, que o fez decidir

contra-atacar. O engenho em que ele estava a trabalhar era uma

bomba de fabrico caseiro.

Tal como antes, sentimos um solavanco debaixo dos nossos pés

e todo o edifício tremeu. Corremos para a porta e tínhamos

acabado de lá chegar quando metade do templo desabou atrás de

nós.

Tashi fez-nos sinal para o seguirmos; corremos várias

centenas de metros e parámos junto a uma parede.

- Conseguiram ver as pessoas no templo - perguntou ele -,

aquelas que enviaram energia de oração aos rapazes?

Ambos confessámos que não conseguíamos.

- Estavam centenas ali dentro - disse ele - a trabalharem no

problema da raiva juvenil.

- O que é que eles estavam a fazer, exactamente? -

perguntei.

214 - 215

Tashi avançou na minha direcção.

- Estavam a aumentar a sua energia de oração, visualizando

os rapazes daquela cena a serem elevados a uma vibração

superior, para conseguirem ultrapassar o medo e a raiva e

deixarem as suas intuições superiores resolverem o problema. A

energia deles ajudou um dos rapazes a encontrar as melhores e

mais convincentes ideias. No caso do outro jovem, a energia de

 

 

oração adicional elevou-o a uma identidade acima e para lá do

eu social que os colegas rejeitaram. Já não sentia que

precisava da aprovação deles para ser alguém. Isso aliviou a

sua ira.

- E era também isso que eles estavam a fazer no outro

templo? - perguntei - A ajudarem a enfrentar aqueles que

queriam controlar tudo?

Wil olhou para mim.

- As pessoas no templo estavam a enviar um campo de oração

para ajudar a aumentar o nível de energia de todos os

presentes, que teve o efeito de aliviar o medo daqueles que

exigiam mais vigilância e ajudou aqueles que lhes resistiam a

encontrarem a coragem para falarem, mesmo no interior daquelas

organizações.

Tashi acenava com a cabeça.

- Nós temos de ver isto. Estas são algumas das principais

situações que devem ser vencidas, se queremos que a evolução

espiritual continue, se queremos ultrapassar este ponto

crítico na história.

- E os dakini? - perguntei. - O que estavam eles a fazer?

- Estavam também a ajudar a aumentar o nível de energia -

replicou Tashi.

- Pois - insisti. - Mas ainda não sabemos o que os faz

entrar em acção. As pessoas dos templos estavam a fazer mais

qualquer coisa que nós ainda não conhecemos.

Nesse momento outro som forte encheu o ar, quando a outra

metade do templo atrás de nós ruiu.

Tashi saltou involuntariamente e depois correu pelo

carreiro.

- Venham - disse. - Temos de encontrar a minha avó.

216

11.

O SEGREDO DE SHAMBHALA

Durante horas, vagueámos por entre os templos, procurando

a avó de Tashi, correndo para nos mantermos à frente dos

soldados chineses e observando o trabalho dos habitantes dos

templos. Em cada templo encontrámos pessoas a observarem uma

situação aparentemente crítica nas culturas exteriores.

Um templo estava concentrado noutros problemas relacionados

com a alienação juvenil: - a proliferação de experiências

violentas induzidas por filmes e jogos de guerra para

computador, que criam a ilusão dos actos violentos poderem ser

levados a cabo através da raiva e depois apagados de alguma

forma, sem serem definitivos, uma falsa realidade que estava

no âmago dos tiroteios nas escolas.

Nestes casos, observámos os criadores destes jogos a

receberem energia que tinha o efeito, tal como antes, de os

elevar a uma perspectiva intuitiva superior, com a qual eles

podiam repensar os efeitos das suas criações sobre as

crianças. Ao mesmo tempo, alguns pais eram igualmente elevados

a estados de energia superior, onde podiam investigar os seus

palpites acerca do que os seus filhos faziam e conseguir mais

tempo para modelarem uma realidade diferente.

Um templo concentrou-se no debate corrente no campo da

 

 

medicina acerca de atitudes alternativas, preventivas,

atitudes que mostravam ser benéficas no combate à doença e no

aumento da longevidade. Os guardiões da medicina - as

organizações médicas de vários países, os responsáveis por

conhecidas clínicas de investigação, os institutos

governamentais da saúde que atribuíam grandes subsídios,

217

as companhias farmacêuticas - funcionavam segundo um paradigma

do século XVIII, lutando contra os sintomas das doenças sem

pensarem muito na prevenção. Os seus alvos eram vários

micróbios, genes defeituosos e células cancerígenas

descontroladas - e a maior parte pensava que tais problemas

eram o resultado inevitável do envelhecimento. Segundo este

ponto de vista, a enorme maioria dos subsídios era atribuída

às grandes instalações de pesquisa que procuravam soluções

milagrosas: fármacos que pudessem ser patenteados e vendidos

para matar os micróbios, destruir as células malignas ou de

alguma forma reprogramar os genes. Quase nenhum dinheiro era

destinado à pesquisa para descobrir formas de reforçar o

sistema imunitário e prevenir tais doenças.

Noutra cena que observámos, uma conferência envolvendo

representantes de vários campos médicos, alguns cientistas

argumentavam que todo o campo da medicina tinha de mudar o seu

ponto de vista, se queríamos resolver o enigma da doença

humana, incluindo as lesões arteriais nas doenças cardíacas,

os tumores cancerígenos e as doenças degenerativas como a

artrite, o lúpus e a esclerose múltipla.

Estes cientistas argumentavam - tal como Hanh já tinha feito

- que a verdadeira causa das doenças de todos os tipos era a

poluição do ambiente básico do corpo com os alimentos que

comemos e outras toxinas, deslocando o corpo de um estado

juvenil saudável, vibrante e alcalino, para um estado monótono

e ácido, sem energia; isso criava um clima onde os micróbios

podiam florescer e começar a decompor o corpo de forma

sistemática. Todos os problemas, diziam eles, eram o resultado

desta lenta decomposição das nossas células pelos micróbios,

mas estes não nos atacam sem causa. São os alimentos que

consumimos que nos predispõem a estes problemas.

Outras pessoas na sala tinham dificuldade em aceitar estas

descobertas. Qualquer coisa devia estar errada, pensavam. Como

poderia a doença humana ser tão simples? Estavam envolvidos

com indústrias da saúde que viam os consumidores a gastarem

biliões de dólares em drogas complexas e cirurgias

dispendiosas. Os responsáveis pela saúde presentes na sala

tinham de acreditar que tudo isso era necessário. Alguns

dedicavam-se à proposta, quase aceite em muitos países, de

serem colocados chips nas pessoas para registar informação

sobre saúde e drogas, um elemento de controlo e identificação

que os serviços de informações também queriam. Eram dedicados

a este programa. As suas posições de poder dependiam dele. O

seu próprio ganha-pão estava em risco.

Para além disso, adoravam pessoalmente os alimentos que

comiam. Como poderiam recomendar às pessoas que mudassem as

suas dietas de formas que eles não se imaginavam a fazer? Não,

não podiam aceitar isto.

Ainda assim, os médicos das novas pesquisas continuavam a

defender a sua posição, sabendo que o momento era o ideal para

uma mudança de paradigma. Vejam como as florestas húmidas

 

 

estavam a ser arrasadas e destruídas para criar gado para os

países ocidentais, argumentavam, um problema que cada vez mais

pessoas reconheciam.

Outra coisa que os ajudava era o facto dos baby boomers de

todos os países começarem a chegar à idade em que as doenças

atacam e terem já visto o sistema médico falhar no caso dos

seus pais. Estavam à procura de novas alternativas.

Lentamente, vimos o conflito começar a ficar mais moderado

na conferência a que estávamos a assistir. Aqueles que

defendiam abordagens alternativas estavam a ser escutados.

Noutro templo, testemunhámos o mesmo tipo de debate na

profissão jurídica. Um grupo de advogados instava a profissão

a começar a vigiar-se. Durante anos, advogados reputados

tinham ficado passivamente a ver colegas seus a fabricarem

processos, a instruírem testemunhas para ocultarem a verdade,

a inventarem defesas imaginárias e a hipnotizarem os juízes.

Agora havia um movimento para subir o nível de exigência.

Certos advogados sustentavam que deviam assumir uma visão mais

elevada daquilo que faziam, que deviam compreender o

verdadeiro papel dos advogados: reduzir os conflitos, não

promovê-los.

De forma semelhante, diversos templos daqueles que vimos

estavam a observar situações de corrupção política em vários

países. Vimos cenas de políticos eleitos em Washington a

debaterem à porta fechada a hipótese de apoiarem a reforma das

finanças de campanha.

218 - 219

Em questão, muito especialmente, estava a possibilidade dos

partidos políticos receberem quantias ilimitadas, doadas por

interesses especiais, e gastarem esse dinheiro em campanhas

televisivas que distorciam a verdade do modo que mais lhes

convinha. Esta dependência das grandes empresas para estes

fundos obviamente obrigava os políticos dos partidos a certos

favores. E toda a gente o sabia. Estes políticos resistiam aos

argumentos dos reformadores, que defendiam que a democracia só

chegaria ao seu ideal quando se baseasse não em anúncios

distorcidos na TV mas em debates públicos - onde os cidadãos

pudessem julgar mais prontamente a atitude, a expressão facial

e a verdade e assim usar a sua intuição para escolher o melhor

candidato.

À medida que avançávamos pelos templos, ficou claro que

todos eles estavam igualmente concentrados numa área

particular da vida humana. Vimos muitos líderes mundiais

receosos, incluindo os do governo chinês, a serem ajudados

para se juntarem à comunidade global e implementarem reformas

económicas e sociais.

E, em todos os casos, a área atrás das pessoas envolvidas

ficava mais luminosa e depois os mais receosos, aqueles que

agiam para controlar ou manipular, para assegurarem ganho ou

poder pessoal, começavam gradualmente a diminuir a rigidez das

suas posições.

Continuando a correr por entre o labirinto de templos, em

busca da avó de Tashi, ocorriam-me sempre as mesmas perguntas.

O que estava a acontecer aqui, exactamente? Qual era a relação

entre os dakini, ou anjos, e as extensões da oração que aqui

se faziam? O que sabiam os habitantes dos templos que nós não

soubéssemos? A dada altura ficámos de frente para quilómetros

de templos (literalmente), até onde a vista alcançava. Os

 

 

caminhos seguiam em todas as direcções. Lá atrás ainda

ouvíamos os helicópteros. Enquanto ali estávamos outro grande

templo, cento e cinquenta metros atrás de nós, ruiu

completamente.

- O que acontece às pessoas dentro daqueles templos? -

perguntei a Tashi.

220

Ele olhou fixamente para a coluna de poeira que se ergueu

dos escombros. - Não se preocupe, eles estão bem. Podem seguir

para outro local sem serem vistos. O problema é que o seu

papel de envio de energia está a ser perturbado.

Olhou para nós os dois.

- Se eles não puderem ajudar nestas situações, quem poderá?

Wil avançou para Tashi.

-Temos de decidir para onde ir. Já não temos muito tempo.

- A minha avó está aqui algures - disse ele. - O meu pai

disse-me que ela está num dos templos centrais.

Olhei para o labirinto de estruturas de pedra.

- Não há um centro físico, pelo menos que eu consiga ver.

- Não foi isso que o meu pai quis dizer - disse Tashi. - Ele

queria dizer que a Avó está num templo concentrado nas

questões centrais, finais, da evolução humana.

Tashi estava a inspeccionar os templos à distância, enquanto

falava.

- Tu consegues ver as pessoas daqui melhor do que nós -

disse-lhe eu. - Podes falar com eles e perguntar-lhes para

onde ir?

- Já tentei falar com eles - respondeu. - Mas a minha

energia não é suficientemente forte. Possivelmente seria

capaz, se conseguisse ficar aqui durante algum tempo.

Mal Tashi acabou a sua frase, outro templo ruiu, desta vez

muito mais perto.

- Temos de nos manter à frente da energia dos soldados -

disse Wil.

- Esperem um minuto - disse Tashi. - Pareceu-me ver qualquer

coisa.

Estava a olhar na direcção do labirinto de templos. Eu

também inspeccionei a paisagem, sem ver nada de diferente.

Quando olhei para Wil, ele encolheu os ombros.

- Onde? - perguntei a Tashi.

Ele estava já a descer um carreiro à direita, fazendo-nos

sinal para o seguirmos.

221

Depois de caminharmos apressados durante vinte minutos,

parámos em frente de um templo cuja arquitectura era muito

semelhante à dos outros, excepto que este era maior e a sua

rocha castanha escura tinha uma tonalidade ligeiramente mais

azul.

Tashi ficou imóvel, olhando directamente para a enorme porta

de pedra.

- O que é, Tashi? - perguntou Wil.

Atrás de nós ouviu-se outro estrondo, quando mais um templo

desabou.

Tashi olhou para mim.

- O templo no seu sonho, aquele onde você disse que nós

 

 

encontrávamos uma coisa, não era azul?

Olhei novamente para o templo.

- Sim - respondi - Era.

Wil avançou para a porta e olhou para nós.

Tashi acenou com a cabeça e Wil fez a enorme porta de pedra

girar sobre as dobradiças.

O templo estava cheio de gente. Tal como antes, eu via

apenas os mínimos contornos de muitos corpos. Pareciam estar

todos em movimento, juntando-se em redor de nós, e senti-me

mergulhado numa distinta sensação de alegria. Moviam-se de uma

forma que me dava a impressão de estarem a voltar-se para o

centro do templo. Virei-me também nessa direcção e vi uma

janela espacial a abrir-se. Começámos a ver várias cenas do

Médio Oriente, seguidas de imagens do Vaticano, depois a Ásia,

tudo aparentemente indicando um diálogo cada vez maior entre

as principais religiões instituídas.

Observámos imagens que mostravam o desenvolvimento de uma

tolerância cada vez maior. Na cristandade, tanto na tradição

católica como na protestante, começava a compreender-se que a

verdadeira experiência de conversão no interior do

cristianismo e as experiências realmente devotas e iluminadas

das religiões orientais, judaísmo e islamismo - a própria

experiência - eram exactamente a mesma. Cada religião apenas

destacava aspectos diferentes desta interacção mística com

Deus. As religiões orientais destacavam os efeitos sobre a

própria consciência, a experiência de leveza, um sentimento de

união com o universo, a libertação dos desejos do ego e um

certo distanciamento.

222

O islamismo destacava o sentimento de unidade que acompanhava

a partilha desta experiência com os outros e o poder inerente

à acção em grupo. O judaísmo destacava a importância de uma

tradição baseada nesta ligação, da experiência de se sentir

escolhido e de cada pessoa viva ser responsável por fazer

avançar a evolução da espiritualidade humana. O cristianismo

destacava a ideia do espírito se manifestar nos seres humanos

não apenas como um aumento da consciência de ser parte de

Deus, mas também como um eu superior - como se nos tornássemos

uma versão aumentada de quem nós somos, mais completa, capaz,

com uma orientação e sabedoria interior que nos levavam a

agir, como se a personalidade humana de Deus, o Cristo,

estivesse agora a ver através dos nossos olhos.

Na cena à nossa frente, víamos os efeitos desta nova

tolerância e unidade. Cada vez mais sublinhava-se a

importância da própria experiência de ligação, não as

diferenças. Parecia existir uma crescente disponibilidade para

resolver conflitos étnicos e religiosos, uma maior comunicação

entre os líderes religiosos e uma nova compreensão do poder

que a oração poderia ter, se todos alargassem os seus campos

na unidade religiosa.

Enquanto observava, compreendi totalmente aquilo que o Lama

Rigden e Ani tinham dito acerca da unificação da religião, que

isso seria um sinal de que os segredos de Shambhala estavam a

tornar-se conhecidos.

Neste ponto a cena através da janela à nossa frente mudou.

Vimos um grupo de pessoas a falarem e a celebrarem alegremente

o nascimento de uma criança. Toda a gente ria e passava o bebé

de uma pessoa para outra. As pessoas pareciam ser diferentes

 

 

umas das outras, representando várias nacionalidades. Enquanto

olhava, tive a nítida sensação que representavam também

diferentes formações religiosas. Olhando mais atentamente,

consegui ver os pais do bebé. Pareciam-me familiares. Sabia

que não eram eles, mas os traços faciais dos pais eram muito

parecidos com os de Pema e do seu marido.

Fiz um esforço para ver melhor, tendo a sensação que

estávamos agora a ver qualquer coisa com imensa importância. O

que seria?

A cena mudou novamente e mostrou-nos uma região tropical,

parecida com o Sudeste Asiático ou talvez a China.

223

Tal como antes, a cena mudou para dentro de uma casa onde um

grupo de pessoas, de aparências diversas, passavam um

recém-nascido de braço em braço e saudavam os pais.

- Não vêem aquilo que nos estão a mostrar? - disse Tashi. -

É para ali que vão as crianças concebidas que desapareceram.

Deslocaram-se para diferentes famílias em todo o mundo. Deve

ter sido um processo de mediação. De alguma forma, as crianças

receberam a superior energia genética de Shambhala antes de

prosseguirem.

Wil baixou os olhos, pensando, e depois voltou a olhar para

nós.

- É essa a deslocação - disse ele. - Era disso que as lendas

falavam. Shambhala não vai deslocar-se para um lugar; a sua

energia está a deslocar-se para muitos locais diferentes por

todo o globo.

- O quê? - perguntei.

Tashi olhou para mim.

- Você conhece a lenda que diz que os guerreiros de

Shambhala irão sair do leste, derrotar os poderes da escuridão

e criar uma sociedade ideal. Isso não está a acontecer com

cavalos e espadas. Está a acontecer com o efeito dos nossos

campos alargados, à medida que a sabedoria de Shambhala avança

para o mundo. Se todas as pessoas de todas as religiões, que

acreditam profundamente numa ligação com o divino, evitarem as

orações negativas e trabalharem em conjunto, poderemos usar as

extensões da oração para assumirmos o papel de Shambhala.

- Mas não conhecemos tudo aquilo que eles estão a fazer -

disse eu. - Não conhecemos o resto do segredo!

Assim que eu disse isto, a cena na janela espacial mudou

novamente. Agora víamos uma grande extensão de montanhas

cobertas de neve e um grupo de helicópteros militares chineses

a avançarem para nós. Vimos mais templos começarem a ruir

quando eles se aproximaram, assumindo a aparência de antigas

ruínas e depois desaparecendo completamente no pó. A cena

mudou para o exterior do edifício onde estávamos, e depois

para o interior.

Vimo-nos a nós mesmos de pé dentro do edifício e em toda a

volta não os contornos esbatidos de pessoas, mas a sua imagem

nítida. Muitas tinham o traje formal dos monges tibetanos, mas

muitas outras estavam vestidas de forma diferente.

224

Algumas surgiram com as roupas das religiões orientais, outras

usavam o traje tradicional dos judeus hasídicos, e outras

 

 

ainda vestiam as roupas e usavam os crucifixos do

cristianismo. Outras tantas estavam vestidas como mullahs

islâmicos.

Curiosamente, uma delas lembrava-me uma pessoa que vivia

perto da minha casa no vale e os meus olhos demoraram-se nela.

Comecei a sonhar com a minha casa. No olho da minha mente,

conseguia ver tudo muito claramente: as montanhas vistas da

minha janela da frente, depois a mesma vista a partir da

fonte. Pensei no gosto da água de lá. Imaginei-me a

inclinar-me para beber.

Mais uma vez ouvimos o rugido dos helicópteros, muito

próximos de nós, e o som de um dos outros templos a desabar.

Tashi tinha-se afastado para a nossa direita. Na cena

através da janela espacial, vimos o que ele estava a fazer.

Tashi estava de frente para um dos monges tibetanos.

- Quem é aquele? - perguntei a Wil.

- Deve ser a avó dele - respondeu Wil.

Estavam claramente a falar com um outro, mas eu não

conseguia compreender as palavras. Finalmente abraçaram-se e

Tashi correu para nós.

Estava ainda a observar Tashi através da janela, mas quando

ele chegou perto de mim a cena desapareceu. A janela ainda ali

estava, mas as imagens eram confusas, como uma televisão

sintonizada num canal que não existia.

Tashi estava esfuziante.

- Não vêem? - disse ele. - Este é o templo onde eles têm

estado a observá-lo e ao Wil desde que vocês começaram a

tentar chegar a Shambhala. Foram estas pessoas que usaram os

seus campos de oração para vos ajudar. Sem elas, nenhum de nós

estaria aqui.

Olhei em redor e apercebi-me que já não conseguia ver os

contornos de ninguém à nossa volta.

- Para onde foram eles? - gritei.

- Tiveram de partir - respondeu Tashi, agora a olhar para a

janela vazia que pairava no centro da sala. -Agora estamos por

nossa conta.

Nesse momento um enorme choque ecoou pelo templo e várias

pedras caíram sobre o solo lá fora.

225

- São os soldados - gritou Tashi. - Eles estão aqui. -

Estava a olhar na direcção do som dos helicópteros lá fora.

Sem aviso, a janela espacial ficou nítida e conseguimos ver

os chineses a saírem dos helicópteros no exterior. O coronel

Chang caminhou até à frente do templo, dando instruções às

tropas. Conseguíamos ver claramente o seu rosto.

- Temos de o elevar com os nossos campos - disse Wil.

Tashi acenou em concordância e rapidamente orientou-nos

através das extensões. Visualizámos os nossos campos de

energia a fluírem a partir de nós, para dentro dos campos dos

soldados chineses, especialmente Chang, elevando-os a uma nova

consciência das suas intuições superiores.

Enquanto eu observava o seu rosto, ele pareceu fazer uma

pausa e olhar para cima, como se sentisse a energia mais

elevada.

Procurei atentamente qualquer expressão do seu eu superior e

notei aquilo que parecia uma ligeira alteração nos seus olhos,

talvez até um quase-sorriso. Parecia estar a olhar para os

seus soldados.

 

 

- Concentrem-se no rosto dele - disse eu. - No rosto dele.

Quando o fizemos, ele pareceu parar novamente. Um dos

soldados, aparentemente o seu adjunto, avançou até ele e

começou a fazer-lhe perguntas. Durante um momento ou dois,

Chang ignorou o oficial mais novo. Mas, lentamente, o

subordinado captou a sua atenção, apontando para o templo onde

nós estávamos. Chang pareceu recuperar a concentração e uma

expressão zangada voltou ao seu rosto. Fez sinal a todos os

soldados para o seguirem, enquanto avançava na nossa direcção.

- Não está a resultar - disse eu.

Wil olhou para mim.

- Os dakini não estão aqui.

- Temos de partir - gritou Tashi.

- Como? - perguntou Wil.

Tashi voltou-se para nos encarar.

- Temos de passar pela janela. A minha avó disse-me que

podíamos sair pela janela para as culturas exteriores. Mas só

se tivéssemos ajuda desse local, para aumentar a energia no

outro lado.

- O que é que ela queria dizer com ajuda? - perguntei. -

Quem nos iria ajudar?

Tashi abanou a cabeça. - Não sei.

- Bem, temos que tentar - gritou Wil -, Depressa!

Tashi pareceu confuso.

- Como é que vocês passavam pelas janelas nos anéis

exteriores? - perguntei.

- Tínhamos lá os amplificadores - respondeu ele. - Não sei

se consigo fazê-lo sem eles.

Toquei no ombro de Tashi.

- Ani disse que toda a gente nos anéis estava prestes a

conseguir manifestar-se sem a tecnologia. Pensa. Como é que

vocês faziam isso?

Tashi continuava a encolher os ombros.

- Não sei, a sério. Era mais ou menos automático. - Fez uma

pausa.

- Suponho que nós esperávamos que isso acontecesse, e isso

acontecia instantaneamente.

- Faz isso, Tashi - disse Wil, indicando a janela com a

cabeça. - Faz isso já.

Conseguia ver que Tashi estava a concentrar-se totalmente, e

depois ele olhou para mim.

- Tenho de saber para onde quero ir, para poder

visualizá-lo. Para onde é suposto irmos?

- Espera um minuto - disse eu. - E o sonho que tu tiveste?

Não estavas a ver água?

Tashi pensou por um momento e depois disse:

- Era num lugar junto a um curso de água. Um poço, talvez,

ou uma...

- Uma fonte? - gritei. - Uma fonte com um lago murado feito

de pedra?

Ele olhou para mim durante um momento.

- Acho que sim.

Olhei para Wil.

- Sei onde é. É uma fonte na encosta norte do vale onde eu

vivo.

É para lá que temos de ir.

Nesse momento o templo abanou violentamente mais uma vez.

Imagens do templo a ruir ou de explosões a matarem-nos

encheram a minha mente e eu afastei-as, imaginando em vez

disso que conseguiríamos escapar.

 

 

226 - 227

Comecei a sentir-me como o meu pai, apanhado numa batalha que

não tinha pedido mas que, por causa do que estava em jogo, era

incapaz de evitar. Só que agora era uma batalha mental.

- Concentra-te - exclamei. - O que é que nós fazemos?

- Primeiro temos de visualizar para onde vamos - respondeu

Tashi. - Descreva-nos o sítio.

Contei-lhes apressadamente todos os pormenores: o carreiro

na montanha, as árvores, a forma como a água corria, a cor da

folhagem nesta época do ano. Depois tentámos ajudar Tashi a

concentrar-se na imagem. Enquanto olhávamos, a janela

deslocou-se para esse mesmo local. Conseguíamos ver claramente

a fonte.

- É isso! - gritei.

Wil voltou-se para Tashi.

- E agora? A tua avó disse que íamos precisar de ajuda.

Através da janela avistámos uma pessoa e todos nos

concentrámos na imagem distorcida. Esforcei-me por ver quem

era, notando que essa pessoa parecia jovem, na realidade mais

ou menos da idade de Tashi.

Finalmente a imagem ficou mais nítida e eu reconheci quem

era.

- É a Natalie, a filha do meu vizinho - gritei, recordando a

minha primeira intuição acerca dela. O cenário era este.

Tashi sorriu largamente.

- É a minha irmã!

Naquele momento outro enorme pedaço do templo caiu ao chão

lá fora.

- Ela está a ajudar-nos - gritou Wil, empurrando-nos a todos

para a janela. - Vamos!

Com um som de vácuo, Tashi encolheu-se através da passagem,

seguido por Wil. Quando eu me aproximei da janela, a parede

traseira do templo caiu e ali, do outro lado, estava o coronel

Chang.

Virei-me e olhei para ele e depois avancei para a janela.

O rosto dele continuava determinado, quando ele arrancou um

rádio de ondas curtas do cinto.

- Eu sei para onde vocês vão! - gritou ele, enquanto o resto

do templo começava a ruir. - Eu sei!

228

Quando passei pela janela, o meu pé aterrou em piso familiar

e eu senti o ar quente na cara. Estava em casa.

Ao olhar em redor, notei que Tashi e Natalie estavam juntos,

olhando para os olhos um do outro, falando rapidamente. Os

seus rostos estavam felicíssimos, como se tivessem acabado de

descobrir algo. Wil estava perto deles.

Atrás deles estava o pai de Natalie, Bill, e vários outros

vizinhos da comunidade, incluindo o padre Brannigan, Sri Devo

e Julie Carmichael, pastor protestante. Todos eles pareciam

ligeiramente confusos.

Bill caminhou até junto de mim.

- Não sei de onde vieste, mas graças a Deus que aqui estás.

Apontei para os clérigos.

- O que é que esta gente toda está a fazer aqui?

- A Natalie pediu-Lhes para virem. Esteve a falar de lendas

e mostrou-nos como criar campos de oração, esse tipo de

 

 

coisas. Aparentemente estas ideias surgiram-lhe de repente.

Ela disse que conseguia ver o que te estava a acontecer e nós

apercebemo-nos de alguém a vigiar a tua casa.

Olhei para o cimo da colina e ia dizer qualquer coisa quando

Bill me interrompeu.

- A Natalie também disse mais uma coisa estranha. Ela disse

que tinha um irmão. Quem é aquele miúdo com quem ela está a

falar?

- Explico mais tarde - disse eu.

- Quem tem estado a vigiar a minha casa?

Bill não respondeu. Estava a observar Wil e os outros a

caminharem até nós.

Nesse momento ouvimos veículos a aproximarem-se, na colina

por cima de nós. Uma carrinha azul parou junto à casa. Dois

homens saíram, viram-nos e seguiram para uma plataforma trinta

metros acima de nós.

- São agentes chineses - disse Wil. - O Chang deve tê-los

avisado. Temos de criar um campo.

Fiquei à espera que os clérigos perguntassem o que isso era

mas, em vez disso, eles concordaram com um aceno. Natalie

começou a orientar-nos através das extensões, com Tashi a seu

lado.

229

- Comecem com a energia do criador - disse ela. - Deixem-na

entrar no vosso corpo e encher-vos. Deixem-na fluir pela vossa

cabeça e pelos vossos olhos. Deixem-na fluir para o mundo num

campo de oração constante, até verem apenas beleza e sentirem

apenas amor. Com um estado de maior alerta, esperem que este

campo se desloque e aumente os campos espirituais dos homens

por cima de nós, elevando-os às suas intuições.

No alto da colina, os homens olharam-nos com ar ameaçador e

começaram a descer o carreiro na nossa direcção.

Tashi olhou para Natalie e acenou.

- Agora - começou Natalie - podemos dar poder aos anjos.

Olhei para Wil.

- O quê?

- Primeiro - prosseguiu Natalie -, temos de garantir que os

nossos campos estão completamente preparados para entrarem nos

campos daqueles homens. Vejam isso a acontecer. Eles não são

inimigos, são pessoas, almas receosas. E depois devemos

reconhecer completamente os anjos e visualizá-los, de forma

muito deliberada, a entrar nos homens. Depois, com toda a

vossa expectativa, visualizem-nos a amplificar os nossos

campos de oração. Dêem aos anjos todo o poder para levarem

energia ao eu mais elevado daqueles homens, para lá daquilo

que nós podemos fazer sozinhos, elevando-os a uma consciência

que é incapaz de fazer o mal.

Eu estava a olhar para os dois homens na colina, procurando

a área mais iluminada que indicaria a presença dos dakini,

lutando para me concentrar mas sem ver nada.

- Não está a resultar - disse eu a Wil.

- Olha! - exclamou ele. - Lá em cima, à direita.

Quando olhei, comecei a detectar uma luz que se aproximava,

depois notei que a luz rodeava uma pessoa que ia a caminhar na

direcção dos dois homens. O homem rodeado pela luz tinha a

farda de um ajudante do xerife.

- Quem é aquele polícia? - perguntei a Bill. - Ele parece-me

familiar.

 

 

- Espera - disse Wil. - Não é uma pessoa.

Olhei novamente e vi o ajudante começar a falar com os dois

homens. A luz rodeou-os e eles finalmente voltaram para o seu

veículo. Embora o ajudante tivesse ficado no mesmo lugar, a

luz estendeu-se para eles e rodeou a carrinha. Eles partiram

rapidamente.

- A extensão funcionou - disse Wil.

Eu não estava sequer a ouvi-lo. Os meus olhos estavam

concentrados no ajudante, que se tinha voltado para nós. Era

alto e tinha cabelo negro. Onde é que eu o tinha já visto?

A resposta ocorreu-me quando ele se voltou e se afastou. Era

o mesmo homem que eu tinha visto na piscina em Katmandu,

aquele que primeiro me tinha falado da investigação acerca da

oração, aquele que eu tinha avistado em várias outras

ocasiões, aquele a quem Wil chamara o meu anjo da guarda.

- Eles fazem-se sempre passar por seres humanos, quando

necessário - disse Tashi, caminhando até mim com Natalie.

- Completámos a última extensão - acrescentou Tashi. -

Finalmente conhecemos o segredo de Shambhala. Agora podemos

começar a agir como fizeram os habitantes de Shambhala. Eles

olharam para o mundo, descobriram situações essenciais que

estavam a acontecer e interferiram não apenas com a força do

seu campo de oração, mas também com a força dos reinos

angélicos. É este o papel dos anjos, o de amplificar.

- Não compreendo - disse eu. - Porque não resultou quando

tentámos deter o Chang, logo antes de passarmos pela janela?

- Eu não conhecia o último passo - disse Tashi. - Não

percebia o que os habitantes dos templos faziam até poder

falar com a Natalie. Tentámos elevar o Chang, algo que era

necessário, mas não sabíamos como dar às forças angélicas o

poder de entrarem na nossa energia e intervirem. Temos de

começar por reconhecer os anjos, mas depois, neste nível de

energia, temos de lhes dar o poder para agirem. Temos de fazer

isto de forma muito intencional. Temos de pedir-lhes para

virem.

Tashi parou e olhou pensativo para o horizonte, com um

sorriso a desenhar-se no seu rosto.

- O que é, Tashi? - perguntei.

- É a Ani e o resto de Shambhala - disse ele. - Eles estão a

ligar-se a nós. Posso senti-los.

Pediu a atenção de todos.

230 - 231

- Há mais uma coisa que podemos fazer. Podemos dar aos anjos

o poder geral para protegerem este vale.

Acompanhámos Natalie ao longo do processo de preparar um

campo especial para fluir em todas as direcções, por cima do

cume dos montes pejados de árvores, cobrindo o vale, e para

dar aos anjos o poder de nos protegerem.

- Visualizem um anjo posicionado em cada monte - disse

ela.Shambhala esteve sempre protegida. Nós também podemos ser

protegidos.

Continuámos a concentrarmo-nos nas montanhas durante vários

minutos, depois os dois jovens começaram outra conversa

intensa entre si, enquanto nós escutávamos.

Falavam acerca das outras crianças que tinham passado por

Shambhala, a necessidade delas despertarem, onde quer que

estivessem. Disseram-nos que as crianças que vêm agora são

mais poderosas do que alguma vez foram. São maiores, mais

 

 

fortes, mais inteligentes de uma forma completamente nova.

Estão mais envolvidas em actividades extracurriculares do que

alguma vez estiveram. Cantam, dançam, praticam uma grande

variedade de desportos, fazem música, escrevem. Desenvolvem os

seus talentos mais cedo do que qualquer outra geração o fez.

- Há apenas um problema. A força das suas expectativas é

muito maior, mas eles ainda não aprenderam a vigiar

completamente os efeitos dos seus pensamentos. Podem aprender

como funcionam os campos de oração. Nós podemos ajudá-los.

Observámos os clérigos começarem a caminhar na direcção da

casa de Bill, juntamente com Natalie e Tashi, ainda

profundamente embrenhados na sua conversa.

Um momento de cepticismo percorreu-me. Mesmo depois de tudo

o que tinha visto, ainda duvidava que os humanos pudessem

realmente dar poder aos anjos.

- Achas mesmo que podemos invocar os anjos para nos ajudarem

e ajudarem os outros? - perguntei a Wil -, Teremos nós um tal

poder?

- Não é assim tão fácil - disse ele. - Na realidade, é

impossível uma pessoa com intenções negativas tentar. Nada

disto funciona se não estivermos completamente ligados

interiormente à energia do criador e não enviarmos a nossa

energia de forma muito consciente à nossa frente, para tocar

os outros. Se estiver envolvido um mínimo de ego ou estiver

presente qualquer raiva, toda a energia cede e os anjos não

podem responder. Vês o que eu estou a dizer? Somos os agentes

de Deus neste planeta. Podemos afirmar e defender a visão da

vontade divina e, se nos alinharmos genuinamente com esse

futuro positivo, teremos suficiente energia de oração para

levarmos os anjos a agirem.

Acenei, sabendo que ele tinha razão.

- Estás a ver o que é isto tudo? - perguntou. - Toda esta

informação, é a Décima primeira Revelação. O conhecimento dos

campos de oração leva a cultura da humanidade um passo mais

longe. Quando compreendemos a Décima - que o propósito humano

neste planeta era criar uma cultura espiritual ideal através

da adesão à visão - ainda nos faltava qualquer coisa. Não

sabíamos exactamente como aderir a ela. Não conhecíamos os

pormenores acerca do uso energético a dar à nossa fé e

expectativa.

- Agora conhecemos. A realidade de Shambhala, o segredo dos

campos de oração, deu-nos isto. Agora podemos aderir à visão

de um mundo espiritual e agir através dos nossos poderes

criativos para torná-la realidade. A cultura humana não pode

progredir mais enquanto não usarmos conscientemente este poder

ao serviço da evolução espiritual. Temos de fazer como os

habitantes dos templos faziam: preparar metodicamente os

nossos campos de oração para todas aquelas situações

essenciais que poderão fazer a diferença. O verdadeiro papel

da comunicação social, especialmente da televisão, é

indicar-nos estas áreas problemáticas. Temos de nos aperceber

de todas as discussões, todos os debates científicos, todas as

lutas que alguém trava entre as trevas e a luz, e tratarmos de

usar os nossos campos.

Ele olhou em redor.

- Podemos fazer isto em pequenas comunidades, igrejas,

círculos de amigos em todo o mundo. Mas, e se o poder de todas

as religiões se combinasse num único, gigantesco campo de

oração? Neste momento o campo está fragmentado, até mesmo

anulado pela oração negativa e pelo ódio. Pessoas boas

permitem que os seus pensamentos aumentem o mal, pensando que

 

 

isso não importa.

232 - 233

- Mas, e se isso mudasse? E se preparássemos um campo, maior

do que qualquer outro que o mundo já viu, que cobrisse todo o

planeta, para elevar essas forças insidiosas que querem

centralizar o poder e controlar toda a gente? E se todos os

grupos reformadores, de todas as profissões e ocupações,

soubessem como fazer isso? E se a consciência do campo se

espalhasse assim tão longe?

Wil fez um momento de pausa.

- E se todos acreditássemos realmente nos reinos angélicos -

continuou -, e soubéssemos que a nossa capacidade de lhes dar

poder é um direito de nascença? Não há situação que não

pudéssemos afectar imediatamente. O novo milénio poderia ser

muito diferente do que é agora. Seríamos verdadeiramente os

guerreiros de Shambhala, vencendo a batalha pelo futuro.

Ele parou de falar e olhou para mim com uma expressão muito

séria.

- É o verdadeiro desafio desta geração. Se não formos bem

sucedidos, todos os sacrifícios das gerações anteriores terão

sido em vão. Podemos não ultrapassar os danos ambientais que

estão a acontecer... ou os actos insidiosos dos controladores.

- O mais importante - prosseguiu Wil - é começar a construir

uma rede de pensamento consciente. Unir os guerreiros... Todas

as pessoas que sabem devem ligar-se a todas as pessoas nas

suas vidas que poderiam querer saber.

Fiquei silencioso. O que Wil estava a dizer fez-me pensar em

Yin e em todos os outros submetidos à tirania chinesa. O que

lhe teria acontecido? Eu não teria conseguido sem a ajuda

dele. Disse a Wil o que estava a pensar.

-Ainda podemos encontrá-lo - disse Wil. - Lembra-te que a

televisão é apenas o precursor do aperfeiçoamento do olho da

mente. Tenta descobrir uma imagem do sítio onde ele está.

Acenei e tentei deixar a minha mente em branco, pensando

apenas em Yin. Em vez dele, surgiu o rosto do coronel Chang e

eu recuei. Disse a Wil o que tinha acontecido.

- Lembra-te do olhar dele - disse Wil - quando parecia estar

a despertar e encontra essa expressão na imagem.

Descobri essa expressão no olho da minha mente, depois

subitamente a imagem deslocou-se para Yin numa cela da prisão,

cercado por guardas.

- Vi o Yin - disse eu, expandindo a minha energia de oração

e dando poder aos reinos superiores, até que a cena ficou mais

luminosa em redor dele. Depois visualizei a luz a espalhar-se

por todos os que o mantinham prisioneiro.

- Vê um anjo junto do Yin - disse Wil - ... e junto do

coronel.

Acenei, pensando no código tibetano de compaixão.

Wil arqueou a sobrancelha e sorriu enquanto me concentrava

novamente nas imagens. Yin ficaria em segurança. O Tibete

acabaria por ser livre.

Desta vez não tinha qualquer dúvida.

Colecção Milénio

 

 

Obras Publicadas Nesta Colecção

A Profecia Celestina - James Redfield

A Décima Revelação - James Redfield

A Profecia Celestina, um Guia Experimental - James Redfield e

Carol Adrienne

Siddhartha - Hermann Hesse

A Visão Celestina - James Redfield

A Profetisa - Barbara Wood

Enfrentar o milénio - Albert Clayton Gaulden

O Quinto Evangelho - Bernard-Marie

O Segredo de Shambhala - James Redfield

Conhecer Deus - Deepak Chopra

Visões do Futuro - Arthur C. Clark

Manuscrito do Santo Sepulcro - Jacques Neirynek

Chão Sagrado - Barbara Wood

Data da Digitalização

Amadora, Dezembro de 2002