O SEGREDO DE SHAMBHALA
A Décima Primeira Revelação
James Redfield
COLECÇÃO MILÉNIO
Editorial Notícias
Digitalização e Arranjo
Agostinho Costa
Este é o segredo de uma comunidade mítica, situada próximo do
Tibete, numa região permanentemente coberta de neve. A
existência lendária de Shambhala está ligada a formas
ancestrais de viver e saber - a sua revelação pode ter um
profundo impacte no modo como cada um de nós vive a sua vida.
A viagem física e espiritual até Shambhala começa com as
palavras de uma criança e a visão de um velho. Katmandu, no
Nepal, e depois Lhasa, no Tibete, são lugares de passagem para
a transformação interior necessária para entrar em Shambhala.
No final da viagem aguarda-nos a revelação de uma energia
capaz de libertar a vida de cada um e, ao mesmo tempo,
contribuir activamente para transformar o mundo.
James Redfield prossegue, com O Segredo de Shambhala, uma
busca espiritual iniciada com o best-seller International A
Profecia Celestina e depois continuada com A Décima Revelação
e A Visão Celestina (todos estes livros estão publicados com a
chancela de Editorial Notícias)
O autor vive com a sua mulher, Salle, e A gata Meredith, na
Florida e no Arizona.
Título Original: The Secret of Shambhala
Tradução de Pedro Dias
JAMES REDFIELD
O SEGREDO DE SHAMBHALA
A DÉCIMA PRIMEIRA REVELAÇÃO
Editorial Notícias
Terceira edição Novembro de 2001
Para Megan e Kelly cuja geração tem de evoluir
de forma mais consciente
AGRADECIMENTOS
Existem muitos heróis na evolução da consciência
espiritual. Devo um agradecimento especial a Larry Dossey,
pelo seu trabalho pioneiro na divulgação da pesquisa
científica sobre a oração e a intenção; também a Marilyn
Schlitz, que continua a fazer força para o desenvolvimento de
novos estudos sobre a intencionalidade humana no Instituto de
Ciências Noéticas. Na nutrição, merece reconhecimento o
trabalho de Theodore A. Baroody e Robert Young sobre o ácido e
o alcalino.
Pessoalmente, tenho de agradecer a Albert Gaulden, John
Winthrop Austin, John Diamond e Claire Zion, que continuam a
dar contributos especiais para este trabalho. E, acima de
tudo, um agradecimento especial a Salle Merrill Redfield, cuja
intuição e fé servem como testemunhos constantes do mistério.
Índice
NOTA DO AUTOR ......................... 11
1. CAMPOS DE INTENÇÃO ................. 19
2. O CHAMAMENTO DE SHAMBHALA .......... 43
3. CULTIVAR A ENERGIA ................. 67
4. ALERTA CONSCIENTE .................. 85
5. O CONTÁGIO DA CONSCIÊNCIA ......... 109
6. A PASSAGEM ........................ 127
7. ENTRADA EM SHAMBHALA .............. 142
8. O PROCESSO VITAL .................. 163
9. A ENERGIA DO MAL .................. 181
10. RECONHECER A LUZ ................. 201
11. O SEGREDO DE SHAMBHALA ........... 217
NOTA DO AUTOR
Quando escrevi A Profecia Celestina e A Décima Revelação,
estava firmemente convencido de que a cultura humana estava a
evoluir através de uma série de revelações sobre a vida e a
espiritualidade, revelações que podiam ser descritas e
documentadas. Tudo o que aconteceu desde então apenas
aprofundou esta crença.
Estamos a ganhar plena consciência de um processo espiritual
superior que age discretamente na vida e, ao fazê-lo, estamos
a deixar para trás uma visão materialista do mundo, uma visão
que reduz a vida à sobrevivência, que dá pouca importância à
religião e que usa brinquedos e distracções para afastar de
nós a verdadeira maravilha de estarmos vivos.
O que queremos, em vez disso, é uma vida cheia de
coincidências misteriosas e intuições súbitas, que aludem a um
caminho especial nesta existência, a uma busca particular de
informação e especialização - como se um qualquer destino
previsto estivesse a tentar emergir. Este tipo de vida é como
uma história de detectives no interior de nós mesmos e os
indícios em breve nos levarão de uma revelação para outra.
Descobrimos que uma verdadeira experiência do divino nos
espera e que, se conseguirmos encontrar esta conexão, as
nossas vidas se encherão de ainda mais clareza e intuição.
Começamos a captar visões do nosso destino, de uma missão que
podemos levar a bom termo, desde que evitemos os hábitos que
nos distraem, tratemos os outros com uma certa ética e nos
mantenhamos verdadeiros para com o nosso coração.
11
Na verdade, com a Décima Revelação, esta perspectiva
expande-se ainda mais e inclui toda a história e cultura. Num
certo nível, todos nós sabemos que viemos de um lugar
celestial para esta dimensão terrena para participarmos num
objectivo comum: para criarmos lentamente, geração após
geração, uma cultura completamente espiritual neste planeta.
Ainda assim, enquanto absorvemos esta revelação inspiradora,
está a chegar uma outra, a Décima Primeira. Os nossos
pensamentos e atitudes contam, quando tentamos tornar os
nossos sonhos em realidade. De facto, creio que estamos
prestes a compreender, finalmente, a influência que têm as
nossas intenções mentais, as nossas orações, até mesmo as
nossas opiniões e ideias preconcebidas secretas, não apenas
sobre o nosso próprio sucesso na vida mas também sobre o
sucesso dos outros.
Baseando-me na minha própria experiência, e naquilo que está
a acontecer ao nosso redor, ofereço este livro como ilustração
deste próximo passo em direcção à consciência. É minha crença
que esta revelação está já a emergir algures, girando por
entre milhares de discussões espirituais tardias, escondida
logo abaixo do ódio e medo que ainda marcam a nossa era. Tal
como antes, a nossa única responsabilidade é vivermos de
acordo com o que sabemos e depois estender a mão... e passar
palavra.
Verão 1999
o SEGREDO DE SHAMBHALA
De repente, Nabucodonosor levantou-se estupefacto,
e perguntou aos oficiais:
Não eram três os homens que amarrámos e atirámos
para dentro da fornalha?
Então como é que eu vejo quatro a andar no fogo?
E estes não estão ligados nem parecem ser atingidos pelas
chamas!
O quarto parece mesmo um deus!...
Louvado seja o Deus de Chadrac, Mechac e Abed-Nego!
Ele enviou o seu anjo para socorrer estes homens que o
servem e nele confiam.
Livro de Daniel
1.
CAMPOS DE INTENÇÃO
O telefone tocou e eu limitei-me a olhar para ele. A
última coisa de que eu precisava agora era de outra
distracção. Tentei afastá-lo da minha mente, olhando pela
janela para as árvores e flores silvestres, esperando
perder-me na variedade de cores outonais dos bosques em redor
da minha casa.
Tocou novamente e eu recebi uma imagem vaga mas
perturbadora, no olho da minha mente, de uma pessoa que
precisava de falar comigo. Rapidamente estendi a mão e atendi.
- Está?
- É o Bill - disse uma voz familiar. Bill era um
especialista em agronomia que me ajudava com o meu jardim.
Vivia encosta abaixo, apenas a algumas centenas de metros.
- Ouve, Bill, posso telefonar-te mais tarde? - disse eu. -
Tenho um prazo a cumprir.
- Ainda não conheces a minha filha, Natalie, pois não?
- Desculpa?
Não houve resposta.
- Bill?
- Ouve - respondeu finalmente -, a minha filha quer falar
contigo. Acho que pode ser importante. Não tenho bem a certeza
de como ela o conhece, mas parece estar bem familiarizada com
o teu trabaLho. Ela diz que tem informações acerca de um lugar
em que tu estarias interessado. Um lugar qualquer no norte do
Tibete? Ela diz que as pessoas lá têm informações importantes.
19
- Que idade tem ela? - perguntei.
Bill riu, na outra extremidade da linha.
- Tem só catorze anos, mas ultimamente tem dito coisas muito
interessantes. Tinha esperanças de falar contigo esta tarde,
antes do jogo de futebol dela. Alguma hipótese?
Comecei a adiar, mas a imagem anterior expandiu-se e começou
a ficar mais clara na minha mente. Parecia uma rapariga a
falar comigo algures perto da fonte grande, por cima da casa
dela.
- Sim, está bem - disse -, Que tal às duas horas?
- Perfeito - disse Bill.
Quando ia para lá apercebi-me de uma casa nova no outro lado
do vale, na encosta norte. Com mais esta são quase quarenta,
pensei. Tudo nos dois últimos anos. Eu sabia que se tinha
espalhado a notícia da beleza deste vale em forma de tigela,
mas não receava que o lugar ficasse demasiado cheio ou que as
suas espantosas paisagens naturais fossem destruídas.
Aninhados junto a uma floresta nacional, estávamos a dezasseis
quilómetros da povoação mais próxima - demasiado longe para a
maioria das pessoas. E a família a quem pertencia a terra, e
que estava agora a vender terrenos para construção nas colinas
exteriores, parecia determinada a manter a serenidade do
lugar. Cada casa tinha de ser baixa e escondida no meio dos
pinheiros e eucaliptos que definiam o horizonte.
O que mais me incomodava era o isolamento que os meus
vizinhos tanto pareciam apreciar. Pelo que eu conseguia ver, a
maior parte eram indivíduos especiais, fugidos a diversas
carreiras profissionais, que tinham aberto nichos vocacionais
únicos que lhes permitiam funcionar em horários flexíveis ou
viajar com horários muito próprios, como consultores - uma
liberdade que era necessária para se viver aqui, no meio do
mato.
Os laços comuns entre nós pareciam ser um idealismo
persistente e a necessidade de alargar as nossas profissões
infundindo-lhes visão espiritual, tudo na melhor tradição da
Décima Revelação. Ainda assim, quase todas as pessoas deste
vale mantinham-se reservadas, satisfeitas por se poderem
concentrar nos seus campos diversos sem prestarem muita
atenção à comunidade ou à necessidade de desenvolvermos a
nossa visão comum. Isto era especialmente verdade entre as
diferentes confissões religiosas. Por alguma razão, o vale
tinha atraído pessoas que seguiam uma grande variedade de
crenças, incluindo o Budismo, Judaísmo, Cristianismo católico
e protestante e Islamismo. E embora não houvesse qualquer
hostilidade de um grupo religioso em relação aos outros,
também não havia qualquer sentimento de afinidade.
A falta de comunhão preocupava-me porque havia sinais de
algumas das nossas crianças ostentarem os mesmos problemas
visíveis nos subúrbios: demasiado tempo sozinhas, demasiado
vídeo, demasiada preocupação com os altos e baixos da escola.
Começava a sentir-me preocupado por não haver família e
comunhão suficientes nas suas vidas, que permitissem afastar
estes problemas grupais e os mantivessem na sua correcta
perspectiva.
Mais à frente o carreiro estreitava e tive de passar entre
dois grandes rochedos que se estendiam até uma descida abrupta
de quase sessenta metros. Passando por eles, ouvi os primeiros
rumorejos da Fonte de Phillips, assim chamada pelos caçadores
de peles que, pela primeira vez, aqui se estabeleceram, no fim
do século XVII. A água descia por várias camadas de rocha, até
um lago preguiçoso com três metros de largura, originalmente
escavado à mão. Gerações sucessivas acrescentaram outros
toques, como as macieiras perto da desembocadura e a pedra
cimentada para reforçar e aprofundar o lago. Segui até junto
da água e baixei-me para recolher alguma nas minhas mãos,
afastando um pau quando me baixei. O pau manteve-se em
movimento, deslizando pelas pedras até um buraco.
- Uma cobra d'água! - disse em voz alta, recuando e sentindo
o suor a humedecer a minha testa. A vida aqui no bosque ainda
envolve alguns perigos, embora talvez não sejam os mesmos que
o velho Phillips enfrentou há séculos, quando se podia fazer
uma curva no caminho e dar de caras com um puma a guardar as
suas crias ou, pior ainda, uma vara de javalis, com presas de
oito centímetros que facilmente nos podiam rasgar a perna se
não conseguíssemos subir a uma árvore suficientemente
depressa. Se o dia corresse especialmente mal, podíamos até
encontrar um Cherokee furioso ou um Seminole deslocado,
cansado de encontrar novos colonos no seu terreno favorito de
caçadas... e convicto de que uma boa dentada no nosso coração
manteria a maré europeia ao largo para sempre.
20 - 21
Não, todos os que viveram nessa geração - nativos americanos
ou europeus - enfrentaram perigos directos que punham a sua
têmpera à prova a cada momento.
A nossa geração parece lidar com outros problemas, problemas
mais relacionados com a nossa atitude em relação à vida, com a
batalha constante entre o optimismo e o desespero. Por todo o
lado surgem vozes catastrofistas, mostrando-nos provas
factuais de que o estilo de vida ocidental não pode ser
sustentado, que o ar está a aquecer, os arsenais terroristas a
crescerem, as florestas a morrerem e a tecnologia a correr
furiosamente para uma espécie de mundo virtual que deixa os
nossos filhos malucos - ameaçando mergulhar-nos cada vez mais
na loucura e no surrealismo sem direcção.
Por contraste com este ponto de vista existem, obviamente,
os optimistas, que afirmam que a história esteve sempre cheia
de profetas do apocalipse, que todos os nossos problemas podem
ser resolvidos pela mesma tecnologia que produziu estes
perigos e que o mundo humano apenas começou a atingir o seu
potencial.
Parei e olhei novamente para o vale. Sabia que a Visão
Celestina estava algures entre estes dois pólos. Englobava uma
crença no crescimento sustentado e na tecnologia humana, mas
apenas se utilizada por um movimento intuitivo na direcção do
sagrado, e um optimismo baseado numa visão espiritual de até
onde o mundo pode ir.
Uma coisa era certa. Se aqueles que acreditam no poder da
visão querem fazer a diferença, teriam de começar
imediatamente, quando estamos mergulhados no mistério do novo
milénio. Este facto ainda me inspirava um temor respeitoso.
Como tínhamos tido a sorte de estarmos vivos na mudança não
apenas de um século, mas também de um período de mil anos?
Porquê nós? Porquê esta geração? Tinha a sensação de que
respostas maiores estavam ainda à nossa frente.
Olhei em redor da fonte por um momento, mais ou menos à
espera que a Natalie estivesse algures por ali. Tinha a
certeza que fôra esta a minha intuição. Ela estava aqui na
fonte, só que eu parecia estar a vê-la através de uma espécie
de janela. Era tudo muito confuso.
Quando cheguei à casa dela não parecia estar lá ninguém.
Segui até ao alpendre da fachada triangular castanha escura e
bati à porta com força. Não houve resposta. Depois, enquanto
olhava para o lado esquerdo da casa, qualquer coisa prendeu a
minha atenção. Estava a olhar para um carreiro empedrado que
passava pela enorme horta do Bill e subia até um pequeno prado
relvado no cimo da encosta. A luz tinha mudado?
Olhei para o céu, tentando perceber o que tinha acontecido.
Tinha visto uma flutuação na luz do prado, como se o sol
tivesse subitamente saído de trás de uma nuvem, iluminando
aquela área específica. Mas não havia nuvens no céu. Subi o
prado e encontrei a rapariga sentada no limite da relva. Era
alta e de cabelo escuro, tinha vestido um equipamento azul de
futebol e, quando me aproximei, ela voltou-se bruscamente,
surpreendida.
- Não quis assustar-te - disse eu.
Ela afastou os olhos por um momento, da maneira tímida que
uma adolescente faria, por isso agachei-me para estar ao nível
do olhar dela e apresentei-me.
Ela olhou novamente para mim, com olhos muito mais adultos
do que eu esperava.
- Não estamos a viver as Revelações aqui - disse ela.
Fui apanhado de surpresa. - O quê?
- As Revelações. Não estamos a vivê-las.
- O que queres dizer?
Ela olhou para mim com ar severo.
- Quero dizer que ainda não as compreendemos completamente.
Há mais que ainda precisamos de saber.
- Bem, não é assim tão simples...
Parei. Não acreditava que estava a ser interrogado desta
maneira por uma rapariga de catorze anos. Durante um instante,
fui atravessado por um clarão de raiva. Mas depois a Natalie
sorriu - um sorriso pequeno, apenas uma expressão nos cantos
da boca, que lhe davam um ar terno. Relaxei e sentei-me no
chão.
- Acredito que as Revelações são reais - respondi. - Mas não
são fáceis. Demoram tempo.
Ela não estava disposta a desistir. - Mas há pessoas que
estão a vivê-las neste momento.
Olhei para ela durante um instante.
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- Onde?
- Na Ásia Central. As montanhas Kunlun. Vi-as no mapa. -
Parecia excitada. - Tem de ir lá. É importante. Há qualquer
coisa a mudar. Você tem de ir já para lá. Tem de ver.
Enquanto ela dizia isto, a expressão do seu rosto parecia
mais madura, autoritária, como a de uma pessoa de quarenta
anos. Pisquei os olhos com força, sem acreditar no que estava
a ver.
- Tem de ir lá. - repetiu.
- Natalie - disse eu -, Não tenho a certeza de saber bem o
que queres dizer. Que tipo de lugar é esse?
Ela afastou o olhar.
- Disseste que o tinhas visto no mapa. Podes mostrar-mo?
Ela ignorou a minha pergunta, parecendo distraída. - Que...
que horas são? - perguntou de súbito, gaguejando.
- Duas e um quarto.
- Tenho de ir.
- Espera, Natalie, esse lugar de que estavas a falar. Eu...
- Tenho de ir ter com a equipa - declarou ela. - Senão vou
chegar tarde.
Caminhava depressa agora, e eu esforcei-me por acompanhá-la.
- E esse lugar na Ásia, recordas-te exactamente onde é?
Quando ela olhou para trás por cima do ombro, para mim, vi
apenas a expressão de uma miúda de catorze anos a pensar em
futebol.
De regresso a casa sentia-me totalmente desorientado. O que
se tinha passado? Fiquei a olhar para a secretária, incapaz de
me concentrar. Mais tarde fiz uma longa caminhada e nadei no
lago, finalmente decidido a telefonar ao Bill pela manhã e
chegar ao fundo do mistério. Deitei-me cedo.
Cerca das três da manhã alguma coisa me acordou. O quarto
estava escuro. A única luz era a que penetrava por baixo das
persianas da janela. Fiquei à escuta, sem ouvir nada a não ser
os habituais sons da noite: um coro intermitente de grilos, o
rumor ocasional dos sapos no lago e, lá longe, o latir baixo
de um cão.
Pensei em levantar-me e trancar as portas da casa, coisa que
raramente fazia. Mas afastei a ideia, deixando-me mergulhar
novamente no sono. Teria adormecido completamente mas, no meu
último olhar sonolento pelo quarto, notei algo diferente na
janela. Havia mais luz lá fora do que antes.
Sentei-me e olhei novamente. Definitivamente havia mais luz
a entrar pelas persianas. Vesti umas calças, fui até à janela
e afastei as tabuinhas de madeira. Parecia tudo normal. De
onde vinha a luz?
Subitamente ouvi uma batida ligeira atrás de mim. Estava
alguém dentro de casa.
- Quem está aí? - perguntei sem pensar.
Não houve resposta.
Saí do quarto para o corredor que levava até à sala de
estar, pensando em ir ao armário buscar a minha espingarda
para matar cobras. Mas apercebi-me que a chave do armário
estava na gaveta da cómoda, junto à cama. Em vez disso,
prossegui cautelosamente.
Sem aviso, uma mão tocou-me no ombro.
- Chüuu, é o Wil.
Reconheci a voz e acenei. Quando levei a mão ao interruptor
na parede, ele deteve-me, depois atravessou a sala e espreitou
pela janela. Enquanto ele se movimentava, apercebi-me de
qualquer coisa diferente desde a última vez em que o vira.
Estava um pouco menos gracioso e os seus traços pareciam
completamente vulgares, sem a luminosidade que tinham
anteriormente.
- Do que andas à procura? - perguntei. - O que se passa?
Quase me mataste de susto.
Ele recuou para junto de mim. - Tinha de te ver. Tudo mudou.
Estou novamente onde estava antes.
- O que queres dizer?
Ele sorriu-me.
- Acho que é suposto isto estar a acontecer, mas já não
consigo entrar mentalmente nas outras dimensões, como
costumava fazer.
Ainda consigo aumentar um pouco a minha energia, mas agora
estou firmemente preso a este mundo. - Afastou o olhar por um
instante. - É quase como se aquilo que fizemos quando
conseguimos compreender a Décima Revelação tivesse sido apenas
uma amostra, uma experiência, uma espreitadela no futuro,
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como uma experiência de morte iminente, e que agora terminou.
Seja o que for que tenhamos de fazer agora, temos de fazê-lo
aqui nesta Terra.
- De qualquer maneira, eu nunca consegui fazê-lo - disse eu.
Wil olhou-me nos olhos.
- Sabes, recebemos muita informação acerca da evolução
humana, acerca do prestar atenção, acerca de ser orientado
pela intuição e pelas coincidências. Fomos mandatados para
determos uma nova visão, todos nós. Só que não estamos a
torná-la realidade ao nível que podemos. Ainda falta qualquer
coisa no nosso conhecimento.
Fez uma pausa e depois disse:
- Não tenho certeza da razão, ainda, mas temos de ir à
Ásia... algures perto do Tibete. Está qualquer coisa a
acontecer lá. Qualquer coisa que nós temos de conhecer.
Fiquei surpreendido. A jovem Natalie tinha dito a mesma
coisa.
Wil voltou para a janela, olhando lá para fora.
- Porque estás a olhar pela janela com essa insistência? -
perguntei. - E porque me entraste em casa às escondidas?
Porque não bateste à porta? O que se passa?
- Provavelmente nada - respondeu. - Mas hoje de manhã
pareceu-me estar a ser seguido. Não posso ter a certeza.
Voltou para junto de mim. - Não posso explicar tudo agora.
Nem eu próprio tenho a certeza do que está a acontecer. Mas há
um sítio na Ásia que temos de encontrar. Podes encontrar-te
comigo no Hotel Himalaia, em Katmandu, no dia dezasseis?
- Espera um minuto! Wil, tenho coisas a fazer aqui. Estou
empenhado em...
Wil olhou para mim com uma expressão que nunca tinha visto
noutro rosto, uma mistura pura de aventura e decisão absoluta.
- Tudo bem - disse ele. - Se não estiveres lá a dezasseis,
não estás. Mas se fores, mantém-te sempre perfeitamente
alerta. Vai acontecer qualquer coisa.
Ele estava a falar a sério ao dar-me a escolher, mas ao
mesmo tempo sorria.
Afastei os olhos, aborrecido. Não queria fazer isto.
* * *
Na manhã seguinte decidi não contar a ninguém o que se
estava a passar, excepto à Charlene. O único problema era que
ela estava em reportagem no estrangeiro e era impossível
contactá-la directamente. Pude apenas deixar-lhe um e-mail.
Fui até ao meu computador e enviei-o, perguntando a mim
mesmo, como sempre fazia, até que ponto a Internet seria
segura. Os piratas conseguem entrar nos computadores mais
seguros de empresas e governos. Quão difícil seria interceptar
mensagens de e-mail... especialmente se nos lembrarmos que a
Internet foi originalmente criada pelo Departamento de Defesa,
como elo de ligação com os seus investigadores confidentes nas
principais universidades? Estará toda a Internet monitorizada?
Afugentei a preocupação, concluindo que estava a ser tolo. A
minha mensagem era uma entre dezenas de milhões. Quem se
importaria?
Enquanto estava no computador, tratei da viagem para chegar
a Katmandu, Nepal, no dia dezasseis e ficar no Himalaia. Teria
de partir dentro de dois dias, pensei, quase sem tempo para
preparar algumas coisas.
Abanei a cabeça. Uma parte de mim estava fascinada com a
ideia de ir ao Tibete. Sabia que a sua geografia era uma das
mais belas e misteriosas do mundo. Mas era também um país sob
o controlo repressivo do governo chinês e eu sabia que poderia
ser um lugar perigoso. O meu plano era avançar apenas enquanto
esta aventura me parecesse segura. Chega de me lançar de
cabeça e deixar-me arrastar para algo que eu não conseguia
controlar.
Wil tinha saído de minha casa tão depressa como chegara, sem
me dizer mais nada, deixando-me com a cabeça cheia de
perguntas.
O que sabia ele acerca desse lugar perto do Tibete? E porque
é que uma adolescente me mandava ir para lá? O Wil estava a
ser muito cauteloso. Porquê? Não ia dar um passo fora de
Katmandu sem descobrir a resposta.
Quando o dia chegou, tentei manter-me alerta durante os
longos voos para Frankfurt, Nova Deli e depois Katmandu, mas
não aconteceu nada digno de menção. No Himalaia, registei-me
com o meu próprio nome, pus as coisas no quarto e depois
comecei a espreitar o local, acabando no restaurante do hotel.
26 - 27
Ali sentado, esperava que o Wil entrasse a qualquer momento,
mas nada aconteceu. Uma hora depois pensei em ir até à
piscina, por isso chamei um paquete e soube que era lá fora.
Estaria ligeiramente frio, mas o sol brilhava e eu sabia que o
ar fresco me ajudaria a adaptar-me à altitude.
Saí e encontrei a piscina no meio das duas alas em forma de
L do edifício. Estava lá mais gente do que eu esperava, embora
poucos estivessem a conversar. Ao ocupar uma cadeira numa das
mesas, notei que as pessoas à minha volta, na maioria
asiáticos, com alguns europeus dispersos - pareciam estar
tensos ou com muitas saudades de casa. Franziam a testa uns
para os outros e falavam com brusquidão aos empregados do
hotel, exigindo bebidas e guardanapos, evitando o contacto
visual a todo o custo.
Gradualmente também o meu estado de espírito começou a
piorar. Aqui estava eu, pensei, metido em mais um hotel no
outro lado do mundo, sem um rosto amigável por perto. Respirei
fundo e recordei novamente o aviso do Wil para me manter
alerta, lembrando a mim mesmo que ele falara em procurar as
voltas subtis da sincronicidade, aquelas coincidências
misteriosas que podiam surgir num segundo e empurrar a nossa
vida numa nova direcção.
A compreensão desse fluxo misterioso, conforme eu sabia,
continuava a ser a experiência central da derradeira
espiritualidade, prova directa de que qualquer coisa mais
profunda agia discretamente por detrás do drama humano. O
problema fora sempre o carácter esporádico desta percepção;
surge durante algum tempo para nos seduzir e depois, tão
depressa como veio, desaparece.
Quando olhei em redor da área, o meu olhar caiu sobre um
homem alto com cabelo negro que ia a sair da porta do hotel,
dirigindo-se para mim. Vestia calças largas e uma camisola
branca à moda e trazia um jornal dobrado debaixo do braço.
Seguiu o carreiro por entre os hóspedes do hotel e sentou-se
numa mesa directamente à minha direita. Quando abriu o jornal,
olhou em redor e acenou-me com a cabeça, mostrando um sorriso
radioso. Depois chamou um empregado e pediu água. Tinha
aparência de asiático, mas falava um inglês fluente sem
vestígios de sotaque.
Quando a sua água chegou, assinou o recibo e começou a ler.
Este homem tinha qualquer coisa imediatamente atraente, mas eu
não conseguia perceber o que era. Irradiava uma atitude e
energia agradáveis; periodicamente parava de ler e olhava à
sua volta, com um sorriso rasgado. A certa altura estabeleceu
contacto visual com um dos cavalheiros enervados directamente
à minha frente.
Fiquei mais ou menos à espera que o homem carrancudo
afastasse rapidamente o olhar, mas em vez disso ele retribuiu
o sorriso do homem moreno e começaram uma conversa amena,
aparentemente em nepalês. A dado momento chegaram mesmo a
soltar uma gargalhada. Atraídas pela conversa, várias outras
pessoas das mesas próximas ficaram com um ar divertido e
alguém disse qualquer coisa que gerou outra risada.
Observei a cena com interesse. Estava a acontecer aqui
qualquer coisa, pensei. O estado de espírito à minha volta
estava a mudar.
- Meu Deus - gaguejou o homem moreno, olhando na minha
direcção. - Já viu isto?
Olhei em redor. Toda a gente parecia ter voltado às suas
leituras e ele estava a apontar para algo no jornal e a
deslocar a sua cadeira para se aproximar de mim.
- Publicaram outro estudo sobre orações - acrescentou. - É
fascinante.
- O que é que descobriram? - perguntei.
- Estavam a estudar os efeitos da oração em pessoas com
problemas médicos e descobriram que os pacientes que eram
regularmente objecto das orações de outras pessoas tinha menos
complicações e melhoravam mais depressa, mesmo quando não
tinham consciência das orações. É uma prova irrefutável de que
o poder da oração é real. Mas também descobriram outra coisa.
Descobriram que a oração mais eficiente é estruturada não como
um pedido, mas como uma afirmação.
- Não tenho a certeza de estar a perceber - disse eu.
Ele estava a olhar-me fixamente, com olhos de um azul
cristalino.
- Prepararam o estudo para testar dois tipos de oração. O
primeiro limitava-se a pedir a Deus, ou ao divino, para
intervir, para ajudar uma pessoa doente. O outro afirmava
simplesmente, com fé, que Deus iria ajudar essa pessoa. Está a
ver a diferença?
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- Ainda não tenho bem a certeza.
- Uma oração que pede a intervenção de Deus assume que Deus
pode intervir, mas apenas se decidir satisfazer o nosso
pedido. Assume que o nosso único papel é pedir. A outra forma
de oração assume que Deus está pronto e disponível, mas criou
as leis da existência humana de tal forma que a realização do
nosso pedido depende, em boa parte, na certeza da nossa crença
de que isso será feito. Assim, a nossa oração deve ser uma
afirmação que dá expressão a esta fé. No estudo, este tipo de
oração mostrou ser mais eficiente.
Acenei. Estava a começar a perceber.
O homem desviou o olhar, como se estivesse a pensar para si
mesmo, e depois prosseguiu.
- Nenhuma das grandes orações da Bíblia é um pedido, são
todas afirmações. Pense no Pai-Nosso. Diz, Seja feita a vossa
vontade, assim na Terra como no Céu. O pão nosso de cada dia
nos dai hoje e perdoai-nos as nossas ofensas. Não diz por
favor, pode dar-nos comida, e não diz por favor, pode
perdoar-nos. Afirma apenas que estas coisas estão já prestes a
acontecer e, ao assumirmos com fé que elas vão acontecer,
tornamo-las reais.
Fez outra pausa, como se esperasse uma pergunta, ainda a
sorrir.
Tive de sorrir também. A sua boa disposição era contagiante.
- Alguns cientistas sugerem - prosseguiu ele - que estas
descobertas implicam algo mais, qualquer coisa que tem um
significado profundo para todos os seres vivos. Eles afirmam
que se as nossas expectativas, os anseios da nossa fé, são o
que faz a oração funcionar, nesse caso cada um de nós irradia
constantemente uma força de energia-oração para o mundo, quer
nos apercebamos disso ou não. Está a ver em que medida isto é
verdade?
Continuou sem esperar que eu respondesse.
- Se a oração é uma afirmação baseada nas nossas
expectativas, na nossa fé, então todas as nossas expectativas
têm o efeito de uma oração. Na realidade, estamos sempre a
rezar por um determinado futuro para nós mesmos e para os
outros, apenas não nos apercebemos completamente disso.
Olhou para mim como se tivesse acabado de largar uma
granada.
- Já imaginou? - continuou ele -, A ciência está agora a
confirmar as afirmações da mística mais esotérica de todas as
religiões. Todas elas dizem que nós temos uma influência
mental e espiritual sobre aquilo que acontece nas nossas
vidas. Lembre-se das escrituras, que nos dizem que a fé pode
mover montanhas. E se esta capacidade for o segredo do
verdadeiro sucesso na vida, da criação de uma verdadeira
comunidade? - Os olhos dele brilharam, como se ele soubesse
mais do que estava a dizer. - Todos temos de compreender como
é que isto funciona. Está na hora.
Estava a devolver o sorriso a este homem, intrigado por
aquilo que ele estava a dizer, ainda admirado pela
transformação no ambiente à volta da piscina, quando
instintivamente olhei para a esquerda, como fazemos quando
sentimos alguém a olhar para nós. Apercebi-me de um dos
empregados da piscina junto à porta de entrada, a observar-me
fixamente. Quando os nossos olhares se encontraram, ele
desviou rapidamente o olhar e começou a recuar pelo passeio
que levava a um elevador.
- Desculpe-me, cavalheiro - disse uma voz atrás de mim.
Quando me voltei, vi que era outro empregado.
- Posso servir-lhe uma bebida? - perguntou.
- Não... obrigado - respondi. - Vou esperar mais um pouco.
Quando tornei a olhar para o homem no passeio, este já tinha
desaparecido. Durante um momento inspeccionei a zona,
procurando-o. Quando finalmente olhei para a minha direita,
para onde o homem moreno tinha estado sentado, também ele
tinha desaparecido.
Levantei-me e perguntei ao homem da mesa à minha frente se
vira que caminho o homem do jornal tinha seguido. Ele abanou a
cabeça e desviou abruptamente o rosto. Passei o resto da
tarde no meu quarto. Os acontecimentos na piscina eram
desconcertantes. Quem era aquele homem, a falar-me de orações?
Esta informação envolveria uma sincronicidade? E porque é que
o empregado estava a observar-me? E onde estaria o Wil?
Por volta do pôr do Sol, depois de uma longa sesta, voltei a
sair, decidido a descer a rua alguns quarteirões, até um
restaurante ao ar livre que um dos hóspedes tinha mencionado.
30 - 31
- Muito perto. Perfeitamente seguro - disse o porteiro de
óculos quando lhe perguntei como ir até lá. - Não há problema.
Saí do vestíbulo para a luz cada vez mais escassa,
mantendo-me atento a sinais do Wil. A rua estava cheia de
gente e eu fui abrindo caminho. Quando cheguei ao restaurante,
deram-me uma pequena mesa de canto, perto de uma vedação de
ferro forjado com mais de um metro e vinte, que separava a
zona de refeições da rua. Jantei com vagar e li um jornal
inglês, ocupando a mesa por mais de uma hora.
A certa altura comecei a sentir-me desconfortável. Sentia-me
como se estivesse novamente a ser observado, só que não
conseguia ver ninguém a olhar para mim. Olhei para as outras
mesas, mas ninguém parecia estar a prestar-me a mínima
atenção. Levantando-me, olhei por cima da vedação para as
pessoas na rua. Nada. Lutando para afastar esta sensação,
paguei a conta e voltei para o hotel.
Quando me aproximava da entrada, avistei um homem junto a
uma fileira de arbustos, cerca de seis metros à minha
esquerda. Os nossos olhares cruzaram-se e ele deu um passo na
minha direcção. Desviei o olhar; ia a passar por ele quando me
apercebi que era o empregado que estava a olhar para mim na
piscina, só que agora calçava ténis e trazia calças de ganga
com uma t-shirt azul lisa. Parecia ter perto de trinta anos,
com olhos muito sérios. Apressei o meu passo.
- Desculpe-me, senhor - exclamou.
Eu continuei a andar.
- Por favor - disse ele. - Tenho de falar consigo.
Avancei mais alguns metros para estar à vista do porteiro e
dos paquetes e depois perguntei:
- O que é?
Ele aproximou-se, fazendo uma vénia ligeira. - Creio que o
senhor é quem eu vim procurar. Conhece o senhor Wilson James?
- Wil? Sim. Onde está ele?
- Ele não pode vir. Pediu-me que viesse esperá-lo.
Estendeu-me a mão, que eu aceitei com relutância,
dizendo-lhe o meu nome.
- Eu sou Yin Doloe - respondeu.
- Está empregado aqui no hotel? - perguntei.
- Não, lamento. Um amigo trabalha aqui. Ele emprestou-me um
casaco, para eu poder espreitar. Queria ver se o senhor estava
aqui.
Olhei para ele de mais perto. O meu instinto dizia-me que
ele estava a dizer a verdade. Mas porquê o secretismo? Porque
é que ele não foi ter comigo à piscina e me perguntou quem eu
era?
- O que é que reteve o Wil? - perguntei.
- Não tenho a certeza. Ele pediu para eu me encontrar
consigo e levá-lo a Lhasa. O seu plano, creio, é encontrar-se
connosco lá.
Virei a cara. As coisas começavam a parecer ameaçadoras.
Olhei novamente para ele e depois disse:
- Não sei se quero fazer isso. Porque é que o Wil não me
telefonou, ele mesmo?
- Tenho a certeza que há uma razão importante - respondeu
Yin, dando um passo na minha direcção. - Wil insistiu muito
para que eu o levasse. Ele precisa de si.
Os olhos de Yin imploravam.
- Podemos partir amanhã?
- Vamos fazer o seguinte - disse eu. - Porque é que não
entras para tomarmos um café e discutirmos a situação?
Ele olhou em redor, como se receasse alguma coisa. - Por
favor, voltarei às oito, amanhã de manhã. Wil tratou do voo e
do visto para si.
Sorriu e depois partiu rapidamente, antes que eu tivesse
tempo de protestar.
7:55 saí à porta do vestíbulo principal apenas com uma
sacola. O hotel concordara guardar tudo o mais. O meu plano
era regressar dentro de uma semana - a menos, é claro, que
qualquer coisa de estranho acontecesse depois de sair com Yin.
Nesse caso, regressaria imediatamente.
Exactamente à hora marcada, Yin chegou num velho Toyota e
seguimos para o aeroporto. Durante o caminho ele foi cordial,
mas continuou a declarar-se desconhecedor do que se passava
com o Wil. Pensei contar-lhe o que a Natalie me tinha dito
sobre aquele misterioso lugar na Ásia Central e o que o Wil me
tinha contado no meu quarto, só para ver a sua reacção.
32 - 33
Mas decidi não o fazer. É melhor observar o Yin atentamente,
pensei, e ver o aspecto das coisas no aeroporto.
No balcão dos bilhetes, soube que um lugar tinha de facto
sido comprado em meu nome num voo para Lhasa. Olhei à minha
volta e tentei avaliar a situação. Parecia tudo normal. Yin
estava a sorrir, obviamente bem disposto. Infelizmente a
empregada dos bilhetes não estava. Só conhecia algumas
palavras em inglês e era muito exigente. Quando me pediu o meu
passaporte, fiquei ainda mais irritado e respondi-lhe com
brusquidão. A dada altura ela parou e olhou-me friamente, como
se fosse simplesmente recusar emitir os bilhetes.
Yin acorreu rapidamente e falou com ela numa voz calma, no
seu nepalês nativo. Após alguns minutos a sua compostura
começou a mudar. Não voltou a olhar para mim, mas falou de
forma agradável com Yin, chegando a rir com alguma coisa que
ele disse. Alguns minutos depois tínhamos os nossos bilhetes e
cartões de embarque e estávamos sentados a uma pequena mesa
num café perto da nossa porta. Por todo o lado sentia-se o
cheiro forte de cigarros.
- Tem muita raiva - disse Yin. - E não usa muito bem a sua
energia.
Fui apanhado de surpresa: - Do que estás a falar?
Ele olhou para mim com simpatia. - Quero dizer, não fez nada
para ajudar a mulher do balcão com o seu humor.
Soube imediatamente o que ele estava a sugerir. No Peru, a
Oitava Revelação descrevia um método de animar os outros,
concentrando-nos no rosto deles de uma forma particular.
- Conheces as Revelações? - perguntei.
Yin acenou, continuando a olhar para mim. - Sim - disse. -
Mas há mais.
- Não é fácil lembrarmo-nos de transmitir a energia -
acrescentei, na defensiva.
Com um tom bem medido, Yin disse:
- Mas tem de compreender que, de qualquer maneira, já está a
influenciar os outros com a sua energia, quer se aperceba
disso ou não. O que é importante é a forma como coloca o
seu... campo de... de...
Yin esforçou-se por encontrar a palavra inglesa.
- Campo de intenção - disse finalmente. - O seu campo de
oração.
Olhei para ele com força. Yin parecia estar a descrever a
oração da mesma forma que o homem moreno o fizera.
- Do que é que estás a falar, exactamente? - perguntei.
- Alguma vez esteve numa sala cheia de gente onde a energia
e o humor estão em baixo e depois surge alguém que aumenta
imediatamente a energia de todos, simplesmente por entrar na
sala? O campo de energia dessa pessoa vai à sua frente e
afecta toda a gente.
- Sim - respondi. - Sei o que queres dizer.
O seu olhar penetrou em mim. - Se quer encontrar Shambhala,
tem de aprender a fazer isso conscientemente.
- Shambhala? Do que é que estás a falar?
O rosto de Yin ficou pálido, ostentando uma expressão de
embaraço. Abanou a cabeça, aparentemente sentindo que tinha
dito mais do que devia.
- Esqueça - disse baixinho. - Não é da minha competência.
Wil irá explicar-lhe isto.
Estava a formar-se uma fila para entrar no avião; Yin
afastou-se e avançou para a hospedeira que recebia os
bilhetes.
Fazia um enorme esforço mental, tentando localizar a palavra
Shambhala. Finalmente ocorreu-me. Shambhala era a mítica
comunidade da tradição budista tibetana, aquela que dera
origem às histórias sobre Shangri-La.
Olhei para Yin. - Esse lugar é um mito... certo?
Yin limitou-se a entregar o bilhete à hospedeira e seguiu
pela passagem.
No voo para Lhasa, Yin e eu sentámo-nos em secções
diferentes do avião, o que me deu tempo para pensar. Tudo o
que eu sabia sobre Shambhala era que este local tinha grande
significado para os budistas tibetanos, cujos antigos escritos
o descreviam como uma cidade sagrada de diamantes e ouro,
cheia de fiéis e lamas - e escondida algures nas vastas
regiões inabitáveis do norte do Tibete ou da China. Mais
recentemente, no entanto, a maior parte dos budistas parecia
falar de Shambhala em termos meramente simbólicos,
representando um estado mental espiritual, não uma localização
real.
34 - 35
Estendi a mão e tirei um folheto turístico sobre o Tibete da
bolsa nas costas do assento, esperando refrescar os meus
conhecimentos sobre a sua geografia. Entalado entre a China, a
norte, e a Índia e o Nepal, a sul, o Tibete é basicamente um
grande planalto com poucas áreas abaixo dos mil e oitocentos
metros. Na sua fronteira sul ficam os imponentes Himalaias,
incluindo o monte Evereste, e na fronteira norte, no interior
da China, ficam as grandes montanhas Kunlun. Entre eles há
gargantas profundas, rios bravios e centenas de quilómetros
quadrados de tundra rochosa. A julgar pelo mapa, o Tibete
oriental parecia ser mais fértil e densamente povoado,
enquanto que o norte e o oeste pareciam áridos e montanhosos,
com poucas estradas, todas elas de terra batida.
Aparentemente existem apenas dois grandes percursos para o
Tibete ocidental - a estrada do norte, usada principalmente
por camionistas, e a estrada do sul, que rodeia os Himalaias e
é usada por peregrinos de toda a região para chegarem aos
locais sagrados do Evereste, lago Manasarovar e monte Kailash
e, mais para a frente, para as misteriosas Kunlun.
Interrompi a minha leitura. Voando a trinta e cinco mil pés,
comecei a sentir uma nítida variação na temperatura e energia
exteriores. Abaixo de mim, erguiam-se os pináculos gelados e
rochosos dos Himalaias, enquadrados por um céu azul sem
nuvens. Voámos praticamente por cima do cume do monte Evereste
quando entrámos no espaço aéreo do Tibete - a terra das neves,
o tecto do mundo. Era uma nação de pessoas em demanda,
viajantes interiores, e quando olhei para os vales verdejantes
e planícies rochosas rodeados de montanhas, não pude deixar de
me sentir atemorizado pelo seu mistério. Infelizmente era
brutalmente administrada por um governo totalitário. O que é
que eu, perguntei a mim mesmo, estava a fazer aqui?
Olhei para trás, para Yin, sentado quatro filas atrás de
mim. Incomodava-me que ele fosse tão discreto. Decidi
novamente ser muito cauteloso. Não me afastaria de Lhasa sem
uma explicação completa.
Quando chegámos ao aeroporto, Yin resistiu a todas as minhas
perguntas sobre Shambhala, repetindo a sua afirmação de que em
breve nos encontraríamos com Wil e que, nessa altura, eu
saberia tudo. Apanhámos um táxi e seguimos para um pequeno
hotel perto do centro da cidade, onde o Wil estaria à nossa
espera.
Apercebi-me de Yin a olhar fixamente para mim.
- O que foi? - perguntei.
- Estava apenas a verificar se se adaptava bem à altitude -
respondeu Yin. - Lhasa fica três mil metros acima do nível do
mar. Durante uns tempos tem de ir com calma.
Concordei com um aceno de cabeça, apreciando a preocupação,
mas, no passado, eu sempre me adaptara facilmente a grandes
altitudes. Estava prestes a referir isso quando avistei uma
enorme estrutura semelhante a uma fortaleza, ao longe.
- Este é o palácio de Potala - disse Yin. - Queria que o
visse. Foi a residência de Inverno do Dalai Lama antes de ser
exilado. Agora simboliza a luta do povo tibetano contra a
ocupação chinesa.
Afastou o olhar e ficou silencioso até o carro parar, não em
frente do hotel, mas sim uns cem metros mais à frente.
- Wil já devia estar aqui - disse Yin quando abriu a porta.
- Espere no táxi. Eu vou verificar.
Mas, em vez de sair, ele parou e fixou a entrada. Vi o olhar
dele e olhei também nessa direcção. A rua estava cheia de
peões tibetanos e alguns turistas, mas tudo parecia normal.
Depois os meus olhos caíram sobre um homem baixo, chinês,
perto da esquina do edifício. Tinha na mão um papel qualquer,
mas os seus olhos inspeccionavam cuidadosamente a área.
Yin olhou para os carros estacionados junto ao passeio em
frente do homem, do outro lado da rua. O seu olhar deteve-se
num velho carro castanho com vários homens de fato.
Yin disse qualquer coisa ao condutor do táxi, que olhou
nervosamente para nós no espelho retrovisor e arrancou para o
próximo cruzamento. Enquanto seguíamos, Yin debruçou-se para
não ser visto pelos homens no carro.
- O que se passa? - perguntei.
Yin ignorou-me, dizendo ao condutor para virar à esquerda e
seguir para o centro da cidade.
Agarrei-lhe no braço.
- Yin, diz-me o que se passa. Quem eram aqueles homens?
36 - 37
- Não sei - disse ele. - Mas Wil já não estaria lá. Há um
outro sítio para onde eu penso que ele poderia ir. Veja se
estamos a ser seguidos.
Olhei para trás, enquanto Yin dava mais instruções ao
taxista. Vários carros surgiram atrás de nós mas depois
viraram noutras direcções. Não havia sinais do carro castanho.
- Vê alguém aí atrás? - perguntou Yin, virando-se para olhar
ele mesmo.
- Não me parece - respondi.
Estava prestes a interrogar Yin novamente acerca do que se
estava a passar quando notei que as mãos dele estavam a
tremer. Olhei bem para o seu rosto. Estava pálido e coberto de
suor. Percebi que ele devia estar aterrorizado. Essa visão
lançou um arrepio de medo pelo meu corpo.
Antes que eu pudesse falar, Yin indicou ao taxista um lugar
para estacionar e empurrou-me para fora do carro com a minha
sacola, conduzindo-me por uma rua lateral e depois para um
beco estreito. Depois de caminharmos uns trinta metros,
encostámo-nos à parede de um edifício e esperámos vários
minutos, de olhar pregado na entrada da rua que acabáramos de
deixar. Nenhum de nós disse uma palavra.
Quando lhe pareceu que não estávamos a ser seguidos, Yin
seguiu pelo beco até ao próximo edifício e bateu várias vezes.
Não houve resposta, mas a tranca da porta abriu-se
misteriosamente no interior - Espere aqui - ordenou Yin,
abrindo a porta. - Eu já volto.
Entrou silenciosamente no edifício e fechou a porta. Quando
a ouvi a trancar-se, fui tomado por uma onda de pânico. "E
agora?", pensei. Yin estava assustado. Iria abandonar-me aqui
fora? Olhei para trás, para o beco, e na direcção da rua
apinhada. Era exactamente isto o que eu mais receava. Alguém
parecia andar à procura do Yin e talvez também do Wil. Não
fazia ideia daquilo em que podia estar a envolver-me.
Talvez fosse melhor se Yin desaparecesse mesmo, pensei.
Assim podia voltar a correr para a rua e esconder-me no meio
da multidão até descobrir o caminho de regresso ao aeroporto.
Que mais podia eu fazer, a não ser voltar para casa? Estaria
absolvido de qualquer responsabilidade de procurar o Wil ou
fazer qualquer outra coisa nesta desventura.
A porta abriu-se subitamente, Yin deslizou para fora e a
porta trancou-se rapidamente.
- Wil deixou uma mensagem - declarou Yin. - Venha.
Caminhámos um pouco mais pelo beco e escondemo-nos entre
dois grandes contentores do lixo, enquanto Yin abria um
envelope e retirava de lá um bilhete. Observei-o enquanto ele
lia. O seu rosto pareceu ficar ainda mais branco. Quando
terminou, estendeu-me o bilhete.
- O que diz? - perguntei, agarrando o papel. Reconheci a
caligrafia do Wil enquanto lia:
Yin, estou convencido que nos autorizaram a entrar em
Shambhala. Mas tenho de prosseguir. É da máxima importância
que tragas o nosso amigo americano tão longe quanto puderes.
Sabes que os dakini guiar-te-ão.
Wil
Olhei para Yin, que me observou durante um momento e depois
virou o rosto. - O que quer ele dizer com autorizados a entrar
em Shambhala? Está a falar figurativamente, certo? Ele não
pensa que é um lugar real, pois não?
Yin estava a olhar fixamente para o chão.
- É claro que Wil pensa que é um lugar real - sussurrou.
- E tu? - perguntei.
Ele afastou novamente os olhos, parecendo que o peso do
mundo caíra sobre os seus ombros.
- Sim... sim... - disse ele. - Só que para a maioria das
pessoas é impossível sequer conceber esse lugar, quanto mais
chegar lá. Certamente você e eu não podemos... - A voz dele
sumiu-se no silêncio.
- Yin - repliquei. - Tens de me dizer o que se passa. O que
é que o Wil anda a fazer? Quem são os homens que viste no
hotel?
Yin observou-me durante um momento e depois disse:
- Acho que são agentes da espionagem chinesa.
- O quê?
- Não sei o que estão aqui a fazer. Aparentemente foram
alertados por toda esta actividade e conversa acerca de
Shambhala.
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Muitos dos lamas daqui aperceberam-se que alguma coisa está a
mudar neste lugar sagrado. Tem havido muita discussão.
- A mudar de que maneira? Diz-me.
Yin respirou fundo. - Queria deixar o Wil explicar isto...
mas suponho que tenho de tentar. Tem de compreender o que é
Shambhala. O seu povo são seres humanos vivos, nascidos
naquele lugar sagrado, mas estão num grau evolutivo mais
avançado. Ajudam a sustentar a energia e a visão do mundo
inteiro.
Desviei o meu olhar, pensando na Décima Revelação. - São uma
espécie de guias espirituais?
- Não da maneira que você pensa - retorquiu Yin. - Não são
como os familiares ou almas do outro mundo, que nos podem
ajudar a partir dessa dimensão. São seres humanos que vivem
aqui na Terra. Os habitantes de Shambhala têm uma comunidade
extraordinária e vivem num estádio mais elevado de
desenvolvimento. São um modelo daquilo que o resto do mundo
acabará por alcançar.
- Onde fica esse lugar?
- Não sei.
- Conheces alguém que o tenha visto?
- Não. Quando era criança, estudei com um grande lama, que
me declarou um dia que ia para Shambhala e, após dias de
celebração, partiu.
- Ele chegou lá?
- Ninguém sabe. Desapareceu e nunca mais foi visto no
Tibete.
- Nesse caso ninguém sabe realmente se ele existe ou não.
Yin ficou silencioso por um momento e depois disse:
- Nós temos as lendas...
- Nós quem?
Ele olhou para mim. Conseguia ver que ele estava limitado
por algum tipo de código de silêncio.
- Não posso dizer-lhe isso. Apenas o líder da nossa seita, o
Lama Rigden, poderia decidir falar consigo.
- Que lendas são essas?
- Apenas posso dizer-lhe isto: as lendas são as narrativas
deixadas por aqueles que tentaram chegar a Shambhala no
passado. Têm séculos.
Yin estava prestes a dizer mais qualquer coisa quando um som
vindo da rua atraiu a nossa atenção. Olhámos atentamente mas
não vimos ninguém.
- Espere aqui - disse Yin.
Mais uma vez Yin bateu à porta e desapareceu lá dentro.
Igualmente depressa saiu e seguiu até junto dum velho jipe
ferrugento com um tejadilho de tecido rasgado. Abriu a porta e
fez-me sinal para entrar.
- Venha - chamou ele. - Temos de nos apressar.
40 - 41
2.
O CHAMAMENTO DE SHAMBHALA
Yin conduziu para fora de Lhasa. Eu mantive-me em
silêncio, olhando para as montanhas e perguntando a mim mesmo
o que o Wil queria dizer com a sua nota. Porque tinha ele
decidido seguir sozinho? E quem eram os dakini? Ia fazer essa
pergunta a Yin quando um camião militar chinês atravessou o
cruzamento à nossa frente.
A visão provocou em mim um sobressalto e senti uma onda de
nervosismo a encher o meu corpo. O que estava eu a fazer?
Tínhamos acabado de ver agentes da espionagem a vigiar o hotel
onde era suposto encontrarmo-nos com o Wil. Podiam estar à
nossa procura.
- Espera um minuto, Yin - disse eu. - Quero ir para um
aeroporto. Tudo isto parece-me demasiado perigoso.
Yin olhou para mim, alarmado.
- E o Wil? - perguntou. - Você leu o bilhete. Ele precisa de
si.
- Sim, bem, ele está habituado a este tipo de coisa. Não
tenho a certeza que ele quisesse que eu me pusesse em perigo
desta maneira.
- Já está em perigo. Temos de sair de Lhasa.
- Para onde vamos? - perguntei.
- Para o mosteiro do Lama Rigden, perto de Shigatse. Será
noite quando lá chegarmos.
- Há lá um telefone? - perguntei.
- Sim - retorquiu Yin. - Creio que sim, se estiver a
funcionar.
Acenei e Yin voltou a concentrar-se na estrada.
Tudo bem, pensei. Não haverá problema em afastar-me daqui,
antes de tratar do meu regresso a casa.
43
Durante horas seguimos aos solavancos pela estrada mal
pavimentada, ultrapassando camiões e carros velhos pelo
caminho. O cenário era uma mistura de feias zonas industriais
e bonitas paisagens. Bem depois de anoitecer, Yin parou no
pátio de uma casa pequena de betão. Um grande cão lanzudo
estava preso junto a uma oficina, à direita, ladrando
furiosamente.
- É a casa do Lama Rigden? - perguntei.
- Não, claro que não - respondeu Yin. - Mas conheço as
pessoas aqui. Podemos arranjar comida e gasolina, poderemos
precisar delas mais tarde. Eu volto já.
Observei Yin a subir os degraus de madeira e bater à porta.
Uma mulher tibetana idosa saiu e imediatamente prendeu Yin num
grande abraço. Yin apontou para mim, sorriu e disse qualquer
coisa que eu não consegui entender. Fez-me sinal, eu saí e
caminhei até à casa.
Um momento mais tarde ouvimos o guincho suave dos travões de
um carro lá fora. Yin correu para a janela e abriu as cortinas
para ver. Eu estava logo atrás dele. Na escuridão, via um
carro preto sem sinais, parado na berma da estrada do outro
lado da entrada esburacada, a trinta metros de distância.
- Quem são? - perguntei.
- Não sei - respondeu Yin. - Saia e vá buscar as nossas
malas, rápido.
Olhei para ele interrogativamente.
- Está tudo bem - disse ele. - Vá buscá-las, mas ande
depressa.
Saí de casa e caminhei até ao jipe, tentando não olhar para
o carro ao longe. Estendi o braço pela janela aberta, agarrei
a minha sacola e a mochila de Yin e depois voltei rapidamente
para dentro. Yin estava ainda a observar pela janela.
- Oh, bolas - disse ele subitamente. - Eles vêm aí.
Uma explosão de luz dos faróis iluminou a janela quando o
carro acelerou em direcção à casa. Tirando-me a mochila com
uma mão, Yin avançou para a porta das traseiras e para a
escuridão.
- Temos de seguir por aqui - gritou-me Yin enquanto seguia
por um carreiro que conduzia a um grupo de montes rochosos
baixos. Olhei para trás para a casa e vi, horrorizado, agentes
à paisana a saírem do carro e a rodearem a residência. Outro
carro que não tínhamos visto surgiu por um dos lados da casa;
mais homens saltaram dele e começaram a correr encosta acima
para a nossa direita. Eu sabia que, se continuássemos na
direcção que estávamos a seguir, eles nos apanhariam em poucos
minutos.
- Yin, espera um minuto - disse eu, num sussurro bem
audível. - Eles estão a cortar-nos o caminho.
Ele parou e pôs o rosto muito próximo do meu na escuridão.
- Para a esquerda - disse ele. - Vamos contorná-los.
Enquanto ele dizia isto, apercebi-me dos outros agentes a
correrem nessa direcção. Se seguíssemos o percurso que o Yin
indicava, seríamos seguramente vistos.
Olhei directamente para a parte mais íngreme da encosta.
Qualquer coisa chamou-me a atenção. Uma parte ténue do
carreiro estava visível, mais clara.
- Não, temos de subir a direito - disse eu instintivamente,
avançando nessa direcção. Yin atrasou-se um instante e,
depois, seguiu-me apressadamente. Abrimos caminho em direcção
às rochas, com os agentes a aproximarem-se pela nossa direita.
No cimo da elevação, um agente parecia estar mesmo em cima
de nós e, por isso, agachámo-nos entre dois grandes rochedos.
A área à nossa volta estava ainda perceptivelmente mais
luminosa. O homem não estava a mais de dez metros, avançando
para onde nos veria melhor. Depois, ao aproximar-se do limite
do brilho suave, a segundos de nos ver, parou abruptamente e
começou novamente a avançar, depois parou uma outra vez, como
se, subitamente, tivesse tido outra ideia. Sem dar mais um
passo, voltou-se e correu encosta abaixo.
Alguns momentos depois perguntei a Yin, num murmúrio, se ele
pensava que o agente nos tinha visto.
- Não - respondeu Yin. - Não me parece. Venha.
Trepámos a colina durante mais dez minutos, antes de
pararmos num precipício pedregoso para olharmos para a casa.
Conseguíamos ver mais carros de aspecto oficial a pararem
junto dela. Um deles era um velho carro da polícia, com uma
luz rotativa vermelha. A cena encheu-me de terror. Já não
havia dúvida de que esta gente andava atrás de nós.
44 - 45
Yin estava também a olhar ansiosamente para a casa, com as
mãos novamente a tremerem.
- O que é que eles vão fazer com a tua amiga? - perguntei,
horrorizado com aquilo que ele poderia dizer.
Yin olhou para mim com os olhos cheios de lágrimas e fúria,
depois continuou monte acima. Caminhámos durante várias
horas, abrindo caminho sob a luz de uma lua fraca e
periodicamente obscurecida pelas nuvens. Queria interrogar Yin
acerca das lendas que referira, mas ele continuava zangado e
taciturno. No cimo da colina, Yin parou e anunciou que
devíamos descansar. Ao sentar-me sobre uma rocha próxima, ele
afastou-se uns quatro metros para o meio da escuridão e ficou
de costas para mim.
- Como é que tinha tanta certeza - perguntou sem se voltar -
que devíamos subir a direito naquela colina lá atrás?
Respirei fundo.
- Vi qualquer coisa - gaguejei. - A zona estava, de alguma
forma, mais luminosa. Pareceu-me ser o caminho certo.
Ele virou-se, veio até junto de mim e sentou-se no chão à
minha frente.
- Alguma vez tinha visto uma coisa assim, antes?
Tentei afastar a minha ansiedade. O meu coração batia com
força e eu mal conseguia falar.
- Sim, já - respondi. - Várias vezes, recentemente.
Ele afastou os olhos e ficou silencioso.
- Yin, sabes o que está a acontecer?
- As lendas diriam que estamos a ser ajudados.
- Ajudados por quem?
Mais uma vez ele virou o rosto.
- Yin, diz-me o que sabes sobre isto.
Ele não respondeu.
- São os dakini que o Wil referia no seu bilhete?
Continuou a não haver resposta.
Comecei a sentir-me furioso. - Yin! Conta-me o que sabes.
Ele levantou-se rapidamente e olhou para mim sombriamente.
- Há coisas de que não podemos falar. Não compreende? Só o
facto de mencionar os nomes destes seres de forma frívola pode
deixar um homem mudo durante anos, ou cego. Eles são os
guardiões de Shambhala.
Marchou com intensidade até uma rocha plana, estendeu o
casaco e deitou-se.
Sentia-me igualmente exausto, incapaz de pensar.
- Temos de dormir - disse Yin. - Por favor, saberá mais
amanhã.
Olhei para ele durante mais um momento, depois deitei-me
sobre a rocha onde estava sentado e mergulhei num sono
profundo.
* * *
Fui despertado por um cone de luz a erguer-se entre dois
picos montanhosos ao longe. Olhando em redor, apercebi-me que
Yin tinha desaparecido. Levantei-me de um salto e procurei na
zona circundante, com dores por todo o corpo. Não via Yin em
lado algum.
Maldição, pensei. Não tinha forma de saber onde estava. Fui
atravessado por uma profunda onda de ansiedade. Esperei mais
trinta minutos, olhando para as colinas rochosas castanhas com
pequenos vales de relva verde, e ele continuou sem regressar.
Depois ergui-me e notei, pela primeira vez, que ao fundo da
encosta, a cerca de cento e vinte metros, estava uma estrada
de terra batida. Agarrei a minha sacola, desci por entre as
rochas até chegar à estrada e depois segui para norte. Tanto
quanto me conseguia lembrar, era essa a direcção de Lhasa.
Tinha andado pouco mais de um quilómetro quando me apercebi
que quatro ou cinco pessoas seguiam na mesma direcção, a menos
de quinhentos passos atrás de mim. Saí imediatamente da
estrada e subi para o cimo das rochas, de modo a estar
escondido mas conseguir ainda vê-las passar. Quando chegaram
junto de mim, vi que era uma família constituída por um velho,
um homem e uma mulher de uns trinta anos e dois rapazes
adolescentes. Traziam grandes sacos e o homem mais novo puxava
um carro carregado com as suas posses.
46 - 47
Pareciam refugiados.
Pensei em aproximar-me deles e pelo menos informar-me do
caminho a seguir, mas decidi não o fazer. Receava que eles
pudessem denunciar-me mais tarde e por isso deixei-os passar.
Esperei mais vinte minutos e depois avancei cautelosamente na
mesma direcção. Durante cerca de três quilómetros a estrada
serpenteou por entre as pequenas colinas e planaltos rochosos
até que, ao longe, no cimo de uma das colinas, avistei um
mosteiro. Saí da estrada e trepei por entre as rochas até
estar a duzentos metros dele. Era feito de tijolos cor de
areia, com o telhado plano pintado de castanho, e tinha duas
alas, uma de cada lado de um edifício principal.
Não via qualquer movimento e, a princípio, pensei que o
lugar estivesse vazio. Mas depois a porta frontal abriu-se e
vi um monge, vestido com um manto vermelho vivo, sair e
começar a trabalhar no jardim, perto de uma árvore solitária à
direita do edifício.
Ele parecia razoavelmente inofensivo, mas decidi não
arriscar. Voltei à estrada de terra batida, atravessei-a e
contornei o mosteiro pela esquerda, até o ter deixado bem para
trás. Depois segui novamente pela estrada, com cuidado,
parando apenas para tirar o casaco. O sol estava a pique e era
surpreendentemente quente.
Depois de quilómetro e meio, estava prestes a ultrapassar
uma pequena elevação na estrada quando ouvi qualquer coisa.
Corri para o meio das rochas e fiquei à escuta. A princípio
pensei que fosse um pássaro, mas lentamente percebi que era
alguém a falar, bem ao longe. Quem?
Com grandes cautelas, subi as rochas até chegar a uma
posição mais elevada, depois espreitei para o pequeno vale
mais abaixo. O meu coração gelou. Por baixo de mim estava um
cruzamento de terra batida onde estavam estacionados três
jipes militares. Uma dúzia de soldados, mais ou menos, estava
por ali, fumando e conversando. Recuei, mantendo-me agachado,
e voltei por onde tinha vindo até encontrar um sítio onde me
esconder, entre dois montículos rochosos.
Dali ouvi qualquer coisa à distância, para lá do bloqueio de
estrada. Era um gemido baixo, a princípio, e depois um
batimento rotativo que reconheci. Um helicóptero.
Em pânico, corri por entre as rochas tão depressa quanto
consegui, para longe da estrada. Atravessei um pequeno regato
e escorreguei, ensopando as calças até aos joelhos.
Levantei-me num salto e recomecei a correr, mas o meu pé
escorregou numa das pedras e eu caí monte abaixo, rasgando as
calças e a perna. Pus-me de pé com dificuldade e continuei a
correr, procurando um esconderijo melhor.
Quando o helicóptero se aproximou, corri sobre outra pequena
elevação e estava a olhar para trás quando alguém me agarrou e
me puxou para dentro de uma pequena fenda. Era Yin. Ficámos
perfeitamente imóveis enquanto o grande helicóptero voava
directamente por cima de nós.
- É um Z-9 - disse Yin. O rosto dele parecia tomado de
pânico, mas via-se que estava também furioso.
- Porque saiu do sítio onde estávamos acampados? -
perguntou, quase aos gritos.
- Tu deixaste-me! - respondi.
- Estive fora menos de uma hora. Devia ter esperado.
O medo e a raiva explodiram em mim.
- Esperado? Porque não me disseste para onde ias?
Ainda não tinha terminado, mas ouvia o helicóptero a virar
ao longe.
- O que vamos fazer? - perguntei a Yin. - Não podemos ficar
aqui.
- Voltamos ao mosteiro - disse ele. - Foi lá que eu estive.
Acenei com a cabeça, depois levantei-me e procurei o
helicóptero. Felizmente estava a virar para norte. Ao mesmo
tempo, outra coisa chamou a minha atenção. Era o monge que eu
tinha visto antes, descendo a vala na nossa direcção.
Avançou até nós e disse qualquer coisa a Yin em tibetano e
depois olhou para mim.
- Venha, por favor - disse ele em inglês, agarrando-me e
puxando-me na direcção do mosteiro.
Quando lá chegámos, atravessámos primeiro o portão de um
pátio lateral, passando por muitos tibetanos carregados com
sacos e vários pertences. Alguns deles pareciam muito pobres.
Depois chegámos ao edifício principal do mosteiro; o monge
abriu as grandes portas de madeira e conduziu-nos até uma sala
de entrada, onde estavam reunidos mais tibetanos.
48 - 49
Ao passarmos por eles reconheci um grupo; era a família que
tinha passado por mim na estrada. Eles olharam para mim com
olhos calorosos.
Yin viu-me a olhar para eles e interrogou-me a esse
respeito; eu expliquei-lhe que os tinha visto na estrada.
- Eles estavam lá para o conduzir até aqui - disse Yin. -
Mas você estava demasiado assustado para seguir a
sincronicidade.
Olhou para mim com ar severo e depois continuou a seguir o
monge até um pequeno escritório com prateleiras, secretárias e
vários rolos com orações. Sentámo-nos em redor de uma mesa de
madeira com gravações ornamentais, onde o monge e Yin trocaram
uma longa conversa em tibetano.
- Deixe-me ver a sua perna - pediu outro monge em inglês,
atrás de nós. Trazia um cestinho cheio de ligaduras brancas e
vários frascos com conta-gotas. O rosto de Yin iluminou-se.
- Vocês conhecem-se? - perguntei.
- Por favor - disse o monge, oferecendo-me a mão com uma
ligeira vénia. - Eu sou Jampa.
Yin inclinou-se para mim. - Jampa está com o Lama Rigden há
mais de dez anos.
- Quem é o Lama Rigden?
Jampa e Yin olharam um para o outro, como se não soubessem
bem o que me podiam contar. Finalmente Yin disse:
- Já lhe falei das lendas. O Lama Rigden compreende as
lendas melhor do que qualquer outra pessoa. É um dos maiores
peritos em Shambhala.
- Conte-me exactamente o que aconteceu - disse-me Jampa,
esfregando uma espécie de unguento na minha perna arranhada.
Olhei para Yin, que me fez sinal para obedecer.
- Tenho de informar o Lama do que Lhe aconteceu - explicou
Jampa.
Contei-Lhe tudo o que tinha acontecido desde a minha chegada
a Lhasa. Quando terminei, Jampa olhou para mim.
- E antes de vir para o Tibete? O que aconteceu?
Falei-lhe da filha do meu vizinho e do Wil.
Ele e Yin olharam um para o outro.
- E o que tem estado a pensar? - perguntou Jampa.
- Tenho estado a pensar que estou deslocado aqui - respondi.
- Estou a pensar em seguir para o aeroporto.
- Não, não é isso que eu queria dizer - disse apressadamente
Jampa. - Esta manhã, quando descobriu que Yin tinha partido,
qual foi a sua atitude, o seu estado de espírito?
- Fiquei assustado. Sabia apenas que os chineses me
apanhariam em minutos. Tentei imaginar uma forma de regressar
a Lhasa.
Jampa voltou-se e olhou para Yin, franzindo a testa. - Ele
não conhece os campos de oração.
Yin abanou a cabeça e desviou o olhar.
- Já falámos sobre isso - disse eu. - Mas não tenho a
certeza da sua importância. O que sabe acerca destes
helicópteros? Andam à nossa procura?
Jampa limitou-se a sorrir e disse-me para não me preocupar,
que aqui estaria em segurança. Fomos interrompidos por vários
outros monges a entregarem sopa, pão e chá. Enquanto comíamos,
a minha cabeça pareceu ficar mais lúcida e comecei a avaliar a
situação. Queria saber tudo acerca daquilo que se estava a
passar. Imediatamente.
Olhei para Jampa com determinação e ele respondeu ao meu
olhar com um profundo afecto.
- Sei que tem muitas perguntas - declarou. - Deixe-me
dizer-lhe o que posso. Somos uma seita especial aqui no
Tibete. Atípica. Há muitos séculos que acreditamos que
Shambhala é um lugar real. Também conhecemos as lendas,
sabedoria oral tão antiga como o Kalachakra, que se dedica a
integrar toda a verdade religiosa. Muitos dos nossos lamas
estão em contacto com Shambhala através dos seus sonhos. Há
alguns meses, o seu amigo Wil começou a surgir nos sonhos do
Lama Rigden sobre Shambhala. Pouco tempo depois, Wil foi
conduzido a este mesmo mosteiro. O Lama Rigden aceitou
recebê-lo e descobriu que Wil também tinha sonhado com
Shambhala.
- O que é que o Wil Lhe contou? - perguntei. - Para onde
foi?
Ele abanou a cabeça.
- Receio que tenha de esperar para ver se o Lama Rigden lhe
dará, ele próprio, essa informação.
Olhei para Yin e ele esboçou um sorriso.
50 - 51
- E os chineses? - perguntei a Jampa. - Qual é o
envolvimento deles?
Jampa encolheu os ombros.
- Não sabemos. Talvez eles saibam qualquer coisa acerca do
que se passa.
Acenei com a cabeça.
- Há mais uma coisa - disse Jampa. - Aparentemente, em todos
os sonhos surge mais uma pessoa. Um americano.
Jampa fez uma pausa e inclinou-se ligeiramente.
- O seu amigo Wil não tinha a certeza, mas pensava que era
você.
Depois de tomar banho e de mudar de roupa no quarto que
Jampa me tinha destinado, saí para o pátio das traseiras.
Vários monges trabalhavam numa horta, como se os chineses não
os preocupassem. Olhei para as montanhas e inspeccionei o céu.
Não se viam quaisquer helicópteros.
- Gostaria de se sentar naquele banco ali em cima? - disse
uma voz atrás de mim. Virei-me e vi Yin a sair pela porta.
Concordei e subimos várias plataformas cheias de plantas
ornamentais e vegetais, até chegarmos a uma zona de repouso,
em frente de um complicado santuário budista. Uma grande serra
enquadrava o horizonte atrás de nós, mas para sul tínhamos uma
vista panorâmica da paisagem durante vários quilómetros.
Muitas pessoas caminhavam pelas estradas ou puxavam carrinhos.
- Onde está o Lama? - perguntei.
- Não sei - respondeu Yin. - Ele ainda não aceitou vê-lo.
- Porque não?
Yin abanou a cabeça.
- Não sei.
- Achas que ele sabe onde está o Wil?
Yin abanou novamente a cabeça.
- Achas que os chineses ainda andam à nossa procura? -
perguntei.
Yin limitou-se a encolher os ombros, olhando para o vazio.
52
- Lamento estar com uma energia tão negativa - disse ele. -
Por favor não deixe que ela o influencie. É apenas a minha
raiva a dominar-me. Desde 1954, os chineses têm-se empenhado
em destruir sistematicamente a cultura tibetana. Veja as
pessoas que caminham além. Muitos deles são camponeses que
foram deslocados por causa de iniciativas económicas ordenadas
pelos chineses. Outros são nómadas que estão a morrer de fome
porque estas políticas interferiram com o seu estilo de vida.
- Comprimiu os dois punhos.
- Os chineses estão a fazer a mesma coisa que Estaline fez
na Manchúria, importando milhares de forasteiros para o
Tibete, neste caso chineses étnicos, para alterarem o
equilíbrio cultural e instituírem os hábitos chineses. Exigem
que as nossas escolas apenas ensinem na língua chinesa.
- As pessoas junto aos portões do mosteiro - perguntei. -
Porque vieram para aqui?
- O Lama Rigden e os monges estão a trabalhar para ajudarem
os pobres, que são quem mais sofre com a transição cultural.
Foi por isso que os chineses o deixaram em paz. Ele ajuda a
resolver os problemas sem agitar a população contra eles.
Yin disse isto de uma forma que reflectia um ligeiro
ressentimento contra o Lama, pedindo imediatamente desculpa.
- Não - disse. - Não quero sugerir que o Lama está a ser
demasiado cooperante. Só que aquilo que os chineses estão a
fazer é desprezível.
Fechou novamente os punhos e bateu com eles nos joelhos.
- Muitos pensaram, de início, que o governo chinês
respeitaria os hábitos tibetanos, que poderíamos existir no
interior da nação chinesa sem perdermos tudo. Mas o governo
está decidido a destruir-nos. Isso está claro agora e temos de
começar a tornar-lhes a vida mais difícil.
- Queres tentar lutar contra eles? - perguntei. - Yin, sabes
que não os podes vencer.
- Eu sei, eu sei - declarou ele. - Mas fico tão furioso,
quando penso no que eles estão a fazer. Um dia os guerreiros
de Shambhala cavalgarão para derrotar estes monstros do mal.
- O quê?
53
- É uma profecia do meu povo.
Ele olhou para mim e abanou a cabeça.
- Sei que tenho de dominar a minha raiva. Ela danifica o meu
campo de oração.
Abruptamente levantou-se e acrescentou:
- Vou perguntar ao Jampa se ele falou com o Lama. Por favor
desculpe-me.
Fez uma ligeira vénia e saiu.
Durante alguns instantes fiquei a olhar para a paisagem
tibetana, tentando compreender totalmente os estragos que a
ocupação chinesa tinha provocado. A dada altura pensei mesmo
ter ouvido outro helicóptero, mas estava demasiado longe para
ter a certeza. Sabia que a raiva do Yin era justificada e,
durante vários minutos, pensei nas realidades da situação
política do Tibete. Ocorreu-me a ideia de pedir um telefone e
perguntei a mim mesmo quão difícil seria conseguir uma ligação
internacional.
Estava prestes a erguer-me e seguir para dentro quando me
apercebi que me sentia cansado, por isso respirei fundo duas
vezes e tentei concentrar-me na beleza à minha volta. As
montanhas cobertas de neve e as cores verde e castanho da
paisagem eram fortes e belas e o céu tinha um azul profundo
com apenas algumas nuvens no horizonte para oeste.
Enquanto olhava, apercebi-me de dois monges, vários andares
abaixo de mim, a olharem fixamente na minha direcção. Olhei
para trás, para ver se havia algo lá, mas não vi nada de
invulgar. Sorri na direcção deles.
Após alguns minutos um deles subiu os degraus de pedra na
minha direcção, carregando um cesto cheio de ferramentas
manuais. Quando chegoujunto de mim, acenou delicadamente e
começou a tirar as ervas daninhas de um canteiro de flores,
cinco metros à minha direita. Vários minutos depois
juntou-se-lhe outro monge, que também começou a cavar.
Ocasionalmente olhavam para mim com olhos inquisitivos e
acenos respeitosos.
Respirei fundo mais algumas vezes e concentrei-me novamente
na distância, pensando naquilo que Yin tinha dito em relação
ao seu campo de oração. Ele receava que o seu ódio contra os
chineses danificasse a sua energia. O que queria isso dizer?
Subitamente comecei a sentir mais conscientemente o calor do
sol e o seu brilho, sentindo uma certa paz que não conhecia
desde que aqui chegara. Respirei fundo mais uma vez, com os
olhos fechados e sentindo algo mais, uma fragrância
invulgarmente doce, semelhante a um ramo de flores. A primeira
ideia que me ocorreu foi que os monges tinham cortado alguns
rebentos das plantas em que estavam a trabalhar e os tinham
colocado perto de mim.
Abri os olhos e olhei, mas não havia qualquer flor por
perto. Procurei uma brisa que pudesse ter trazido a fragrância
na minha direcção, mas não havia qualquer movimento no ar.
Notei que os monges tinham largado as ferramentas e estavam a
olhar intensamente para mim, de olhos muito abertos e com as
bocas semi-abertas, como se tivessem visto alguma coisa
estranha. Olhei novamente para trás de mim, tentando perceber
o que se estava a passar. Quando se aperceberam que me tinham
perturbado, reuniram rapidamente as suas ferramentas e cestos
e quase correram pelo carreiro em direcção ao mosteiro.
Segui-os com o olhar durante um momento, observando as suas
vestes vermelhas a agitarem-se e a balançarem enquanto eles
olhavam para trás, para verem se eu estava a observá-los.
* * *
AsSim que desci e entrei no mosteiro, soube que se
passava qualquer coisa. Os monges corriam em todas as
direcções, sussurrando uns para os outros.
Segui por um corredor e entrei no meu quarto, planeando
pedir a Jampa para usar um telefone. O meu humor estava
melhor, mas estava outra vez a pôr em causa o meu instinto de
autopreservação. Estava a deixar-me arrastar por aquilo que se
passava aqui, em vez de tentar sair do país. Quem sabia o que
os chineses poderiam fazer se eu fosse apanhado? Sabiam o meu
nome? Podia até já ser tarde demais para sair pelo ar.
Estava prestes a levantar-me e ir procurar Jampa quando ele
entrou, de rompante, no quarto.
54 - 55
- O Lama aceitou vê-lo - anunciou. - É uma grande honra. Não
se preocupe, ele fala um inglês perfeito.
Eu acenei, sentindo-me um pouco nervoso.
Jampa estava de pé junto à porta, expectante.
- Eu devo acompanhá-lo imediatamente - declarou.
Ergui-me e segui Jampa através de uma sala muito grande, com
um tecto alto, até uma sala mais pequena do outro lado. Cinco
ou seis monges, com rolos de orações e lenços brancos,
observaram-nos ansiosamente a avançar até à frente e a
sentarmo-nos. Yin acenou do canto mais distante.
- Esta é a sala de recepção - disse Jampa.
O interior da sala era de madeira, pintado de azul-claro.
Murais trabalhados à mão e mandalas decoravam as paredes.
Esperámos alguns minutos e depois o Lama entrou. Era mais alto
do que a maioria dos outros monges, mas estava vestido com um
manto vermelho, exactamente como aqueles que eles usavam.
Depois de olhar muito atentamente para todas as pessoas na
sala, fez sinal a Jampa para avançar. As suas testas
tocaram-se e ele murmurou qualquer coisa ao ouvido de Jampa.
Jampa voltou-se imediatamente e fez sinal a todos os outros
monges para o seguirem para fora da sala. Também o Yin começou
a sair mas, ao fazê-lo, olhou para mim e acenou ligeiramente
com a cabeça, um gesto que eu entendi como sendo de apoio para
a conversa eminente. Muitos dos monges entregaram-me os seus
lenços e acenaram animadamente.
Quando a sala ficou vazia, o Lama fez sinal para eu avançar
e sentar-me numa cadeira minúscula à sua direita. Fiz uma
ligeira vénia ao adiantar-me e sentei-me.
- Obrigado por me receber - disse.
Ele acenou com a cabeça e sorriu, observando-me durante
muito tempo.
- Posso perguntar-lhe pelo meu amigo Wilson James? - inquiri
finalmente. - Sabe onde ele está?
- O que sabe acerca de Shambhala? - perguntou por sua vez o
Lama.
- Suponho que sempre pensei nela como um lugar imaginário,
uma fantasia. Sabe, como Shangri-La.
Ele esticou a cabeça e respondeu descontraidamente:
- É um lugar real na Terra, que existe como parte da
comunidade humana.
- Porque é que nunca ninguém descobriu onde fica? E porque
tantos budistas proeminentes falam de Shambhala como um modo
de vida, uma mentalidade?
- Porque Shambhala representa realmente uma forma de ser e
de viver. Pode ser descrita de forma precisa nesses termos.
Mas é também um lugar concreto, onde pessoas verdadeiras
alcançaram esta forma de viver em comunidade umas com as
outras.
- Já lá esteve?
- Não, não, ainda não fui chamado.
- Então como pode ter tanta certeza?
- Porque sonhei com Shambhala muitas vezes, tal como outros
fiéis na Terra. Comparamos os nossos sonhos e eles são tão
semelhantes que sabemos que este tem de ser um lugar real. E
detemos o conhecimento sagrado, as lendas, que explicam a
nossa relação com esta comunidade sagrada.
- Como é essa relação?
- Devemos preservar o conhecimento enquanto esperamos o
momento de Shambhala se revelar e dar-se a conhecer a todos os
povos.
- Yin disse-me que alguns acreditam que os guerreiros de
Shambhala chegarão um dia para derrotar os chineses.
- A raiva do Yin é muito perigosa para ele.
- Ele está enganado, nesse caso?
- Ele está a falar do ponto de vista humano, que vê a
derrota em termos de guerra e de combate físico. Exactamente
de que maneira esta profecia se tornará realidade é ainda
desconhecido. Temos primeiro de compreender Shambhala. Mas
sabemos que esta batalha será de um tipo diferente.
Achei esta última afirmação críptica, mas os seus modos eram
tão compreensivos que me senti mais impressionado do que
confuso.
- Nós acreditamos - continuou o Lama Rigden -, que está
próximo o tempo em que Shambhala se dará a conhecer ao mundo.
- Lama, como podem saber isso?
56 - 57
- Mais uma vez por causa dos nossos sonhos. O seu amigo Wil
esteve aqui, como indubitavelmente já sabe. Recebemos isso
como um grande sinal, porque anteriormente tínhamos sonhado
com ele. Ele cheirou a fragrância e ouviu a frase.
Fui apanhado de surpresa.
- Que tipo de fragrância?
Ele sorriu.
- Aquela que você também cheirou hoje.
Agora tudo fazia sentido. A reacção dos monges e a decisão
do Lama em receber-me.
- Está também a ser chamado - acrescentou. - Receber a
fragrância é algo raro. Só o vi acontecer duas vezes; - uma
vez quando estava com o meu mestre e outra vez quando o seu
amigo Wil aqui esteve. Agora aconteceu novamente, consigo. Não
sabia se devia recebê-lo ou não. É muito perigoso falar destas
coisas com ligeireza. Também ouviu o grito?
- Não - disse eu. - Não compreendo o que é isso.
- É também um chamamento de Shambhala. Continue à escuta de
um som especial. Quando o ouvir, saberá o que é.
- Lama, não tenho a certeza de querer ir seja onde for. Isto
aqui parece ser muito perigoso para mim. Os chineses parecem
saber quem eu sou. Acho que quero voltar para os Estados
Unidos logo que possível. Pode simplesmente dizer-me onde
posso encontrar o Wil? Ele está algures aqui perto?
O Lama abanou a cabeça, parecendo muito triste.
- Não, receio que ele se tenha comprometido a prosseguir.
Fiquei calado e, durante um longo momento, o Lama limitou-se
a olhar para mim.
- Há mais uma coisa que deve saber - disse ele. - Os sonhos
deixaram bem claro que, sem a sua ajuda, o Wil não sobreviverá
a esta tentativa. Para que ele tenha sucesso, você também terá
de estar lá.
Uma onda de medo percorreu-me, fazendo-me desviar o olhar.
Não era isto o que eu queria ouvir.
- Diz a lenda - prosseguiu o Lama -, que em Shambhala cada
geração tem um certo destino que é publicamente conhecido e
discutido. O mesmo é verdade para as culturas humanas fora de
Shambhala. Por vezes podemos ganhar grande força e clareza,
olhando para a coragem e intenções da geração anterior à
nossa.
Perguntei a mim mesmo o que ele quereria dizer com isto.
- O seu pai está vivo? - perguntou.
Abanei a cabeça.
- Morreu há alguns anos.
- Ele serviu durante a grande guerra dos anos 40?
- Sim - respondi. - Serviu.
- Esteve em combate?
- Sim, durante a maior parte da guerra.
- Ele falou-Lhe da situação mais assustadora que viveu?
A pergunta fez-me recuar a conversas com o meu pai durante a
minha juventude. Pensei durante um momento.
- Provavelmente o desembarque da Normandia, em 1944, na
praia Omaha.
- Ah, sim - disse o Lama -, vi os vossos filmes americanos
acerca desse desembarque. Também os viu?
- Sim, vi - repliquei. - Eles comoviam-me muito.
- Falam do medo e da coragem destes soldados - prosseguiu
ele.
- Pois é.
- Acha que teria sido capaz de fazer semelhantes coisas?
- Não sei. Não percebo como eles conseguiram fazê-las.
- Talvez tivesse sido mais fácil para eles porque foi um
chamamento para toda uma geração. A um certo nível, todos o
sentiram: aqueles que combateram, os que fizeram as armas, os
que forneceram a comida. Eles salvaram o mundo, no momento em
que ele enfrentava o maior perigo.
Esperou, como se estivesse à espera que eu fizesse uma
pergunta, mas eu apenas continuei a olhar para ele.
- O chamamento para a sua geração é diferente - declarou. -
Também vocês devem salvar o mundo. Mas têm de fazê-lo de forma
diferente. Têm de compreender que dentro de vós existe um
poder superior, que pode ser cultivado e ampliado, uma energia
mental que sempre foi conhecida como oração.
- Já ouvi dizer isso - declarei. - Mas suponho que ainda não
sei como usá-la.
58 - 59
Ao ouvir isto ele sorriu e ergueu-se, olhando para mim com
um brilho nos olhos.
- Sim - disse. - Eu sei. Mas há-de saber, há-de saber.
* * *
Deitei-me na pequena cama do meu quarto e pensei naquilo
que o Lama me tinha dito. Tinha terminado a conversa de forma
abrupta, afastando as perguntas que me restavam com um aceno.
- Agora vá descansar - tinha dito, chamando vários monges
com o toque de uma campainha estridente. - Amanhã falaremos
novamente.
Mais tarde, Jampa e Yin tinham-me obrigado a repetir tudo o
que o Lama dissera. Mas a verdade era que o Lama me deixara
mais perguntas do que respostas. Ainda não sabia para onde o
Wil tinha ido e o que realmente significava o chamamento de
Shambhala. Tudo isto soava extravagante e perigoso.
Yin e Jampa tinham recusado discutir qualquer uma destas
perguntas. Passámos o resto da noite a comer e a olhar para a
paisagem, antes de nos recolhermos cedo. Agora estava a olhar
para o tecto, incapaz de adormecer, com inúmeros pensamentos a
voltearem na minha cabeça.
Repeti toda a minha experiência tibetana mentalmente várias
vezes e depois deslizei para um sono irregular. Sonhei que
corria por entre as multidões de Lhasa, procurando abrigo num
dos mosteiros. Os monges à entrada olhavam para mim e fechavam
a porta. Soldados perseguiam-me. Corria pelas ruas e becos
escuros sem esperança, até que, no fim de uma rua, olhei para
a direita e vi uma área iluminada, semelhante às que tinha
visto antes. Quando me aproximei, a luz desapareceu
gradualmente, mas à minha frente estava um portão. Os soldados
estavam a virar a esquina atrás de mim; corri para o portão e
encontrei-me numa paisagem gelada...
Acordei sobressaltado. Onde estava? Lentamente, reconheci o
quarto, pus-me de pé e caminhei até à janela. A madrugada
estava a despontar a leste e eu tentei afastar o sonho e
regressar à cama, uma ideia que se revelou totalmente
infrutífera. Estava perfeitamente desperto.
Vesti umas calças e um casaco, desci as escadas até ao pátio
junto das hortas e sentei-me num banco de metal ornamentado.
Enquanto olhava para o nascer do Sol, ouvi qualquer coisa
atrás de mim. Voltando-me, vi a figura de um homem a avançar
para mim vindo do mosteiro. Era o Lama Rigden.
Ergui-me e fiz uma vénia profunda.
- Acordou cedo - disse ele. - Espero que tenha dormido bem.
- Sim - respondi, observando-o enquanto avançava para o lado
e deitava uma mão-cheia de grão para os peixes. A água
rodopiou enquanto eles consumiam a comida.
- Quais foram os seus sonhos? - perguntou ele, sem olhar
para mim.
Falei-lhe da perseguição e de ter visto a área iluminada.
Ele olhou para mim, espantado.
- Também já teve esta experiência na sua vida desperta? -
perguntou.
- Várias vezes nesta viagem - respondi. - Lama, o que se
passa?
Ele sorriu e sentou-se no banco, a meu lado. - Está a ser
ajudado pelos dakini.
- Não compreendo. Quem são os dakini? O Wil deixou um
bilhete ao Yin, em que se refere aos dakini, mas eu nunca
tinha ouvido falar deles antes disso.
- Eles pertencem ao mundo espiritual. Geralmente surgem como
mulheres, mas podem assumir a forma que quiserem. No ocidente
são conhecidos como anjos, mas são ainda mais misteriosos do
que a maioria pensa. Receio que só os habitantes de Shambhala
os conheçam verdadeiramente. As lendas dizem que eles se movem
com a luz de Shambhala.
Fez uma pausa e olhou profundamente para mim.
- Já decidiu se vai responder a este chamamento?
- Não saberia o que fazer a seguir - disse eu.
- As lendas hão-de guiá-lo. Elas dizem que reconheceremos o
momento de Shambhala ser conhecida porque muitas pessoas
começarão a compreender como se vive lá, a verdade por detrás
da energia da oração. A oração não é um poder que se
concretize apenas quando nos sentamos e decidimos rezar numa
situação particular.
60 - 61
A oração funciona nessas alturas, é claro, mas também
noutras.
- Está a falar de um campo de oração constante?
- Sim. Tudo o que esperamos, bom ou mau, consciente ou
inconscientemente, ajudamos a tornar realidade. A nossa oração
é uma energia ou poder que emana de nós em todas as direcções.
Na maioria das pessoas, que pensam de forma vulgar, este poder
é muito fraco e contraditório. Mas noutras, que parecem
alcançar muitas coisas nas suas vidas, que são criativas e bem
sucedidas, este campo de energia é forte, embora geralmente
continue a ser inconsciente. A maior parte das pessoas neste
grupo têm um campo forte porque cresceram num ambiente que
lhes ensinou a esperarem o sucesso e mais ou menos contarem
implicitamente com ele. Tiveram modelos de comportamento
fortes, a quem imitaram. Mas as lendas dizem que, em breve,
todas as pessoas conhecerão este poder e compreenderão que a
nossa habilidade para usar esta energia pode ser reforçada e
alargada. Contei-lhe isto para lhe explicar como responder ao
chamamento de Shambhala. Para encontrar este lugar sagrado,
deve alargar sistematicamente a sua energia, até que emane
suficiente força criativa para ir para lá. O procedimento para
fazê-lo está estabelecido nas lendas e envolve três passos
importantes. Há ainda um quarto passo, mas que apenas os
habitantes de Shambhala conhecem completamente. É por isso que
encontrar Shambhala é tão difícil. Mesmo que alguém consiga
alargar a sua energia durante os três primeiros passos,
precisa de ajuda para conseguir de facto encontrar o caminho
de Shambhala. Os dakini têm de abrir o portão.
- Chamou aos dakini criaturas espirituais. Quer dizer, almas
que estão na outra vida e que agem como nossos guias?
- Não, os dakini são outros seres que agem para despertar e
proteger os humanos. Não são, e nunca foram, humanos.
- E são o mesmo que anjos?
O Lama sorriu.
- Eles são aquilo que são. Uma realidade. Cada religião tem
um nome diferente para eles, assim como cada religião tem uma
forma diferente de descrever Deus e o modo de vida que os
humanos deviam seguir. Mas em todas as religiões a experiência
de Deus, a energia do amor, é exactamente a mesma.
62
Cada religião tem a sua história desta relação e a sua maneira
de falar dela, mas existe apenas uma fonte divina. Passa-se o
mesmo com os anjos.
- Portanto vocês não são estritamente budistas?
- A nossa seita e as lendas em que acreditamos têm as suas
raízes no budismo, mas nós somos uma síntese de todas as
religiões. Acreditamos que cada uma delas tem a sua verdade,
que deve ser incorporada com todas as outras. É possível fazer
isto sem perder a soberania ou verdade básica das nossas
crenças tradicionais. Poderia também chamar a mim mesmo
cristão, por exemplo, e judeu ou muçulmano. Acreditamos que os
habitantes de Shambhala também trabalham para a integração de
todas as verdades religiosas. Trabalham para isto com o mesmo
que o Dalai Lama faz as iniciações de Kalachakra, conhecidas
por todos aqueles que têm um coração sincero.
Limitei-me a olhar para ele, tentando absorver tudo.
- Não tente compreender tudo agora - disse o Lama. - Saiba
apenas que a integração de todas as verdades religiosas é
importante, se queremos que a força da energia de oração se
torne suficientemente grande para resolver os perigos criados
por aqueles que temem. Lembre-se também que os dakini são
reais.
- O que os leva a agirem em nosso favor? - perguntei.
O Lama respirou fundo, pensando profundamente. A pergunta
parecia ser frustrante para ele.
- Toda a minha vida trabalhei para compreender essa questão.
- disse finalmente - Mas devo admitir que não sei. Penso que
isso seja o grande segredo de Shambhala e que não será
compreendido enquanto Shambhala não for compreendido.
- Mas pensa - interrompi - que os dakini me estão a ajudar?
- Sim - disse ele com firmeza. - E ao seu amigo Wil.
- E o Yin? Como é que ele se encaixa em tudo isto?
- Yin conheceu o seu amigo Wil neste mosteiro. Yin também
sonhou consigo, mas num contexto diferente de mim mesmo ou dos
outros lamas. Yin foi educado em Inglaterra e está bem
familiarizado com os hábitos ocidentais. Ele deverá ser o seu
guia, embora esteja muito relutante, como sem dúvida notou.
Isto acontece apenas porque não quer desiludir ninguém. Ele
será o seu guia e levá-lo-á tão longe quanto puder ir.
63
Fez uma nova pausa e olhou para mim, expectante.
- E o governo chinês? - perguntei. - O que é que eles estão
a fazer? Porque estão tão interessados naquilo que se está a
passar?
O Lama baixou os olhos.
- Não sei. Parecem sentir que está a acontecer qualquer
coisa relacionada com Shambhala. Eles sempre tentaram reprimir
a espiritualidade tibetana, mas agora parecem ter descoberto a
nossa seita. Tem de ser muito cauteloso. Eles receiam-nos
bastante.
Olhei noutra direcção durante um momento, continuando a
pensar nos chineses.
- Já decidiu? - perguntou ele.
- Quer dizer, para onde ir?
Ele sorriu compassivamente.
- Sim.
- Não sei. Não estou certo de ter a coragem para arriscar
perder tudo.
O Lama continuou apenas a olhar para mim e acenou.
- Você disse qualquer coisa acerca de um desafio à minha
geração - disse eu. - Ainda não compreendi isso.
- A Segunda Guerra Mundial, assim como a Guerra Fria -
começou o Lama - foram os desafios que a geração anterior
enfrentou. Os grandes avanços da tecnologia colocaram armas de
destruição maciça nas mãos das nações. Com o seu fervor
nacionalista, as forças do totalitarismo tentaram conquistar
os países democráticos. Esta ameaça teria vencido, se os
cidadãos comuns não tivessem lutado e morrido em defesa da
liberdade, garantindo o sucesso da democracia no mundo.
Mas a vossa tarefa é diferente da dos vossos pais. A missão
da sua geração é diferente, na sua própria natureza, da missão
da geração da Segunda Guerra Mundial. Eles tiveram de combater
uma tirania particular com violência e armas. Vocês devem
lutar contra os próprios conceitos de guerra e inimigo. Mas é
precisa uma dose igual de heroísmo. Compreende? Os vossos pais
não tinham hipótese de fazer o que fizeram, mas persistiram.
Tal como vocês devem fazer. As forças do totalitarismo não
desapareceram; elas apenas já não se exprimem através de
nações em busca de um império. As forças da tirania são agora
internacionais e muito mais subtis, aproveitando-se da nossa
dependência das tecnologias, da confiança e do desejo de
conveniência. Através do medo, procuram centralizar todo o
crescimento tecnológico nas mãos de uns poucos, para que as
suas posições económicas possam ser salvaguardadas e a
evolução futura do mundo controlada. É impossível opormo-nos a
eles pela força. A democracia deve ser defendida agora, com o
próximo passo na evolução da liberdade. Temos de usar o poder
da nossa visão, e as expectativas que fluem a partir de nós,
como uma oração constante. Este poder é mais forte do que
qualquer pessoa actualmente sabe; temos de dominá-lo e começar
a usá-lo antes que seja tarde demais. Há sinais de que alguma
coisa está a mudar em Shambhala. Ela está a abrir-se, a
deslocar-se.
O Lama estava a olhar para mim com uma determinação férrea.
- Tem de responder ao chamamento de Shambhala. É a única
maneira de honrar aquilo que os seus antepassados fizeram
antes de si.
Este comentário encheu-me de ansiedade.
- O que faço primeiro? - perguntei.
- Complete as extensões da sua energia - replicou o Lama. -
Isto não lhe será fácil, por causa do seu medo e da sua raiva.
Mas se persistir, a entrada estará perante si.
- A entrada?
- Sim. As nossas lendas dizem que existem várias entradas
para Shambhala: uma nos Himalaias orientais, na Índia, uma a
noroeste, na fronteira com a China, e uma no extremo norte da
Rússia. Os sinais guiá-lo-ão até à entrada correcta. Quando
tudo parecer perdido, procure os dakini.
Enquanto o Lama falava, Yin saiu com as nossas malas.
- Muito bem - disse eu, sentindo-me cada vez mais assustado.
- Vou tentar. - Mesmo enquanto falava, não acreditava que as
palavras estavam a sair da minha boca.
- Não se preocupe - disse o Lama Rigden. - O Yin vai
ajudá-lo. Lembre-se apenas que, antes de conseguir encontrar
Shambhala, tem primeiro de ampliar o nível de energia que
emana de si para o mundo. Não poderá ter sucesso enquanto não
o fizer. Tem de dominar a força das suas expectativas.
Olhei para Yin e ele esboçou um sorriso.
- Está na hora - disse ele.
64 - 65
3.
CULTIVAR A ENERGIA
Saímos e apercebi-me de um jipe castanho, de capota dura,
com uns dez anos, parado na berma da estrada. Quando nos
aproximámos, vi que estava cheio de arcas frigoríficas, caixas
de comida enlatada, sacos-cama e casacos mais pesados. Vários
tanques externos de combustível estavam presos na retaguarda.
- De onde veio esta tralha toda? - perguntei.
Ele piscou-me um olho.
- Estamos a preparar esta viagem há muito tempo.
Saindo do mosteiro do Lama Rigden, Yin seguiu para norte
durante alguns quilómetros e depois levou o jipe da ampla
estrada de terra batida para um carreiro estreito, pouco mais
largo do que uma trilha pedonal. Prosseguimos durante vários
quilómetros, sem dizer nada.
Na verdade eu não sabia o que dizer. Tinha concordado fazer
esta viagem apenas por causa das palavras do Lama e por tudo o
que o Wil tinha feito por mim no passado, mas agora a angústia
da decisão começava a instalar-se. Tentei afastar o medo e
repetir, na minha mente, tudo o que o Lama Rigden me tinha
dito. O que queria ele dizer com dominar a força das minhas
expectativas?
Olhei para Yin, que estava a fixar atentamente a estrada.
- Para onde vamos? - perguntei.
Sem olhar para mim, ele disse:
- Isto é um atalho para a auto-estrada da Amizade. Temos de
seguir para sudoeste até Tingri, perto do monte Evereste.
67
A viagem vai demorar a maior parte do dia. Estaremos também a
subir para maiores altitudes.
- A área é segura?
Yin olhou para mim.
- Teremos muito cuidado. Vamos encontrar-nos com o senhor
Hanh.
- Quem é ele?
- Ele conhece a maior parte daquilo que você tem de aprender
acerca da Primeira Extensão da energia da oração. É da
Tailândia e muito educado.
Abanei a cabeça e desviei o olhar. - Não estou muito seguro
de compreender essas extensões. O que são?
- Sabe que tem um campo de energia, certo? Um campo de
oração que flui constantemente a partir de si.
- Sim.
- E sabe que este campo tem um efeito sobre o mundo, sobre
aquilo que acontece? Sabe que pode ser pequeno e fraco ou
extenso e forte.
- Suponho que sim.
- Bem, existem formas precisas de alargar e expandir o seu
campo, de modo a ser mais criativo e poderoso. As lendas dizem
que um dia todos os humanos saberão fazer isto. Mas você tem
de fazê-lo agora, se quer chegar a Shambhala e encontrar Wil.
- Tu já consegues fazer essas extensões? - perguntei.
Yin franziu a testa.
- Eu não disse isso.
Limitei-me a olhar para ele. Isto era óptimo. Como é que era
suposto eu aprender a fazer isto, se até o Yin tinha
dificuldade?
Durante horas avançámos sem falar, comendo nozes e vegetais
enquanto conduzíamos, parando apenas uma vez, numa paragem
para camionistas, para meter gasolina. Bem depois do
anoitecer, atravessámos Tingri.
- Temos de ser muito cuidadosos, aqui - disse Yin. - Estamos
perto do mosteiro de Rongphu e do acampamento-base do
Evereste. Seguramente estarão soldados chineses a observar os
turistas e os alpinistas. Mas também poderemos ver a incrível
paisagem da face norte do Evereste.
68
Yin fez várias curvas até uma área de antigos edifícios de
madeira. Para lá deles havia uma simples casa de tijolos de
argila.
O terreno em redor da casa de Hanh estava imaculado, com
canteiros cuidadosamente plantados e jardins rochosos.
Enquanto subíamos, um homem grande com um manto colorido
bordado à mão saiu para o terraço. Parecia ter perto de
sessenta anos, mas movia-se como uma pessoa muito mais nova.
Tinha a cabeça completamente rapada.
Yin acenou quando o homem tentou ver quem era. Quando
reconheceu Yin, desenhou um grande sorriso e caminhou na nossa
direcção enquanto descíamos do jipe.
Os dois homens falaram durante um momento em tibetano,
depois Yin apontou para mim e disse: - Este é o meu amigo
americano.
Disse o meu nome a Hanh, ele fez uma ligeira vénia e agarrou
a minha mão.
- Bem vindo - disse ele. - Por favor, entre.
Enquanto Hanh voltava para dentro de casa, Yin enfiou o
braço dentro do jipe e agarrou na sua mochila. - Traga a sua
sacola - disse.
O interior da casa era modesto mas cheio de coloridas
pinturas e tapetes tibetanos. Entrámos numa pequena sala de
estar e a partir do sítio onde eu estava conseguia ver a maior
parte das restantes divisões. À esquerda ficava uma pequena
cozinha e um quarto e à direita estava outro quarto, com o
aspecto de uma zona de tratamentos de alguma espécie. No
centro do quarto estava uma mesa de massagens ou exames e, ao
longo de uma das paredes, armários e uma pequena pia.
Yin disse qualquer coisa a Hanh em tibetano e ouvi-o repetir
o meu nome. Hanh inclinou-se para a frente, mais atento. Olhou
para mim e respirou bem fundo.
- Está muito receoso - disse Hanh, observando-me
cuidadosamente.
- Não me diga - repliquei.
Hanh riu-se do meu sarcasmo.
- Temos de fazer qualquer coisa acerca disso, se quer
completar a sua viagem.
Caminhou em redor de mim, inspeccionando o meu corpo.
- Os habitantes de Shambhala - começou ele -, vivem de forma
diferente dos outros humanos. Sempre viveram. Na realidade,
69
ao longo dos milénios, houve um grande fosso nos níveis de
energia entre a maioria das pessoas e os habitantes de
Shambhala. Mais recentemente, à medida que os humanos
evoluíram e aperfeiçoaram as suas consciências, esta distância
diminuiu, mas é ainda muito grande.
Enquanto Hanh falava, olhei para Yin. Parecia estar tão
nervoso quanto eu.
Hanh também o percebeu.
- Yin está tão receoso quanto você - declarou. - Mas ele
sabe que este medo pode ser dominado. Não me parece que você
se aperceba disso ainda. Tem de começar a agir e a pensar como
o fazem os habitantes de Shambhala. Tem primeiro de cultivar e
depois de estabilizar a sua energia.
Hanh parou, concentrou-se novamente na inspecção do meu
corpo e depois sorriu.
- Teve muitas experiências - disse. - Devia ser mais forte.
- Talvez eu não compreenda a energia suficientemente bem. -
respondi.
- Oh, não, você compreende - Hanh fez um grande sorriso. -
Só que não quer mudar o seu modo de vida. Quer entusiasmar-se
com as ideias e depois viver de forma inconsciente, mais ou
menos da mesma maneira que sempre fez.
Esta conversa não estava a correr como eu queria e o meu
medo estava a ser substituído por uma ligeira irritação.
Enquanto fiquei ali parado, Hanh caminhou em meu redor mais
algumas vezes, continuando a olhar atentamente o meu corpo de
alto a baixo.
- Para onde está a olhar? - perguntei.
- Quando avalio o nível de energia de alguém, vejo primeiro
a sua postura - disse Hanh, descontraidamente. - A sua não é
muito má neste momento, mas teve de esforçar-se para
melhorá-la, não foi?
A pergunta dele era muito perspicaz. Quando era mais novo,
cresci muito depressa num ano e, em consequência, fiquei
terrivelmente encurvado. Tinha as costas sempre cansadas e
doridas e só melhorei quando comecei a praticar algumas
posições básicas do ioga, todas as manhãs.
- A energia ainda não flui muito bem pelo seu corpo. -
acrescentou Hanh.
70
- Consegue ver isso ao olhar para mim? - repliquei.
- E ao senti-lo. A quantidade e a força da sua energia são
semelhantes ao grau da sua presença nesta sala. Seguramente já
conheceu alguém que, ao entrar numa sala, tinha presença ou
carisma.
- Claro que sim.
Pensei novamente naquele homem, na piscina do hotel em
Katmandu.
- Quanto mais energia uma pessoa tem, tanto mais os outros
sentem a presença dessa pessoa. Muitas vezes esta energia
acaba por ser exibida pelo ego, por isso inicialmente parece
forte mas depois dissipa-se muito depressa. Mas com outros,
esta é uma energia genuína e constante, que se mantém estável.
Acenei em concordância.
- Uma coisa a seu favor é a sua abertura - continuou Hanh. -
Viveu uma abertura mística, um influxo repentino de energia
divina, algures no passado, não foi assim?
- Sim - respondi, recordando a minha experiência nos cumes
do Peru. Ainda agora ela permanece viva na minha memória.
Estava no limite, com a certeza de ser morto por soldados
peruanos, quando de repente fiquei imbuído de uma calma
invulgar, euforia e leveza. Foi a primeira vez em que
experimentei aquilo a que os místicos de várias religiões
chamaram um estado de transformação.
- Como é que a energia o encheu? - perguntou Hanh. - Como é
que tudo aconteceu, exactamente?
- Foi uma onda de paz, e todo o meu medo desapareceu.
- Como é que ela se movia?
Esta era uma questão que nunca me ocorrera, mas rapidamente
comecei a recordar-me. - Parecia subir pela minha espinha e
sair pelo topo da cabeça, puxando o meu corpo para cima.
Sentia-me a flutuar. Era como se um fio me puxasse para o
alto, a partir do cimo da minha cabeça.
Hanh acenou com ar aprovador e depois fixou os meus olhos.
- E quanto tempo durou?
- Pouco - respondi. - Mas aprendi a respirar no meio da
beleza que me rodeia, como forma de recuperar essa sensação.
- O que falta na sua prática - declarou Hanh -, é a
capacidade de inspirar a energia e depois mantê-la a um nível
elevado. Esta é a primeira extensão que deve fazer.
71
Tem de manter a sua energia a fluir de forma mais
consistente. Isto deve ser feito de forma precisa, tendo
cuidado para que as suas outras acções não desgastem o seu
campo de energia, logo que o tenha constituído.
Fez uma breve pausa.
- Compreende? O resto da sua vida deve apoiar essa energia
superior. Tem de ser congruente.
Olhou para mim de forma maliciosa.
- Tem de viver com sabedoria. Vamos comer.
Desapareceu na cozinha e regressou com um grande prato de
vegetais, acompanhados com uma espécie de molho. Fez-nos
sinal, a Yin e a mim, para uma mesa e serviu os vegetais em
três pequenas taças. Em breve ficou claro que a comida também
fazia parte da informação que Hanh estava a partilhar comigo.
Enquanto comíamos ele continuou.
- Manter uma energia elevada dentro de nós mesmo é
impossível se consumirmos matéria morta como comida.
Afastei os olhos, desligando-me. Se isto ia ser uma palestra
sobre dietas, preferia ignorá-la.
A minha atitude pareceu enfurecer Hanh.
- Está louco? - disse ele, quase gritando. - A sua própria
sobrevivência depende desta informação e você não está
disposto a esforçar-se um pouco para apreendê-la. O que pensa?
Que pode viver da forma que quiser e ainda fazer coisas
importantes?
Calou-se e olhou para mim de lado. Compreendi que a fúria
era genuína, mas também uma parte do seu papel. Fiquei com a
impressão de que ele estava a transmitir-me informação em mais
do que um nível. Ao olhar novamente para ele, não consegui
deixar de sorrir. Era muito fácil gostar de Hanh.
Ele bateu-me no ombro e devolveu-me o sorriso.
- A maior parte das pessoas - continuou -, estão cheias de
energia e entusiasmo na sua juventude, mas durante a meia
idade caem numa queda lenta que fingem não notar. Afinal de
contas, os amigos também estão a abrandar e os filhos são
activos, por isso passam cada vez mais tempo a preguiçar e a
comer comidas que sabem bem.
- Dentro de pouco tempo, começam a ter queixas irritantes e
problemas crónicos como dificuldades digestivas ou urticárias,
que menosprezam como sendo sinais da idade, e depois um dia
surge uma doença séria que se recusa a desaparecer. Geralmente
vão a um médico que não enfatiza a prevenção e começam a tomar
drogas. Umas vezes o problema alivia-se e outras não. E
depois, enquanto os anos passam, apanham doenças que
progressivamente ficam piores e compreendem que estão a
morrer. O seu único consolo é pensar que isso acontece a toda
a gente que é inevitável.
- O mais terrível é que este colapso da energia acontece,
até certo ponto, mesmo às pessoas que pretendem ser
espirituais.
Inclinou-se para mim e fingiu olhar em redor como se
tentasse não ser ouvido.
- Isto inclui alguns dos nossos lamas mais respeitados.
Apeteceu-me rir, mas não me atrevi.
- Se procuramos uma energia mais elevada e, ao mesmo tempo,
consumimos comida que nos priva dessa energia - prosseguiu
Hanh, - não chegaremos a lugar algum. Temos de avaliar todas
as energias que rotineiramente recebemos nos nossos campos de
energia, especialmente a comida, e evitar tudo o que não seja
o melhor, se queremos que os nossos campos se mantenham
fortes.
Inclinou-se mais para mim. - Isto é muito difícil para a
maioria das pessoas, porque estamos todos viciados nas comidas
que actualmente consumimos. E estas são, na sua maioria,
venenos horríveis.
Desviei o olhar.
- Sei que há por aí muita informação contraditória em
relação à comida - continuou ele. - Mas a verdade também anda
por aí. Todos nós temos de fazer essa pesquisa, obrigarmo-nos
a ter uma visão mais ampla. Somos criaturas espirituais que
vieram a este mundo para aumentar a sua energia. Mas boa parte
daquilo que encontramos aqui foi criado simplesmente para o
prazer sensual e a distracção; uma parte dessas coisas mina a
nossa energia e arrasta-nos para a desintegração física. Se
acreditamos realmente que somos criaturas de energia, temos de
seguir um carreiro estreito por entre estas tentações.
- Se olhar para o princípio da evolução, verá que desde o
início tivemos de experimentar as comidas unicamente por
tentativa e erro, apenas para descobrir quais os alimentos que
eram bons para nós e quais nos matariam.
72 - 73
Come esta planta e sobrevive; come aquela além e morre. Neste
ponto da história já sabemos o que nos mata, mas estamos
apenas a descobrir quais os alimentos que aumentam a nossa
longevidade e mantêm os nossos níveis de energia altos e quais
os que acabam por nos desgastar.
Fez uma breve pausa, como se quisesse determinar se eu
estava a compreendê-lo.
- Em Shambhala eles têm esta visão mais ampla - prosseguiu.
- Eles sabem quem nós somos, enquanto seres humanos. Parecemos
uma coisa material, de carne e osso, mas somos átomos! Energia
pura! A vossa ciência já provou este facto. Quando olhamos bem
para os átomos, vemos primeiro partículas e depois, a níveis
mais profundos, as próprias partículas desaparecem em padrões
e pura energia, vibrando a um certo nível. E se olharmos para
aquilo que comemos por esta perspectiva, vemos que aquilo que
damos ao nosso corpo como comida afecta o nosso estado
vibracional. Certos alimentos aumentam a nossa energia e
vibração, outros diminuem-nas. A verdade é tão simples quanto
isto.
Todas as doenças resultam de uma queda na energia
vibracional e, quando essa energia desce abaixo de um certo
ponto, há forças naturais no mundo cuja função é desincorporar
os nossos corpos.
Olhou para mim como se tivesse dito qualquer coisa de muito
profundo.
- Quer dizer, desincorporar fisicamente? - perguntei.
- Sim. Olhe novamente para a visão mais ampla. Quando alguma
coisa morre, um cão atropelado por um carro, ou uma pessoa
depois de uma longa doença, as células do seu corpo perdem
imediatamente a sua vibração e ganham uma composição química
muito ácida. Esse estado ácido é o sinal para os micróbios do
mundo, os vírus, bactérias e fungos, indicando-lhes que está
na hora de decomporem o tecido morto. É essa a sua função no
universo físico. Devolver um corpo à Terra.
- Eu disse anteriormente - acrescentou -, que, quando os
nossos corpos perdem energia por causa do tipo de comida que
consumimos, isso nos torna susceptíveis à doença. Aqui está
como isso funciona. Quando comemos os alimentos, estes são
metabolizados e deixam um resíduo ou cinza nos nossos corpos.
74
Esta cinza tem uma natureza ácida ou alcalina, dependendo do
alimento. Se for alcalina, então pode ser extraída rapidamente
dos nossos corpos, gastando pouca energia. Contudo, se estes
produtos residuais são ácidos, só muito dificilmente são
eliminados pelo sangue e pelo sistema linfático e ficam
armazenados nos nossos órgãos e tecidos, como sólidos - formas
cristalinas de baixa vibração que criam bloqueios ou
perturbações nos níveis vibracionais das nossas células.
Quando mais resíduos ácidos destes forem armazenados, mais
esses tecidos ficam ácidos, e sabe o que acontece?
Olhou novamente para mim com uma expressão dramática.
- Aparece um micróbio de algum tipo, sente todo este ácido e
diz "oh, este corpo está pronto para ser decomposto." Está a
perceber? Quando qualquer organismo morre, o seu corpo
transforma-se num ambiente altamente ácido e é rapidamente
consumido pelos micróbios. Se começamos a parecermo-nos com
este ácido, ou estado mortal, então começamos a sofrer o
ataque dos micróbios. Todas as doenças humanas resultam deste
ataque.
Aquilo que Hanh dizia fazia todo o sentido. Há muito tempo
atrás, eu tinha encontrado na Internet alguma informação sobre
o pH dos corpos. Para além disso, eu parecia sabê-lo
intuitivamente.
- Está a dizer-me que aquilo que comemos prepara-nos
directamente para a doença? - perguntei.
- Sim, os alimentos errados podem baixar o nosso nível
vibracional, até um ponto em que as forças da natureza começam
a devolver os nossos corpos à Terra.
- E as doenças que não são causadas por micróbios?
- Todas as doenças surgem através da acção dos micróbios. As
vossas próprias pesquisas no Ocidente estão a mostrar isso.
Vários micróbios foram associados às lesões arteriais das
doenças cardíacas, bem como à produção de tumores
cancerígenos. Mas lembre-se, os micróbios estão apenas a fazer
o seu papel. As dietas que criam um ambiente ácido são a
verdadeira causa.
Fez uma pausa e depois disse:
- Compreenda isto bem. Nós, humanos, ou estamos num estado
alcalino de grande energia ou num estado ácido, que diz aos
micróbios dentro de nós, ou que passam por perto, que estamos
prontos para sermos decompostos.
75
A doença é, literalmente, um apodrecimento de uma parte dos
nossos corpos, porque os micróbios à nossa volta receberam o
sinal de que já estamos mortos.
Olhou novamente para mim de forma maliciosa.
- Desculpe ser tão directo - disse ele. - Mas não temos
muito tempo. A comida que consumimos determina quase por
completo qual daquelas duas condições é a nossa. Geralmente,
os alimentos que deixam resíduos ácidos no nosso corpo são
mais pesados, muito cozinhados, muito tratados e doces, tais
como carnes, farinhas, álcool, café e frutas mais doces. Os
alimentos alcalinos são mais verdes, mais frescos e mais
vivos, tais como os vegetais frescos e os seus sucos, saladas,
rebentos e frutos como o abacate, o tomate, a toranja e os
limões. Não podia ser mais simples. Somos criaturas
espirituais num mundo enérgico e espiritual. Vocês, os
ocidentais, podem ter crescido a pensar que a carne cozinhada
e os alimentos tratados são bons para nós. Mas nós sabemos
agora que eles criam um ambiente de lenta desincorporação que,
com o tempo, nos cobra a sua factura.
- Todas as doenças debilitantes que atormentam a humanidade:
arterosclorose, enfarte, artrite, sida e, especialmente, o
cancro existem porque nós poluímos os nossos corpos, dando
sinal aos micróbios dentro de nós de que estamos prontos para
decair, perder energia e morrer. Sempre quisemos saber porque
algumas pessoas, expostas aos mesmos micróbios, não apanhavam
uma dada doença. A diferença está no ambiente dentro do corpo.
A boa notícia é que, mesmo que tenhamos demasiada acidez no
nosso corpo e comecemos a decompormo-nos, a situação pode ser
invertida se melhorarmos a nossa nutrição e mudarmos para um
estado alcalino, de maior energia.
Ele estava agora a agitar os dois braços, de olhos muito
abertos, ainda a brilharem.
- No que diz respeito aos princípios de um corpo vibrante e
cheio de energia, vivemos na idade das trevas. É suposto os
seres humanos viverem mais de cento e cinquenta anos. Mas
comemos de uma forma que imediatamente começa a destruir-nos.
Por todo o lado, vemos pessoas a desincorporarem-se perante os
nossos olhos. Mas não tinha de ser assim.
Fez uma pausa e respirou fundo. - Não é assim em Shambhala.
Depois de mais um momento, Hanh começou a caminhar em redor,
inspeccionando-me mais uma vez.
- Portanto, aí tem - concluiu. - As lendas dizem que os
humanos aprenderão primeiro a verdadeira natureza dos
alimentos e que tipos consumir. Depois, segundo as lendas,
podemos abrirmo-nos completamente às fontes interiores de
energia que aumentam ainda mais a nossa vibração.
Afastou a cadeira da mesa e olhou para mim.
- Está a reagir muito bem à altitude do Tibete, mas eu
gostaria que fosse descansar.
- Isso seria bom - disse eu. - Estou estafado.
- Sim - concordou Yin -, tivemos um longo dia.
- Certifique-se de que aguarda um sonho - acrescentou Hanh,
conduzindo-me a um quarto.
- Aguardo um sonho?
Hanh voltou-se. - Sim, você é mais poderoso do que pensa.
Eu ri.
Acordei subitamente e olhei pela janela. O sol ia já alto no
céu. Nenhum sonho. Calcei-me e passei ao outro quarto.
Hanh e Yin estavam sentados a uma mesa, a conversar.
- Como dormiu? - perguntou Hanh.
- Bem - disse eu, caindo sobre uma das cadeiras. - Mas não
me recordo de ter sonhado.
- Isso é porque não tem energia suficiente - disse ele, meio
distraído. Estava a olhar intensamente para o meu corpo, mais
uma vez. Apercebi-me que ele estava concentrado na maneira
como eu me sentava.
- O que está a ver? - perguntei.
- É assim que acorda pela manhã? - inquiriu Hanh.
Endireitei-me.
- Qual é o problema?
- Depois de dormir, temos de despertar o nosso corpo e
começar a aceitar a energia antes de fazermos qualquer outra
coisa.
76 - 77
Estava de pé, com as pernas muito afastadas e as mãos nas
ancas. Enquanto eu o observava, deslizou os pés até os juntar
e ergueu os braços. O corpo ergueu-se num movimento único, até
ele ficar nas pontas dos pés, com as palmas das mãos
encostadas por cima da cabeça.
Pisquei os olhos. Havia qualquer coisa invulgar nos
movimentos do seu corpo, mas eu não conseguia descortiná-la
com rigor. Ele parecia flutuar para cima, mais do que usar os
músculos. Quando me consegui concentrar novamente, ele
irradiava um sorriso rasgado. Igualmente depressa, o seu corpo
desenhou um caminhar gracioso na minha direcção. Pisquei mais
uma vez os olhos.
- A maior parte das pessoas acorda devagar - disse Hanh -,
arrastam-se por ali e põem-se em movimento com uma chávena de
café ou chá. Vão para um emprego onde continuam a arrastar-se
ou onde usam apenas um dado conjunto de músculos. Formam-se
padrões e, como eu já disse, desenvolvem-se barreiras no fluxo
de energia através do corpo.
-Temos de garantir que o nosso corpo está aberto em todos os
lugares, para receber toda a energia disponível. Fazemos isso
movendo todos os músculos, cada manhã, a partir do centro.
Apontou para uma zona imediatamente abaixo do umbigo.
- Se nos concentrarmos em movermo-nos a partir desta área,
então os músculos estarão disponíveis para funcionarem ao mais
alto nível de coordenação. Este é o princípio central de todas
as artes marciais e disciplinas da dança. Podemos inventar os
nossos próprios movimentos.
Com este comentário, lançou-se numa variedade de movimentos
que eu nunca vira antes. Pareciam ser uma espécie de
deslocações no peso, juntamente com as piruetas que se vêem no
tai chi. Mas estava claramente a executar uma expansão destes
movimentos clássicos.
- O seu corpo - acrescentou - saberá como mover-se de forma
a derrubar as suas barreiras individuais.
Ficou de pé sobre uma perna, inclinou-se para a frente e
balançou os braços como se estivesse a lançar uma bola baixa
no basebol, só que a mão quase tocava no chão ao executar o
movimento. Depois girou sobre a outra perna. Não vi o seu peso
a deslocar-se e, mais uma vez, ele pareceu flutuar.
Abanei a cabeça e tentei ver melhor, mas ele tinha ficado
quieto, como se um fotógrafo tivesse congelado os seus
movimentos numa imagem, algo que parecia impossível.
Subitamente, recomeçou a avançar para mim.
- Como é que faz isso? - perguntei.
Ele disse:
- Começo devagar e lembro a mim mesmo o princípio básico. Se
nos movermos a partir do centro e deixarmos a energia fluir
para dentro de nós, conseguiremos mover-nos de forma cada vez
mais ligeira. É claro que, para aperfeiçoar isto, temos de ser
capazes de nos abrirmos a toda a energia divina disponível
dentro de nós.
Parou e olhou para mim.
- Lembra-se bem da sua abertura mística?
Pensei novamente no Peru e na minha experiência no alto da
montanha.
- Bastante bem, penso eu.
- Isso é bom - disse ele. - Vamos lá para fora.
Yin sorriu quando nos erguemos e seguimos Hanh, através de
um pequeno jardim, subindo alguns degraus que conduziam a uma
área de relva rala castanha e grandes rochedos irregulares. Ao
longo das pedras havia bonitos veios de vermelho e castanho.
Durante dez minutos Hanh ensinou-me alguns dos movimentos que
eu vira antes e depois ofereceu-me um lugar no chão,
sentando-se à minha direita. Yin sentou-se atrás de nós. O sol
da manhã banhava as montanhas à distância com uma luz amarela
quente. Fiquei surpreendido com a sua beleza.
- Dizem as lendas - começou Hanh -, que a abertura a um
estado superior de energia é uma capacidade que todos os
humanos hão-de conquistar. Tudo começará com o conhecimento
genérico de que essa consciência é possível. Depois passaremos
à compreensão de todos os factores envolvidos no
desenvolvimento e manutenção de níveis superiores de energia.
Fez uma pausa e olhou para mim.
- Você já conhece os procedimentos básicos, mas deve
expandir os seus sentidos. As lendas dizem que primeiro nos
acalmamos e olhamos para aquilo que nos rodeia. São apenas
coisas que ficam para trás quando a nossa mente está
preocupada em fazer algo.
78 - 79
Mas devemos lembrarmo-nos que tudo no universo está vivo,
cheio de energia espiritual, e faz parte de Deus. Devemos
pedir intencionalmente para nos ligarmos ao que existe de
divino dentro de nós.
Como sabe, podemos avaliar se estamos a ligarmo-nos a esta
energia através da nossa noção de beleza. Coloque sempre a si
mesmo esta pergunta: tudo me parece belo? Não importa como Lhe
parece de início, podemos ver sempre mais beleza se tentarmos.
O grau de beleza que conseguimos ver mede a quantidade de
energia divina que recebemos em nós.
Hanh fez-me passar algum tempo a olhar, a olhar a sério,
para tudo o que me rodeava.
- Assim que começamos a estabelecer a ligação - disse ele -
e sentimos a energia divina dentro de nós, tudo começa a ter
mais presença na nossa percepção. As coisas destacam-se e nós
apercebemo-nos das suas formas e cores únicas. Quando surge
esta percepção, conseguimos inalar ainda mais energia.
- Está a ver que, na realidade, a energia não advém tanto
das coisas em redor, embora possamos absorver energia
directamente de algumas plantas e locais sagrados. A energia
sagrada advém da nossa ligação com o divino dentro de nós.
Tudo à nossa volta, natural ou feito pelo homem - flores,
rochas, relva, montanhas, arte - tem já uma beleza e presença
majestosas, para lá de qualquer coisa que os humanos possam
sentir. Tudo o que fazemos, quando nos abrimos ao divino, é
aumentar a vibração da nossa energia e também a nossa
capacidade perceptiva, para que possamos ver o mundo como ele
já é. Compreende? Os seres humanos já vivem num mundo de
imensa beleza, cor e forma. O Paraíso é aqui. Só que ainda não
nos abrimos o suficiente à energia interior para o
conseguirmos ver.
Escutei-o fascinado. Isto estava mais claro agora do que
alguma vez estivera.
- Concentre-se na beleza - explicou Hanh - e comece a inalar
a beleza dentro de si.
Respirei fundo.
- Agora procure beleza cada vez maior, enquanto respira -
indicou-me Hanh.
80
Olhei novamente para as rochas e montanhas e vi, com alguma
surpresa, que o monte mais alto à distância era o monte
Evereste. Por alguma razão, não tinha reconhecido a sua forma
antes.
- Sim, sim, olhe para o Evereste. - disse Hanh.
Enquanto olhava para a montanha, notei que as suas encostas
raiadas de neve pareciam formar pequenos degraus em direcção
ao pico em forma de coroa. A vista expandiu bruscamente a
minha percepção e a montanha mais alta do mundo pareceu
instantaneamente mais próxima, de alguma forma, parte de mim,
como se eu pudesse estender a mão e tocá-la.
- Continue a respirar - disse Hanh. - A sua vibração e
capacidade de percepção aumentarão ainda mais. Tudo ficará
brilhante, como se fosse iluminado a partir do seu interior.
Respirei fundo mais uma vez, comecei a sentir-me mais leve e
endireitei as costas sem qualquer esforço. Incrivelmente,
sentia-me exactamente como durante a minha experiência na
montanha do Peru.
Hanh estava a acenar com a cabeça.
- A sua capacidade para sentir a beleza é o sinal essencial
de que a energia divina está a entrar em si. Mas existem ainda
outros sinais.
Sentir-se-á mais leve - prosseguiu Hanh. - A energia subirá
dentro de si e erguê-lo-á, tal como disse, como se um fio o
puxasse para o alto a partir do cimo da sua cabeça. E sentirá
uma maior sabedoria acerca de quem é e do que faz. Receberá
intuições e sonhos acerca do que fazer a seguir no caminho da
sua vida.
Parou e olhou para o meu corpo. Estava agora sentado
direito, sem esforço.
- Agora chegamos à parte mais importante - disse ele. - Tem
de aprender a manter esta energia, a fazê-la fluir através de
si. Aqui tem de usar o poder das suas expectativas, o poder da
sua energia de oração.
Aqui estava novamente aquela palavra: expectativa. Nunca a
tinha ouvido usar neste contexto, antes.
- Como faço isso? - perguntei, sentindo-me confuso, o meu
corpo a perder energia, as cores e formas em redor a
desvanecerem-se.
Os olhos de Hanh abriram-se mais e ele começou a rir. Tentou
parar várias vezes, mas finalmente rolou no chão, numa
gargalhada incontrolável. Recompôs-se várias vezes, mas
começava novamente a rir sempre que olhava para mim.
81
Cheguei mesmo a ouvir uma risada do Yin, atrás de mim.
Finalmente Hanh conseguiu respirar fundo algumas vezes e
acalmar-se.
- Lamento imenso - disse ele. - Mas a sua expressão estava
tão engraçada. Na verdade não acredita que tem qualquer poder,
pois não?
- Não é isso? - protestei. - Só que não percebo o que quer
dizer com expectativa.
Hanh continuava a sorrir. - Mas pensa que transporta consigo
algumas expectativas acerca da vida, não é? Espera que o sol
nasça. Espera que o seu sangue circule.
- É claro.
- Bem, tudo o que eu peço é que tente ganhar consciência
dessas expectativas. É a única maneira de manter e alargar o
nível de energia superior que acaba de experimentar. Tem de
aprender a esperar esse nível de energia na sua vida e tem de
fazê-lo de forma muito deliberada e consciente. É a única
maneira de completar a primeira extensão da oração. Gostaria
de tentar novamente?
Devolvi-lhe o sorriso e passámos vários minutos a respirar e
a aumentar a energia. Quando já estava a ver o nível superior
de beleza que tinha sentido antes, fiz-lhe um aceno.
- Agora - disse ele -, tem de esperar que essa energia que
agora o está a encher continue a enchê-lo e a fluir a partir
de si, em todas as direcções. Visualize isso a acontecer.
Tentei suster o meu nível de energia quando perguntei:
- Este fluxo para o exterior... como sei que está mesmo a
acontecer?
- Será capaz de senti-lo. Por agora limite-se a
visualizá-lo.
Respirei fundo mais uma vez e visualizei a energia, a entrar
em mim e a fluir em todas as direcções, para o mundo.
- Continuo sem saber se isso está mesmo a acontecer - disse
eu.
Hanh olhou directamente para mim, parecendo ligeiramente
impaciente.
- Sabe que a energia está a fluir a partir de si porque a
energia se mantém estável, as cores e formas continuam belas e
você sente-a a enchê-lo e a transbordar para fora.
- Qual é a sensação? - perguntei.
Ele olhou para mim com incredulidade.
- Você sabe a resposta para isso.
Olhei novamente para as montanhas, visualizando a energia a
fluir para fora de mim, na direcção delas. Continuavam belas
e começaram a ser também imensamente atraentes. Depois uma
onda de profunda emoção encheu-me e recordou-me o que eu
sentira no Peru.
Hanh estava a acenar com a cabeça.
- É claro! - exclamei -, A medida da energia que flui para o
exterior é a sensação de amor.
O sorriso de Hanh alargou-se.
- Sim, é um amor que se torna uma emoção de fundo, que fica
consigo enquanto a sua energia de oração continuar a fluir
para o mundo. Tem de manter-se num estado de amor.
- Isso parece terrivelmente idealista para o ser humano
vulgar - disse eu.
Hanh riu.
- Não lhe estou a dizer como ser um ser humano vulgar. Estou
a dizer-lhe como estar na vanguarda da evolução. Estou a
dizer-lhe como ser um herói. Basta lembrar-se que tem de ter a
expectativa da energia divina a entrar em si a um nível mais
elevado e a fluir a partir de si como uma chávena a
transbordar. Quando estiver desligado, recorde esta sensação
de amor. Tente recuperar conscientemente esse estado.
Os olhos dele cintilaram novamente.
- A sua expectativa é a chave para a manutenção desta
experiência.
Tem de visualizar isso a acontecer, acreditar que estará
consigo em todas as situações. Esta expectativa deve ser
cultivada e conscientemente afirmada todos os dias.
Concordei com um aceno.
- Agora - disse ele - compreende todos os procedimentos de
que lhe falei?
Antes que eu pudesse responder, ele declarou:
- A chave é a forma como acorda pela manhã. Foi por isso que
Lhe pedi para dormir, para poder ver como acorda. Tem de
fazê-lo com disciplina. Desperte o seu corpo para o influxo de
energia, da forma que eu lhe mostrei.
82 - 83
Mova-se a partir do centro, sinta imediatamente a energia.
Espere-a imediatamente.
- Coma apenas alimentos ainda vivos e, após algum tempo,
será mais fácil absorver a energia interior divina para o seu
ser. Encha-se de energia todos os dias e acorde com movimento.
Lembre-se dos sinais. Visualize esta energia a entrar em si e
sinta-a a fluir para o mundo. Faça isto e terá completado a
Primeira Extensão. Será capaz de sentir a energia, não apenas
ocasionalmente, mas também de acarinhá-la e de a manter num
nível elevado.
Fez uma profunda vénia e, sem dizer mais, voltou para casa.
Yin e eu seguimo-lo. Quando chegámos, Hanh começou a
seleccionar comida e a colocá-la num grande cesto.
- E o portão? - perguntei a Hanh.
Ele parou e olhou para mim.
- Existem muitos portões.
- Quero dizer, sabe onde podemos encontrar o portão para
Shambhala?
Ele olhou para mim com ar severo.
- Apenas completou uma extensão da sua energia de oração.
Agora tem de aprender o que fazer com essa energia que flui a
partir de si. E é muito teimoso, continua a sentir medo e
raiva. Tem de ultrapassar essas tendências antes de poder
sequer chegar perto de Shambhala.
Com essa declaração, Hanh acenou para Yin e entregou-lhe o
cesto, entrando de seguida no outro quarto.
84
4.
ALERTA CONSCIENTE
Avancei até ao jipe, sentindo-me incrivelmente bem. O ar
estava fresco e as montanhas em todas as direcções ainda me
pareciam luminosas. Entrámos no veículo e Yin arrancou.
- Sabes para onde ir agora? - perguntei.
- Sei que temos de seguir para o noroeste do Tibete. Segundo
as lendas, esse é o portão mais próximo de nós. Mas, tal como
o Lama Rigden disse, teremos de esperar que nos seja mostrado.
Yin fez uma pausa e olhou para mim.
- Está na altura de lhe falar do meu sonho.
- O sonho que o Lama Rigden mencionou? - perguntei. - Aquele
que tiveste comigo?
- Sim, neste sonho estamos juntos, a viajar através do
Tibete, procurando o portão. E não o conseguíamos encontrar.
Viajámos até muito longe e em círculos, perdidos. Mas no nosso
momento de maior desespero, encontrámos alguém que sabia para
onde ir.
- O que aconteceu depois disso?
- O sonho terminou.
- Quem era essa pessoa? Era o Wil?
- Não, não me parece.
- O que achas que o sonho significa?
- Significa que temos de estar bem alerta.
Seguimos em silêncio durante alguns momentos e depois eu
perguntei:
- Há muitos soldados estacionados no noroeste do Tibete?
85
- Geralmente não - respondeu ele. - Excepto na fronteira ou
nas bases militares. O problema é passar os próximos
quinhentos ou seiscentos quilómetros, para lá do monte Kailash
e do lago Manasarovar. Existem várias barreiras militares.
Durante quatro horas rolámos sem incidentes, viajando
durante algum tempo em estradas de terra batida, depois
virando temporariamente para alguns carreiros poeirentos.
Chegámos a Saga sem dificuldades e apanhámos o que Yin me
disse ser a rota sul de acesso ao Tibete ocidental.
Encontrámos principalmente grandes camiões de transporte ou
tibetanos locais em carros velhos ou carroças. Alguns
estrangeiros à boleia viam-se em redor das paragens dos
camionistas.
Uma hora mais tarde Yin afastou o jipe da estrada principal,
para um simples carreiro de cabras. O jipe saltitou por cima
de buracos profundos.
- Há geralmente um posto de controlo chinês mais à frente,
na estrada principal - disse Yin. - Temos de contorná-lo.
Subimos uma encosta íngreme e, quando chegámos ao cimo, Yin
parou o jipe e conduziu-me à beira de um penhasco. Abaixo de
nós, a várias centenas de metros, víamos dois grandes camiões
militares com as insígnias chinesas. Aproximadamente uma dúzia
de soldados estavam de pé na berma da estrada.
- Isto não é bom - disse Yin. - Geralmente há apenas alguns
soldados neste cruzamento. Eles podem andar ainda à nossa
procura.
Tentei afugentar a ansiedade e manter a minha energia
elevada. Pareceu-me ter visto vários soldados a olharem para o
cimo da colina, na nossa direcção, e por isso agachei-me.
- Passa-se qualquer coisa. - sussurrou Yin.
Quando voltei a olhar para o cruzamento, os soldados estavam
a revistar uma carrinha que tinha parado no posto de controlo.
Um homem louro de meia-idade estava a ser interrogado no meio
da estrada. Uma outra pessoa estava ainda na carrinha.
Conseguimos ouvir vagamente uma língua europeia, muito
semelhante a holandês.
- Porque é que eles estão a ser detidos? - perguntei a Yin.
- Não sei - disse ele. - Podem não ter as autorizações
certas, ou talvez tenham feito as perguntas erradas.
Hesitei, desejando poder ajudar.
- Por favor - disse Yin. - Temos de ir.
Entrámos no jipe, Yin contornou devagar o resto da colina e
descemos a encosta no outro lado. Ao fundo apanhámos outra
estrada estreita que virava para a direita, para longe do
cruzamento, ainda a avançar para noroeste. Seguimos por esta
estrada durante mais oito quilómetros, até que ela se fundiu
com a estrada principal para Zhongba, uma pequena vila com
vários hotéis e algumas lojas. Várias pessoas seguiam a pé,
conduzindo iaques e outras cabeças de gado, e passaram por nós
vários outros jipes.
- Agora somos apenas mais dois peregrinos a caminho do monte
Kailash - disse Yin. - Seremos mais discretos.
Eu não estava convencido. E, na verdade, meio quilómetro
mais à frente, um camião militar chinês entrou na estrada
directamente atrás de nós e mais uma onda de medo
percorreu-me. Yin virou para uma ruela perpendicular e o
camião seguiu em frente, desaparecendo de vista.
- Tem de manter-se forte - declarou Yin. - Está na altura de
aprender a Segunda Extensão.
Guiou-me pela Primeira Extensão até eu conseguir visualizar
e sentir a minha energia a fluir à nossa frente e para longe.
- Agora que tem a sua energia em movimento, tem que preparar
esse campo de energia para fazer um certo efeito.
O comentário dele fascinou-me.
- Preparar o meu campo?
- Sim. Podemos dirigir o nosso campo de oração para o mundo
de várias formas. Fazêmo-lo, usando as nossas expectativas. Já
fez isso uma vez, lembra-se? Hanh ensinou-lhe a esperar que
essa energia continuasse a fluir através de si. Agora tem de
preparar o seu campo com outras expectativas e fazê-lo com
verdadeira disciplina.
De outro modo, a sua energia pode rapidamente perder-se no
medo e na raiva.
Olhou para mim com uma expressão triste que eu nunca vira
antes.
- O que se passa? - perguntei.
- Quando eu era mais novo, vi um soldado chinês a matar o
meu pai. Odeio-os e receio-os intensamente.
86 - 87
E tenho de confessar uma coisa: eu próprio sou em parte
chinês. Esta é a pior parte. É esta memória e culpa que
desgasta a minha energia, pelo que eu tendo a esperar o pior.
Vai aprender que, nestes níveis superiores de energia, os
nossos campos de oração agem muito depressa, trazendo-nos
exactamente o que nós esperamos. Se temos medo, eles
trazem-nos aquilo que receamos. Se odiamos, eles trazem-nos
aquilo que nós odiamos.
Felizmente, quando entramos nestas expectativas negativas os
nossos campos de oração decaem bastante depressa, porque
perdemos a ligação com o divino e já não irradiamos amor. Mas
uma expectativa de medo ainda pode ser poderosa. É por isso
que deve vigiar cuidadosamente as suas expectativas e preparar
o seu campo de forma consciente.
Ele sorriu e acrescentou:
- Você tem uma vantagem, porque não odeia o exército chinês,
como eu. Mas ainda tem muito medo e parece ser capaz de grande
raiva... tal como eu. Talvez seja por isso que estamos juntos.
Estava a olhar para a estrada em frente enquanto
avançávamos, pensando naquilo que Yin estava a dizer, sem
acreditar que os nossos pensamentos pudessem ter um tal poder.
A minha divagação foi interrompida quando Yin abrandou e
estacionou o jipe em frente de uma linha de edifícios
quadrados poeirentos.
- Porque estamos a parar? - perguntei - Não iremos atrair
mais atenção sobre nós assim?
- Sim - respondeu ele. - Mas temos de arriscar. Os soldados
têm espiões em toda a parte, mas não temos outra alternativa.
Não é seguro entrar nas zonas ocidentais do Tibete com apenas
um veículo. Não há nenhum sítio para fazer reparações. Temos
de encontrar alguém para ir connosco.
- E se eles nos denunciarem?
Yin olhou para mim horrorizado.
- Isso não acontecerá se arranjarmos as pessoas certas.
Vigie os seus pensamentos. Eu disse-lhe que temos de preparar
o campo certo à nossa volta. É importante.
Começou a sair do carro, mas hesitou. - Tem de portar-se
melhor do que eu nesta questão, ou não teremos hipótese.
Concentre-se em preparar o seu campo para rten brel.
Fiquei silencioso por um momento. - Rten brel? O que é isso?
- É a palavra tibetana para sincronicidade. Tem de preparar
o seu campo para se manter no processo de sincronicidade, para
provocar as intuições, as coincidências, para nos ajudar.
Yin olhou para o edifício e saiu do jipe, indicando com a
mão que queria que eu ficasse. Esperei durante quase uma
hora, observando os tibetanos a passarem. Ocasionalmente via
alguém que parecia indiano ou europeu. Uma vez pareceu-me
mesmo ter avistado o holandês que tínhamos visto no posto de
controlo a passar por uma rua distante. Tentei ver melhor, mas
não consegui ter a certeza.
Onde estava Yin? perguntei a mim mesmo. A última coisa de
que precisava era separar-me novamente dele. Imaginei-me a
conduzir sozinho através desta vila, perdido, sem saber para
onde ir. O que poderia eu fazer?
Finalmente vi Yin a sair do edifício. Hesitou durante um
momento, olhando cautelosamente para os dois lados antes de
avançar até ao jipe.
- Encontrei duas pessoas que eu conheço - declarou ele, ao
sentar-se atrás do volante. - Penso que servirão.
Estava a tentar ser convincente, mas o tom da sua voz traía
as suas dúvidas.
Ligou o carro e arrancou. Cinco minutos depois passámos por
um pequeno restaurante completamente feito de chapas de metal
enrugadas. Yin estacionou o jipe a trezentos metros do
restaurante, escondendo-o atrás de alguns tanques de
armazenamento de combustível. Agora estávamos nos limites da
vila e não havia quase ninguém na rua. Dentro do edifício,
encontrámos uma sala com seis mesas vacilantes. Um bar
estreito pintado de branco separava-nos da cozinha, onde
trabalhavam várias mulheres. Uma delas viu-nos a sentar e veio
ao nosso encontro.
Yin falou brevemente com ela em tibetano e eu reconheci a
palavra sopa. A mulher acenou e olhou para mim.
- O mesmo - disse eu a Yin, tirando o casaco e dobrando-o
sobre as costas da cadeira. - E água.
88 - 89
Yin traduziu, a mulher sorriu e afastou-se.
Yin ficou sério.
- Compreende aquilo que eu disse há pouco? Agora tem de
preparar um campo que lhe traga mais sincronicidade.
Eu acenei em concordância.
- Como preparo esse campo?
- A primeira coisa que tem de fazer é certificar-se que
aumenta a Primeira Extensão. Certifique-se que a energia flui
para dentro de si e de si para o mundo. Sinta os sinais.
Prepare as suas expectativas para que esta energia seja
constante. Agora tem de esperar que o seu campo de oração aja
e lhe traga os pensamentos e acontecimentos necessários para o
desenrolar do seu melhor destino. Para preparar esse campo à
sua volta, tem de manter-se num estado de alerta consciente.
- Alerta em relação ao quê?
- À sincronicidade. Tem de manter-se num estado em que
esteja constantemente à procura da próxima informação
misteriosa que o ajude a avançar para o seu destino. Alguma
sincronicidade irá ter consigo de qualquer maneira, mas pode
aumentar a sua frequência se preparar um campo constante,
mantendo-se nessa expectativa.
Levei a mão ao bolso de trás das calças para tirar o meu
bloco de apontamentos. Embora ainda não o tivesse usado, tive
a intuição de anotar o que Yin estava a dizer. Depois
lembrei-me que tinha deixado o bloco no jipe.
- Está trancado - disse ele, entregando-me as chaves com um
aceno da cabeça. - Não se vá embora.
Segui directamente para o jipe, encontrei o bloco de
apontamentos e estava prestes a regressar quando fui
surpreendido pelo som de veículos a pararem junto ao
restaurante. Recuei para trás dos tanques e observei a cena.
Em frente do restaurante estavam dois camiões cinzentos de
fabrico chinês. Cinco ou seis homens à civil saíram dos
camiões e entraram no restaurante. De onde eu estava,
conseguia ver o interior pelas janelas. Os homens alinharam
toda a gente contra as paredes e começaram a revistá-los.
Tentei localizar Yin, mas não o via em lado nenhum. Teria
escapado?
Um novo jipe parou cá fora e um oficial chinês alto e
esguio, com uma farda militar, saiu e avançou para a porta.
Era claramente o comandante da operação. Junto da porta olhou
para dentro, depois parou e voltou-se, olhando para os dois
lados da rua, como se tivesse pressentido qualquer coisa.
Virou-se na minha direcção e eu agachei-me novamente atrás dos
bidões, com o coração aos pulos.
Após um momento arrisquei espreitar na direcção do
restaurante. Os chineses estavam a fazer sair toda a gente e
a carregá-la nos camiões. Yin não estava entre eles. Um dos
carros afastou-se e o oficial no comando falou com os homens
restantes. Parecia estar a mandá-los revistar a rua.
Escondi-me atrás dos tanques e respirei bem fundo. Sabia
que, se ficasse aqui, seria apenas uma questão de tempo até me
encontrarem. Procurando opções, apercebi-me de um beco
estreito e sujo que se estendia dos tanques até à rua
seguinte. Saltei para o jipe, pu-lo em ponto morto e usei a
pequena inclinação da rua para rolar pelo beco, virando à
direita na esquina seguinte. Liguei o motor mas não fazia
ideia para onde ia. Tudo o que eu queria fazer era ganhar
alguma distância dos soldados.
Após alguns quarteirões, virei à esquerda para uma ruela
estreita que me pareceu uma zona com poucos edifícios. Mais
cem metros e fiquei completamente fora da vila. Um quilómetro
e meio depois saí da estrada e parei atrás de um grupo de
grandes montículos rochosos, cada um deles do tamanho de uma
casa.
E agora?, pensei. Estava completamente perdido,
absolutamente sem qualquer ideia do caminho a seguir. Um
clarão de raiva e frustração percorreu-me. Yin devia ter-me
preparado para esta possibilidade. Provavelmente algum
conhecido dele na vila podia ajudar-me, mas eu não tinha
qualquer possibilidade de o encontrar agora.
Um bando de corvos aterrou no montículo à minha direita,
depois voou em círculos por cima do jipe, grasnando
ruidosamente. Olhei pelas janelas em ambas as direcções, certo
de que alguém estaria a perturbar os pássaros, mas não vi
ninguém. Após alguns minutos a maior parte dos corvos voou
para oeste, ainda a grasnar. Mas um deles ficou no cimo do
montículo, olhando silenciosamente na minha direcção. Isso é
bom, pensei. Pode ser uma sentinela. Eu podia ficar quieto até
decidir o que fazer.
90 - 91
Na parte de trás do jipe encontrei alguns frutos secos e
nozes juntamente com algumas bolachas. Comi-as distraidamente,
de vez em quando bebendo nervosamente do cantil com água.
Sabia que tInha de arranjar um plano. Ocorreu-me seguir
estrada fora para oeste, mas decidi não o fazer. Um grande
medo estava agora a engolir-me e eu apenas queria o mesmo de
sempre: esquecer esta viagem, regressar a Lhasa e depois ao
aeroporto. Sabia que conseguiria recordar algumas das
viragens, mas outras teria de adivinhar. Não conseguia
acreditar que não tinha tentado falar com alguém no mosteiro
do Lama Rigden ou em casa de Hanh, para preparar um plano de
fuga.
Enquanto pensava no que fazer, senti o coração a parar.
Ouvia os primeiros murmúrios de um veículo a descer a estrada
na minha direcção. Pensei em ligar o jipe e afastar-me, mas vi
que o veículo estava a aproximar-se demasiado depressa. Em vez
disso, agarrei no cantil e num saco com comida, corri para
trás do montículo mais afastado e escondi-me num lugar fora de
vista, mas de onde ainda conseguia ver o que se estava a
passar.
O veículo abrandou. Enquanto ele passava junto a mim,
apercebi-me que era a carrinha que tinha visto antes, no
bloqueio de estrada. O condutor era o homem louro que os
soldados chineses estavam a interrogar e no lugar do
passageiro estava uma mulher.
Enquanto os observava, a carrinha parou completamente e eles
começaram a falar. Pensei em ir falar com eles, mas senti
imediatamente uma vaga de medo. E se os soldados os tivessem
alertado a nosso respeito, insistindo para que os notificassem
se fôssemos vistos? Seriam eles capazes de me denunciar?
A mulher abriu ligeiramente a porta, como se fosse sair,
ainda a falar com o homem. Teriam visto o jipe? A minha mente
corria desenfreada. Decidi que, se ela saísse e viesse nesta
direcção, eu começaria a correr. Assim, apenas encontrariam o
jipe e eu conseguiria ganhar alguma distância deste lugar,
antes que os militares viessem.
Com essa ideia em mente, voltei a olhar para a carrinha. Os
dois estavam a olhar fixamente para os montículos, com uma
expressão de preocupação no rosto. Olharam um para o outro
mais uma vez, depois a mulher bateu com a porta e afastaram-se
para oeste. Observei a carrinha a ultrapassar a pequena
elevação à minha esquerda e desaparecer.
92
Algures dentro de mim senti-me desiludido. Talvez eles
tivessem podido ajudar-me, pensei. Considerei a hipótese de
correr para o jipe e tentar apanhá-los, mas afastei essa
ideia. Seria melhor não tentar o destino, concluí. Era mais
prudente voltar ao meu plano original e tentar regressar a
Lhasa e a casa.
Cerca de meia hora mais tarde regressei ao jipe e liguei o
motor. O corvo à minha esquerda grasnou e voou estrada fora,
na direcção que a carrinha holandesa tinha seguido. Virei na
direcção contrária e conduzi de regresso a Zhongba, seguindo
uma série de estradas secundárias, esperando evitar as ruas
principais e o restaurante. Cobri mais alguns quilómetros até
chegar ao cimo de uma colina. Abrandei ao ultrapassar o cimo
da elevação para poder inspeccionar a longa estrada à
distância.
Quando estava em posição de ver, fiquei chocado. Não só
havia um novo bloqueio de estrada a menos de um quilómetro, ao
fundo da montanha, com dúzias de soldados, como ainda
conseguia contar quatro grandes camiões e dois jipes cheios de
tropas a seguirem na minha direcção, aproximando-se
rapidamente.
Virei rapidamente o jipe e acelerei na direcção de onde
tinha vindo, esperando não ser visto. Sabia que teria muita
sorte se conseguisse escapar-lhes. Calculei que teria de
viajar mais para oeste, o mais depressa possível, depois virar
para sul e para leste. Talvez houvesse suficientes estradas
secundárias para eu conseguir regressar a Lhasa por aí.
Acelerei pela rua principal e virei para uma série de ruas
laterais, seguindo mais uma vez para sul. Ao fazer uma curva
apercebi-me que seguia na direcção errada. Tinha
inadvertidamente regressado à rua principal. Antes de
conseguir parar, estava a menos de cem metros de outro posto
de controlo chinês. Havia soldados por todo o lado. Parei na
berma da estrada, travei o jipe e depois encolhi-me no
assento.
E agora? pensei. Prisão? O que me fariam? Iriam
considerar-me um espião?
Após alguns momentos apercebi-me que os chineses pareciam
ignorar a minha presença, muito embora eu estivesse
estacionado à vista de todos.
93
Carros velhos e carroças, e até mesmo peões e bicicletas
passavam por mim, os soldados paravam-nos a todos e pediam a
identificação, verificando os documentos e, por vezes,
revistando-os. Mas não me prestaram nenhuma atenção.
Olhei para a direita e vi que estava estacionado junto à
estradinha que conduzia até uma pequena casa de pedra, várias
centenas de metros mais à frente. À esquerda da casa havia um
pequeno relvado por aparar e, para lá da relva, via-se outra
estrada.
Nesse exacto momento um grande camião passou por mim e parou
directamente à minha frente, bloqueando a vista para o posto
de controlo. Momentos depois um Toyota Land Cruiser azul,
conduzido por outro homem louro, surgiu e ultrapassou o
camião. A seguir ouvi vozes a falarem alto e gritos em chinês.
O veículo parecia estar a recuar, como se quisesse inverter a
marcha, mas os soldados rodearam-no. Embora a minha linha de
visão estivesse bloqueada, conseguia ouvir gritos furiosos em
chinês, misturados com pedidos assustados em inglês com
sotaque holandês.
- Não, por favor - disse a voz. - Desculpem. Sou um turista.
Vejam, tenho uma licença especial para conduzir na estrada.
Outro carro parou. O meu coração deu um salto dentro do
peito. Era o mesmo oficial chinês que eu tinha visto antes, no
restaurante. Encolhi-me ainda mais no meu banco, tentando
esconder-me enquanto ele passava por mim.
- Dê-me os seus papéis! - ordenou ele ao holandês, num
inglês perfeito.
Enquanto escutava, notei qualquer coisa a mover-se à minha
direita e olhei pela janela do passageiro para ver o que era.
O caminho em direcção à casa parecia revestido de um brilho
luminoso quente, exactamente o mesmo brilho que eu tinha visto
quando Yin e eu fugimos de Lhasa. Os dakini.
O motor do jipe estava a funcionar, por isso bastou-me
arrancar devagar para a direita e descer o caminho. Quase não
respirava enquanto passava pela casa e atravessava a relva, em
direcção à outra rua e à esquerda. Um quilómetro mais à frente
virei novamente à esquerda, seguindo para norte para fora da
vila, pela mesma rua lateral que tinha seguido antes. Dez
minutos depois estava de novo nos montículos, pensando no que
fazer. Na estrada para oeste ouvi outro corvo a grasnar.
Instantaneamente decidi seguir nessa direcção, a direcção que
podia ter seguido há tanto tempo.
A estrada levava a uma inclinação íngreme e depois do cume
estendia-se por uma recta numa planície rochosa. Conduzi
durante várias horas, enquanto a luz da tarde começava a
desaparecer. Não se viam quaisquer carros ou pessoas e quase
nenhumas casas. Meia hora mais tarde estava completamente
escuro e eu estava a pensar em arranjar um sítio para
pernoitar, quando notei um carreiro estreito de gravilha que
se estendia à minha direita. Abrandei o jipe e olhei mais
atentamente. Havia qualquer coisa na berma da entrada para o
carreiro. Parecia uma peça de roupa.
Parei o jipe e apontei uma lanterna pela janela. Era um
casaco. O meu casaco. Aquele que eu tinha deixado no
restaurante, antes dos chineses chegarem. Sorrindo, apaguei a
luz. Yin devia ter colocado ali o casaco. Saí do jipe,
recolhi-o e segui pela estrada estreita com os faróis
apagados.
O caminho subia um pouco menos de um quilómetro, uma
inclinação gradual até uma casa com celeiro. Guiei
cautelosamente. Várias cabras observavam-me do outro lado de
uma vedação. No alpendre da casa, vi um homem sentado num
banco. Parei o jipe e ele ergueu-se. Reconheci a silhueta. Era
Yin.
Saí do jipe e corri até junto dele. Ele recebeu-me com um
abraço rígido, sorrindo.
- Estou satisfeito por vê-lo - declarou. - Como vê, eu disse
que estávamos a ser ajudados.
- Quase fui apanhado - repliquei. - Como é que escapaste?
O nervosismo voltou ao seu rosto.
- As mulheres do restaurante são muito astutas. Viram os
soldados chineses e esconderam-me no forno. Nunca ninguém
procura lá.
- O que achas que vai acontecer às mulheres? - perguntei.
Ele fixou os meus olhos mas não disse nada durante um longo
momento.
- Não sei - respondeu. - Muitas pessoas estão a pagar um
alto preço por nos ajudarem.
Afastou o olhar e apontou para o jipe.
94 - 95
- Ajude-me a trazer alguma comida e vamos preparar qualquer
coisa para comer.
Enquanto Yin fazia uma fogueira explicou-me que, depois da
polícia ter partido, tinha voltado a casa dos seus amigos, que
lhe sugeriram esta velha casa como esconderijo enquanto eles
procuravam outro veículo.
- Eu sabia que você poderia ser dominado pelo medo e tentar
regressar a Lhasa - acrescentou Yin. - Mas também sabia que,
se decidisse continuar esta viagem, teria de acabar por seguir
novamente para noroeste. Esta seria a única estrada, por isso
coloquei ali o seu casaco, esperando que fosse você a vê-lo e
não os soldados.
- Foi um grande risco - disse eu.
Ele acenou enquanto punha os vegetais a cozer numa pesada
panela cheia de água e a pendurava num gancho de metal por
cima do fogo. Chamas saltaram dos excrementos de iaque e
lamberam o fundo da panela.
Ver Yin novamente aliviou boa parte do meu medo e, enquanto
nos sentávamos em velhas cadeiras poeirentas em frente da
fogueira, eu disse:
- Tenho de admitir que pensei em fugir. Pensei que era a
minha única hipótese de sobreviver.
Prossegui e contei-lhe tudo o que tinha acontecido, aliás,
tudo excepto a experiência com a luz em redor da casa. Quando
chegámos à parte em que eu estava nos montículos e a carrinha
chegou, ele deu um salto na cadeira.
- Tem a certeza que era a mesma carrinha que nós vimos no
bloqueio de estrada? - perguntou, com ar severo.
- Sim, eram eles - respondi.
Ele pareceu completamente exasperado.
- Viu as pessoas que tínhamos visto antes e não falou com
elas?
O rosto dele estava transtornado pela raiva.
- Não se lembra de eu lhe contar o meu sonho, de nós
conhecermos alguém que nos ajudaria a encontrar o portão?
- Não quis dar-lhes hipótese de me denunciarem - protestei.
- O quê? - Ele olhou fixamente para mim, depois inclinou-se
para a frente e encostou o rosto às mãos durante um momento.
- Fiquei petrificado - disse eu. - Não acredito que me meti
nesta situação. Queria sair. Queria sobreviver.
- Ouça-me com atenção - disse Yin. - As suas hipóteses de
sair do Tibete fugindo são agora muito reduzidas. A sua única
possibilidade de sobreviver é avançar e, para fazer isso, tem
de usar a sincronicidade.
Desviei o olhar, sabendo que provavelmente ele tinha razão.
- Conte-me o que aconteceu quando a carrinha se aproximou -
disse Yin. - Cada pensamento. Cada pormenor.
Contei-lhe que a carrinha tinha parado e que, quando isso
aconteceu, eu fiquei imediatamente assustado. Descrevi a forma
como a mulher parecia querer sair, mas depois mudou de ideias
e foram embora.
Ele abanou mais uma vez a cabeça.
- Matou a sincronicidade com um uso errado do seu campo de
oração. Preparou o seu campo com expectativas receosas e isso
parou tudo.
Desviei o olhar.
- Pense naquilo que estava a acontecer - prosseguiu Yin -
quando ouviu a carrinha a aproximar-se. Tinha duas opções:
podia pensar nesse acontecimento como uma ameaça ou como um
auxílio potencial. Obviamente que tem de pensar nas duas
possibilidades. Mas, assim que reconheceu a carrinha, isso
devia ter-lhe dito qualquer coisa. O facto de ser a mesma
carrinha que tínhamos visto antes no cruzamento é
significativo, especialmente porque essas mesmas pessoas
criaram a diversão que nos permitiu passar sem sermos vistos.
Desse ponto de vista, eles já o tinham ajudado e era possível
que agora estivessem ali para o ajudar novamente.
Acenei com a cabeça. Ele tinha razão. Era óbvio que eu tinha
estragado tudo.
Yin olhou noutra direcção, distraído pelos seus próprios
pensamentos, e depois disse:
- Perdeu completamente a sua energia e as expectativas
positivas. Lembra-se daquilo que eu lhe disse no restaurante?
Preparar um campo para a sincronicidade é uma questão de nos
colocarmos num estado de espírito particular. É fácil pensar
na sincronicidade intelectualmente mas, a menos que entremos
no estado de espírito em que o nosso campo de oração nos pode
96 - 97
ajudar, tudo o que fazemos é avistar algumas coincidências de
vez em quando. Em algumas situações isso é o bastante e você
poderá avançar durante algum tempo, mas acabará por perder o
rumo. A única forma de estabelecer um fluxo constante de
sincronicidade é ficar num estado em que o nosso campo de
oração mantenha este fluxo em movimento para nós, um estado de
alerta consciente.
- Continuo sem ter a certeza de como entrar nesse estado de
espírito.
- Temos de parar e lembrarmo-nos de assumir uma atitude de
alerta a cada momento. Temos de visualizar a nossa energia a
irradiar e a trazer para nós, os palpites certos, os
acontecimentos certos. Temos de esperar que eles ocorram a
qualquer momento. Preparamos os nossos campos para nos
trazerem a sincronicidade estando vigilantes, sempre à espera
do próximo encontro. Sempre que nos esquecemos de nos
mantermos neste estado de expectativa, temos de nos obrigar a
recordar.
Quanto mais nos mantivermos neste estado de espírito, tanto
mais a sincronicidade aumentará. E finalmente, se mantivermos
a energia elevada, esta postura de alerta consciente
tornar-se-á a nossa atitude dominante perante a vida. As
lendas dizem que as extensões da oração acabarão por ser uma
segunda natureza para nós. Iremos prepará-las pela manhã de
forma tão rotineira como nos vestimos. É esse o local que
devemos atingir, o estado de espírito em que temos
constantemente esta expectativa.
Fez uma pausa e olhou para mim durante um momento.
- Quando ouviu o veículo a seguir na sua direcção, sentiu
imediatamente medo. Pelo que me parece, eles tiveram a
intuição que deviam parar nos montículos, embora provavelmente
não fizessem ideia da razão. Mas depois você ficou com medo,
pensando que podiam ser os maus da fita, o seu campo
desapareceu e teve um efeito sobre eles. Entrou nos campos
deles, provavelmente fê-los sentir que havia qualquer coisa
mal, que estavam a fazer qualquer coisa errada, e por isso
partiram.
Aquilo que ele me estava a dizer era incrível, mas soava-me
verdadeiro.
- Conta-me mais acerca do modo como os nossos campos afectam
as pessoas - pedi.
Ele abanou a cabeça.
- Está a adiantar-se. O efeito dos nossos campos sobre as
outras pessoas é a Terceira Extensão. Por agora, concentre-se
em preparar o seu campo para a sincronicidade e em não ter
pensamentos receosos. Tem tendência para esperar o pior.
Lembra-se de quando íamos a caminho do mosteiro do Lama Rigden
e eu o deixei sozinho? Viu um grupo de refugiados que o teriam
guiado directamente ao mosteiro, se ao menos tivesse falado
com eles. Mas imaginou que eles poderiam denunciá-lo e perdeu
a sincronicidade. Estes pensamentos negativos são um padrão em
si.
Limitei-me a olhar para ele, sentindo-me cansado. Ele sorriu
e não voltou a falar nos meus erros. Falámos descontraidamente
acerca do Tibete durante a maior parte da noite, saindo a dada
altura para vermos as estrelas. O céu estava limpo e a
temperatura quase gelada. Por cima de nós estavam as estrelas
mais brilhantes que eu já tinha visto e comentei isso com Yin.
- É claro que parecem grandes - disse ele. - Estamos no
tecto do mundo.
Na manhã seguinte dormi até tarde e fiz uma série de
exercícios de tai chi com Yin. Esperámos tanto tempo quanto
possível pelos amigos de Yin, mas não apareceram.
Compreendemos que afinal tínhamos de arriscar sair com apenas
um veículo e carregámos o jipe, arrancando ao entardecer.
- Deve ter acontecido qualquer coisa - disse Yin, olhando
para mim.
Ele estava a tentar ser forte, mas via-se que estava
preocupado. Seguimos novamente pela estrada principal, através
de uma neblina espessa e cheia de areia que tinha coberto a
maior parte da paisagem e não nos deixava ver as montanhas.
- Desta maneira será difícil chineses verem-nos - observou
Yin.
- Isso é bom - disse eu.
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Tinha estado a perguntar a mim mesmo como os chineses sabiam
que estávamos no restaurante em Zhongba, por isso perguntei a
Yin o que ele pensava.
- Tenho a certeza que foi culpa minha - disse ele. - Eu
falei-Lhe da raiva e medo que sinto em relação a eles. Tenho a
certeza que o meu campo de oração me trouxe o que eu estava a
pedir.
Lancei-lhe um olhar duro. Isto era demais.
- Estás a dizer-me - perguntei - que, por tu teres medo, a
tua energia trouxe os chineses até nós?
- Não, não apenas por ter medo. Todos temos um medo geral.
Não é isso que eu quero dizer. Estou a falar em permitir que a
minha mente tenha visões aterrorizadoras daquilo que poderia
acontecer, do que os chineses poderiam fazer. Vejo-os a agir
no Tibete há tanto tempo que já conheço os seus métodos. Sei
como eles oprimem as pessoas através da intimidação.
Permiti-me vê-los a virem atrás de nós na minha mente, como
uma pequena visão, e não fiz nada para contrariar essa imagem.
Devia ter-me controlado, tê-los visualizado na minha mente a
não serem tão adversos em relação a nós e depois ter-me
agarrado a essa expectativa. Não foi o meu medo geral que os
trouxe. Inconscientemente formei uma imagem específica,
segundo a qual eles nos encontrariam. Foi esse o problema. Se
nos agarrarmos a uma imagem negativa por demasiado tempo, ela
pode acabar por se tornar realidade.
Esta ideia continuava a surpreender-me. Estaria correcta? Há
muito tempo que eu observava que as pessoas que receavam um
acontecimento particular - um assalto à sua casa, por exemplo,
uma doença particular, ou perder um amante - muitas vezes
sofriam exactamente isso nas suas vidas. Seria esse o efeito
que Yin estava a descrever?
Lembrei-me da imagem terrível que vira em Zhongba, quando
Yin saiu para ir procurar alguém que fosse connosco. Tinha
imaginado ficar sozinho no jipe e andar às voltas perdido,
exactamente o que veio a acontecer. Um arrepio percorreu-me.
Tinha estado a fazer o mesmo erro que Yin.
- Estás a dizer que tudo o que nos acontece de negativo é
resultado dos nossos próprios pensamentos? - perguntei.
Ele franziu a testa.
- É claro que não. Muitas coisas acontecem apenas no curso
natural da convivência com outros seres humanos. As
expectativas e acções deles também desempenham um papel. Mas
nós temos alguma influência criadora, acreditemos ou não.
Temos de despertar e compreender que, em termos da nossa
energia de oração, uma expectativa é uma expectativa,
baseie-se ela no medo ou na fé. Neste caso, eu não me vigiei
com suficiente atenção. Eu disse-lhe que o meu ódio aos
chineses era um problema.
Ele virou-se e o nosso olhar encontrou-se.
- Lembre-se também do que eu lhe disse - acrescentou. - Que
nestes níveis superiores de energia o efeito do campo de
oração é muito rápido. No mundo vulgar, os indivíduos ainda
têm uma mistura de imagens de medo e de sucesso, que tendem a
anular-se umas às outras e manter o efeito limitado. Mas a
este nível podemos afectar muito rapidamente o que acontece,
muito embora uma imagem de medo acabe por destruir a força do
nosso campo.
A chave é garantir que a nossa mente esteja concentrada na
via positiva para a nossa vida, não numa expectativa receosa.
É por isso que a Segunda Extensão é tão importante. Se nos
certificarmos que estamos num estado de alerta consciente para
a próxima sincronicidade, as nossas mentes mantêm-se positivas
e afastam o medo e a dúvida. Está a ver o que eu quero dizer?
Acenei com a cabeça mas não disse nada.
Yin concentrou-se novamente na estrada.
- Temos de usar este poder imediatamente. Mantenha-se o mais
alerta possível. Podíamos passar muito facilmente pela
carrinha neste nevoeiro, e não queremos perdê-la. Tem a
certeza que eles seguiram nesta direcção?
- Sim - respondi.
- Nesse caso se tiverem parado para passar a noite, tal como
nós fizemos, não devem estar muito longe.
Viajámos toda a manhã, ainda em direcção a noroeste. Por
muito que tentasse, não conseguia manter-me no estado de
alerta consciente que Yin tinha descrito. Qualquer coisa não
estava bem. Yin notou e continuou a olhar para mim. Finalmente
voltou-se e perguntou.
100 - 101
- Tem a certeza que está à espera do processo de
sincronicidade completo?
- Sim - respondi. - Penso que sim.
Ele franziu ligeiramente a testa e continuou a olhar para
mim de lado.
Eu sabia o que ele estava a pensar. No Peru e, mais tarde,
nos montes Apalaches, com a Décima Revelação, eu tinha vivido
um processo de sincronicidade. Todos nós, em algum momento,
temos uma questão essencial nas nossas vidas, algo que nos
preocupa devido à nossa situação particular na vida. No nosso
caso, a questão era como encontrar a carrinha holandesa e
depois Wil e o portão.
Idealmente, assim que reconhecêssemos a questão central nas
nossas vidas receberíamos uma orientação através de um
pensamento ou intuição acerca da resposta. Recebemos uma
imagem mental que nos sugere um percurso, uma acção, uma
palavra para dizer a um estranho. Idealmente, mais uma vez, se
seguirmos essa intuição surgirão coincidências que nos darão
informação acerca da nossa questão. Esta sincronicidade
faz-nos avançar pelo caminho da vida... e, por sua vez, em
direcção a uma nova questão.
- O que dizem as lendas acerca disto? - inquiri.
Yin respondeu:
- Elas dizem que os humanos aprenderão que o poder da oração
pode influenciar muito o fluxo das suas vidas. Usando a força
das nossas expectativas, podemos fazer o processo de
sincronicidade ocorrer mais vezes. Mas temos de nos manter
alerta durante todo o processo, começando pela próxima
intuição. Está conscientemente à espera de uma intuição?
- Ainda não recebi nada - disse eu.
- Mas está à espera de uma? - insistiu ele.
- Não sei. Não estava bem a pensar em intuições.
Ele acenou.
- Tem de lembrar-se que isso faz parte da preparação do seu
campo de oração para a sincronicidade. Tem de manter-se alerta
e esperar que todo o processo se desenrole: a questão, receber
a intuição, segui-la, procurar coincidências. Lembre a si
mesmo que tem de esperar tudo isso, estar alerta em relação a
tudo isso e, se o fizer, a sua energia irá à sua frente e
ajudará a provocar esse fluxo.
Sorriu-me de uma maneira que tencionava animar-me.
Respirei fundo algumas vezes, sentindo a minha energia a
começar a regressar. O humor de Yin era contagioso. Fiquei
mais alerta.
Devolvi-lhe o sorriso. Pela primeira vez percebi quem era
realmente o Yin. Por vezes ele estava tão assustado quanto eu
e muitas vezes era demasiado directo, mas estava de todo o
coração nesta viagem e queria, mais do que qualquer outra
coisa, ser bem sucedido. Enquanto pensava nisto, imaginei-nos
a caminhar por dunas de areia grossa à noite, algures perto de
um rio. Havia um brilho à distância, uma fogueira, que nós
queríamos alcançar. Yin ia à frente e eu estava satisfeito por
poder segui-lo.
Olhei novamente para ele. Ele estava a olhar fixamente para
mim. Contei-lhe o que tinha acontecido.
- Acho que tenho qualquer coisa - disse eu. - Pensei em nós
dois a caminharmos na direcção de uma fogueira. Achas que isso
quer dizer alguma coisa.
- Só você pode saber - disse ele.
- Mas eu não sei. Como é suposto eu saber?
- Se o seu pensamento era uma intuição para nos orientar,
devia ter qualquer coisa a ver com a nossa busca da carrinha.
Quem estava junto à fogueira? Qual era a sensação?
- Não sei quem estava lá. Mas nós queríamos muito chegar à
fogueira. Há alguma zona arenosa aqui perto?
Yin afastou o jipe da estrada e parou. A neblina estava a
começar a levantar.
- Esta paisagem é toda areia rochosa durante mais cento e
cinquenta quilómetros - declarou Yin.
Encolhi os ombros.
- E um rio? Há algum rio aqui por perto?
Os olhos de Yin iluminaram-se.
- Sim, a seguir à próxima vila, Paryang, cerca de duzentos e
vinte e cinco quilómetros mais à frente.
Fez uma breve pausa, sorrindo largamente.
- Temos de nos manter alerta - disse. - É a nossa única
pista.
102 - 103
Fizemos um bom tempo e chegámos a Paryang ao pôr do Sol.
Passámos directamente pela vila e depois mais vinte
quilómetros, até que Yin virou à direita para uma estrada de
terra batida. Estava quase completamente escuro, mas víamos o
rio a menos de um quilómetro à nossa frente.
- Há um posto de controlo mais à frente - explicou ele. -
Temos de contorná-lo.
Quando nos aproximámos do rio a estrada ficou mais estreita
e extremamente irregular.
- O que é aquilo? - perguntou Yin, parando o jipe e
recuando.
Numa clareira rochosa à nossa direita, quase invisível,
estava um veículo. Desci a minha janela para podermos ver
melhor.
- Não é uma carrinha - disse Yin. - É um Land Cruiser azul.
Eu tentei ver melhor.
- Espera um minuto - disse eu. - É o veículo que eu vi no
bloqueio de estrada, quando nos separámos.
Yin apagou os faróis e a escuridão pareceu engolir-nos.
- Vamos avançar um pouco mais - disse ele, levando o jipe
sobre as valas profundas mais algumas centenas de metros.
- Olha! - exclamei, apontando. À nossa esquerda estava a
carrinha, parada entre duas grandes rochas. Não havia ninguém
por perto.
Estava prestes a sair quando Yin fez subitamente avançar o
jipe e o estacionou longe da vista, várias centenas de metros
a leste.
- É melhor esconder o nosso veículo - comentou, trancando-o
depois de sairmos.
Regressámos à carrinha e olhámos em redor.
- As pegadas seguem nesta direcção - disse Yin, apontando
para sul. - Venha.
Caminhei atrás dele enquanto avançávamos por entre grandes
rochedos e areia. Uma lua a três quartos iluminava o percurso.
Dez minutos depois ele olhou para mim e fungou. Eu também
sentia o cheiro: o fumo de uma fogueira.
Caminhámos mais vinte e cinco metros na escuridão, até
vermos um acampamento. Um homem e uma mulher estavam aninhados
junto do fogo. Era o casal holandês que eu tinha visto na
carrinha. O rio estava logo atrás deles.
- O que fazemos? - sussurrei.
- Teremos de anunciar a nossa presença - disse ele. - Seria
melhor você fazer isso, para eles terem menos medo. - Não
sabemos quem eles são - disse eu, resistindo.
- Avance, diga-lhes que nós estamos aqui.
Olhei para eles mais atentamente. Vestiam calças de campo e
camisolas grossas de algodão. Pareciam simples turistas a
passearem pelo Tibete.
- Olá - disse com voz forte. - Estamos satisfeitos por
vê-los.
Yin olhou para mim de soslaio.
As duas pessoas deram um salto e olharam fixamente enquanto
nós emergíamos da escuridão. Com um grande sorriso, disse:
- Precisamos da vossa ajuda.
Yin seguiu atrás de mim, fez uma pequena vénia e disse:
- Desculpem o incómodo, mas estamos à procura do nosso amigo
Wilson James. Esperávamos que nos pudessem ajudar.
Estavam ambos em choque, sem acreditarem que tínhamos
entrado no acampamento deles daquela maneira. Mas lentamente a
mulher pareceu compreender que éramos inofensivos e
ofereceu-nos um lugar junto da fogueira.
- Não conhecemos Wilson James - disse ela. - Mas o homem que
viemos procurar esta noite conhece-o. Eu ouvi-o a mencionar
esse nome.
O companheiro dela acenou, parecendo muito nervoso.
- Espero que o Jacob consiga encontrar-nos. Está atrasado
várias horas.
Estava prestes a dizer-Lhe que tínhamos visto o Land Cruiser
parado não muito longe quando a expressão no rosto do homem
mudou. Parecia petrificado. Os olhos dele ficaram colados em
qualquer coisa atrás de mim. Virei-me bruscamente. Na direcção
dos carros o terreno estava coberto de veículos e de faróis e
de dúzias de vozes a falarem em chinês, todas elas avançando
na nossa direcção.
O homem pôs-se de pé com um salto e apagou a fogueira.
Agarrou em várias malas e correu para longe do acampamento com
a mulher.
104 - 105
- Venha - disse Yin, tentando acompanhá-los. Alguns minutos
depois eles tinham desaparecido na escuridão. Finalmente Yin
desistiu. Atrás de nós, as luzes estavam a aproximar-se e nós
avançámos atabalhoadamente para o rio.
- Acho que consigo voltar ao jipe - disse Yin. - Se tivermos
sorte eles ainda não o encontraram. Siga para norte, rio acima
durante um quilómetro, e tente ganhar alguma distância. Vai
encontrar outra estrada que desce até à beira do rio. Fique à
escuta e eu irei recolhê-lo.
- Porque não posso ir contigo? - perguntei.
- Porque é demasiado perigoso. Um homem pode conseguir
passar, mas dois seriam vistos.
Concordei com relutância e comecei a avançar por entre as
rochas e os montículos de pedra miúda à luz da Lua, usando a
lanterna apenas quando era absolutamente necessário. Sabia que
o plano de Yin era louco, mas parecia ser a nossa única
hipótese. Perguntei a mim mesmo o que teríamos descoberto se
tivéssemos falado mais um pouco com o casal holandês ou
conhecido o outro homem. Depois de uns dez minutos parei para
descansar. Tinha frio e estava cansado.
Ouvi um movimento à minha frente. Tentei ouvir melhor.
Alguém estava mesmo a andar. Devia ser o casal holandês,
pensei. Avancei lentamente, até me aproximar do som. A vinte
metros de mim via a silhueta de uma única pessoa, um homem.
Sabia que tinha de dizer qualquer coisa ou correria o risco de
perdê-lo.
- Você é holandês? - balbuciei, pensando que este devia ser
o homem que o casal esperava.
Ele ficou imóvel e não disse nada, por isso repeti a
pergunta. Parecia uma tolice, mas pensei que talvez
conseguisse alguma reacção.
- Quem está aí? - foi a resposta.
- Sou americano - disse eu. - Vi os seus amigos.
Ele virou-se e olhou para mim, enquanto eu abria caminho por
entre as pedras para chegar até ele. Era jovem, talvez vinte e
cinco anos, e parecia aterrorizado.
- Onde viu os meus amigos? - perguntou, com a voz trémula.
Enquanto se concentrava em mim, senti quão assustado ele
estava. Uma onda de medo percorreu também o meu corpo e tive
de lutar para manter a minha energia.
106
- Rio abaixo - respondi. - Eles disseram-nos que estavam à
sua espera.
- Os chineses estavam lá? - perguntou ele.
- Sim, mas acho que os seus amigos escaparam.
Ele pareceu ainda mais assustado.
- Eles disseram-nos - disse rapidamente - que você conhecia
o homem que eu procuro, Wilson James.
Ele estava a recuar.
- Tenho que sair daqui - disse, voltando-se para ir embora.
- Já o vi antes - disse eu. - Ficou retido num posto de
controlo em Zhongba.
- Sim - replicou ele. - Estava lá?
- Estava atrás de si no trânsito. Você estava a ser
interrogado por um oficial chinês.
- É verdade - respondeu, olhando nervosamente em todas as
direcções.
- E o Wil? - perguntei, lutando para me manter calmo. -
Wilson James. Conhece-o? Ele disse-Lhe alguma coisa acerca de
um portão?
O jovem não disse mais nada. Os olhos estavam gelados de
medo. Voltou-se e correu por entre as rochas, continuando a
subir o rio. Persegui-o durante algum tempo, mas, em breve,
ele desapareceu na escuridão. Finalmente parei e olhei para
trás, na direcção da carrinha e do nosso jipe. Ainda conseguia
ver as luzes e ouvir vozes abafadas.
Virei-me e segui novamente para norte, compreendendo
demasiado bem que tinha desperdiçado a minha hipótese. Não
tinha conseguido qualquer informação dele. Tentei ignorar o
falhanço. O mais importante era encontrar Yin e tentar fugir,
eu próprio. Finalmente encontrei a velha estrada e minutos
depois ouvi o som fraco de um jipe.
107
5.
O CONTÁGIO DA CONSCIÊNCIA
Espreguicei-me o melhor que pude no veículo apertado.
Estava completamente exausto e perguntei a mim mesmo como Yin
teria forças para conduzir. Eu sabia que tínhamos tido sorte.
Tal como Yin supunha, os militares chineses pareciam
desorganizados e despreocupados na sua busca. Tinham colocado
um único guarda na carrinha do casal holandês, enquanto os
outros procuravam distraidamente na outra direcção, ignorando
completamente o nosso jipe. Yin tinha conseguido pô-lo em
funcionamento sem fazer muito barulho e contornou-os sem ser
detectado, para me recolher junto ao rio.
Neste momento Yin ainda ia a conduzir com os faróis
apagados, olhando fixamente através do pára-brisas para ver a
estrada escurecida.
Um momento depois ele olhou para mim.
- O jovem holandês que você viu não lhe disse nada?
- É verdade - respondi. - Ele estava demasiado assustado e
fugiu.
Yin abanou a cabeça.
- Isto é tudo culpa minha. Se ao menos eu lhe tivesse falado
da próxima extensão da oração, a Terceira, você teria sido
mais bem sucedido a conseguir essa informação.
Comecei a perguntar-lhe o que ele queria dizer, mas ele
silenciou-me com um gesto.
- Lembre-se do sítio onde está - explicou ele. - Já
experimentou a Primeira Extensão: ligar-se à energia e
deixá-la fluir através de si, visualizá-la a formar um campo
de energia que o precede em toda a parte.
109
A Segunda Extensão, como eu lhe expliquei, trata de preparar o
seu campo de energia de forma a aumentar o seu fluxo vital.
Pode fazer isso mantendo-se alerta e na expectativa. A
Terceira Extensão trata de preparar o seu campo de oração para
sair e aumentar os níveis de energia e de vibração nos outros.
Quando o seu campo de oração chega aos outros desta forma,
eles sentem um impacto de energia espiritual, clareza e
intuição e é mais provável que lhe dêem a informação correcta.
Mais uma vez soube exactamente o que ele estava a sugerir.
Sob a orientação de Wil e Sanchez no Peru, eu tinha explorado
a forma de enviar energia a outras pessoas, como uma nova
atitude ética em relação a elas. Agora Yin parecia estar a
esclarecer mais eficazmente a forma de fazer isso.
- Sei o que queres dizer - declarei. - Ensinaram-me que há
uma expressão do eu superior que pode ser encontrada no rosto
de todas as pessoas. Se falarmos com esse eu, essa expressão,
a nossa energia ajuda a erguer essa pessoa a uma consciência
do eu superior.
- Sim - respondeu Yin -, mas esse efeito aumenta se um de
vós souber como alargar o seu campo de oração do modo que as
lendas explicam. Devemos esperar que o nosso campo de oração
se estenda à nossa frente e aumente a vibração das outras
pessoas à distância, mesmo que não estejamos suficientemente
perto para vermos os seus rostos.
Olhei para ele com ar interrogativo.
- Encare-o desta maneira: se estiver a praticar
verdadeiramente a Primeira Extensão, a energia entra em si e
fá-lo ver o mundo mais de acordo com aquilo que ele realmente
é: colorido, vibrante, belo, como uma floresta mágica ou um
deserto colorido. Agora, para praticar a Terceira Extensão,
tem de visualizar conscientemente a sua energia a transbordar
para o campo de todas as pessoas à sua volta e a aumentar a
sua vibração, para que também elas comecem a ver o mundo como
ele de facto é. Logo que isto acontecer, elas podem abrandar e
sentir a sincronicidade. Depois de prepararmos os nossos
campos desta maneira, é mais fácil observarmos a expressão do
eu superior no rosto dos outros.
Fez uma pausa e olhou para mim, como se tivesse acabado de
pensar noutra coisa.
110
- Lembre-se também - continuou - que existem armadilhas a
evitar quando elevamos outra pessoa. Cada rosto é um padrão de
traços, como um... hum... borrão de tinta, onde podemos ver
muitas coisas. Vemos a raiva de um pai violento, a distância
de uma mãe indiferente, ou o rosto de alguém que nos ameaçou.
É uma projecção do nosso passado, uma percepção criada por uma
situação traumática que determina as reacções que esperamos
nos outros. Quando vemos alguém que, mesmo que de forma ténue,
se assemelha a alguém que nos tratou mal, a tendência é
esperarmos que essa pessoa aja da mesma maneira.
É muito importante compreender este problema e vigiá-lo
atentamente. Temos de ultrapassar as expectativas ditadas
pelas nossas experiências passadas. Compreende?
Acenei com a cabeça, ansioso pelo resto.
- Agora pense mais uma vez naquilo que lhe aconteceu no
hotel, em Katmandu. Temos de observá-lo mais atentamente. Não
disse que aquele homem na piscina mudou o estado de espírito
de toda a gente quando se sentou?
Acenei novamente, pensando. Isso estava absolutamente
correcto. Parecia que o homem trouxera um estado de espírito
renovado à zona da piscina, antes mesmo de dizer uma única
palavra.
- Isso aconteceu porque a energia dele já estava preparada
para entrar nos campos de energia dos outros e dar-lhes um
impulso positivo. Pense agora na sensação exacta que isso lhe
causou.
Desviei o olhar por um momento, tentando recriar o que tinha
acontecido. Finalmente disse:
- Toda a gente naquela zona pareceu passar de um estado de
irritação e insatisfação para um estado de espírito mais
aberto e conversador. É difícil de explicar.
- A energia dele abriu-vos à exploração de algo novo -
prosseguiu Yin - em vez de estarem presos no terror ou no
desespero ou naquilo que vocês estavam a sentir, fosse o que
fosse.
Yin parou de falar por um momento, observando-me
atentamente.
- É claro - continuou - que podia ter acontecido o
contrário. Se o homem não tivesse uma energia suficientemente
forte, ao entrar na zona da piscina poderia ter sido dominado
pelo estado de baixa energia do resto das pessoas e descido ao
vosso nível. Foi o que lhe aconteceu quando encontrou o jovem
holandês. Ele estava aterrorizado e esse medo afectou-o.
111
Você deixou-se dominar pelo estado de espírito dele.
- Sabe, os campos de energia de todos nós misturam-se e só
os mais fortes resistem. É esta a dinâmica inconsciente que
caracteriza o mundo humano. O estado da nossa energia, as
nossas principais expectativas, sejam elas quais forem, vão
influenciar o estado de espírito e a atitude de toda a gente.
O nível de consciência entre humanos e todas as expectativas
que o acompanham são contagiosos. Este facto explica os
grandes mistérios do comportamento das multidões, porque razão
pessoas decentes, influenciadas por uns quantos muito
assustados ou zangados, podem envolver-se em linchamentos,
motins ou outras acções desprezíveis. Também explica porque a
hipnose funciona ou porque os filmes e a televisão têm uma tal
influência sobre os fracos de espírito. O campo de oração de
cada pessoa na Terra funde-se com os outros, criando todas as
normas, filiações de grupo, nacionalismos e hostilidades
étnicas que se vêem por aí.
Yin sorriu.
- A cultura é contagiosa. Basta viajar para um país estranho
e ver como as pessoas não só pensam de forma diferente, como
também sentem de forma diferente, no que diz respeito ao
estado de espírito e à atitude. Esta é uma realidade que
devemos compreender e dominar. Temos de lembrarmo-nos de usar
conscientemente a Terceira Extensão. Quando estamos a
relacionarmo-nos com outras pessoas e sentimos que estamos a
absorver o seu humor, a ser dominados pelas suas expectativas,
temos de recuar, enchermo-nos novamente e transbordar, até que
o estado de espírito melhore. Se ao menos tivesse feito isto
com o jovem holandês, poderia ter sabido mais acerca do Wil.
Eu estava impressionado. Yin parecia dominar completamente
esta informação.
- Yin - disse eu. - És um especialista.
O sorriso dele desvaneceu-se.
- Há uma diferença entre saber como tudo isto funciona -
replicou ele - e ser capaz de fazê-lo.
Devo ter dormido durante horas, porque quando acordei o Sol
já tinha nascido e o jipe estava parado numa zona plana acima
da estrada. Espreguicei-me e depois voltei a cair sobre o
assento. Fiquei alguns minutos a olhar para vários montículos
de pedras na estrada de terra batida lá em baixo. Passou um
nómada com um cavalo e uma pequena carroça mas, para além
dele, a estrada estava vazia. O céu estava límpido e algures
atrás de nós soava o canto de um pássaro. Respirei fundo.
Alguma da tensão do dia anterior tinha sido aliviada.
Yin começou lentamente a mexer-se e depois sentou-se,
olhando para mim com um sorriso. Saiu do jipe e
espreguiçou-se, depois tirou um fogão de campismo das
traseiras e começou a aquecer um fervedor com água para fazer
cereais e chá. Juntei-me a ele e mais uma vez tentei segui-lo
numa série de difíceis exercícios de tai chi.
Atrás de nós ouvimos um veículo a acelerar estrada fora.
Esperámos atrás de uma rocha e vimos o Land Cruiser passar,
reconhecendo-o ambos ao mesmo tempo.
- É o jovem holandês - exclamou Yin, correndo para o jipe.
Agarrei no fogão de campismo, atirei-o para as traseiras e
saltei para dentro do veículo, enquanto Yin o virava.
- Teremos sorte se o conseguirmos apanhar a esta velocidade
- comentou Yin enquanto começávamos a perseguição.
Passámos por uma pequena colina e descemos para um vale
estreito, avistando finalmente o veículo descendo a estrada
várias centenas de metros à nossa frente.
- Temos de alcançá-lo com a nossa energia de oração - disse
Yin.
Respirei fundo, visualizando a minha energia a estender-se
sobre a estrada e o Land Cruiser e a afectar o jovem.
Imaginei-o a abrandar e a parar.
Quando enviei esta imagem o veículo acelerou ainda mais,
afastando-se. Fiquei confuso.
- O que estava a fazer? - gritou Yin, olhando para mim.
- Estou a usar o meu campo para o fazer parar.
- Não use a sua energia dessa maneira - disse rapidamente
Yin. - Ela tem o efeito contrário.
112 - 113
Olhei para ele sem compreender.
- O que faz - perguntou Yin -, quando alguém tenta
manipulá-lo para o levar a fazer alguma coisa?
- Resisto - respondi.
- Exactamente - prosseguiu Yin. - Inconscientemente o
holandês consegue senti-lo a tentar dizer-lhe o que fazer. Ele
sente-se manipulado e isso dá-lhe a impressão que quem vem
atrás dele não lhe quer bem, o que gera mais medo e aumenta a
sua determinação em fugir - Tudo o que podemos fazer é
visualizar a nossa energia a estender-se para ele e a aumentar
o seu nível geral de vibração. Isso permite-lhe ultrapassar o
medo e entrar em contacto com a intuição do seu eu superior,
que, com sorte, o fará ter menos medo de nós e talvez arriscar
uma conversa. Fazer qualquer outra coisa é presumir que
sabemos o melhor rumo para a sua vida, mas só ele sabe isso.
Talvez a sua intuição superior lhe diga - logo que enviemos
energia suficiente - para se livrar de nós e sair do país.
Temos de aceitar isso. Tudo o que podemos fazer é ajudá-lo a
tomar a decisão com o maior nível de energia possível.
Fizemos uma curva e, de repente, deixámos de ver o Land
Cruiser azul. Yin abrandou. À nossa direita havia uma estrada
mais pequena que parecia destacar-se.
- Por ali! - disse eu, apontando.
Cem metros mais à frente, no sopé de uma pequena colina,
havia um rio afluente largo mas raso. No meio dele estava o
veículo do holandês, acelerando a fundo, girando as rodas e
fazendo lama saltar, mas sem avançar. Estava atascado.
O jovem olhou para nós e abriu a porta, preparando-se para
fugir. Mas quando me reconheceu desligou o motor e saiu para a
água que o cobriu até aos joelhos.
Quando parámos o nosso jipe ao lado dele, Yin olhou
atentamente para mim e eu percebi que ele me estava a recordar
para usar a minha energia. Acenei com a cabeça.
- Nós podemos ajudar-te - disse eu ao jovem.
Ele encarou-nos desconfiado durante um momento, mas
gradualmente ganhou confiança, depois que Yin e eu saímos e
empurrámos o pára-choques do Land Cruiser enquanto ele tentava
ligar o motor. As rodas giraram durante um momento, atirando
lama de encontro às minhas pernas, depois saltou para fora do
buraco e atravessou o rio. Nós seguimos no nosso jipe. O jovem
olhou para nós durante um momento, como se estivesse a decidir
se devia ir embora, mas saiu e caminhou na nossa direcção.
Quando ele se aproximou, apresentámo-nos. Ele disse que se
chamava Jacob.
Enquanto falávamos, comecei a procurar no rosto dele a
expressão mais inteligente que conseguia encontrar.
Jacob estava a abanar a cabeça, ainda aterrorizado, e passou
vários minutos a perguntar quem éramos e a interrogar-nos
acerca dos seus amigos desaparecidos.
- Não sei porque vim ao Tibete - disse finalmente. - Sempre
pensei que seria demasiado perigoso. Mas os meus amigos
queriam que eu viesse com eles. Não faço ideia porque aceitei.
Meu Deus, havia soldados chineses por todo o lado. Como é que
eles sabiam que nós estaríamos lá?
- Perguntaram o caminho a alguém que não conheciam? -
perguntou Yin.
Ele olhou fixamente para nós.
- Sim. Acham que eles disseram aos soldados?
Yin acenou e Jacob pareceu mergulhar novamente no pânico,
olhando nervosamente em redor, em todas as direcções.
- Jacob - perguntei. - Tenho de saber se te encontraste com
Wilson James?
Jacob continuava incapaz de se concentrar.
- Como sabemos se os chineses não estão mesmo atrás de nós?
Tentei captar o olhar dele, conseguindo finalmente fazer com
que ele olhasse para mim.
- Isto é importante, Jacob. Lembras-te de veres o Wil? Ele
parece peruano, mas fala com sotaque americano.
Jacob continuava a parecer confuso.
- Porque é que isso é importante? Temos de arranjar maneira
de sairmos daqui.
Ouvimos Jacob a fazer várias sugestões acerca de possíveis
locais de acampamento até os chineses saírem da área, ou
melhor ainda, acerca de uma corrida louca pelos Himalaias, em
direcção à Índia.
114 - 115
Continuei a visualizar a minha energia a entrar nele e a
concentrar-me no rosto dele, procurando uma expressão de calma
e sabedoria nos seus traços, especialmente nos olhos.
Finalmente ele começou a olhar para mim.
- Porque querem encontrar esse homem? - perguntou ele.
- Acreditamos que ele precisa da nossa ajuda. É o homem que
me pediu para vir ao Tibete.
Ele olhou para mim durante um momento, aparentemente
tentando concentrar-se.
- Sim - respondeu finalmente. - Eu conheci o vosso amigo.
Ele estava no átrio de um hotel em Lhasa. Ficámos sentados em
frente um do outro e começámos a falar acerca da ocupação
chinesa. Há muito tempo que os chineses me perturbam e suponho
que foi por isso que vim cá, para fazer alguma coisa, qualquer
coisa. O Wil disse que me tinha visto três vezes nesse dia, em
vários pontos do hotel, e que isso significava qualquer coisa.
Eu não percebia o que ele estava a dizer.
- Ele mencionou um lugar chamado Shambhala? - perguntei.
Ele pareceu interessado.
- Não exactamente. Mencionou qualquer coisa de passagem,
qualquer coisa acerca do Tibete não ser livre até Shambhàla
ser compreendida. Qualquer coisa assim.
- Mencionou um portão?
- Não me parece. Não me lembro muito bem da conversa. Foi
mesmo muito breve.
- E acerca do destino dele? - perguntou Yin. - Mencionou
para onde ia?
Jacob desviou o olhar, pensando, e depois disse: - Penso que
ele referiu um lugar chamado... Dormar, penso que era... e
qualquer coisa acerca das ruínas de um antigo mosteiro lá.
Olhei para Yin.
- Conheço o lugar - disse ele. - Fica no extremo noroeste, a
quatro ou cinco dias de viagem. Será difícil... e frio.
A ideia de ter de viajar tão longe para uma região desolada
do Tibete fez a minha energia cair a pique.
- Queres vir connosco? - perguntou Yin a Jacob.
- Oh, não - disse ele. - Tenho de sair daqui.
- Tens a certeza? - insistiu Yin. - Os chineses parecem
estar muito activos neste momento.
- Não posso - disse Jacob, olhando noutra direcção. - Sou o
único que resta para contactar o meu governo e procurar os
meus amigos, se conseguir arranjar uma forma de pedir ajuda.
Yin escrevinhou qualquer coisa num pedaço de papel e
entregou-o a Jacob.
- Procura um telefone e liga para este número - disse. -
Menciona o meu nome e dá um número para te ligarem. Logo que
verifiquem quem tu és, eles ligam-te e dizem o que fazer. Yin
disse ainda a Jacob a melhor maneira de regressar a Saga e
depois acompanhámo-lo de regresso ao seu Land Cruiser.
Depois de entrar, ele disse:
- Boa sorte... espero que encontrem o vosso amigo.
Eu acenei.
- Se conseguirem - acrescentou ele - talvez percebamos que
foi por isso que eu vim ao Tibete, hum? Para poder ajudar.
Ele voltou-se e ligou o Cruiser, olhou para nós mais uma vez
e afastou-se. Yin e eu corremos para o nosso veículo e, ao
entrarmos na estrada principal, notei que ele estava a sorrir.
- Acha que agora já compreende a Terceira Extensão? -
perguntou ele. - Pense em tudo o que ela implica.
Olhei para ele durante um momento, pensando na pergunta. A
chave desta extensão, ao que parece, era a ideia dos nossos
campos poderem reforçar os outros, erguendo as pessoas até uma
consciência superior onde podem ligar-se às suas próprias
intuições orientadoras.
Aquilo que expandia esta ideia para mim, para além de
qualquer coisa que eu tinha ouvido no Peru, era o conceito dos
nossos campos de oração fluirem à nossa frente e de nós
podermos prepará-los para influenciarem toda a gente à nossa
volta - mesmo que não estejamos a falar com eles directamente
ou sequer a vê-los. Podemos fazê-lo visualizando completamente
que isso está a acontecer - esperando-o.
É claro que não podemos exercer qualquer controlo sobre esta
energia; caso contrário ela faz ricochete, como eu tinha visto
quando tentei fazer Jacob parar o veículo. Referi tudo isto a
Yin.
116 - 117
- Aquilo que está a compreender é o aspecto contagioso da
mente humana - explicou Yin. - De certo modo, todos
partilhamos uma mente. É óbvio que temos controlo sobre nós
mesmos e podemos recuar, distanciarmo-nos, pensar
independentemente. Mas, tal como eu já disse antes, a visão
dominante que os humanos têm do mundo é sempre um campo
gigantesco de crença e expectativa. A chave para o progresso
humano é ter suficientes pessoas que consigam misturar neste
campo humano uma expectativa superior de amor. Este esforço
permite-nos desenvolver um nível de energia ainda maior e
inspirarmo-nos uns aos outros, em direcção ao nosso maior
potencial.
Yin pareceu relaxar por um momento e sorriu para mim.
- A cultura de Shambhala - disse ele -, baseia-se na
construção de um tal campo.
Não pude evitar devolver-Lhe o sorriso. Esta viagem começava
a fazer sentido, de uma forma que eu ainda não conseguia
exprimir.
Os dois dias seguintes passaram sem problemas, sem sinais do
exército chinês. Continuando na estrada do sul em direcção a
noroeste, atravessámos mais um rio perto do topo de Mayun-La,
uma passagem no alto da montanha. A vista era espectacular,
com picos gelados de ambos os lados da estrada. Passámos a
primeira noite em Hor Que, num motel sem identificação que Yin
conhecia, e continuámos na manhã seguinte para o lago
Manasarovar.
Quando nos aproximámos do lago, Yin disse:
- Aqui teremos de ser novamente muito cuidadosos. O lago e o
monte Kailash, mais à frente, são destinos importantes para
pessoas de toda a região: Índia, Nepal, China e Tibete. É um
lugar sagrado sem igual. Estarão lá muitos peregrinos, assim
como postos de controlo chineses.
Vários quilómetros mais à frente Yin saiu da estrada, para
uma pista antiga, contornámos um posto de controlo e depois
avistámos o lago. Olhei para Yin, que estava a sorrir. A vista
era inacreditavelmente bela: uma enorme pérola turquesa à
frente do terreno rochoso castanho, tudo delimitado pelas
montanhas cobertas de neve lá atrás. Uma das montanhas,
explicou Yin, era Kailash.
Ao passarmos pelo lago, vimos numerosos grupos de peregrinos
em redor de grandes postes com bandeiras.
- O que é aquilo? - perguntei.
- Bandeiras de oração - respondeu Yin. - Colocar bandeiras
que representam as nossas orações é uma tradição no Tibete há
séculos. As bandeiras de oração ficam a drapejar ao vento e
isso envia continuamente as orações que elas contêm para Deus.
As bandeiras de oração podem também ser dadas a pessoas.
- Que tipo de orações contêm as bandeiras?
- Orações para que o amor prevaleça em toda a humanidade.
Fiquei silencioso.
- Irónico, não é? - acrescentou Yin. - A cultura do Tibete é
totalmente dedicada à vida espiritual. Somos possivelmente o
povo mais religioso do mundo. E fomos atacados pelo governo
mais ateu da Terra: o da China. É um contraste perfeito,
visível para todo o mundo. Uma visão ou outra há-de vencer.
Sem falar mais, atravessámos mais uma pequena vila e depois
entrámos em Darchen, a cidade mais próxima do monte Kailash,
onde Yin contratou dois mecânicos seus conhecidos para
procurarem potenciais problemas mecânicos no nosso jipe.
Acampámos com os outros habitantes, tão próximo da montanha
quanto possível sem levantarmos suspeitas. Eu não conseguia
tirar os olhos dos cumes gelados.
- Visto daqui, o monte Kailash parece uma pirâmide - disse.
Yin concordou com um aceno.
- O que é que isso lhe diz? Que ele tem poder.
Quando o sol desceu para lá do horizonte, observámos uma
vista incrível. Um pôr do Sol magnífico encheu o céu a
ocidente com camadas sucessivas de nuvens cor de pêssego e, ao
mesmo tempo, o sol abaixo do horizonte continuava a brilhar na
face do monte Kailash, fazendo das suas encostas nevadas um
espectáculo deslumbrante de amarelo e laranja.
- Ao longo da história - disse Yin -, grandes imperadores
viajaram milhares de quilómetros a cavalo ou liteira, para
testemunharem estas vistas no Tibete. Pensava-se que a
primeira luz da manhã e a última da tarde tinham grandes
poderes de visionários e de rejuvenescimento.
118 - 119
Acenei com a cabeça enquanto ele falava, incapaz de desviar
o olhar da luz majestosa à minha volta. Sentia-me realmente
rejuvenescido e quase calmo. À nossa frente, na direcção de
Kailash, os vales planos e as faldas baixas estavam banhados
por camadas alternadas de sombra e reflexos castanhos claros,
dando um contraste etéreo aos picos mais altos iluminados pelo
sol, que pareciam brilhar por dentro. Era uma visão surreal e,
pela primeira vez, compreendi porque razão os tibetanos eram
tão espirituais. A luz deste país seria suficiente para os
conduzir inexoravelmente a uma consciência superior.
Na manhã seguinte, bem cedo, estávamos de novo a caminho e
cinco horas depois chegámos aos limites de Ali. O céu estava
encoberto e a temperatura caía rapidamente. Yin virou várias
vezes para estradas quase intransitáveis, tentando evitar o
centro da cidade.
- Já estamos numa zona essencialmente chinesa - disse Yin -,
com bares e salões de strip-tease para os soldados. Temos de
passar sem que ninguém dê por nós.
Quando chegámos novamente a uma estrada decente, estávamos
já a norte da cidade. A dada altura avistei um edifício de
escritórios recente, com vários camiões ainda mais novos
estacionados lá fora. Não se via qualquer movimento em redor
do edifício.
Yin viu-o ao mesmo tempo, saiu da estrada principal para uma
estrada mais antiga e parou.
- Aquilo é uma instalação chinesa nova - disse. - Não sabia
que estava aqui. Olhe e veja se alguém nos observa enquanto
passamos.
Nesse momento levantou-se vento e começou a nevar
fortemente, ajudando a ocultar a nossa identidade. Enquanto
passávamos, olhei com muita atenção para o edifício. A maior
parte das suas janelas estavam cobertas.
- O que é aquele lugar? - perguntei.
- Penso que seja uma estação de exploração de petróleo. Mas
quem sabe?
- O que se passa com o tempo?
- Parece que vem aí uma tempestade. Isto pode ajudar-nos.
- Estás a pensar na hipótese deles andarem à nossa procura
aqui em cima, não estás? - perguntei.
Ele olhou para mim com uma tristeza profunda, que se
transformou numa raiva furiosa.
- Foi nesta cidade que o meu pai foi morto - disse ele.
Eu abanei a cabeça.
- Foi terrível tu teres de ver isso.
- Aconteceu a milhares de tibetanos - acrescentou ele,
olhando fixamente em frente.
O ódio dele era bem visível. Abanou a cabeça.
- É importante não pensarmos nisso. Temos de evitar
semelhantes imagens. Especialmente você. Tal como eu já disse,
eu posso não ser capaz de controlar a minha raiva. Você tem de
ser melhor do que eu neste problema, para poder prosseguir
sozinho se for necessário.
- O quê?
- Escute bem - disse ele. - Tem de compreender exactamente
onde está. Aprendeu as três primeiras extensões. Foi capaz de
aumentar de forma consistente a sua energia e criar um campo
forte mas, tal como eu, ainda cai no medo e na ira. Há outras
coisas que eu lhe posso ensinar acerca de ancorar o seu fluxo
de energia.
- O que queres dizer com ancorar? - perguntei.
- Tem de estabilizar melhor o seu fluxo de energia, para que
ele se mantenha a fluir bem em direcção ao mundo,
independentemente da sua situação. Quando fizer isto, as três
extensões que aprendeu tornam-se uma estrutura constante e um
modo de vida.
- Essa é a Quarta Extensão? - inquiri.
- É o começo da Quarta. O que eu estou prestes a dizer-lhe é
a última informação que temos acerca das extensões. O resto da
Quarta Extensão só é do conhecimento dos habitantes de
Shambhala.
- Idealmente, as extensões deveriam funcionar em conjunto da
seguinte maneira: a sua energia de oração devia fluir a partir
da ligação divina dentro de si, provocando a sincronicidade da
expectativa e transportando toda a gente que ela toca ao seu
eu mais elevado. Desta forma ela maximiza a evolução
misteriosa das nossas vidas, a consciência e a realização das
nossas missões individuais neste planeta.
Infelizmente temos percalços ao longo do caminho, desafios
que provocam estados de medo que, como já vimos, provocam
dúvidas e fazem ceder os nossos campos.
120 - 121
Pior ainda, este medo pode provocar imagens negativas, más
expectativas, que podem ajudar a criar nas nossas vidas aquilo
que nós receamos. O que tem de aprender agora é uma forma de
ancorar a sua energia superior, para se manter mais
frequentemente no fluxo positivo.
- O problema do medo - prosseguiu Yin -, é que ele pode ser
muito subtil e apanhar-nos desprevenidos muito depressa. Está
a ver, uma imagem receosa é sempre acerca de um resultado que
nós não queremos. Receamos falar, embaraçar a nós mesmos ou às
nossas famílias perder a nossa liberdade ou alguém que amamos,
ou as nossas vidas.
A parte difícil é que, quando começamos a sentir esse medo,
ele muitas vezes transforma-se em raiva, que usamos para
tornar as nossas forças mais agressivas e lutar contra quem
sentimos como uma ameaça.
Sentindo medo ou raiva, temos de compreender que essas
emoções vêm de uma única fonte: os aspectos da nossa vida que
queremos manter. As lendas dizem que, uma vez que o medo e a
raiva advêm do receio de perdermos alguma coisa, a forma de
evitar estas emoções é distanciar-se de todos os resultados.
Estávamos bem a norte da cidade e a neve caía cada vez com
mais força. Yin esforçava-se por ver a estrada e olhava apenas
brevemente para mim enquanto falava.
- Veja o nosso caso, por exemplo - disse. - Estamos à
procura do Wil e do portão para Shambhala. As lendas diriam
que, ao mesmo tempo que preparamos os nossos campos para
esperarem as intuições e os acontecimentos certos para nos
guiarem, deveríamos distanciarmo-nos totalmente de qualquer
resultado particular. Era isto que eu estava a sugerir quando
lhe disse para ter cautela na sua preocupação com o facto do
Jacob parar ou não. A importância de manter a distância é a
grande mensagem do Buda e o dom de todas as religiões
orientais à humanidade.
Eu conhecia o conceito, mas nesse momento estava a ter
dificuldade em ver o seu valor.
- Yin - protestei. - Como poderemos distanciarmo-nos
completamente? Esta ideia muitas vezes parece-me uma teoria da
torre de marfim. Ajudar o Wil pode ser uma questão de vida ou
morte. Como poderemos não estar preocupados com isso?
Yin saiu da estrada e parou. A visibilidade era agora quase
nula.
- Eu não disse para não se preocupar - continuou ele. - Eu
disse para não se prender a nenhum resultado particular.
Aquilo que recebemos na vida é sempre ligeiramente diferente
daquilo que queremos, de qualquer maneira. Manter-se
distanciado é compreender que existe sempre um objectivo maior
que pode ser descoberto em qualquer acontecimento, em qualquer
resultado. Podemos sempre encontrar um lado bom, um
significado positivo, como base de partida.
Acenei com a cabeça. Esta era uma ideia que eu conhecia do
Peru.
- Eu compreendo - disse eu -, o valor de olhar dessa forma
para as coisas em geral, mas uma tal perspectiva não tem os
seus limites? E se estivermos prestes a ser mortos ou
torturados? É difícil mantermos a distância em relação a isso,
ou ver um lado positivo.
Yin olhou fixamente para mim. - Mas, e se a tortura for
sempre o resultado de não estarmos suficientemente desligados
durante os acontecimentos que conduzem a uma tal situação
crítica? As nossas lendas dizem que quando aprendermos a
distanciarmo-nos, a nossa energia pode manter-se
suficientemente alta para evitar todas essas ocorrências
extremamente negativas. Se conseguirmos mantermo-nos fortes,
sempre à espera do positivo, então começarão a acontecer
milagres, seja o resultado exactamente o que pensávamos ou
não.
Não conseguia acreditar nisto.
- Estás a dizer que tudo o que acontece de mal apenas
acontece porque perdemos uma oportunidade de sincronicidade
para o evitarmos?
Ele olhou para mim com um sorriso.
- Sim, é exactamente isso que eu estou a dizer.
- Mas isso é terrível. Isso não atribui a culpa, digamos, a
alguém que tem uma doença terminal, pensando que é culpa dele
estar doente, porque perdeu a oportunidade de encontrar uma
cura?
- Não, não há culpa. Todos fazemos o melhor que podemos. Mas
aquilo que eu lhe disse é uma verdade que temos de aceitar se
quisermos chegar aos níveis mais elevados da energia de
oração. Temos de manter os nossos campos tão fortes quanto
possível; para fazê-lo temos de acreditar sempre, com uma fé
poderosa, que seremos salvos desses problemas.
- Por vezes perderemos algumas coisas - continuou. - O
conhecimento humano é incompleto e nós podemos morrer ou ser
torturados por falta de informação. Mas a verdade é esta:
122 - 123
se tivéssemos todo o conhecimento que os humanos terão um dia,
seríamos sempre guiados para fora das situações perigosas.
Alcançamos o nosso maior poder quando assumimos que já é esse
o caso. É esta a maneira de nos mantermos flexíveis e à
distância, formando um campo de expectativa poderoso.
Tudo começava a fazer sentido. Yin estava a dizer-me que
todos devemos assumir que o processo da sincronicidade nos
afastará sempre dos perigos, que saberemos antecipadamente
qual o movimento a fazer, porque essa capacidade é o nosso
destino. Se acreditarmos, mais cedo ou mais tarde isso será
verdade para todos os humanos.
- Todos os grandes místicos - prosseguiu Yin -, dizem que
agir com uma fé total é importante. O apóstolo João, na vossa
Bíblia ocidental, descreve o resultado deste tipo de fé.
Colocaram-no num tonel cheio de óleo fervente e ele nada
sofreu. Outros foram colocados junto de leões esfomeados e
permaneceram em segurança. Isto serão apenas mitos?
- Mas quão grande terá de ser a nossa fé, para conseguirmos
esse grau de invulnerabilidade? - perguntei.
- Temos de alcançar um grau próximo do dos habitantes de
Shambhala - respondeu Yin. - Não vê como tudo se encaixa? Se a
nossa expectativa de oração corrente for suficientemente
forte, ambos esperamos a sincronicidade e enviamos energia aos
outros, para que também eles esperem a sincronicidade. O nível
de energia vai subindo. E entretanto há sempre os dakini...
Ele desviou rapidamente o olhar, aparentemente horrorizado
por ter mencionado novamente estes seres.
- O que têm os dakini? - perguntei.
Ele ficou silencioso.
- Yin - insisti. - Tens de me explicar o que querias dizer.
Como é que os dakini se encaixam em tudo isto?
Finalmente ele respirou fundo e disse:
- Estou a dizer-lhe só aquilo que eu próprio compreendo. As
lendas dizem que os dakini apenas são compreendidos pelos
habitantes de Shambhala e que devemos ter muito cuidado. Não
lhe posso dizer mais.
Olhei para ele, irritado.
- Bem, teremos de descobrir isso mais tarde, não é, quando
chegarmos a Shambhala?
Ele olhou para mim com grande tristeza.
- Eu já lhe disse que tive demasiadas experiências com os
militares chineses. O meu ódio e raiva desgastam a minha
energia. Se, a qualquer altura, eu vir que estou a retê-lo,
terei de partir e você terá de seguir sozinho.
Olhei para ele, sem querer pensar nessa possibilidade.
- Lembre-se - continuou ele -, daquilo que eu disse acerca
de manter a distância e acerca de acreditar que seremos sempre
guiados para lá dos perigos.
Fez uma pausa, enquanto ligava o jipe e avançava através da
neve soprada pelo vento.
- Pode ter a certeza - disse finalmente - que a sua fé em
breve será posta à prova.
124 - 125
6.
A PASSAGEM
Depois de viajarmos para norte durante quarenta minutos,
Yin virou para uma pista de camiões muito desgastada e seguiu
em direcção a uma alta cadeia montanhosa a trinta ou quarenta
quilómetros de distância. A neve era cada vez mais intensa.
Primeiro fraco, depois cada vez mais intenso, um murmúrio
baixo cresceu acima do ruído do motor e do vento.
Yin e eu olhámos um para o outro, quando os sons se tornaram
finalmente reconhecíveis.
- Helicópteros - gritou Yin, tirando o jipe da pista e
levando-o para uma abertura nas rochas. O jipe baloiçou
loucamente.
- Eu sabia. Eles têm maneira de voar com este tempo.
- O que queres dizer com isso, que tu sabias?
À medida que o som crescia por cima de nós, pareceu-me ouvir
duas aeronaves. Uma delas pairava directamente por cima de
nós.
- Isto é culpa minha - gritou Yin, acima do barulho. - Você
tem de sair! Já!
- O quê? - gritei. - Estás maluco? Para onde é que eu hei-de
ir?
Ele gritou-me ao ouvido.
- Não se esqueça de se manter alerta. Está a ouvir-me?
Continue a avançar para norte, para Dormar! Tem de chegar às
montanhas Kunlun!
Com um movimento hábil abriu a minha porta e empurrou-me
para fora.
127
Aterrei de pé, depois cambaleei até cair sobre um banco de
neve. Sentei-me e tentei ver o jipe, mas ele já estava a
afastar-se e a neve que caía tapou-me a visão. Uma onda de
pânico puro encheu-me.
Nesse momento um movimento à minha direita chamou-me a
atenção. Através da neve via a figura de um homem alto, a uns
dez metros de distância, vestido com umas calças de pele negra
de iaque e um colete e chapéu de pele de cabra. Estava quieto,
olhando intensamente para mim, mas tinha o rosto parcialmente
coberto por um lenço de lã. Reconheci aqueles olhos. De
onde?Após mais alguns segundos ele olhou para o helicóptero,
que estava a fazer mais uma passagem, e afastou-se
rapidamente.
Sem aviso, três ou quatro terríveis explosões irromperam na
direcção seguida pelo jipe, fazendo saltar as rochas e a neve
à minha volta e enchendo o ar de um fumo asfixiante.
Levantei-me e cambaleei para longe, enquanto várias outras
explosões ecoavam em redor. O vento estava agora completamente
cheio de uma espécie de gás tóxico. A minha cabeça começou a
andar às voltas.
Ouvi a música antes de estar completamente consciente. Era
um compositor clássico chinês que eu já conhecia. Despertei de
um salto e apercebi-me que estava num quarto decorado ao
estilo chinês. Sentei-me na cama ornamentada e afastei os
lençóis de seda. Tinha vestida apenas uma túnica de hospital e
tinha sido lavado. O quarto tinha pelo menos vinte por vinte
metros e cada parede revestida a madeira tinha um mural
diferente. Uma mulher chinesa estava a espreitar-me através de
uma abertura na porta.
A porta abriu-se e um empertigado oficial do exército
chinês, de farda completa, entrou. Um arrepio percorreu-me.
Era o mesmo oficial que eu já tinha visto várias vezes. O meu
coração batia com força. Tentei aumentar a minha energia, mas
a visão do oficial abateu-me completamente.
- Bom dia - disse o homem. - Como se sente?
- Tendo em conta que fui gaseado - respondi -, sinto-me
bastante bem.
Ele sorriu.
128
- Não tem qualquer efeito duradouro. Garanto-lhe.
- Onde estou?
- Está em Ali. Os médicos já o viram e você está bem. Mas
tenho de fazer-lhe algumas perguntas. Porque estava a viajar
com Yin Doloe e para onde iam?
- Queríamos visitar alguns dos antigos mosteiros.
- Porquê?
Decidi não lhe dizer mais nada.
- Porque sou um turista. Tenho um visto. Porque fui atacado?
A Embaixada Americana sabe que estou detido?
Ele sorriu e olhou de forma ameaçadora para os meus olhos.
- Sou o coronel Chang. Ninguém sabe que você está aqui e, se
tiver violado as nossas leis, ninguém o pode ajudar. O senhor
Doloe é um criminoso, membro de uma organização religiosa
ilegal que está a perpetrar uma fraude no Tibete.
Os meus piores receios pareciam estar a tornar-se realidade.
- Não sei nada acerca disso - disse eu. - Gostava de
telefonar a alguém.
- Porque é que o senhor Doloe e os outros andam à procura de
Shambhala?
- Não sei do que é que está a falar.
Ele deu um passo na minha direcção - Quem é Wilson James?
- É um amigo meu - respondi.
- Ele está no Tibete?
- Penso que sim, mas eu não o vi.
Chang olhou para mim com um toque de indignação e, sem dizer
mais nada, virou-se e saiu.
Isto é mau, pensei, muito mau. Estava prestes a sair da cama
quando a enfermeira regressou com uma dúzia de soldados, um
dos quais empurrava algo semelhante a um enorme pulmão de
ferro, só que era maior e erguia-se sobre pernas altas e
largas, aparentemente para poder ser empurrado para cima de
alguém que estivesse deitado.
Antes que eu pudesse dizer qualquer coisa, os soldados
seguraram-me e deslizaram a máquina sobre o meu corpo. A
enfermeira ligou-a, produzindo um gemido suave e uma luz forte
directamente no meu rosto.
129
Mesmo com os olhos fechados, via a luz a avançar da direita
para a esquerda sobre a minha cabeça, como o scanner de uma
fotocopiadora.
Assim que a máquina parou, os soldados afastaram o aparelho
e saíram da divisão. A enfermeira demorou-se mais um momento,
observando-me.
- O que era aquilo? - balbuciei.
- Apenas um encefalograma - disse ela com um inglês
cauteloso, enquanto levava a mão a um armário e retirava de lá
as minhas roupas. Tinham sido limpas e dobradas
cuidadosamente.
- Para que era? - insisti.
- Para verificar tudo, para garantir que está bem.
Nesse momento a porta abriu-se novamente e o coronel Chang
regressou. Pegou numa cadeira junto à parede e pousou-a perto
da minha cama.
- Talvez fosse melhor eu explicar aquilo com que estamos a
lidar aqui - disse ele, ao sentar-se na cadeira. Parecia
cansado.
- Existem muitas seitas religiosas no Tibete e muitos dos
seus seguidores procuram passar para o mundo a impressão de
serem um povo religioso oprimido pelos chineses. E admito que
as nossas políticas iniciais dos anos 50, e durante a
Revolução Cultural, foram duras. Mas estas políticas mudaram
nos anos mais recentes. Estamos a tentar ser tão tolerantes
quanto possível, tendo em conta que a política oficial do
governo chinês é o ateísmo.
- Estas seitas devem lembrar-se que o Tibete também mudou.
Muitos chineses vivem aqui agora, viveram sempre aqui, e
muitos deles não são budistas. Temos de viver todos juntos.
Não há maneira de o Tibete voltar ao domínio dos Lamas.
- Compreende aquilo que eu estou a dizer? O mundo mudou.
Mesmo que quiséssemos dar ao Tibete a sua liberdade, isso não
seria justo para com os chineses.
Ele esperou que eu dissesse qualquer coisa. Pensei
confrontá-lo com a política governamental de importar cidadãos
chineses para o Tibete, como forma de diluir a cultura
tibetana. Em vez disso, disse:
- Penso que eles apenas querem ter a liberdade de seguir a
sua religião sem interferência.
- Permitimos uma parte disso, mas eles estão sempre a mudar
aquilo que fazem. Quando pensamos saber quem manda, a situação
altera-se. Penso que estamos a chegar a um bom relacionamento
com a hierarquia oficial budista, mas depois há os expatriados
tibetanos na Índia, e este outro grupo a que pertence o senhor
Doloe, aquele que segue um conhecimento verbal críptico e que
está a provocar toda esta conversa sobre Shambhala. É
perturbador para o povo. Há muito trabalho importante a fazer
no Tibete. As pessoas são muito pobres. A qualidade de vida
deve ser melhorada.
Olhou para mim e sorriu.
- Porque é que esta lenda de Shambhala é levada tão a sério?
Parece quase pueril, uma ideia de crianças.
- Os tibetanos acreditam que existe uma outra realidade,
mais espiritual, para lá dos mundos físicos visíveis e que
Shambhala, embora pertença à Terra, fica nesse reino
espiritual.
Não conseguia acreditar que estava a arriscar um debate de
ideias com ele.
- Mas como podem pensar que um tal lugar existe? - continuou
-, Inspeccionámos cada centímetro do Tibete, a partir do ar e
com satélites, e não vimos nada.
Fiquei silencioso.
- Sabe onde supostamente fica esse lugar? - insistiu ele. -
É por isso que aqui está?
- Adoraria saber onde é - respondi. - Ou até saber o que é,
mas receio não saber. Também não quero ter problemas com as
autoridades chinesas.
Ele escutou-me atentamente e por isso continuei.
- Na realidade, tudo isto me apavora e eu preferia ir-me
embora.
- Oh, não, nós só queremos que partilhe connosco aquilo que
sabe - disse ele. - Se um tal lugar existe, se é uma cultura
oculta, queremos conhecer essa informação. Partilhe connosco o
seu conhecimento e deixe-nos ajudá-lo. Talvez possamos chegar
a um compromisso.
Olhei para ele durante um momento e disse:
- Gostaria de contactar a Embaixada Americana, se puder ser.
Ele tentou esconder a sua impaciência, mas eu conseguia
vê-la nos seus olhos. Olhou para mim mais um momento, depois
caminhou até à porta e voltou-se.
130 - 131
- Isso não é necessário - disse. - Está livre para partir.
Minutos depois caminhava pelas ruas de Ali, fechando bem o
meu blusão. Agora não estava a nevar, mas estava muito frio.
Antes, tinha sido forçado a vestir-me em frente da enfermeira
e depois escoltado para fora da casa. Enquanto continuava a
andar, inspeccionei o conteúdo dos meus bolsos.
Surpreendentemente, estava lá tudo: um canivete, a minha
carteira, um pequeno pacote de amêndoas.
Sentia-me estonteado e fatigado. Seria por causa da
ansiedade?
perguntei a mim mesmo. Os efeitos do gás? A altitude? Tentei
afastar a sensação.
Ali era uma cidade moderna, com muitos chineses e tibetanos
pelas ruas e veículos por toda a parte. Os seus edifícios e
lojas bem tratados eram vagamente desconcertantes, tendo em
conta as péssimas estradas e condições que tínhamos suportado
para chegar aqui.
Olhando em redor, não via ninguém que me parecesse capaz de
falar inglês e, após vários quarteirões, comecei a sentir-me
ainda mais estonteado. Tive de sentar-me na beira da estrada,
num velho bloco de cimento. O medo cresceu, quase se
transformando em pânico. O que fazer agora? O que acontecera a
Yin? Porque é que o coronel chinês me deixara partir assim?
Não fazia sentido.
Com essa ideia, surgiu na minha mente uma imagem completa de
Yin e eu senti uma admoestação. Estava a deixar a minha
energia descer. O medo estava a dominar-me e eu esquecera-me
de fazer qualquer coisa a esse respeito. Respirei fundo e
tentei aumentar a minha energia.
Alguns minutos depois comecei a sentir-me melhor e os meus
olhos pousaram sobre um grande edifício, a vários quarteirões
de distância. Tinha na parede lateral um cartaz em chinês que
eu não consegui ler mas, ao concentrar-me na forma do
edifício, tive a nítida sensação que seria uma pensão ou
pequeno hotel. Senti-me animado. Talvez houvesse lá um
telefone, talvez até outros turistas a quem eu me pudesse
agarrar.
Ergui-me e caminhei nessa direcção, tendo o cuidado de
manter as ruas à minha volta debaixo de olho. Minutos depois
estava a algumas portas da pensão Shing Shui, mas senti-me
hesitante e olhei cautelosamente em redor. Ninguém parecia
estar a seguir-me. Quando estava quase à porta, ouvi um
barulho. Qualquer coisa tinha caído na neve. Olhei à minha
volta. Estava no meio da rua, directamente em frente de um
beco estreito, sozinho a não ser por alguns homens que
caminhavam noutras direcções, a quatro metros de mim. Ouvi
novamente o barulho. Estava próximo. Quando olhei para os meus
pés, vi uma pequena pedra sair do beco a voar e mergulhar na
neve.
Dei um passo em frente e tentei espreitar pela abertura
obscurecida. Dei mais alguns passos, tentando adaptar os olhos
à sombra.
- Sou eu - disse uma voz.
Soube imediatamente que era Yin.
Corri para o beco, encontrando-o encostado a uma parede de
tijolo.
- Como sabias onde eu estava? - perguntei.
- Não sabia - foi a resposta dele. - Estava apenas a
adivinhar. Deslizou parede abaixo e sentou-se e eu notei que o
blusão dele estava queimado nas costas. Quando ele mexeu o
braço, vi uma mancha de sangue no ombro.
- Estás ferido! - disse eu. - O que se passa?
- Não é tão mau como parece. Eles largaram uma bomba de
impacte e eu caí sobre umas rochas quando fui atirado do jipe.
Consegui arrastar-me para longe antes deles aterrarem. Vi-os a
levarem-no para um camião que seguiu nesta direcção. Calculei
que, se conseguisse escapar, seguiria para a maior pensão. O
que lhe aconteceu?
Falei a Yin acerca do meu despertar na casa chinesa, do
interrogatório com o coronel Chang e da minha libertação.
- Porque me empurraste para fora do jipe? - perguntei.
- Já lhe disse - replicou Yin. - Não consigo controlar as
minhas expectativas receosas. O meu ódio aos chineses é
demasiado grande.
Eles conseguem seguir-me. - Fez uma pausa. - Porque é que o
libertaram?
- Não sei - retorqui.
Yin mexeu-se um pouco e fez um esgar de dor.
- Provavelmente porque o Chang sente que também o consegue
seguir.
132 - 133
Abanei a cabeça. Isto seria real?
- Ele não poderia saber como isso funciona, obviamente -
continuou Yin -, mas quando esperamos a vinda dos soldados, as
nossas expectativas sugerem ao ego dele a forma de se
aproximar de nós.
Provavelmente ele pensa que tem um poder especial.
Lançou-me um olhar duro.
- Tem de aprender com o meu problema. Tem de dominar os seus
pensamentos.
Yin olhou para mim mais um momento e depois, segurando o
braço, conduziu-me pelo beco, passando por uma abertura
estreita entre dois edifícios e chegando ao que parecia ser um
prédio abandonado.
- Temos de levar-te a um médico - disse eu.
- Não! - disse Yin com ênfase. - Ouça-me. Eu fico bem. Há
aqui pessoas que me podem ajudar. Mas eu não posso ir consigo
às ruínas do antigo mosteiro; terá de ir sozinho.
Voltei-me, com o medo a crescer dentro de mim.
- Não me parece que consiga fazer isso.
Yin pareceu alarmado.
- Tem de controlar o seu medo, voltar ao distanciamento. A
sua ajuda é necessária, para encontrar Shambhala. Tem de
continuar.
Tentou sentar-se, fazendo um esgar quando se aproximou de
mim.
- Não compreende que o povo tibetano já sofreu muito? Mas
esperam o dia em que Shambhala será revelada ao mundo inteiro.
Franziu a testa quando fixou os meus olhos.
- Pense em quantas pessoas nos ajudaram a chegar até aqui.
Muitas delas arriscaram tudo. Algumas podem ter sido presas,
até fuziladas.
Ergui a mão e mostrei-lha; estava a tremer.
- Olha para mim. Mal consigo mexer-me.
O olhar de Yin trespassou-me.
- Não lhe parece que o seu pai estava aterrorizado, quando
abriu caminho para fora da lancha de desembarque e correu para
as praias de França, na Segunda Guerra Mundial? Tal como os
outros? Mas ele fê-lo! E se não o tivesse feito? Se todos eles
não o tivessem feito? A guerra podia ter sido perdida. A
liberdade para todos teria sido perdida.
Nós, no Tibete, perdemos a nossa liberdade, mas aquilo que
está a acontecer agora ultrapassa o Tibete. Ultrapassa-nos
aos dois. É aquilo que deve acontecer para que os sacrifícios
de muitas gerações sejam honrados. Compreender Shambhala,
aprender a usar os campos de oração neste momento da história,
é o próximo passo na evolução da humanidade. É a grande tarefa
da nossa geração. Se falharmos, deixaremos ficar mal todos os
que nos antecederam.
Yin fez uma careta de dor, depois desviou o olhar. Nos seus
olhos estavam a formar-se lágrimas.
- Eu iria, se pudesse - acrescentou -, mas neste momento
acho que você é a nossa única hipótese.
Ouvimos o ruído de grandes camiões e vimos dois transportes
de tropas a passarem.
- Não sei para onde ir - disse eu.
- O antigo mosteiro não fica longe - retorquiu Yin. - Pode
chegar lá num dia de viagem. Posso arranjar alguém para
levá-lo.
- O que é suposto eu fazer lá? Disseste antes que eu seria
posto à prova. O que querias dizer com isso?
- Para passar pelo portão, terá de permitir o fluxo completo
da energia divina através de si e preparar o seu campo da
forma que aprendeu. Lembre-se que este campo se estende a
partir de si e tem um efeito sobre o que acontece. Mais
importante, controle as imagens do seu medo e mantenha-se
distanciado. Ainda receia certos resultados. Não quer perder a
vida.
- É claro que não quero perder a vida - disse eu, quase aos
gritos. - Tenho muito por que viver.
- Sim, eu sei - respondeu ele delicadamente. - Mas esses
pensamentos são perigosos. Deve abandonar todas as ideias de
fracasso. Eu não consigo fazer isso, mas penso que você
conseguirá. Tem de ter a certeza, com toda a sua fé, que será
salvo, que será bem sucedido.
Fez uma pausa, para ver se eu compreendia.
- Mais alguma coisa? - perguntei.
- Sim - disse ele. - Se tudo o mais falhar, continue a
afirmar que Shambhala o ajudará. Procure-os...
Ele parou, mas eu sabia o que ele queria dizer.
134 - 135
Na manhã seguinte, estava na cabina de uma velha carrinha de
tracção às quatro rodas, entalado entre um pastor e o seu
filho de quatro anos. Yin sabia exactamente o que fazer.
Apesar das dores, esgueirámo-nos por vários quarteirões até
uma velha casa de tijolos de adobe, onde nos deram uma
refeição quente e um lugar para passar a noite. Ele ficou
acordado até tarde, a falar com vários homens. Eu podia apenas
supor que os homens eram membros do grupo secreto de Yin, mas
não fiz qualquer pergunta. Levantámo-nos cedo e minutos depois
a carrinha agrícola apareceu e eu entrei.
Seguíamos agora por uma picada coberta de neve, subindo cada
vez mais as montanhas. A carrinha seguiu aos saltos e, ao
fazer uma curva, chegámos a um ponto alto de onde se avistava
o lugar onde Yin e eu nos tínhamos despedido. Pedi ao condutor
para abrandar, de modo a que eu pudesse olhar.
Horrorizado, vi que toda a área lá em baixo estava cheia de
veículos militares e soldados.
- Espere um minuto - disse eu ao condutor. - Yin pode
precisar de ajuda. Temos de parar.
O velho abanou a cabeça.
- Ter de seguir! Ter de seguir!
Ele e o filho falaram nervosamente em tibetano, olhando
ocasionalmente para mim, como se soubessem algo que eu não
sabia. Ele acelerou a carrinha, atravessámos uma passagem e
começámos a descer as montanhas.
Senti uma pontada de medo no estômago. Fiquei dividido
acerca do que fazer. E se Yin tivesse escapado e precisasse de
mim? Por outro lado, achava que sabia o que Yin teria querido.
Ele teria insistido para eu continuar. Tentei manter a minha
energia alta, mas uma parte de mim interrogou-se se toda esta
conversa de portões e Shambhala acabaria por se revelar apenas
um mito. E mesmo que fosse verdade, porque seria eu autorizado
a entrar e não outra pessoa, como Jampa ou o Lama Rigden? Nada
fazia sentido.
Afastei estas ideias com um encolher de ombros e tentei
manter a energia elevada, olhando para os picos cobertos de
neve. Observei atentamente as várias cidadezinhas que
atravessámos, incluindo Dormar.
136
Finalmente, depois de comer um almoço de sopa fria e tomate
seco, adormeci durante muito tempo. Quando acordei, já a tarde
ia avançada e grandes flocos de neve caíam novamente, em breve
cobrindo a estrada com uma camada renovada de branco.
Prosseguindo a viagem, o terreno ficou ainda mais montanhoso e
eu apercebia-me do ar a ficar mais rarefeito. À distância,
aproximava-se mais uma grande cordilheira montanhosa.
Deve ser a cordilheira de Kunlun, pensei, aquela que Yin
referiu. Uma parte de mim continuava a não acreditar que tudo
isto estava a acontecer. Mas uma outra sabia que sim, e que
agora eu estava sozinho, enfrentando a presença monolítica dos
chineses, com todos os seus soldados e cepticismo ateu.
Atrás de nós, ouvi o gemido suave de um helicóptero. O meu
coração começou a bater com força, mas mantive-me alerta.
O pastor pareceu ignorar a ameaça e continuou a conduzir
durante mais trinta minutos, depois sorriu e apontou para
cima. Através da neve que caía conseguia ver os contornos
escuros de uma grande estrutura de pedra, no cimo de uma das
primeiras elevações.
Várias paredes do lado esquerdo tinham caído. Atrás do
mosteiro erguiam-se enormes espirais de rocha coberta de neve.
O mosteiro tinha três ou quatro andares de altura, apesar do
telhado ter há muito apodrecido, e, durante um momento,
procurei atentamente sinais de pessoas ou movimento. Não vi
nada. Parecia estar completamente abandonado há muito tempo.
Na base da montanha, cento e cinquenta metros abaixo do
mosteiro, a carrinha parou e o homem apontou para a estrutura
em ruínas. Hesitei, olhando para a neve que caía. Ele fez
novamente um gesto, apressando-me com a sua expressão
excitada.
Agarrei na mochila que Yin me tinha preparado, na parte de
trás da carrinha. Comecei a subir a encosta. A temperatura
estava ligeiramente mais baixa, mas eu esperava, com a tenda e
o saco-cama, não morrer de frio. Mas, e os soldados? Observei
a carrinha a afastar-se e escutei atentamente, não ouvindo
qualquer som para lá do vento.
Olhei em redor, descobri uma escada de pedra monte acima e
comecei a subir. Após sessenta metros parei e olhei para sul.
Daqui não conseguia ver nada, a não ser quilómetros de
montanhas brancas.
137
Ao aproximar-me do mosteiro, consegui ver que este não
estava realmente sobre um monte, mas erguia-se junto a um
grande precipício que se estendia da montanha atrás dele. O
carreiro levava até à abertura que em tempos fora uma grande
porta e, cuidadosamente, entrei. Grandes pedras de matizes
diversos estavam espalhadas pelo chão coberto de pó e eu
estava em frente a um longo corredor que se estendia a todo o
comprimento da estrutura.
Segui pelo corredor, passando por várias divisões que se
abriam de ambos os lados. Finalmente cheguei a uma sala maior
que tinha uma passagem para a parte traseira do mosteiro. Na
realidade, metade da parede traseira tinha ruído e mais
pedras, algumas tão grandes como mesas, estavam espalhadas no
chão lá fora.
Pelo canto do olho, vi um movimento perto da parede caída.
Gelei. O que seria aquilo? Cautelosamente, avancei até à
abertura e olhei para fora em todas as direcções. Da porta à
parede de rocha nua da montanha eram uns trinta metros. Não
parecia estar lá ninguém.
Enquanto continuava a olhar, vi outro movimento vago, também
pelo canto do olho. Desta vez era mais afastado, perto da base
da encosta. Um arrepio percorreu-me. O que estava a passar-se?
O que estaria eu a ver? Pensei em agarrar na minha mochila e
correr monte abaixo, mas decidi não o fazer. Estava
definitivamente assustado, mas a minha energia mantinha-se
forte.
Concentrei-me o melhor que pude, no meio da neve que caía, e
segui para o penhasco onde me parecera ver o movimento. Quando
lá cheguei, não consegui encontrar nada. As paredes do
penhasco estavam cobertas de fendas verticais, incluindo uma
muito grande que de início parecia uma gruta estreita. Olhando
mais de perto vi que tinha apenas alguns centímetros de fundo,
demasiado apertada para alguém se esconder e cheia de neve.
Olhei em redor, procurando pegadas, e embora a neve tivesse
trinta ou quarenta centímetros de altura, apenas vi as minhas.
A neve caía agora com muito mais força, por isso regressei
ao mosteiro e descobri um canto da sala que ainda tinha uma
plataforma de pedra no sítio, para me proteger da neve e do
vento. Senti uma pontada de fome e roí algumas cenouras,
enquanto tirava o pequeno fogão a gás e aquecia a sopa de
vegetais congelada que Yin tinha colocado na minha mochila.
138
Enquanto ela fervia, pensei sobre o que tinha acontecido.
Restava apenas uma hora antes de anoitecer e eu não fazia
ideia da razão para estar aqui em cima. Inspeccionei a minha
mochila e não encontrei qualquer espécie de lanterna. Porque é
que Yin não tinha juntado uma? O gás do fogão não aguentaria a
noite inteira; tinha de encontrar alguma lenha ou excrementos
de iaque.
A mente já estava a pregar-me partidas, pensei. O que
poderia acontecer se tivesse de passar a noite inteira aqui no
alto, na escuridão absoluta? E se estas antigas paredes
começassem a ceder ao vento?
Assim que formulei esta ideia, ouvi um som de derrocada na
outra extremidade do mosteiro. Saí para o corredor e, quando
espreitei, vi uma enorme pedra a desabar sobre o chão.
- Jesus - disse eu em voz alta. - Tenho de sair daqui.
Apaguei o fogão, recolhi o resto do equipamento e corri
pelas traseiras para o meio da neve que soprava. Apercebi-me
imediatamente que teria de encontrar abrigo, por isso corri
para a encosta da montanha, esperando não ter visto alguma
fenda ou plataforma suficientemente grande para montar o meu
acampamento.
Quando cheguei ao penhasco, procurei em vão uma abertura.
Nenhuma das fendas era suficientemente profunda. O vento
uivava. A dada altura um grande monte de neve caiu de cima
dumas rochas e aterrou aos meus pés. Olhei para as toneladas
de neve acumulada, que bordejava as montanhas por cima de mim.
E se houvesse uma avalanche aqui? No olho da minha mente,
conseguia ver a neve a rolar montanha abaixo.
Mais uma vez, assim que tive esse pensamento, ouvi um som de
estremecimento acima de mim e para a direita. Agarrei no meu
equipamento e corri para o mosteiro, no exacto momento em que
um rugido poderoso enchia o ar e a neve descia pela encosta, a
cento e cinquenta metros de mim. Corri o mais depressa que
pude e caí sobre a neve a meio caminho do mosteiro,
aterrorizado. Porque estava tudo isto a acontecer?
Com esse pensamento, surgiu na minha mente uma memória de
Yin. Ele estava a dizer: "Nestes níveis de energia, o efeito
das nossas expectativas é imediato. Você será posto à prova."
Sentei-me. É claro! Era esta a prova. Eu não estava a
controlar as imagens do meu medo. Corri para o velho mosteiro
e agachei-me lá dentro.
139
A temperatura estava a cair rapidamente e eu sabia que tinha
de arriscar ficar lá dentro. Pousei as minhas coisas e passei
vários minutos a imaginar as pedras firmes nos seus lugares.
Um arrepio de frio percorreu-me. Agora, pensei, o que tenho
a fazer é tratar do frio. Imaginei-me sentado junto a uma
fogueira quente. Combustível. Tinha de encontrar algum
combustível.
Saí para inspeccionar o resto do mosteiro. Tinha apenas
chegado a meio do corredor quando parei abruptamente. Sentia o
cheiro de fumo, o fumo de madeira a arder. E agora?
Lentamente segui pelo corredor, espreitando todas as
divisões por onde passava, sem encontrar nada. Quando apenas
restava uma divisão, espreitei pela porta. Ao canto estava uma
fogueira a arder e uma pilha de lenha.
Entrei e olhei em volta. Não estava lá ninguém. Esta sala
tinha outra passagem para o exterior e mais telhado por cima.
Parecia muito mais quente. Mas quem fez a fogueira? Caminhei
até à abertura exterior e olhei para a neve. Continuava a não
ver qualquer pegada. Ia a voltar-me em direcção à porta
quando, na penumbra, vi uma figura alta de pé à entrada.
Tentei concentrar a minha visão directamente nela, mas apenas
conseguia vê-la com a visão periférica. Apercebi-me que era o
mesmo homem que eu tinha visto na neve quando Yin me empurrou
para fora do jipe. Tentei mais uma vez concentrar-me
directamente nele e ele desapareceu. Fiquei completamente
arrepiado. Não conseguia acreditar no que estava a acontecer.
Cautelosamente, passei pela entrada e espreitei para o
corredor em ambas as direcções, sem ver nada. Pensei novamente
em fugir do mosteiro e descer a montanha, mas sabia que a
temperatura continuava a descer rapidamente e se fizesse isso
provavelmente morreria gelado. A minha única opção era ir
buscar as minhas coisas e ficar perto desta fogueira. Por isso
recolhi o meu equipamento e regressei, olhando nervosamente
para todos os cantos.
Quando me sentei, uma rajada de vento atingiu a fogueira e
espalhou cinza por todo o lado. Fiquei a observar as chamas
durante um momento, vendo-as recuperar a sua força. Tinha
imaginado uma fogueira e depois esta tinha-se manifestado. Mas
acreditar que o meu campo pudesse ser tão forte era demasiado.
Só havia uma explicação. Eu estava a ser ajudado. Afigura que
eu tinha visto era um dakini.
Apesar de ser uma ideia fantástica deixou-me mais calmo; pus
mais lenha no fogo, terminei a minha sopa e depois abri o meu
saco-cama. Alguns minutos depois deitei-me e adormeci
profundamente. Quando acordei olhei em redor, assustado. O
fogo tinha-se extinguido e a primeira luz da alvorada estava a
surgir lá fora. A neve caía tão forte como na noite anterior.
Qualquer coisa me tinha despertado. O quê?
Ouvi o zumbido monótono de helicópteros a tornar-se mais
forte, seguindo na minha direcção. Pus-me de pé num salto e
recolhi as minhas coisas. Segundos depois os helicópteros
estavam directamente por cima de mim, aumentando o vento que
soprava em círculos.
Sem aviso, metade do mosteiro começou a desabar e a cair
para dentro, criando uma tempestade de poeira que escondia
tudo. Apalpei o caminho até à abertura das traseiras e corri
para o exterior, abandonando o meu equipamento. A tempestade
continuava a soprar neve na horizontal, permitindo-me ver
apenas alguns metros à minha frente, mas eu sabia que, se
continuasse a correr nesta direcção, em breve chegaria à
encosta da montanha que tinha visto na véspera.
Avancei com dificuldade até conseguir ver a parede rochosa.
Estava directamente à minha frente, a cerca de quinze metros,
mas eu sabia que, com a luz da manhã, ela não devia estar tão
visível. Era como se a montanha estivesse envolta numa cor
suave, ligeiramente âmbar, especialmente perto de uma das
fendas que eu tinha visto antes.
Olhei mais um momento, sabendo o que aquilo queria dizer, e
depois comecei a correr na direcção da luz, enquanto mais uma
parte do mosteiro caía atrás de mim. Quando cheguei à parede
do penhasco, os helicópteros pareciam estar directamente por
cima de mim.
O que restava do antigo mosteiro desabou completamente atrás
de mim, estremecendo o solo e deslocando a neve na fenda mais
próxima de mim, revelando uma abertura estreita. Afinal era
uma gruta!
Cambaleei pela passagem, no meio da escuridão total,
apalpando o caminho. Encontrei a parede traseira e depois uma
abertura que tinha menos de um metro e meio.
140 - 141
Inclinava-se para a direita e eu rastejei por ela,
apercebendo-me de um raio de luz minúsculo mais à frente, à
distância. Prossegui com dificuldade.
Num dado momento tropecei numa grande rocha e caí de cabeça
no chão de poeira e pedras, esfolando o cotovelo e o braço,
mas o som difuso dos helicópteros fez-me continuar a avançar.
Afastei a dor com um gesto e continuei na direcção da luz.
Depois de ter avançado várias dezenas de metros ainda
conseguia ver a minúscula abertura, mas ela não parecia mais
próxima. Continuei durante quase uma hora, tacteando o caminho
em direcção à pequena luz à minha frente.
Finalmente a luz pareceu aproximar-se e, ao chegar a três
metros dela, fui subitamente atingido por um sopro de ar mais
quente e pela fragrância que eu sentira antes, no mosteiro. À
distância, algures, ouvi um grito humano forte e melodioso,
que ecoou pelo meu corpo, desencadeando calor interior e
euforia. Seria este o chamamento que o Lama Rigden mencionara?
O chamamento de Shambhala.
Passei por cima da última rocha e enfiei a cabeça na
abertura. À minha frente estava uma paisagem inacreditável.
Estava a ver um grande vale agrícola e um límpido céu azul.
Para lá do vale, erguiam-se enormes picos montanhosos cobertos
de neve. Eram todos incrivelmente belos, sob a luz forte do
sol. A temperatura era baixa mas agradável e por todo o lado
cresciam plantas verdes. À minha frente a colina descia
delicadamente em direcção ao vale lá em baixo.
Quando saí pela abertura e comecei a descer a colina,
senti-me dominado pela energia deste lugar e comecei a ter
dificuldade em ver bem. Luzes e cores giravam à minha volta e
senti-me cair de joelhos. Descontrolado, comecei a rebolar
encosta abaixo. Rolei e rolei, quase como se estivesse meio
adormecido, perdendo toda a noção do tempo.
142
7.
ENTRADA EM SHAMBHALA
Senti alguém a tocar-me, mãos humanas que me envolveram e
me transportaram para outro local. Comecei a sentir-me seguro,
até mesmo eufórico. Após algum tempo, senti novamente aquela
fragrância doce, só que agora ela era omnipresente, enchendo a
minha consciência.
- Tente abrir os olhos - disse uma voz feminina.
Enquanto eu tentava focar a minha visão, consegui discernir
a figura de uma mulher grande, talvez com dois metros. Estava
a empurrar uma chávena na direcção do meu rosto.
- Tome - disse ela. - Beba isto.
Abri a boca e bebi uma sopa quente e saborosa, feita com
tomate, cebola e uma espécie de brócolos doces. Enquanto
bebia, apercebi-me que a minha percepção gustativa estava
ampliada. Conseguia distinguir com precisão todos os sabores.
Bebi a maior parte da chávena e momentos depois a minha cabeça
ficou mais clara e eu consegui ver tudo o que existia em
redor.
Estava numa casa, ou naquilo que parecia ser uma casa. A
temperatura era amena e eu estava deitado sobre um divã de
tecido azul esverdeado. O chão era de lajes castanhas de pedra
lisa e havia numerosas plantas em vasos de cerâmica por perto.
Mas por cima de mim estava o céu azul e os ramos pendentes de
várias árvores de grande porte. Ahabitação parecia não ter
tecto ou paredes exteriores.
- Já deve estar a sentir-se melhor agora. Mas tem de
respirar.
A mulher falava um inglês fluente.
143
Olhei para ela, enfeitiçado. Tinha aparência de asiática,
vestida com um traje de cerimónia tibetano, colorido e
bordado, com chinelos simples e de aspecto macio. A julgar
pela profundidade do olhar e pela sabedoria da voz, teria
cerca de quarenta anos, mas o seu corpo e os seus movimentos
davam-lhe o aspecto de alguém muito mais jovem. E embora o seu
corpo tivesse proporções perfeitas e uma forma magnífica,
todos os traços eram excepcionalmente grandes.
- Tem de respirar - repetiu ela. - Sei que você sabe como
fazer isso, ou não estaria aqui.
Finalmente compreendi o que ela queria dizer; comecei a
respirar a beleza daquilo que me rodeava e visualizei a
energia a entrar em mim.
- Onde estou? - perguntei. - Isto é Shambhala?
Ela fez um sorriso de aprovação e eu não consegui acreditar
na beleza do seu rosto. Era ligeiramente luminoso.
- Uma parte - respondeu. - Aquilo a que chamamos os anéis de
Shambhala. Mais para norte ficam os templos sagrados.
Continuou e disse-me que se chamava Ani; eu apresentei-me
enquanto ela olhava para mim.
- Conte-me como veio aqui ter - pediu ela.
De forma confusa, contei-lhe a história toda, começando com
uma breve descrição da minha conversa com Natalie e Wil, as
Revelações e a minha viagem ao Tibete, incluindo o encontro
com Yin e o Lama Rigden e as lendas, e finalmente a forma como
encontrei o portão. Mencionei até as minhas percepções da luz,
aparentemente trabalho dos dakini.
- Sabe porque está aqui? - perguntou ela.
Olhei-a por um momento. - Tudo o que sei é que o Wil me
pediu para vir e que era importante encontrar Shambhala.
Disseram-me que aqui havia conhecimento que era necessário.
Ela acenou e desviou o olhar, pensativa.
- Como é que fala tão bem inglês? - perguntei, sentindo-me
novamente fraco.
Ela sorriu.
-Aqui falamos muitas línguas.
- Viu um homem chamado Wilson James?
- Não - disse ela. - Mas o portão pode dar acesso aos anéis
noutros pontos. Talvez esteja cá, algures.
Tinha avançado até às plantas em vasos e estava a puxar uma
delas para mais perto de mim.
- Acho que tem de descansar um pouco. Tente absorver alguma
energia destas plantas. Prepare o seu campo de intenção para a
energia delas entrar em si e depois durma.
Fechei os olhos, seguindo as instruções dela, e momentos
depois adormeci.
Algum tempo mais tarde um barulho sussurrado despertou-me. A
mulher estava novamente à minha frente. Sentou-se na beira do
divã.
- Que barulho foi aquele? - perguntei.
- Veio do exterior.
- Através do vidro?
- Não é bem vidro. É um campo de energia que parece vidro,
mas que não pode ser partido. Ainda não foi inventado nas
culturas exteriores.
- Como é criado? É electrónico?
- Parcialmente, mas temos de participar mentalmente para o
activarmos.
Olhei para a paisagem no exterior da casa. Havia outras
casas espalhadas pelas colinas e prados suaves, até ao fundo
do vale plano.
Algumas tinham paredes exteriores transparentes, como a casa
de Ani. Outras pareciam feitas de madeira, num estilo tibetano
de desenho invulgar. Estavam todas discretamente aninhadas na
paisagem.
- E aquelas casas, com uma arquitectura diferente? -
perguntei.
- São todas criadas por um campo de forças - disse ela. - Já
não usamos madeira ou metais. Simplesmente criamos o que
queremos através dos nossos campos.
Eu estava fascinado.
- E a construção interna, água e electricidade?
- Temos água, mas ela condensa-se directamente a partir do
vapor de água no ar, os nossos campos fazem funcionar tudo o
mais de que precisamos.
Olhei novamente para o exterior, incrédulo.
- Fale-me deste lugar. Quantas pessoas vivem aqui?
- Milhares. Shambhala é um lugar muito grande.
144 - 145
Interessado, girei as pernas para fora do divã e pousei os
pés no chão, mas senti uma forte tontura. A minha visão ficou
turva.
Ela levantou-se, estendeu a mão para trás do divã e
entregou-me mais sopa.
- Beba isto e respire novamente as plantas - disse ela.
Obedeci e aos poucos senti a minha energia a voltar.
Enquanto absorvia mais ar, tudo ficou ainda mais brilhante e
mais belo do que antes, incluindo Ani. O rosto dela tinha
ficado mais luminoso, brilhando a partir de dentro,
exactamente com o mesmo aspecto que eu vira em Wil, noutras
ocasiões.
- Meu Deus - disse eu, olhando em redor.
- É bastante mais fácil aumentar a energia aqui do que nas
culturas exteriores - comentou ela - porque toda a gente dá
energia a todos os outros e prepara um campo para um nível
cultural superior.
Disse a expressão - nível cultural superior - como se
tivesse um significado mais elevado.
Eu não conseguia desviar os olhos daquilo que me rodeava.
Todas as formas, das plantas nos vasos perto de mim às cores
das lajes do chão, passando pelas luxuriantes árvores verdes
lá fora, pareciam brilhar a partir do interior.
- Tudo isto parece incrível - balbuciei. - Sinto-me como se
estivesse num filme de ficção científica.
Ela olhou para mim com uma expressão séria.
- Muita ficção científica é profética. O que está a ver é
simplesmente o progresso. Somos humanos como você e estamos a
evoluir da mesma maneira que vocês, nas culturas exteriores,
acabarão por evoluir, se não se sabotarem a vocês mesmos.
Nesse momento, um rapaz com uns catorze anos entrou na sala
a correr, acenou delicadamente para mim e disse:
- Pema chamou outra vez.
Ela voltou-se para ele.
- Sim, eu ouvi. Vais buscar os nossos casacos e um para o
nosso hóspede?
Não conseguia tirar os olhos do rapaz. A sua atitude parecia
de alguém muito mais velho do que ele e a sua aparência era-me
familiar. Lembrava-me alguém, mas não conseguia recordar quem.
- Pode vir connosco? - disse Ani, interrompendo o meu olhar
fixo. - Pode ser importante ver isto.
- Onde vamos? - perguntei.
-A casa de uma vizinha. Só para verificar as coisas. Ela
pensa ter concebido um filho há alguns dias e quer que eu a
veja.
- Você é médica?
- Nós não temos verdadeiros médicos, porque já não temos as
doenças que vos são familiares. Aprendemos a manter a nossa
energia acima desse nível. Eu ajudo as pessoas a
monitorizarem-se a si mesmas, a ampliarem a sua energia e a
mantê-la dessa forma.
- Porque é que diz que é importante eu ver isto?
- Porque você calhou a estar aqui neste momento. - Olhou para
mim como se eu fosse opaco.
- Certamente compreende o processo da sincronicidade.
O rapaz voltou e foi-me apresentado. Chamava-se Tashi.
Entregou-me um casaco azul-claro, que parecia quase igual a um
blusão vulgar, excepto nas costuras. Na realidade não tinha
qualquer costura. Era como se as peças de tecido estivessem
simplesmente unidas por contacto. E surpreendentemente, apesar
de ter o toque do algodão, não pesava quase nada.
- Como fazem isto? - perguntei.
- São campos de forças - disse Ani, enquanto ela e Tashi
atravessavam a parede com um sussurro. Tentei segui-los, mas
bati no que parecia uma peça sólida de acrílico. O rapaz, lá
fora, riu.
Com outro movimento sussurrado, Ani voltou a entrar, também
sorrindo.
- Eu devia ter-lhe dito o que fazer - disse ela. - Desculpe.
Tem de visualizar o campo de forças a abrir-se para si. Basta
ter essa intenção.
Eu lancei-lhe um olhar céptico.
- Basta vê-lo a abrir-se na sua mente e depois atravessá-lo.
Fiz como ela dizia e depois avancei. Conseguia mesmo ver o
campo a abrir-se. Parecia uma distorção espacial, algo de
semelhante aos raios de calor que se vêem na auto-estrada ao
sol. Com um sussurro, passei para o exterior. Ani seguiu-me.
Abanei a cabeça. Onde estava?
146 - 147
Seguindo Tashi, percorremos um carreiro cheio de curvas que
descia gradualmente a encosta da colina. Ao olhar para trás,
vi que a casa de Ani estava quase completamente oculta pelas
árvores e depois uma outra coisa chamou-me a atenção. Perto da
casa estava uma unidade quadrada preta, de aspecto metálico,
do tamanho de uma grande mala.
- O que é aquilo? - perguntei a Ani.
- É a nossa unidade de energia - respondeu ela.
- Ajuda-nos a aquecer e a arrefecer a casa e estabelece os
campos de forças.
Fiquei totalmente confuso.
- O que quer dizer com ajudar?
Ela caminhava à minha frente, enquanto prosseguíamos pela
encosta. Abrandou e deixou-me caminhar a seu lado.
-A unidade de energia junto à casa não cria nada sozinha.
Tudo o que faz é ampliar o campo de oração que você já
conhece, até um nível superior, para que possamos então
manifestar directamente aquilo de que precisamos.
Olhei para ela com uma expressão interrogativa.
- Porque é que isso parece tão fantástico? - perguntou Ani,
sorrindo.
- Eu já Lhe disse: é apenas progresso.
- Não sei - respondi. - Durante todo este tempo a tentar
chegar a Shambhala, suponho que nunca pensei muito em como
seria estar aqui. Suponho que pensei que seria apenas um grupo
de grandes lamas em meditação, algures. Esta é uma cultura
tecnológica. É fantástico...
- Não é a tecnologia que importa. É o modo como usámos a
tecnologia para nos ajudar a aumentar os nossos poderes
mentais que é importante.
- O que quer dizer?
- Tudo isto não é tão estranho como lhe parece. Limitámo-nos
a compreender as lições da história. Se olhar atentamente para
a história humana, verá que a tecnologia foi sempre um mero
precursor para aquilo que acabaria por ser feito apenas com a
mente humana.
- Pense nisso. Ao longo da história, as pessoas criaram a
tecnologia para aumentarem a sua capacidade de agirem e se
sentirem confortáveis no mundo. De início eram apenas potes
para guardar a comida e ferramentas para cavar, depois casas e
edifícios mais sofisticados. Para criar estes objectos,
escavámos minério e minerais e transformámo-los naquilo que
tínhamos imaginado nas nossas mentes. Queríamos viajar de
forma mais eficaz, por isso inventámos a roda e depois
veículos de vários tipos. Queríamos voar, por isso inventámos
aviões que nos ajudaram a fazê-lo.
Queríamos comunicar mais rapidamente, a grandes distâncias,
sempre que nos conviesse, e por isso inventámos cabos e
telégrafos, telefones, rádios sem fios e televisões, para nos
permitirem ver o que se passava noutros locais.
Olhou para mim com ar interrogador.
- Está a ver o padrão? Nós, humanos, inventámos a tecnologia
porque queríamos chegar a locais diversos e relacionarmo-nos
com mais pessoas e sabíamos, no nosso coração, que
conseguiríamos fazê-lo. A tecnologia foi sempre apenas um
trampolim para aquilo que podemos fazer sozinhos, aquilo que
sabemos ser nosso por direito. O verdadeiro papel da
tecnologia foi sempre ajudar-nos a construir a fé para
podermos fazer todas estas coisas por nós mesmos, com o nosso
poder interior.
Assim, nos primórdios da história de Shambhala, começámos a
criar tecnologia para servir conscientemente o desenvolvimento
da mente humana. Compreendemos o verdadeiro potencial dos
nossos campos de oração e começámos a reformular a nossa
tecnologia simplesmente para amplificar os nossos campos. Aqui
nos anéis, ainda usamos os aparelhos de amplificação, mas
estamos muito perto de podermos desligá-los e usar apenas os
campos de oração para manifestar tudo o que precisamos ou
queremos fazer. Os que habitam nos templos já fazem isso.
Queria fazer-Lhe mais perguntas mas, ao contornarmos uma
curva, vi um grande ribeiro que descia a colina à nossa
direita. O som de água a cair ecoava mais à frente.
- O que é este som? - perguntei.
- Há uma queda de água além - disse ela. - Sente a
necessidade de vê-la?
Não sabia bem o que ela queria dizer.
148 - 149
- Quer dizer, intuitivamente? - inquiri.
- É claro que quero dizer intuitivamente - respondeu ela,
sorrindo. - Nós vivemos pela intuição.
Tashi tinha parado e estava a olhar para trás.
Ani voltou-se para ele. - Porque não vais dizer à Pema que
nós já vamos?
Ele sorriu e correu à nossa frente.
Subimos a encosta rochosa à nossa direita, aproximando-nos
do ribeiro, e abrimos caminho por entre árvores densas e mais
pequenas, até que chegámos à beira da água. O ribeiro tinha
cerca de sete metros e meio de largura e fluía com força.
Através dos ramos à nossa esquerda via a água a passar por
cima duma crista. Ani fez-me sinal para a seguir. Caminhámos
ao longo do ribeiro e descemos vários socalcos de pedra, até
que ficámos directamente por baixo da catarata. Daqui
conseguíamos ver a queda de quinze metros até um grande lago
mais abaixo.
Um movimento chamou-me a atenção e avancei para a beira da
rocha, para olhar para baixo. Para minha surpresa, através da
neblina e salpicos junto ao lago via duas pessoas a caminharem
na direcção uma da outra, ambas rodeadas por uma luz suave,
branca com uma tonalidade rosada. Embora a luz não fosse muito
forte, era incrivelmente densa, especialmente em redor dos
ombros e ancas. Esforcei-me por distinguir os contornos das
duas pessoas e, quando o fiz, apercebi-me que estavam nuas.
- Então foi isto que me quis mostrar? - perguntou Ani,
divertida.
Eu não conseguia tirar os olhos do que estava a acontecer.
Sabia que estava a ver os campos de energia de um homem e de
uma mulher. Quando se aproximaram um do outro, os campos
fundiram-se até que eles ficaram enleados. Finalmente, muito
devagar, vi outra luz a formar-se na secção intermédia da
mulher. Após alguns minutos eles separaram-se e a mulher
acariciou o estômago. A pequena luz ficou mais forte e os dois
voltaram a abraçar-se e pareceram conversar, mas eu não ouvia
nada a não ser a queda de água. Sem aviso, as duas pessoas
simplesmente desapareceram.
Compreendi que eles tinham estado a fazer amor e fiquei
embaraçado.
- Quem eram aquelas pessoas? - perguntei.
- Não as reconheci - respondeu Ani. - Mas são algures desta
região.
- Pareceu-me que tinham concebido um filho - disse eu. - Era
essa a intenção deles?
Ela começou a rir. - Isto não é a cultura exterior. É claro
que eles tencionavam conceber. Nestes níveis de energia e
intuição, trazer uma alma à Terra é um processo muito
deliberado.
- Como é que desapareceram daquela maneira?
- Viajaram para aqui projectando-se mentalmente através de
um campo de viagem. O aparelho de amplificação permite-nos
fazer isso. Descobrimos que o mesmo campo electromagnético que
envia as imagens de televisão pode ser usado para ligar o
espaço de um local remoto ao espaço onde nos encontramos.
Quando fazemos isso, podemos simplesmente olhar para uma cena
sempre que o desejamos, ou caminhar verdadeiramente para o
outro local, usando o nosso campo de oração amplificado. Os
teóricos de sistemas helicoidais das culturas exteriores já
estão a trabalhar em teorias semelhantes, só que não estão
totalmente cientes daquilo que vão encontrar.
Limitei-me a olhar para ela, tentando absorver a nova
informação.
- Você parece completamente confundido - disse ela.
Confirmei com um aceno, conseguindo formar um sorriso.
- Venha, vou mostrar-lhe isto em casa da Pema.
Quando chegámos, a casa era muito semelhante à de Ani,
excepto que tinha sido construída dentro da encosta de uma
colina e tinha mobílias diferentes. Notei uma caixa negra
idêntica no exterior e nós entrámos através de um campo de
forças, tal como antes. Fomos recebidos por Tashi e por outra
mulher, que se apresentou como Pema.
Pema era mais alta e mais magra do que Ani. O cabelo era
negro como breu e comprido. Usava apenas um vestido branco
comprido e estava a sorrir, mas apercebi-me que qualquer coisa
não estava bem. Ela pediu para falar a sós com Ani e as duas
saíram para outra divisão, deixando-me sentado com Tashi numa
sala de estar.
Estava prestes a perguntar o que se passava quando senti
electricidade no ar atrás de mim.
150 - 151
Vi a distorção ondulante a abrir-se, tal como a outra que eu
vira no campo de forças em redor da casa de Ani, só que desta
vez ela apareceu no meio da sala. Pisquei os olhos, tentando
compreender o que estava a acontecer. Enquanto tentava ver
melhor, vi um campo com pequenas plantas através da distorção,
como se fosse uma janela. Para minha surpresa, um homem passou
pela abertura para a sala.
Tashi levantou-se e apresentou-nos. O nome do homem era
Dorjee. Acenou delicadamente para mim e perguntou onde estava
Pema. Tashi apontou para o quarto.
- O que aconteceu? - perguntei a Tashi.
Ele olhou para mim com um sorriso.
- O marido da Pema chegou da sua quinta. Não há algumas
pessoas que podem fazer isto nas culturas exteriores?
Eu falei-lhe brevemente de rumores e mitos acerca de ioguis
que conseguiam projectar-se para locais distantes.
- Mas eu nunca tinha visto pessoalmente algo assim -
acrescentei, tentando recuperar a compostura. - Como é que
fazem isto, exactamente?
- Visualizamos o lugar para onde queremos ir e o
amplificador ajuda-nos a criar uma janela para esse lugar
directamente à nossa frente. Cria também uma abertura na outra
direcção. Foi assim que conseguimos ver onde ele estava antes
de atravessar.
- E o amplificador é a caixa negra lá fora?
- Exacto.
- E todos vocês conseguem fazer isto?
- Sim, e o nosso destino é fazê-lo sem o amplificador.
Parou, olhou para mim e depois perguntou:
- Não quer falar-me acerca da cultura de onde veio, do mundo
exterior?
Antes que eu pudesse responder, ouvimos uma voz no quarto a
declarar:
- Aconteceu outra vez.
Tashi e eu olhámos um para o outro.
Alguns minutos depois Ani conduziu Pema e o marido para fora
do quarto e eles sentaram-se na sala de estar, ao nosso lado.
- Tinha tanta certeza de estar grávida - disse Pema. -
Conseguia ver a energia e senti-la momentaneamente, mas
depois, em poucos minutos, desapareceu. Deve ser a transição.
Tashi estava a olhar intensamente para ela, totalmente
fascinado.
- O que lhe parece que aconteceu? - perguntei.
- Intuímos - disse Ani -, que é uma espécie de gravidez
paralela e que a criança foi para outro sítio.
Dorjee e Pema olharam um para o outro durante um longo
momento.
- Tentaremos novamente - disse Dorjee. - Isto muito
raramente acontece duas vezes na mesma família.
- Nós temos de ir andando - disse Ani, erguendo-se e
abraçando o casal. Tashi e eu seguimo-la através do campo de
forças.
Eu estava ainda confuso. De uma certa perspectiva esta
cultura parecia vulgar; de outra, totalmente fantástica.
Tentei absorver tudo, enquanto Ani nos conduzia até uma linda
plataforma rochosa que, a uma dúzia de metros dali, dava para
o enorme vale verdejante lá em baixo.
- Como pode haver um ambiente temperado tão grande no
Tibete? - exclamei.
Ani sorriu.
- A temperatura é controlada com os nossos campos e é
invisível para aqueles que têm menos energia. Embora as lendas
digam que isso vai começar a mudar quando a transição se
aproximar.
Fiquei espantado.
- Conhece as lendas? - perguntei.
Ani acenou.
- É claro. Shambhala é o detentor original das lendas, bem
como de muitas profecias ao longo da história. Nós ajudamos a
levar informação espiritual às culturas exteriores. Também
sabemos que seria apenas uma questão de tempo até começarem a
encontrar-nos.
- Eu pessoalmente? - perguntei.
- Não, qualquer pessoa das culturas exteriores. Sabíamos
que, à medida que começavam a aumentar genericamente o vosso
nível de energia e de consciência, começariam a levar
Shambhala a sério e que alguns conseguiriam vir até cá. É isto
o que dizem as lendas. No momento da alteração, ou transição,
de Shambhala, chegarão pessoas das culturas exteriores.
152 - 153
E não apenas os crentes ocasionais do Oriente, que sempre nos
encontraram periodicamente, mas também pessoas do Ocidente,
que serão ajudadas a chegar cá.
- Disse que as lendas prevêem uma transição. O que é isso?
- As lendas dizem que, à medida que as culturas exteriores
começarem a compreender os passos que levam à extensão do
campo de oração da humanidade - o modo de se ligarem à energia
divina e deixá-la fluir com amor, o modo de preparar o campo
para provocar o processo de sincronicidade e elevar os outros,
o modo de ancorar este campo forte com o distanciamento -
então tudo o mais que fazemos aqui em Shambhala será
conhecido.
- Está a falar do resto da Quarta Extensão?
Ela deitou-me um olhar sabedor.
- Sim. É isso, afinal de contas, que você veio ver.
- Pode dizer-me o que é?
Ela abanou a cabeça.
- Tem de dar um passo de cada vez. Primeiro tem de
compreender para onde vai a humanidade. Não intelectualmente,
mas com os seus olhos e sentimentos. Shambhala é o modelo para
esse futuro.
Acenei enquanto olhava para ela.
- Está na altura do mundo saber aquilo de que os humanos são
capazes, em que direcção a evolução nos leva. Logo que o
compreender completamente, será capaz de expandir ainda mais o
seu campo e ficar ainda mais forte.
Abanou a cabeça e acrescentou:
- Mas entenda que eu não tenho toda a informação acerca da
Quarta Extensão. Serei capaz de guiá-lo ao longo dos próximos
passos, mas há mais coisas que só são conhecidas por quem vive
nos templos.
- O que são os templos? - perguntei.
- São o coração de Shambhala. O lugar místico que você
imaginou. É lá que se realiza o verdadeiro trabalho de
Shambhala.
- Onde ficam?
Ela apontou para o outro lado do vale, para um estranho
grupo circular de montanhas a norte, à distância.
- Além, para lá daqueles picos - disse ela.
Enquanto estivemos a falar, Tashi manteve-se silencioso,
escutando cada palavra. Ani olhou para ele e penteou-lhe o
cabelo para trás com a mão.
- A minha intuição dizia-me que, por esta altura, Tashi já
teria sido chamado aos templos... mas ele parece estar mais
interessado na vida no seu mundo.
Despertei com um abanão, transpirando. Estivera a sonhar com
um passeio pelos templos, juntamente com Tashi e outra pessoa,
prestes a compreender a Quarta Extensão. Estávamos num
labirinto de estruturas de pedra, a maioria delas cor de
bronze arenoso, mas à distância via-se um templo que parecia
ter uma cor azulada. Uma pessoa com imponentes trajes
tibetanos estava no exterior. No sonho comecei a fugir do
oficial chinês que tinha visto várias vezes antes. Ele
perseguia-me por entre os templos, que estavam a ser
destruídos. Eu odiava-o por aquilo que ele estava a fazer.
Sentei-me e tentei concentrar-me, quase sem conseguir
recordar o regresso para casa de Ani. Eu estava agora num dos
quartos e era de manhã. Tashi estava sentado em frente da
cama, numa grande cadeira, olhando fixamente para mim.
Respirei fundo e tentei acalmar-me.
- O que se passa? - perguntou ele.
- Apenas um sonho mau - respondi.
- Vai falar-me das culturas exteriores?
- Não podes simplesmente ir até lá, através de uma janela ou
passagem, ou seja o que for que vocês lhe chamam?
Ele abanou a cabeça.
- Não, isso não é possível, mesmo nos templos. A minha avó
intuiu que isso podia ser feito, mas ninguém ainda o conseguiu
por causa das diferenças nos níveis de energia entre os dois
lugares. Os habitantes dos templos conseguem ver o que se
passa nas culturas exteriores, mas é tudo.
- A tua mãe parece saber muito acerca do mundo exterior.
- Recebemos informação dos moradores dos templos. Eles
regressam muitas vezes, especialmente quando sentem que alguém
está pronto para se juntar a eles.
154 - 155
- Quase toda a gente aqui aspira a conseguir um lugar nos
templos. É a maior das honras e uma oportunidade para
influenciar as culturas exteriores.
Enquanto ele falava, a sua voz e nível de maturidade
lembravam-me alguém com trinta anos. Muito embora ele fosse
grande, era desconcertante olhar para o seu rosto de catorze
anos.
- E tu? - perguntei - Também queres ir para os templos?
Ele sorriu e olhou na direcção do outro quarto, como se não
quisesse que a mãe o ouvisse.
- Não, estou sempre a pensar em ir às culturas exteriores,
de alguma forma. Quer falar-me acerca delas?
Durante meia hora contei-lhe tudo o que consegui acerca do
actual estado do mundo: a forma como a maior parte da
população vivia, as dietas da maioria, a luta para instituir a
democracia em todo o planeta, a influência corruptora do
dinheiro sobre o governo, os problemas ambientais. Em vez de
ficar alarmado ou desiludido, ele absorveu tudo com
entusiasmo.
Nesse momento Ani entrou no quarto, sentiu que estava a
decorrer uma conversa importante e parou. Nenhum de nós disse
nada e eu caí sobre a almofada.
Ela olhou-me de cima a baixo.
- Temos de fazer entrar mais energia em si - observou. -
Venha comigo.
Vesti-me e juntei-me a ela na zona de estar, depois segui-a
para o exterior e para as traseiras da casa. Ali as árvores
eram muito grandes, afastadas cerca de dez metros umas das
outras. Entre elas havia uma relva áspera, semelhante a salva,
e dúzias de outras plantas que pareciam enormes aspargos. Ela
instou-me a mexer o meu corpo e eu tentei fazer os exercícios
que Yin me mostrara.
- Agora sente-se aqui. - disse ela quando eu terminei. - E
aumente novamente a sua energia.
Quando ela se sentou ao meu lado, comecei a inspirar e a
concentrar-me na beleza à minha volta, visualizando a energia
a penetrar em mim, vinda do fundo de mim. Tal como antes, as
cores e formas começaram a destacar-se facilmente.
156
Olhei para Ani e vi no rosto dela uma expressão de sabedoria
mais profunda.
- Assim está melhor - disse ela. - Ainda não estava todo
aqui ontem, quando visitámos a Pema. Lembra-se do que
aconteceu?
- Claro - retorqui. - A maior parte.
- Lembra-se do que aconteceu quando ela pensou que tinha
concebido?
- Sim.
- Num momento parecia estar lá e no momento seguinte tinha
desaparecido.
- O que lhe parece que aconteceu? - inquiri.
- Ninguém sabe ao certo. Estes desaparecimentos ocorrem há
bastante tempo. Na realidade começaram comigo, há catorze
anos. Nessa altura, eu tinha a certeza que estava grávida de
gémeos, um rapaz e uma rapariga, e depois, num instante, um
deles desapareceu. Nasceu o Tashi, mas eu senti sempre que a
irmã dele estava viva, algures.
- Desde então, vários casais aqui tiveram a mesma
experiência. Tinham a certeza de ter concebido e depois, de
repente, apercebiam-se de que tinham os ventres vazios. Todos
eles tiveram outros filhos, mas nunca esqueceram o que
aconteceu. Este fenómeno tem ocorrido com regularidade em toda
Shambhala, nos últimos catorze anos.
Fez uma breve pausa e depois disse:
- Tem qualquer coisa a ver com a transição, talvez até com a
sua presença aqui.
Eu desviei o olhar.
- Não sei.
- Não tem qualquer intuição?
Pensei durante um minuto e depois lembrei-me do sonho. Ia
falar-Lhe dele, mas não conseguia decidir o que significava e
por isso não o fiz.
- Nenhuma verdadeira intuição - disse. - Apenas muitas
perguntas.
Ela acenou com a cabeça, à espera.
- Como funciona a economia aqui? O que é que as pessoas
fazem com o seu tempo?
157
- Evoluímos até um ponto em que já não usamos dinheiro -
explicou Ani - e já não manufacturamos ou construímos coisas
como nas culturas exteriores. Há dezenas de milhares de anos,
viemos de culturas que faziam as coisas de que precisavam, tal
como vocês fazem. Mas, tal como eu lhe disse, gradualmente
compreendemos que o verdadeiro destino da tecnologia era ser
usada para desenvolver as nossas capacidades mentais e
espirituais.
Toquei na manga suave do meu blusão.
- Quer dizer que tudo o que vocês têm é um campo de energia
criado?
- Exactamente.
- O que é que o mantém intacto?
- Depois de criados, estes campos duram enquanto a energia
não for perturbada por algum tipo de negatividade.
- E a comida?
- Podemos criar comida da mesma maneira, mas descobrimos que
é melhor cultivar a comida pelos indivíduos, num processo
natural. As plantas alimentares respondem à nossa energia e
devolvem-na. É claro que já não precisamos de comer muito para
mantermos a nossa vibração. A maioria daqueles que estão nos
templos já não come nada.
- E a energia? Como alimentam os amplificadores?
- A energia existe livremente. Há muito tempo, descobrimos
um aparelho que usava processos a que poderia chamar fusão.
Criava energia virtualmente livre para a nossa cultura, o que
nos libertava dos estragos ao ambiente e nos permitia
automatizar a nossa produção de bens em série. Gradualmente,
todo o nosso tempo concentrou-se nos nossos percursos
espirituais, na percepção da sincronicidade, na descoberta de
novas verdades acerca da nossa existência e da veiculação
dessa informação aos outros.
Enquanto falava, reconheci que ela estava a descrever um
futuro humano que eu abordara pela primeira vez nas Nona e
Décima Revelações.
- À medida que nos desenvolvíamos, aqui em Shambhala -
prosseguiu ela - começámos a compreender que o objectivo da
humanidade neste planeta era evoluir para uma cultura
espiritual em todos os seus aspectos. E depois compreendemos
que tínhamos dentro de nós um poder superior, para nos ajudar
a alcançar aquilo que tinha de ser feito. Aprendemos as
extensões da oração e usámo-las para desenvolver ainda mais a
nossa tecnologia, tal como já expliquei, para aumentar este
poder criativo. Neste ponto vivemos simplesmente na natureza e
a única tecnologia que resta são estas unidades que nos ajudam
a criar mentalmente tudo aquilo de que precisamos.
- Toda essa evolução aconteceu aqui? - perguntei.
- Não, nada disso - disse ela. - Shambhala deslocou-se
muitas vezes.
A afirmação chocou-me, por alguma razão, e fiz-lhe mais
perguntas.
- Oh, sim - esclareceu ela. - As nossas lendas são muito
antigas e têm muitas fontes. Todos os mitos da Atlântida e as
lendas hindus acerca de Meru têm origem em antigas
civilizações que existiram realmente no passado, quando a
própria evolução de Shambhala começou. Desenvolver a nossa
tecnologia foi o passo mais difícil porque, para colocar a
tecnologia completamente ao serviço do desenvolvimento
espiritual individual, toda a gente deve avançar para um ponto
onde a compreensão espiritual é mais importante do que o
dinheiro ou o controlo. Isso demora algum tempo, porque as
pessoas que estão presas ao medo - e que pensam que precisam
de manipular pessoalmente o curso da evolução humana com os
seus egos - muitas vezes desejam usar os avanços tecnológicos
de formas negativas, para controlarem os outros. Em muitas
civilizações anteriores, alguns controladores tentaram
subverter o uso das máquinas de amplificação, tentando usá-las
para vigiar e controlar os pensamentos das outras pessoas.
Muitas vezes essas tentativas terminaram em guerra e
destruição maciça e a humanidade teve de começar tudo de novo.
- As culturas exteriores enfrentam esse problema neste
momento. Existem pessoas que querem controlar toda a gente,
com sistemas de vigilância, chips incorporados e sondas das
ondas cerebrais. E os artefactos dessas antigas culturas de
que você fala? Porque é que quase nada foi encontrado?
- A deriva continental e o gelo soterraram a maior parte e,
para além disso, quando uma cultura progride até ao ponto em
que os bens materiais são criados mentalmente,
158 - 159
se qualquer coisa correr mal e uma onda de negatividade fizer
a energia decair, tudo simplesmente desaparece.
Respirei fundo e encolhi os ombros. O que ela dizia fazia
todo o sentido mas, ao mesmo tempo, era absolutamente
desconcertante.
Uma coisa era especular acerca de civilizações humanas que
evoluíram em direcção a um futuro espiritual. Outra coisa bem
diferente era estar mergulhado numa cultura que já o tinha
alcançado.
Ani aproximou-se.
- Lembre-se que aquilo que nós fizemos faz parte do curso
natural da evolução humana. Estamos à vossa frente, mas por
termos feito aquilo que fizemos, o caminho pode ser mais fácil
para vocês nas culturas exteriores.
Ela parou e eu sorri.
- A sua energia parece muito melhor agora - disse.
- Acho que nunca me senti tão alerta.
Ela acenou.
- Tal como eu já disse, é o nível de energia mantido pelos
habitantes de Shambhala. É contagioso. Há aqui tanta gente que
sabe como absorver energia e projectá-la para os outros que
isso cria um efeito multiplicador, no qual toda a gente recebe
energia de oração dos outros e a envia novamente para todos os
outros. Está a ver como ela cresce? Todas as assunções e
expectativas das pessoas de uma cultura fluem juntas e fazem
um único grande campo de oração cultural.
- O nível geral alcançado por uma cultura é determinado
quase exclusivamente pela consciência que os seus membros têm,
em primeiro lugar, da existência dos seus campos de oração em
geral e, em segundo lugar, pela forma como os expandem de
forma consciente. Quando as extensões forem finalmente postas
em prática, o nível de energia aumentará radicalmente. Se toda
a gente nas culturas exteriores soubesse absorver energia e
fazê-la fluir para fora de si, fazendo das extensões de oração
uma prioridade, conseguiriam alcançar o nível que temos aqui
em Shambhala com esta facilidade! Estalou os dedos para
sublinhar as suas palavras e depois acrescentou:
- É nisso que estamos a trabalhar, nos templos. Usamos as
nossas extensões de oração para ajudar a aumentar a
consciência das culturas exteriores. Fazemos isso há milhares
de anos.
Pensei nas suas palavras e depois perguntei:
- Conte-me tudo o que sabe acerca da Quarta Extensão.
Ela ficou silenciosa mais um momento, olhando para mim com
ar muito sério.
- Você sabe que tem de dar um passo de cada vez -
respondeu.Recebeu ajuda mas, para conseguir chegar aqui, teve
de conhecer as três primeiras extensões e parte da Quarta. Tem
de parar agora e compreender perfeitamente o funcionamento
exacto das extensões. Quando uma extensão fica completa, a
nossa energia chega mais longe e torna-se mais forte. Isto
acontece porque, quando enviamos energia para provocar a
experiência da sincronicidade e animar os outros, e quando
ancoramos essa energia com distanciamento e fé, estamos a
promover o plano divino; quanto mais conseguirmos agir e
pensar em harmonia com o divino, mais forte fica a nossa
energia. Há um mecanismo de segurança interno, como sem dúvida
você percebe. Deus não vai aumentar a sua energia, a não ser
que você esteja em sintonia com a intenção universal.
Tocou-me no ombro.
- Portanto o que tem a fazer agora é clarificar o rumo que a
humanidade deve seguir, a evolução necessária da cultura
humana.
Está na hora disto acontecer. É por isso que você e outros
estão finalmente a ver e a compreender Shambhala. É o próximo
passo da Quarta Extensão. Tem de compreender verdadeiramente o
futuro que aguarda a humanidade. Já compreendeu a forma como
dominámos a tecnologia e a colocámos ao serviço da nossa
evolução espiritual interior. Viver isso expande ainda mais a
sua energia, porque pode agora colocar essa expectativa no seu
campo de oração. É importante compreender como isto funciona.
Já sabe como enviar um campo à sua frente, enquanto caminha
pelo mundo, e sabe como prepará-lo para aumentar a energia e o
fluxo de sincronicidade em si mesmo e nos outros. Irá expandir
o seu campo mais um passo quando não se limitar a visualizar o
seu campo a elevar as pessoas à sua volta até às suas
intuições superiores, mas quando o fizer com a certeza do
destino das intuições superiores de toda a gente,
160 - 161
suas e deles: na direcção de uma cultura espiritual ideal,
como aquela que vê aqui em Shambhala. Sempre que o fizer,
estará a ajudá-los a encontrar o seu papel nesta evolução.
Acenei com a cabeça, ansiando por mais informação.
- Não vá demasiado depressa - admoestou-me ela. - Ainda não
viu tudo acerca do nosso modo de vida aqui. Não só dominámos a
tecnologia, mas também reestruturámos o nosso mundo para se
concentrar inteiramente na evolução espiritual... nos
mistérios da existência... no próprio processo vital.
162
8.
O PROCESSO VITAL
Segui pelo carreiro da esquerda no cruzamento atrás da
casa de Ani e Tashi e subi por entre as rochas e árvores
durante mais de um quilómetro. Ani tinha terminado
abruptamente a nossa conversa, dizendo que tinha de preparar
algumas coisas de que me falaria mais tarde, e eu decidi dar
um passeio a sós.
Enquanto olhava para a folhagem verde a minha cabeça
encheu-se de perguntas. Ani tinha dito que eu precisava de ver
como Shambhala era o modelo para uma cultura orientada para o
próprio processo vital. O que quereria isso dizer?
Enquanto pensava nesta questão, notei um homem a caminhar
pelo carreiro na minha direcção. Era mais velho, parecia ter
cerca de cinquenta anos, caminhando com um passo rápido.
Quando chegou junto de mim, os seus olhos demoraram-se nos
meus durante um momento e depois prosseguiu. Pelo canto do
olho, vi-o voltar-se uma vez e olhar para mim.
Caminhei um pouco mais, irritado por não ter parado e
começado uma conversa. Voltei-me e segui na direcção que o
homem seguira, esperando conseguir apanhá-lo. Ele ia
justamente a fazer uma curva mais à frente e desaparecer de
vista. Quando eu próprio cheguei a essa curva, ele tinha
desaparecido completamente. Fiquei desiludido mas regressei a
casa de Ani sem pensar mais no assunto.
Ela saudou-me à porta, com umas calças de ganga e uma
t-shirt.
- Vai precisar disto - declarou.
163
- Deixe-me adivinhar - disse eu. - Usou o campo para criar
estas coisas.
Ela acenou.
- Está a começar a compreender-nos.
Sentei-me numa cadeira e olhei para ela. Não sentia que os
percebesse minimamente.
- O pai do Tashi chegou - disse ela.
- Onde está? - perguntei.
- Com o Tashi. - Fez um sinal com a cabeça na direcção do
quarto.
- De onde é que ele veio?
- Esteve algum tempo nos templos.
Sobressaltei-me.
- Ele acabou de entrar?
- Sim, imediatamente antes de você voltar.
-Acho que passei por ele no carreiro.
Ani fez uma pausa e depois disse:
-Acho que ele está aqui para nos preparar.
- Para o quê?
- Para a transição. Ele pensa que se aproxima o momento em
que Shambhala se deslocará.
Ia fazer-lhe mais perguntas mas apercebi-me que ela tinha
desviado o olhar e que parecia profundamente embrenhada nos
seus pensamentos.
- Disse que viu o pai do Tashi no carreiro? - perguntou.
Confirmei com um aceno.
- Então a mensagem que ele traz deve ser importante também
para si. Temos de ter muita consciência do processo, aqui.
Olhou para mim, expectante.
- Você referiu o processo vital - disse eu. - Pode dizer-me
exactamente o que isso representa em Shambhala?
Ela acenou.
- Vamos ver o quadro geral da evolução de uma sociedade,
quando começa a aumentar o seu nível de energia de oração. A
primeira coisa que acontece é que os criadores de tecnologia
vão começar a fazê-la cada vez mais eficiente e automatizada,
pelo que os robôs produzem cada vez mais bens materiais da
sociedade. Isto já está a acontecer em todas as indústrias
das culturas exteriores e é um desenvolvimento positivo, não
obstante ser especialmente perigoso. Pode colocar demasiado
poder nas mãos de uns poucos indivíduos ou empresas, a menos
que seja descentralizado. Também provoca desemprego e muitas
pessoas têm de adaptar a sua forma de rendimento.
-Aquilo que medeia estes problemas, contudo, é o facto de,
porque a produção material está automatizada, a economia no
seu todo começar a deslocar-se para uma economia de informação
e serviço - fornecendo a informação certa no momento certo
aos outros - o que exige que todos se tornem mais intuitivos,
alerta e concentrados na percepção da sincronicidade como
forma de vida.
À medida que o conhecimento espiritual aumenta e as pessoas
ganham consciência do poder criativo que podem alcançar com os
seus campos de oração, a tecnologia evolui mais um passo. Será
nessa altura que os amplificadores das ondas mentais serão
descobertos, para os indivíduos poderem criar mentalmente tudo
aquilo de que necessitam.
Quando isto acontecer, a cultura ficará livre para se
concentrar completamente nas questões espirituais, ou naquilo
a que chamamos o processo vital propriamente dito. Em
Shambhala estamos agora neste ponto e o resto da cultura
humana está destinada a seguir-nos. Toda a nossa sociedade é
educada para a realidade mais abrangente do espírito. Em algum
momento todas as culturas deverão compreender que nós somos
seres espirituais e que os nossos próprios corpos são apenas
átomos com uma vibração específica, uma vibração que pode ser
aumentada à medida que aumenta a nossa ligação e poder de
oração.
Aqui em Shambhala compreendemos esse facto, da mesma maneira
que compreendemos que viemos de um plano puramente espiritual
para realizarmos alguma coisa. Viemos numa missão para trazer
o mundo inteiro à plena consciência espiritual, geração após
geração, e para o fazermos de forma tão consciente quanto
possível.
É por isso que participamos completamente neste processo
vital, desde o seu começo - antes do próprio nascimento, na
realidade.
Ela olhou para mim para ver se eu compreendia e depois
prosseguiu.
164 - 165
- Há sempre uma relação intuitiva entre a mãe e o pai e a
criança antes do seu nascimento.
- Que tipo de relação? - perguntei.
Ela sorriu.
- Toda a gente aqui sabe que as almas começam a contactar
com os pais antes da concepção. Dão a conhecer a sua presença,
especialmente à mãe. Faz parte do processo de decidir se os
futuros pais são realmente os adequados.
Olhei para ela, surpreendido.
- Isto já acontece nas culturas exteriores - explicou Ani. -
Mas as pessoas só agora começam a falar acerca disso e a
desenvolver a sua percepção. Pergunte a qualquer grupo de mães
e veja o que elas dizem.
Este mesmo tipo de intuição está também envolvida no
processo de casamento, se pensar bem. Quando os humanos
aprendem a procurar conscientemente um companheiro o principal
critério é a paixão, mas não é o único factor. Também
recebemos intuições acerca de como será a vida com uma pessoa
em particular. Avaliamos - tenhamos total consciência disso ou
não - se o estilo de vida com esse indivíduo representará um
avanço em relação ao estilo e atitudes com que nós crescemos.
Está a ver onde eu quero chegar? Escolher o companheiro certo
é importante, do ponto de vista da evolução. À medida que
evoluem espiritualmente, os humanos estão destinados a
juntar-se de forma consciente, para prepararem um lar, ou uma
atitude doméstica, que representa uma forma de vida mais
verdadeira quando comparada com a geração anterior.
Intuitivamente, sabemos que devemos construir uma vida que
aumente a sabedoria que encontrámos no mundo quando chegámos.
Está a ver o processo? Depois, quando surgem as intuições
acerca de uma criança que quer nascer em nós, surgem sempre
perguntas: porque é que esta criança quereria nascer na nossa
família? O que quereria esta criança ser quando crescesse?
Como poderia esta criança estender e alargar o conhecimento
que encontrou em nós?
- Espere um momento - disse eu. - Não temos de ser
cuidadosos quando assumimos que sabemos como serão os nossos
filhos? E se estivermos enganados e tentarmos encaixar os
nossos filhos num poleiro que não lhes serve? A minha mãe
pensava que eu seria um padre de aldeia e isso não foi bem
verdade.
- Sim, é claro, isto são apenas intuições; a realidade será
apenas próxima daquilo que nós pensamos. Nunca será
exactamente igual. Passaram-se séculos a combinar casamentos e
a forçar crianças a seguirem profissões escolhidas pelos pais.
Mas não vê? Isto foi um uso errado de uma intuição real.
Podemos aprender com os erros deles. Nós não recebemos um
conhecimento completo acerca dos nossos fiLhos, nem devemos
exercer um controlo absoluto. Apenas recebemos intuições,
imagens genéricas acerca do que fazer com as suas vidas -
embora aposte que a sua mãe não se enganou muito acerca de si.
Eu ri. Ela tinha razão, obviamente.
- Portanto está a ver onde isto nos leva. Sabemos que,
enquanto a mãe e o pai intuem o uso que o filho fará da
sabedoria que encontrará junto deles, e depois a ampliará, a
alma por nascer faz a mesma coisa, numa visão pré-vida daquilo
que quer alcançar. A seguir vem o processo de concepção.
Olhou para mim durante um momento.
- Lembra-se do casal que vimos junto à queda dágua?
- Sim.
- O que pensa acerca disso?
- Pareceu tudo muito calculado.
- É verdade, foi. Quando um casal decide tentar conceber a
vinda de uma alma em relação à qual têm uma intuição, o acto
físico é uma espécie de fusão dos campos de energia que, de
forma muito real, abre de forma orgásmica um portão para o
paraíso e permite a entrada da alma.
Pensei no que tinha visto na queda dágua. A energia do casal
fundiu-se e uma nova energia começou a crescer.
- Na concepção materialista de ciência nas culturas
exteriores - continuou ela - a união sexual foi reduzida à
simples biologia, apenas um acto físico. Mas aqui conhecemos a
energia espiritual daquilo que está realmente a passar-se. Os
dois fundiram os seus campos de energia num só e a criança foi
o produto dessa fusão.
- Mais uma vez, a ciência prefere pensar na concepção como
uma combinação aleatória de genes e sem dúvida assim parece,
quando estudada superficialmente num tubo de ensaio. Na
realidade, contudo, os genes da mãe e do pai combinam-se para
formarem uma criança cujas características se sincronizam com
o destino das três pessoas.
166 - 167
Está a ver? A criança tem um destino previsto, que ele ou ela
visualiza numa visão pré-vida, e os genes combinam-se de forma
precisa para dar à criança as tendências e talentos
necessários à realização dessa visão. Os cientistas das
culturas exteriores acabarão por descobrir uma forma de
confirmar este processo.
É por isso que a recombinação física de genes por cientistas
e médicos é tão perigosa. Ajudar a combater a doença é uma
coisa, mas recombinar para aumentar a inteligência ou o
talento ou apenas por preferência é algo que vem do ego e pode
ser desastroso. Esta prática foi responsável pela destruição
de algumas civilizações antigas.
- O que eu quero dizer - concluiu ela - é que aqui em
Shambhala levamos o processo da paternidade muito a sério. Na
sua forma ideal, a intuição dos pais e dos filhos funcionam em
conjunto para dar à criança a melhor preparação para realizar
o seu propósito na vida.
O que ela estava a dizer fez-me pensar novamente nos
desaparecimentos de fetos que ocorreram em Shambhala.
- O que Lhe parece estar a acontecer aos fetos que
desapareceram aqui? - perguntei.
Ela encolheu os ombros, olhando para a porta fechada do
quarto de Tashi.
- Não sei, mas talvez descubramos isso com a ajuda do pai do
Tashi.
Ocorreu-me outra questão, por isso perguntei:
- Não compreendo quem vai para os templos e quem fica nos
anéis.
Ela riu.
- Suponho que seja bastante confuso. A nossa cultura
divide-se naqueles que ensinam e aqueles que são chamados para
os templos. Muitos dos que estão nos templos, no entanto, vêm
e vão com frequência, para manterem as suas relações,
especialmente se tiverem filhos. A situação pode mudar em
qualquer altura, de acordo com as intuições. Aqueles que
trabalham nos templos podem voltar a ensinar e aqueles que têm
estado a ensinar podem ir para os templos. É tudo muito fluido
e regido pela sincronicidade.
Fez uma pausa breve e eu acenei-lhe para que ela
continuasse.
168
- A seguir, no processo vital, está o ajudar uma criança a
despertar. Lembre-se que cada um de nós esquece, até um certo
grau, a razão da sua vinda, o que é suposto fazermos com a
nossa vida, por isso a criança deve conhecer as circunstâncias
históricas que rodearam o acontecimento que foi o seu
nascimento. O que importa é dar à criança um contexto para a
sua vida, para que ela saiba o que aconteceu antes da sua
chegada e onde ela se vai encaixar. Isso inclui a história
pessoal da família, recuando várias gerações. Mantemos esses
registos numa gravação semelhante a uma cassete de vídeo, só
que ficam guardados electronicamente. O Tashi, por exemplo,
pode ver sete gerações de parentes seus a falarem-lhe das suas
vidas, quais tinham sido os seus sonhos, quais os que se
realizaram ou não e, no fim das suas vidas, aquilo que teriam
feito de forma diferente. Tudo isto é informação imensamente
importante para um jovem saber acerca dos seus parentes. Ajuda
os mais novos a traçarem o rumo das suas próprias vidas,
aprendendo com os erros e aumentando a sabedoria daqueles que
o precederam. O Tashi aprendeu muita coisa com muitos dos seus
antepassados, embora o seu parente preferido continue a ser a
avó.
Fiquei espantado.
- Gravar os parentes é uma grande ideia. Pergunto a mim
mesmo porque não nos damos ao trabalho de fazer isso, lá de
onde eu venho.
- Não se dão a esse trabalho porque continuam a adiar falar
sobre a morte até ao último minuto e depois, muitas vezes, é
tarde demais. E a vida nas culturas exteriores continua
demasiado orientada para o material, não para o próprio
processo vital. Isto ficará mais fácil à medida que o tempo
passa e as culturas exteriores começam a sustentar a sua
vibração e a aprender as extensões da oração. Neste momento
ainda reduzem a vida ao vulgar, ao mundano, quando na
realidade é um processo constante, misterioso e informativo.
Olhou para mim como se houvesse um qualquer significado mais
profundo oculto na sua última frase.
- Você mesmo tem de ultrapassar esta tendência e manter-se
concentrado no processo daquilo que lhe está a acontecer.
Chegou a Shambhala no momento em que ela está a sofrer uma
transição.
169
- O pai do Tashi está aqui para falar acerca do seu futuro e
da situação nos templos. Mas o Tashi não se sente
intuitivamente impulsionado para ir aos templos. Em vez disso,
ele está interessado em ir para o seu mundo. E você surge
exactamente no meio disto. Tem de querer dizer qualquer coisa.
Como se para sublinhar aquilo que Ani acabara de dizer,
ouvimos um rugido fraco ao longe, que desapareceu rapidamente.
Ela pareceu confusa.
- Nunca ouvi nada assim antes.
Fui percorrido por um arrepio.
- Penso que pode ser um helicóptero - disse eu.
Mais uma vez pensei em contar-lhe o meu sonho mas, antes que
o pudesse fazer, ela recomeçou a falar.
-Temos de nos apressar-disse. -Tem de saber quem nós somos,
a cultura que criámos. Estávamos a falar acerca da importância
dos jovens compreenderem a sucessão das gerações que os
antecederam. Esta história é uma coisa que toda a gente nos
anéis exteriores conhece bem cedo - quando despertam para a
sua própria espiritualidade e sentido daquilo que vieram fazer
aqui.
Ergueu um dedo.
- Toda a gente aqui sabe bem que o mundo humano evolui
através da sucessão das gerações. Uma geração estabelece uma
forma de vida e enfrenta certos desafios, a geração seguinte
surge e amplia essa visão do mundo. Infelizmente, nas culturas
exteriores esta evolução está apenas a começar a ser levada a
sério. Mais frequentemente, aquilo que acontece é os pais
quererem que os filhos sejam como eles, que tenham a mesma
visão acerca de tudo. Este desejo é natural, de certa forma,
porque todos nós queremos que os nossos filhos reforcem as
escolhas que fizemos. Mas muitas vezes o processo torna-se
antagónico. Os pais criticam os interesses dos filhos e os
filhos criticam os modos antiquados dos pais. Até um certo
grau isso faz parte do processo: os filhos olham para a vida
dos seus pais e pensam, gosto da maior parte das suas vidas,
mas eu teria feito certas coisas de maneira diferente. Todos
os filhos pressentem aquilo que está incompleto no modo de
vida dos seus pais. Afinal de contas, é esse o sistema:
escolhemos os nossos pais em parte para despertarmos para
aquilo que nos falta, para aquilo que deve ser acrescentado ao
entendimento humano, e começamos esse processo sentindo-nos
insatisfeitos com aquilo que encontramos nas nossas vidas com
eles.
Ainda assim, tudo isto não tem de ser antagónico. Quando
conhecemos o processo vital, podemos participar nele de forma
consciente. Os pais podem manter-se abertos às críticas dos
seus filhos e apoiar os seus sonhos. É claro que fazer isso
leva os pais a alargarem o seu modo de pensar e a evoluírem
juntamente com os filhos, o que pode ser difícil.
Já tinha ouvido falar disso. Ela estava a fazer um grande
esforço para tornar o processo da evolução claro para mim. Fiz
mais algumas perguntas e ela passou mais dez minutos a dar-me
pormenores acerca da vida nos anéis exteriores de Shambhala.
Explicou-me que para as crianças, assim que adquirem a
compreensão da história e da família, o passo seguinte é
aprenderem a alargar o seu campo de oração criativo, tal como
eu fiz. Depois tratam de descobrir uma forma de fazerem a sua
cultura progredir, ensinando nos anéis exteriores ou usando o
seu campo de oração nos templos.
- Tudo isto acabará por ser também o estilo de vida nas
culturas exteriores - acrescentou. - Alguns dedicar-se-ão a
ensinar as crianças, outros entrarão nas muitas instituições
da cultura humana e ajudarão a fazê-las avançar em direcção ao
ideal espiritual.
Ia pedir mais pormenores acerca daquilo que se fazia nos
templos quando a porta do quarto de Tashi se abriu. Tashi
saiu, seguido pelo seu pai.
- O pai quer falar consigo - disse Tashi, olhando para mim.
O homem mais velho fez uma ligeira vénia, Tashi
apresentou-nos e depois sentámo-nos os dois à mesa. O pai de
Tashi estava vestido com as tradicionais calças de pele de
cabra e colete de um pastor tibetano, só que a sua roupa
estava imaculadamente limpa e tinha uma cor ligeiramente
bronzeada. Era baixo e entroncado; olhou para mim com olhos
gentis e uma expressão de entusiasmo juvenil.
- Sabe que Shambhala está prestes a sofrer uma transição? -
perguntou.
Olhei para Ani e depois novamente para ele. - Só aquilo que
dizem algumas das lendas.
170 - 171
- As lendas dizem - respondeu o homem mais velho - que num
dado momento da evolução de Shambhala e das culturas
exteriores ocorrerá uma grande deslocação. Esta deslocação só
pode acontecer quando o nível de consciência das culturas
exteriores tiver chegado a um ponto particular. Mas quando
isso acontecer, Shambhala mover-se-á.
- Mover-se para onde? - perguntei - Sabe?
Ele sorriu. - Ninguém sabe exactamente.
A afirmação dele encheu-me com uma onda de ansiedade, por
alguma razão, e uma ligeira tontura. Por um momento tive
dificuldade em focar a minha visão.
- Ele ainda não está assim tão forte - disse Ani.
O pai de Tashi olhou para mim - Estou aqui por causa da
minha intuição, segundo a qual é importante que o Tashi se
junte a nós nos templos durante esta transição. As lendas
dizem que será um período de grandes oportunidades, mas também
de sérios perigos. Durante algum tempo, aquilo que temos feito
aqui nos templos será perturbado. Também não poderemos ajudar.
Olhou para o seu filho.
- Isto acontecerá exactamente quando a situação nas culturas
exteriores se tornar crítica. Muitas vezes, durante a história
oculta da humanidade, os humanos desenvolveram a
espiritualidade até este ponto e depois perderam-se no caminho
e voltaram a cair na ignorância. Começaram a usar mal a sua
tecnologia, perturbando o curso natural da evolução. Por
exemplo, neste exacto momento nas culturas exteriores, algumas
pessoas estão a pegar no processo natural dos alimentos e a
distorcê-lo, manipulando geneticamente sementes para que elas
tenham características não-naturais. Isto é feito
principalmente para patentear estas sementes e controlá-las no
mercado. A mesma coisa acontece nas indústrias farmacêuticas,
onde um remédio herbal conhecido, disponível para todos, é
geneticamente alterado para poder ser vendido. No rigoroso
sistema de energia do corpo, estas manipulações podem ter
consequências terríveis para a saúde. O mesmo é verdade para
os alimentos sujeitos a radiação, o cloro e outros aditivos no
abastecimento de água, já para não falar das chamadas drogas
sintéticas. Ao mesmo tempo, a tecnologia dos meios de
informação chegou a um ponto em que pode ter uma influência
dramática. Se reagir apenas às necessidades das empresas e
políticos corruptos pode criar realidades para os humanos que
são distorcidas e artificiais. À medida que as empresas se
fundem, para controlarem cada vez mais tecnologia e usarem
mais publicidade para criar falsas necessidades, este problema
vai crescendo.
Mais urgente é a situação do poder governamental e de
vigilância, mesmo nos países democráticos. Citando a
necessidade de combater os traficantes de droga ou os
terroristas, o governo viola cada vez mais a privacidade do
homem vulgar. As transacções em dinheiro já são restringidas e
a Internet é totalmente vigiada. O próximo passo será forçar a
passagem a uma sociedade sem dinheiro, controlada por uma
autoridade central.
Este crescimento em direcção a uma autoridade governamental
central, sem espírito, num mundo virtual de alta tecnologia
divorciado dos processos naturais, onde a comida, a água e as
rotinas da vida foram banalizadas e distorcidas, conduz ao
desastre. Quando a saúde é subvertida para mais um ciclo de
comida cada vez pior, novas doenças e mais drogas, o Armagedão
é o resultado. Isto aconteceu já várias vezes na pré-história.
Pode acontecer novamente, só que desta vez numa escala muito
maior.
Sorriu para Ani.
- Mas não tem de ser assim. De facto, estamos a um pequeno
passo de saltarmos a barreira nas nossas consciências. Se
conseguíssemos entrar completamente na ideia de sermos seres
espirituais num mundo espiritual, então a comida, a saúde, a
tecnologia, a imprensa e o governo assumiriam os seus papéis
correctos na evolução e no aperfeiçoamento deste mundo. Mas
para que isto aconteça é preciso que as extensões da oração
sejam completamente compreendidas nas culturas exteriores.
Elas devem compreender aquilo que fazemos nos templos. A
transição de Shambhala faz parte deste processo, mas a
oportunidade tem de ser aproveitada.
Olhou profundamente para Tashi.
- Para que isto aconteça, a tua geração deve fundir-se com
as duas últimas, num campo de oração integrado - um que inclua
uma unidade final em todas as religiões.
172 - 173
Tashi pareceu confuso e o pai aproximou-se dele.
- Em todo o mundo, a geração nascida nas primeiras décadas
do século vinte, aquela a que o nosso amigo ocidental chamaria
a geração da Segunda Guerra Mundial, usou a coragem e a
tecnologia para salvar a democracia e a liberdade da ameaça
dos ditadores que queriam formar um império. Venceram, usando
o poder da tecnologia, e continuaram a expandir esta
tecnologia para uma economia à escala mundial. Depois a
geração seguinte - a que os americanos chamam baby boomers -
chegou à Terra e as suas intuições disseram-lhe que a
orientação para o materialismo, somente para a tecnologia, não
era a mais correcta. Havia demasiada poluição, demasiada
influência empresarial no governo, demasiada vigilância por
organizações de informação. Esta crítica era a forma normal de
uma nova geração se expandir e fazer-nos avançar
intuitivamente. Cresceram com um materialismo conquistado com
dificuldade ou, em alguns países, com o desejo do material, e
começaram a reagir, a dar voz à ideia de haver mais a esperar
da vida. Havia um propósito espiritual por detrás da história
humana, que podia ser compreendido com mais pormenor. Foi isso
que esteve por trás daquilo que aconteceu nos anos sessenta e
setenta no Ocidente: a rejeição de um sistema de estatuto
baseado no material, a exploração de outras religiões, a
popularidade da filosofia, a explosão do pensamento do
Movimento do Potencial Humano. Tudo isso foi o resultado de
uma série de revelações, que mostraram que havia mais na vida
do que aquilo que a nossa visão materialista conhecia.
Olhou para mim com um piscar de olhos, como se soubesse tudo
acerca das minhas experiências com as Revelações.
- As intuições dos baby boomers foram muito importantes -
prosseguiu - porque começaram a colocar a tecnologia e a
abundância material na sua perspectiva correcta e a
compreender a intuição profunda que nos diz que a tecnologia
está a ser desenvolvida neste planeta para suportar uma
cultura que se possa concentrar não apenas na sobrevivência,
mas também no desenvolvimento espiritual.
Fez uma breve pausa.
- E agora, desde o fim dos anos setenta e nos anos oitenta,
chegou uma nova geração para levar a cultura humana ainda mais
longe.
174
Olhou para Tashi.
- Tu e as pessoas da tua idade são os membros finais desta
geração. Estás a ver a ênfase que vieram trazer ao mundo?
Enquanto Tashi reflectia sobre a pergunta, eu próprio pensei
nela. Os filhos e filhas dos baby boomers tinham sido
caracterizados como reagindo ao idealismo e ambivalência dos
pais em relação à tecnologia, tornando-se mais práticos e, de
facto, desenvolvendo o amor pela tecnologia para lá de
qualquer coisa vista antes.
Toda a gente olhou para mim, como se tivessem ouvido os meus
pensamentos. Tashi estava a acenar em concordância.
- Sentimos que a tecnologia tem um propósito espiritual -
disse ele.
- Agora - continuou o tibetano mais velho, olhando para
todos nós - vêem como as três gerações fluem em conjunto? A
geração da Segunda Guerra Mundial lutou contra a tirania e
provou que a democracia podia não apenas florescer no mundo
moderno, mas também expandir-se tremendamente e ligar as
economias mundiais. Depois, no meio da abundância, os baby
boomers chegaram e disseram que essa expansão tinha problemas,
que estávamos a poluir o mundo natural e a perder o contacto
com a natureza e uma realidade espiritual que existe por trás
dos caprichos da história. E agora chegou a geração seguinte,
para se concentrar novamente na economia, para reformular a
tecnologia de modo a poder suportar conscientemente a nossa
capacidade mental e espiritual, da maneira que isso aconteceu
aqui em Shambhala - em vez de permitir que a tecnologia caia
apenas nas mãos daqueles que a iriam usar para restringir a
liberdade e controlar os outros.
- Mas esta nova geração não tem plena consciência daquilo
que está a fazer - disse eu.
- Não, não completamente - retorquiu ele. - Mas a sua
consciência e visão expandem-se a cada dia que passa. Temos de
preparar um campo de oração que os erga nesta direcção. Tem de
ser um campo grande e forte. A nova geração tem de ajudar-nos
a unificar as religiões.
- Isto é muito importante, porque sempre existirão
controladores, prontos a manipular esta geração e levá-los a
criarem usos negativos para a tecnologia ou a aproveitar-se da
sua alienação.
175
Ali sentados, ouvimos novamente o zumbido baixo de
helicópteros, ainda longínquos.
- A transição está a começar - disse o pai de Tashi, olhando
para ele. - Temos muitos preparativos a fazer. Queria apenas
que soubesses que a geração que tu representas deve ajudar a
fazer-nos avançar. Tu, pessoalmente, tens um papel na expansão
para as culturas exteriores daquilo que Shambhala tem feito.
Mas só tu podes decidir o que deves fazer.
O jovem desviou o olhar.
O pai foi até junto dele e rodeou-o com o braço durante um
momento. Depois abraçou Ani e saiu da casa.
Tashi seguiu-o com os olhos, vendo-o passar pela porta, e
depois voltou sozinho para o quarto. Segui Ani para o
exterior, até uma zona de repouso no jardim, cheio de
perguntas.
- Para onde foi o pai do Tashi? - perguntei.
- Ele está a preparar-se para a transição - respondeu ela,
olhando para mim. - Isto pode não ser fácil. Podemos ficar
todos deslocados durante algum tempo. Muitos virão dos templos
para nos ajudarem.
Abanei a cabeça. - O que lhe parece que vai acontecer?
- Ninguém sabe - replicou ela. - As lendas não são
pormenorizadas. Tudo o que sabemos é que haverá uma transição.
A incerteza começou novamente a diminuir o meu nível de
energia e por isso sentei-me num dos bancos próximos.
Ani seguiu-me e sentou-se ao meu lado.
- Mas sei o que você deve fazer - disse ela. - Deve
continuar a seguir o resto da Quarta Extensão. Tudo o mais
tratará de si mesmo.
Eu acenei, sem grande convicção.
- Concentre-se naquilo que aprendeu aqui. Viu qual deverá
ser a evolução da tecnologia e começou agora a ver como a
nossa cultura se orienta para o processo vital, o milagre do
nascimento e da evolução consciente. Sabe que é esta a
orientação que cria a maior inspiração e o maior divertimento.
A vida materialista das culturas exteriores não se compara com
ela. Somos criaturas espirituais e as nossas vidas devem girar
em torno dos mistérios da família, do talento e da procura da
missão individual. Mais uma vez, você conhece agora o aspecto
e a sensação duma tal cultura. As lendas dizem que o
conhecimento seguro acerca da evolução possível das culturas
alarga o campo de oração das pessoas e dá-lhes mais poder.
Agora, quando se liga interiormente e vê o seu campo a fluir à
sua frente, actuando para provocar a sincronicidade e elevando
os outros ao processo da sincronicidade, pode fazê-lo com
maior expectativa, porque sabe com segurança onde esse
processo nos leva, se nos mantivermos fiéis a ele e evitarmos
o ódio e o medo.
Ela tinha razão. As extensões estavam a encaixar-se.
- Mas eu ainda não vi tudo - protestei.
Ela olhou-me no fundo dos meus olhos.
- Não, tem de continuar para compreender o resto da Quarta
Extensão. Há mais. O seu campo de oração pode ser ainda mais
poderoso.
Nesse momento ouvimos novamente os helicópteros e o som
deles encheu-me de ódio. Pareciam estar mais próximos. Como
seria isso possível? Como poderiam eles saber onde Shambhala
ficava?
- Malditos sejam - disse eu, o que produziu uma expressão
horrorizada no rosto de Ani.
- Você tem muita raiva - disse ela.
- Bem, é difícil não estar zangado quando vemos o que o
exército chinês está a fazer.
- Essa raiva é um padrão dentro de si. Tenho a certeza que
já o avisaram acerca do seu efeito.
Pensei em tudo o que Yin me tentara explicar.
- Sim, já. Mas eu estou sempre a fazer asneira.
Conseguia ver que ela estava preocupada.
- Terá de dominar esse problema - disse ela. - Mas não se
absorva demasiado consigo mesmo. Isso cria uma oração negativa
que o mantém no mesmo local. Por outro lado, não pode
simplesmente ignorar a sua raiva. Tem de manter o problema em
mente, recordá-lo a si mesmo, manter-se consciente, e ao mesmo
tempo preparar o seu campo de oração para vencer o antigo
padrão e livrar-se dele.
Eu sabia que isso era caminhar na corda bamba e que exigiria
um esforço consciente da minha parte.
176 - 177
- O que devo fazer agora? - perguntei.
- O que lhe parece?
- Tenho de ir aos templos?
- É essa a sua intuição?
Pensei novamente no meu sonho e finalmente falei-Lhe dele.
Ela abriu muito os olhos.
- Sonhou que ia aos templos com o Tashi? - perguntou.
- Sim - repliquei.
- Bem - disse ela, com seriedade - não acha que lhe devia
contar isso?
Fui até ao quarto de Tashi e toquei na parede.
- Entre - disse ele, e uma abertura surgiu.
Tashi estava estendido em cima da cama. Sentou-se
imediatamente e fez-me sinal para uma cadeira à frente dele.
Sentei-me.
Durante um momento ele ficou silencioso, com o peso do mundo
sobre os seus ombros. Finalmente disse:
- Continuo sem saber o que fazer.
- Em que estás a pensar? - perguntei.
- Não sei, estou confuso. Só penso em ir às culturas
exteriores. A minha mãe diz que tenho de encontrar o meu
próprio caminho. Quem me dera que a minha avó estivesse aqui.
- Onde está a tua avó?
- Está algures nos templos.
Olhámos um para o outro durante muito tempo e depois ele
acrescentou:
- Se ao menos conseguisse compreender o sonho que eu tive.
Endireitei-me na cadeira. - Que sonho?
- Estou com um grupo de pessoas. Não lhes vejo as caras, mas
sei que uma delas é minha irmã. - Fez uma pausa. - Também
conseguia ver um lugar com água. De alguma forma, tinha
conseguido chegar às culturas exteriores.
- Eu também tive um sonho - disse eu. - Tu estavas comigo.
Estávamos num dos templos... era azul... e encontrámos lá mais
alguém.
O vestígio de um sorriso cruzou o rosto de Tashi.
- O que está a dizer? - perguntou. - Que é suposto eu ir
consigo aos templos e não às culturas exteriores?
- Não - disse eu. - Não era isso que eu queria dizer. Tu
disseste-me que toda a gente pensa ser impossível chegar às
culturas exteriores a partir dos templos. Mas, e se não for?
O rosto dele iluminou-se.
- Quer dizer, ir aos templos e tentar chegar às culturas
exteriores a partir daí?
Eu limitei-me a olhar para ele.
- Deve ser isso - disse ele, levantando-se. - Talvez eu
tenha sido chamado, afinal.
178 - 179
9.
A ENERGIA DO MAL
Assim que saímos do quarto, o ruído distante dos
helicópteros cresceu.
Ani entrou em casa e tirou três pesadas mochilas de uma
caixa de armazenagem. Entregou-as a nós, juntamente com dois
blusões. Notei que estes pareciam ter sido feitos de forma
convencional, com tecido cosido. Ia interrogá-la acerca deles,
mas ela encaminhou-nos rapidamente para fora da habitação e
conduziu-nos pelo carreiro à nossa esquerda.
Enquanto caminhávamos, Ani aproximou-se de Tashi e eu ouvi-o
a contar-lhe a sua decisão de ir aos templos. O ribombar dos
helicópteros aproximava-se cada vez mais e o céu azul tinha
ficado muito encoberto.
A dada altura perguntei-lhe para onde íamos.
- Para as grutas - disse ela. - Vocês vão precisar de tempo
para se prepararem.
Descemos um carreiro pedregoso, que cruzava a vertente
íngreme de um penhasco e descia para um planalto do outro
lado. Aqui, Ani fez-nos sinal para dentro duma pequena fenda,
onde nos aninhámos, à escuta. Os helicópteros pairaram durante
um momento num círculo apertado por cima dos penhascos e
depois seguiram exactamente o nosso percurso, até ficarem
directamente por cima de nós.
Ani parecia horrorizada.
- O que se passa? - gritei.
181
Sem responder, ela saiu da fenda e fez-nos sinal para a
seguirmos. Corremos cerca de quilómetro e meio, pelo planalto
e numa outra zona montanhosa, depois parámos e esperámos. Tal
como antes, os helicópteros giraram atrás de nós até ficarem
directamente por cima.
Uma rajada de ar gelado atingiu-nos, quase me derrubando. Ao
mesmo tempo, as roupas desapareceram dos nossos corpos, com
excepção dos pesados casacos.
- Calculei que isto poderia acontecer - disse Ani, tirando
mais roupas das mochilas. Eu ainda tinha as minhas botas
calçadas, mas as de Tashi e Ani tinham desaparecido. Ela
deu-Lhe um par de botas de cabedal e também calçou umas.
Quando terminámos, subimos a encosta, trepando por entre as
rochas até chegarmos a uma área mais plana. Estava a começar
um pesado nevão e a temperatura estava a cair. Os helicópteros
pareceram momentaneamente desorientados.
Olhei para o vale que fora verde. A neve tinha coberto quase
tudo e as plantas já pareciam estar a morrer por causa do
frio.
- É o efeito da energia dos soldados - disse Ani. - Está a
destruir o nosso campo ambiental.
Olhando na direcção do som dos helicópteros, senti uma nova
onda de raiva. Eles inclinaram-se imediatamente e seguiram na
nossa direcção.
- Vamos - gritou Ani.
Cheguei-me para mais perto da fogueira, sentindo o frio
matinal. Tínhamos caminhado mais uma hora e passado a noite
numa pequena gruta. Apesar de várias camadas de roupa interior
quente, ainda me sentia gelado. Tashi estava aninhado a meu
lado e Ani estava a espreitar pela abertura, para o mundo
gelado lá fora. A neve caía há horas.
- Desapareceu tudo - disse Ani. - Não há lá nada a não ser
gelo.
Avancei até à abertura e olhei para o exterior. Aquilo que
tinha sido um vale florestal com centenas de habitações, não
passava agora de neve e montanhas irregulares. Aqui e ali
viam-se os restos inclinados de árvores, mas nem uma única
mancha de cor. Todas as casas tinham simplesmente desaparecido
e o rio que atravessava o centro do vale estava gelado.
- A temperatura deve ter caído uns sessenta graus -
acrescentou Ani.
- O que aconteceu? - perguntei.
- Quando os chineses nos encontraram, a força dos seus
pensamentos e expectativas de tempo frígido contrariou o campo
que tínhamos preparado para manter as temperaturas amenas.
Normalmente a força dos campos das pessoas nos templos teria
sido suficientemente forte para manter os chineses à
distância, mas elas sabiam que estava na altura da transição.
- O quê? Elas deixaram os chineses entrar de propósito?
- Era a única possibilidade. Se você e os outros que nos
encontraram puderam entrar, não havia maneira de manter os
soldados longe. Você não é suficientemente forte para manter
os pensamentos fora da sua cabeça. E os chineses seguiram-no
até aqui.
- Quer dizer que é culpa minha? - disse eu.
- Está tudo bem. Faz parte da dispersão.
Isso não me consolou. Voltei para junto da fogueira e Ani
seguiu-me. Tashi tinha preparado um guisado de vegetais secos.
- Tem de compreender - disse ela - que o povo de Shambhala
ficará bem. Tudo isto estava previsto. Toda a gente que aqui
estava está bem. Pessoas suficientes voltaram dos templos para
as levarem através das janelas espaciais até um lugar seguro.
As nossas lendas prepararam-nos bem.
Ela apontou para o vale.
- Tem de concentrar-se naquilo que está a fazer. Você e
Tashi têm de chegar aos templos sem serem capturados pelos
soldados. O resto daquilo que Shambhala estava a fazer pela
humanidade tem de ser conhecido.
Ela parou, no momento em que ambos ouvimos o estremecimento
fraco de um helicóptero distante. O som ficou mais ténue e,
finalmente, desapareceu.
- E tem de ser muito mais cauteloso - disse. - Pensei que
você sabia como manter as imagens negativas longe da sua
mente, especialmente pensamentos de ódio ou de descrédito.
Sabia que ela tinha razão, mas ainda me sentia confuso
acerca do funcionamento de tudo isso.
Ela deitou-me um olhar intenso.
182 - 183
- Mais cedo ou mais tarde, terá de lidar com o seu padrão de
raiva.
Ia fazer uma pergunta quando, pela abertura da gruta, vimos
várias dezenas de pessoas a descerem uma encosta gelada à
nossa direita.
Ani levantou-se e olhou para Tashi.
- Não temos mais tempo - declarou. - Tenho de ir. Tenho de
ajudar estas pessoas a encontrarem uma saída. O teu pai estará
comigo.
- Não podes vir connosco? - perguntou Tashi, aproximando-se
dela. Eram visíveis as lágrimas nos seus olhos.
Ani olhou para ele e depois para fora da fenda gelada, para
as outras pessoas.
- Não posso - disse, abraçando-o com força. - O meu lugar é
aqui, ajudando durante a transição. Mas não te preocupes.
Hei-de encontrar-te, estejas onde estiveres.
Caminhou até à entrada da gruta e voltou-se para olhar para
nós.
- Vocês ficarão bem - disse ela. - Mas tenham cuidado. Não
conseguirão manter a energia em alta se estiverem dominados
pelo ódio. Não podem ter inimigos.
Parou, olhou para mim e depois disse uma coisa que eu já
tinha ouvido muitas vezes nesta viagem.
- E lembre-se - instruiu ela com um sorriso - que você está
a ser ajudado.
Tashi olhou por cima do ombro e sorriu para mim, enquanto
avançávamos penosamente sobre a neve profunda. Estava a ficar
mais frio e eu lutava para manter os meus níveis de energia.
Para chegarmos à cordilheira onde se erguiam os templos,
tivemos de escalar a cordilheira onde estávamos agora,
atravessar o vale gelado e subir outra montanha quase na
vertical. Tínhamos descido mais de meio quilómetro sem
dificuldade, mas agora parecíamos estar à beira de um
precipício rochoso. Por baixo de nós estava uma queda de quase
quinze metros.
Tashi voltou-se e olhou para mim. - Temos de deslizar por
aqui abaixo. Não há outra forma.
- Isso é demasiado perigoso - protestei. - Pode haver pedras
debaixo da neve. Se começarmos a deslizar sem controlo,
podemos ficar feridos.
A minha energia estava em queda livre.
Tashi sorriu nervosamente. - Está tudo bem - disse. - Não há
problema em ter medo. Mas mantenha a sua visualização de um
desenlace positivo. Na realidade, o medo fará os dakini
aproximarem-se.
- Espera um minuto - disse eu. - Nunca ninguém referiu isso.
O que queres dizer?
- Nunca foi ajudado de forma misteriosa, inexplicável?
- O Yin disse-me que Shambhala estava a ajudar-me.
- Sim?
- Não compreendo a relação. Tenho estado a tentar perceber o
que determina quando os dakini nos ajudam.
- Só os habitantes dos templos sabem isso. Sei apenas que o
medo faz sempre com que esses guardiões se aproximem, se
conseguirmos manter alguma fé. É o ódio que os afasta.
Tashi empurrou-me para fora da plataforma e começámos a
deslizar descontroladamente sobre a neve solta. O meu pé bateu
numa rocha, fez-me rodar e eu comecei a deslizar de cabeça
para baixo. Sabia que, se atingisse outra rocha com a cabeça,
podia morrer. Mas, apesar do medo, consegui manter a visão de
uma aterragem em segurança.
Com essa ideia, comecei a aperceber-me de uma sensação que
me encheu de paz e bem estar. O terror diminuiu. Momentos
depois cheguei ao fundo da inclinação e rebolei até parar.
Tashi chocou com as minhas costas. Fiquei um momento deitado,
de olhos fechados. Abri-os devagar, recordando outras
situações perigosas da minha vida em que uma paz inexplicável
me tinha inundado.
Tashi estava a içar-se para fora do banco de neve e sorri
para ele.
- O que foi? - perguntou ele.
- Estava ali alguém.
Tashi ergueu-se, sacudiu a neve das roupas e começou a
andar.
- Está a ver o que acontece quando se mantém positivo?
Qualquer força temporária que venha da raiva não se pode
comparar a este mistério.
Eu acenei, esperando conseguir recordar isso.
184 - 185
Durante duas horas avançámos pelo fundo do vale,
atravessando o rio gelado e enfrentando a subida gradual para
a base das montanhas íngremes. A neve começava a cair com mais
força.
Subitamente Tashi parou.
- Mexeu-se qualquer coisa além - disse ele.
Eu esforcei-me por ver melhor. - O que era?
- Parecia uma pessoa. Venha.
Avançámos pela encosta da montanha. O pico parecia estar
seis quilómetros acima de nós.
- Tem de haver uma passagem algures - disse Tashi. - Não
podemos passar pelo cume.
À nossa frente ouvimos o som de neve e rochas a derrocarem.
Tashi e eu olhámos um para o outro e contornámos devagar uma
série de grandes rochedos. Ao passarmos pelo último, vimos um
homem a sair do meio da neve. Parecia exausto. Tinha um dos
joelhos envolto numa ligadura ensanguentada. Eu não acreditava
nos meus olhos. Era Wil.
- Está tudo bem - disse eu para Tashi. - Conheço este
homem.Levantei-me e rastejei por cima das pedras.
Wil ouviu-nos e saltou para o lado, preparado para fugir por
um carreiro estreito, apesar da perna.
- Sou eu. - gritei-Lhe.
Wil ergueu-se um momento, depois caiu novamente sobre a
neve. Tinha vestido um grosso blusão branco e calças
impermeáveis.
- Já era tempo - disse ele, sorrindo. - Estava à tua espera
há muito tempo.
Tashi correu para ele e olhou para a perna de Wil.
Apresentei-os. O mais depressa que consegui, expliquei a Wil
tudo o que me tinha acontecido: o encontro com Yin, a fuga aos
chineses, as extensões, a passagem pelo portão e finalmente a
chegada aos anéis de Shambhala.
- Não sabia como encontrar-te - acrescentei, apontando para
o vale. - Está tudo arruinado. É o efeito dos chineses.
- Eu sei - disse Wil. - Eu próprio já me cruzei com eles.
Wil contou-nos as suas experiências. Tal como eu, ele tinha
expandido o seu campo de oração o melhor que pôde e conseguiu
entrar em Shambhala. Esteve noutra parte dos anéis, onde
continuou a ser instruído acerca das lendas por outra família.
- É muito difícil chegar aos templos - disse Wil. -
Especialmente agora, com a vinda dos soldados chineses. Temos
de nos certificar que não estamos a formular orações
negativas.
- Acho que não me estou a sair muito bem nessa área -
repliquei.
Ele olhou-me com seriedade, preocupado. - Mas foi por isso
que estiveste com o Yin. Ele não te mostrou o que pode
acontecer?
- Parece-me que agora consigo evitar as imagens de medo, em
geral. É a minha raiva contra os soldados chineses que
continua a escapar-me.
Wil pareceu ainda mais alarmado e estava prestes a dizer
qualquer coisa quando ouvimos o som de helicópteros a
aproximarem-se ao longe. Começámos a escalar a montanha,
ziguezagueando por entre as rochas e bancos de neve profunda.
Tudo parecia frágil e instável. Subimos durante mais vinte
minutos sem falarmos. O vento estava a aumentar e a neve
feria-nos o rosto.
Wil parou e caiu sobre um dos joelhos.
- Ouçam - disse. - O que é isto?
- É outra vez o helicóptero - disse eu, lutando com a minha
irritação.
Enquanto escutávamos, o helicóptero cortou as nuvens por
cima de nós e voou na nossa direcção.
Coxeando ligeiramente, Wil avançou pela encosta gelada, mas
eu parei um instante, ouvindo mais qualquer coisa acima do
ruído do helicóptero. Parecia um comboio de mercadorias.
- Cuidado! - gritou Wil à minha frente. - É uma avalanche.
Tentei correr para longe, mas era demasiado tarde. A força
bruta da neve que caía atingiu-me no rosto e derrubou-me
encosta abaixo. Caí e deslizei, umas vezes completamente
coberto pelo peso da avalanche que ribombava, outras vezes à
superfície da massa de neve em movimento.
Depois de uma aparente eternidade, senti-me a parar. Fiquei
soterrado, incapaz de me mexer, com o corpo contorcido sob a
neve. Tentei inspirar, mas não havia ar. Sabia que ia morrer.
Mas alguém agarrou o meu braço direito esticado e começou a
desenterrar-me. Sentia outros a cavarem à minha volta e,
finalmente, a minha cabeça ficou livre.
186 - 187
Respirei ansioso, tirando a neve dos meus olhos, esperando ver
Wil.
Em vez dele, vi uma dúzia de soldados chineses, um dos quais
continuava a segurar o meu braço. Atrás deles vi, a caminhar
na minha direcção, o coronel Chang. Sem falar, fez sinal a
outros soldados para me levarem a um helicóptero que pairava.
Uma escada de corda caiu, alguns soldados subiram agilmente e
depois atiraram um arnês, que foi colocado à volta do meu
corpo. O coronel deu a ordem e eu fui puxado para bordo,
enquanto ele e os restantes soldados subiam. Minutos depois
voámos para longe.
Fiquei a olhar por uma janela do tamanho de uma vigia, numa
tenda aquecida de nove por nove metros. Ao todo, conseguia
contar pelo menos sete tendas grandes e três atrelados
portáteis, mais pequenos, de um tamanho facilmente
aerotransportável. Um gerador a gasolina gemia num canto do
complexo e numa área à esquerda estavam pousados vários
helicópteros. A neve tinha parado de cair, mas tinha acumulado
trinta ou trinta e cinco centímetros sobre o solo.
Tentei ver melhor para a direita. Avaliando a disposição da
cordilheira lá atrás, concluí que tinha sido enviado para o
centro do vale. Um vento nocturno uivava, agitando as costuras
exteriores da tenda.
Quando cheguei, fui alimentado, forçado a tomar um duche
tépido e recebi um camuflado chinês e roupa interior térmica
para vestir. Pelo menos estava finalmente quente.
Voltei-me e olhei para o guarda chinês armado que estava
sentado à entrada. Os olhos dele tinham seguido todos os meus
movimentos com uma expressão fria que me gelava a alma.
Fatigado, caminhei até uma das duas camas de campanha ao canto
e sentei-me. Tentei avaliar a minha situação mas não conseguia
pensar. Estava atordoado, petrificado, tão assustado, na
realidade, que sabia não estar muito alerta. Não conseguia
compreender porque me sentia tão incapacitado. Era o pânico
mais intenso que jamais sentira.
Tentei respirar fundo e acumular energia, mas não consegui
sequer começar. As lâmpadas nuas penduradas no tecto da tenda
enchiam o espaço com uma luz baça e tremeluzente e sombras
ameaçadoras. Não conseguia encontrar qualquer beleza naquilo
que me rodeava.
A porta da tenda abriu-se e o soldado pôs-se em sentido. O
coronel Chang entrou e despiu o grosso blusão, acenando para o
guarda. Depois concentrou-se em mim. Desviei o olhar.
- Temos de falar - disse ele, puxando uma cadeira
desdobrável e sentando-se a um metro de mim. - Preciso de
respostas às minhas perguntas. Já. - Olhou friamente para mim
durante um momento. - Porque está aqui?
Decidi responder o mais sinceramente possível.
- Estou aqui a estudar as lendas tibetanas. Já lhe disse
isso.
- Está aqui à procura de Shambhala.
Fiquei silencioso.
- É isso? - perguntou ele. - Fica aqui neste vale?
O medo fez o meu estômago dar uma volta. O que ele faria se
eu me recusasse a responder?
- Não sabe? - perguntei.
Ele sorriu ligeiramente.
- Suponho que você e o resto da sua seita ilegal pensam que
isto é Shambhala. - Parecia confuso, como se tivesse recordado
outra coisa.
- Avistámos outras pessoas aqui. Mas elas conseguiram
escaparnos na neve. Onde estão? Para onde foram?
- Não sei - respondi. - Nem sequer sei onde estamos.
Ele aproximou-se. - Também encontrámos vestígios de plantas,
vivas recentemente. Como é isso possível? Como poderiam ter
crescido aqui?
Eu limitei-me a olhar para ele.
Ele sorriu friamente.
- Quanto sabe realmente acerca das lendas de Shambhala?
- Um pouco - balbuciei.
- Eu sei bastante. Acredita nisso? Até este momento tive
acesso a todos os escritos antigos e devo dizer que eles são
deliciosamente interessantes, como mitologia. Pense nisso: uma
comunidade ideal, constituída por seres humanos esclarecidos
muito mais avançados, mentalmente, do que qualquer outra
cultura deste planeta.
188 - 189
- E também sei o resto: essa ideia de que estes indivíduos
de Shambhala têm uma espécie de poder secreto para o bem, que
se mistura com o resto da humanidade e a empurra nessa
direcção. Material fascinante, não lhe parece? Lendas antigas
que até poderiam ser apreciadas, já agora... se não fossem tão
corruptoras e perigosas para o povo do Tibete.
Não lhe parece que, se alguma coisa assim fosse real, nós a
teríamos já descoberto? Deus, espírito, é tudo um sonho
infantil. Veja a mitologia tibetana acerca dos dakini, a ideia
de que existem criaturas angélicas que podem interagir
connosco, ajudar-nos.
- No que é que você acredita? - perguntei, tentando tornar a
situação mais difusa.
Ele apontou para a cabeça.
- Acredito no poder da mente. É por isso que devia falar
connosco, ajudar-nos. Estamos muito interessados na ideia do
poder psíquico, o alcance mais vasto das ondas cerebrais e o
seu efeito sobre a electrónica e as pessoas à distância. Mas
não confunda isso com espiritualismo. Os poderes da mente são
um fenómeno natural que pode ser investigado e descoberto de
forma científica.
Terminou a frase com um gesto irritado da mão, enviando uma
sensação cada vez mais profunda de medo ao meu estômago. Eu
sabia que este homem era extremamente perigoso e absolutamente
impiedoso.
Ele estava a olhar para mim, mas qualquer coisa na parede da
tenda atrás dele chamou-me a atenção, directamente em frente
da porta onde o guarda estava de pé. A área tinha subitamente
ficado mais clara. A lâmpada no tecto piscava ligeiramente e
ignorei a minha percepção, tomando-a por um sobressalto no
gerador.
O coronel levantou-se e deu alguns passos na minha direcção,
parecendo mais zangado.
- Acha que eu gosto de passear por este deserto? Não consigo
perceber como alguém pode sobreviver aqui. Mas não nos vamos
embora. Vamos alargar este campo até termos tropas suficientes
para cobrirem completamente esta área a pé. Quem quer que
esteja aqui, será descoberto e tratado com a máxima dureza.
Forçou um meio sorriso.
- Mas os nossos amigos serão igualmente recompensados.
ComPreende?
Neste momento outra onda de medo percorreu-me, mas esta era
diferente. Era medo misturado com um grande desdém. Eu
começava a desprezar a dimensão da maldade neste homem.
Olhei para trás dele, para a área que me parecera mais
clara, mas esta estava agora plana e cheia de sombras. A luz
tinha desaparecido e eu senti-me totalmente sozinho.
- Porque fazem isto? - perguntei - O povo tibetano tem
direito às suas crenças religiosas. Estão a tentar destruir a
sua cultura. Como podem fazer isso? - Sentia a minha raiva a
fazer-me mais forte.
O confronto apenas pareceu dar-lhe mais energia.
- Oh, você tem opiniões - disse ele com um sorriso afectado.
- É uma pena que sejam tão ingénuas. Você acha que aquilo que
nós fazemos é invulgar. O seu próprio governo também está a
desenvolver métodos para o controlar. Chips que podem ser
inseridos no corpo das tropas e dos desordeiros incautos.
- E não é tudo - Agora estava quase a gritar. - Sabemos
agora que, quando as pessoas pensam, um padrão específico de
ondas cerebrais irradia delas. Todos os governos estão a
trabalhar em máquinas que podem identificar estas ondas
cerebrais, especialmente os sentimentos de ira ou
anti-governamentais.
A afirmação dele arrepiou-me. Estava a falar do mesmo uso
errado da amplificação das ondas cerebrais contra o qual Ani
me avisara, aquele que tinha arruinado tantas civilizações
antigas.
- Sabe porque os vossos governos pseudo-democráticos fazem
isto? - continuou ele - Porque têm muito mais medo das pessoas
do que nós. Os nossos cidadãos sabem que o papel do governo é
governar. Sabem que certas liberdades devem ser limitadas. O
vosso povo pensa que pode existir orientação pessoal. Bem, se
isso era verdade no passado, num mundo altamente tecnológico,
onde uma arma dentro de uma mala pode destruir uma cidade, já
não funciona. Com esse tipo de liberdade, os humanos não
sobreviverão. A orientação, os valores da sociedade, deve ser
controlada e direccionada para um bem mais vasto. É por isso
que esta lenda de Shambhala é tão perigosa. Baseia-se na
auto-orientação absoluta.
190 - 191
Enquanto ele falava, pareceu-me ouvir a porta a abrir-se
atrás de mim, mas não me virei. Estava totalmente concentrado
na atitude deste homem. Aqui estava o pior da tirania moderna
a ser expresso e, quanto mais ele falava, mais o meu desprezo
aumentava.
- O que você não vê - disse eu - é que os humanos podem
encontrar uma motivação interior para criarem o bem no mundo.
Ele riu-se cinicamente.
- Não me diga que acredita nisso! Nada na história sugere
que as pessoas sejam outra coisa, a não ser egoístas e
gananciosas.
- Se tivesse a sua espiritualidade, veria o bem. - A minha
voz também estava a subir com a raiva.
- Não - disse ele com brusquidão, quase gritando. - A
espiritualidade é o problema. Enquanto houver religião, não
pode haver unidade entre o povo. Não compreende? Cada
instituição religiosa é como um bloqueio inflexível no caminho
do progresso. Cada uma combate as outras. Os cristãos gastam o
seu tempo e dinheiro a tentarem converter toda a gente à sua
doutrina de julgamentos. Os judeus querem continuar isolados
num sonho de eleição. Os muçulmanos pensam que é tudo
companheirismo, poder colectivo e ódio sagrado. E nós, no
oriente, somos os piores. Desprezamos o mundo real em favor
duma vida interior fictícia, que ninguém compreende. Com todo
este caos metafísico, ninguém pode concentrar-se no progresso,
na resolução dos problemas dos pobres, na educação de todas as
crianças tibetanas.
- Mas não se preocupe - prosseguiu. - Nós vamos
certificar-nos que o problema seja resolvido. E você
ajudou-nos. Desde que James Wilson o visitou na América,
observámos todos os seus movimentos e os do grupo holandês. Eu
sabia que você viria, que devia estar envolvido.
Devo ter parecido surpreendido.
- Oh, sim, sabemos tudo sobre si. Agimos com muito mais
liberdade na América do que você pensa. A NSA(1) pode
monitorizar a Internet. Acha que nós não podemos? Você e esta
seita nunca me escaparão. Como acha que conseguimos segui-lo
com este tempo? Com o poder da mente. A minha mente.
Ocorreu-me onde você estaria.
*1. National Security Agency - Agência de Segurança Nacional
dos Estados Unidos. (N. do T.)
192
Mesmo depois de nos perdermos neste deserto, eu sabia.
Sentia a sua presença. A princípio era o seu amigo Yin que eu
conseguia seguir. Agora é você.
E não é tudo. Já nem sequer preciso de usar os meus
instintos para o localizar. Tenho uma análise das suas ondas
cerebrais. - Indicou a porta com a cabeça. - Dentro de minutos
os nossos técnicos terão montado o nosso novo equipamento de
vigilância. Depois seremos capazes de localizar qualquer
pessoa que tenhamos analisado.
A princípio não consegui perceber o que ele estava a
referir, mas depois recordei a minha experiência na casa
chinesa em Ali, depois de ter sido gaseado. Os soldados
colocaram-me sob uma máquina. Uma nova onda de medo
percorreu-me, mas imediatamente se transformou num ódio ainda
mais profundo.
- Você é louco! - gritei.
- Exacto. Para você, eu sou maluco. Mas eu sou o futuro. -
Estava agora a pairar ameaçador à minha frente, com o rosto
vermelho, quase a explodir de raiva. - Que inocência tão
estúpida. Você vai contar-me tudo. Percebeu? Tudo!
Sabia que ele não me teria dado esta informação se alguma
vez pretendesse libertar-me, mas naquele momento não me
importava.
Estava a falar com um monstro e um ódio avassalador estava a
encher-me. Estava prestes a verbalizar novamente a minha raiva
quando uma voz no outro lado da divisão exclamou.
- Não faça isso! Isso só o enfraquece!
O coronel voltou-se e olhou e eu segui o seu olhar. Junto à
porta estava outro guarda e a seu lado, encostado a uma
mesinha, estava Yin. O guarda empurrou-o para o chão.
Saltei e corri para Yin, enquanto o coronel dizia qualquer
coisa em chinês aos guardas e depois saía apressado. Yin tinha
nódoas negras e golpes no rosto.
- Yin, estás bem? - perguntei, amparando-o até uma das
camas.
- Estou - disse ele, puxando-me para junto dele. - Eles
apareceram logo depois de você ter partido. - Os olhos dele
estavam cheios de entusiasmo.
- Diga-me o que aconteceu. Encontrou Shambhala?
Olhei para ele e levei os dedos aos meus lábios.
193
- Eles provavelmente juntaram-nos para verem o que dizemos -
murmurei. - Podes apostar que têm este lugar sob escuta. Não
devíamos falar.
- Teremos de arriscar - disse Yin. - Venha para junto do
aquecedor. É barulhento. Conte-me o que aconteceu.
Durante a meia hora seguinte contei-lhe tudo acerca do mundo
que encontrara em Shambhala e depois, com o mais leve dos
sussurros, mencionei os templos.
Os olhos dele abriram-se muito.
- Então ainda não completou a Quarta Extensão?
Eu murmurei:
- É nos templos.
Falei-lhe acerca de Tashi e Wil e daquilo que Ani nos
dissera acerca de aprendermos o que as pessoas nos templos
faziam.
- E que mais disse ela? - perguntou Yin.
- Disse que não devemos ter inimigos - respondi.
Yin sorriu dolorosamente durante um momento e depois disse:
- Mas você está a fazer exactamente isso com o coronel.
Estava a usar a sua ira e desdém para se sentir forte. Esses
são os erros que eu cometi. Tem sorte dele não o ter morto
imediatamente.
Caí para trás, sabendo que as minhas emoções estavam
descontroladas.
- Não se lembra quando as suas expectativas negativas
afastaram o casal holandês da carrinha e você perdeu uma
sincronicidade importante? Nesse caso estava a ter uma
expectativa de medo de que eles iriam talvez prejudicá-lo.
Eles sentiram essa expectativa da sua parte; provavelmente
começaram a sentir que, caso parassem, fariam qualquer coisa
de mal e por isso partiram.
- Sim, eu lembro-me.
- Sempre que assumimos ou esperamos qualquer coisa negativa
- continuou Yin - acerca de outro ser humano, estamos a
formular uma oração que vai agir para criar essa realidade
nessa pessoa. Lembre-se que as nossas mentes estão ligadas. Os
nossos pensamentos e expectativas vão influenciar os outros a
pensarem da mesma maneira que nós. É isso que tem estado a
fazer com o coronel. Tem esperado que ele seja mau.
- Espera um minuto. Eu estava apenas a vê-lo como ele é.
194
- A sério? Que parte dele? O ego ou a alma, o eu mais
elevado?
Yin tinha razão. Eu tinha aprendido tudo isto com a Décima
Revelação, mas não estava a agir de acordo com ela.
- Quando estava a fugir dele - disse eu - ele conseguiu
seguir-me. Ele disse que conseguia fazer isso com a mente e a
intuição.
- Estava a pensar nele? - perguntou Yin - À espera que ele o
seguisse?
- Devia estar.
- Não se lembra? Foi isso que aconteceu comigo, antes. E
agora você está a fazer a mesma coisa. Essa expectativa estava
a criar na mente do Chang a ideia de onde você estava. Era um
pensamento do ego, mas ocorreu-lhe porque você esperava -
rezava, na realidade - que ele o encontrasse.
- Não vê? - prosseguiu Yin. - Falámos sobre isto tantas
vezes. O nosso campo de oração trabalha constantemente sobre o
mundo, enviando as nossas expectativas e, no caso de uma outra
pessoa, o efeito é quase instantâneo. Felizmente, como eu já
disse antes, uma tal oração negativa não é tão forte como uma
oração positiva, porque imediatamente o separa das suas
energias do eu superior, mas continua a ter um efeito. É este
o processo oculto por detrás da sua Regra Dourada.
Olhei para ele por um momento, sem compreender. Demorei um
minuto a lembrar-me ao que ele se referia: ao apelo bíblico
para fazermos aos outros o que gostaríamos que nos fosse feito
a nós. Não conseguia ver muito bem a ligação e pedi-lhe que mo
explicasse.
- Aparentemente - continuou ele - a regra devia ser seguida
porque cria uma boa sociedade. Certo? Enquanto posição ética.
Mas de facto há uma verdadeira razão espiritual, do karma, que
vai para além da noção disto ser uma boa ideia. É importante
obedecer a esta regra porque ela nos afecta pessoalmente.
Fez uma pausa dramática e depois acrescentou:
- A mais completa expressão desta regra deveria ser: faz aos
outros aquilo que gostarias que te fizessem, porque a forma
como os tratas ou pensas neles é exactamente a forma como eles
te vão tratar.
A oração que envias com o teu sentimento ou acção tende a
desencadear neles exactamente aquilo que esperas.
Acenei. Esta ideia começava a entrar em mim.
195
- No caso do coronel, quando você conclui que ele é mau, a
sua energia de oração entra na energia dele e reforça as suas
tendências. E assim ele começa a agir da forma como você
esperava: de forma furiosa, impiedosa. Porque ele não está
ligado a uma energia divina mais profunda, a energia do ego
dele é fraca e maleável. Ele assume o papel que se espera
nele. Pense no modo como as coisas geralmente funcionam na
cultura humana. Este efeito está em toda a parte. Lembre-se
que os humanos partilham atitudes e estados de espírito. É
tudo muito contagioso. Quando olhamos para os outros e fazemos
julgamentos, pensando que eles são gordos ou magros ou
fracassados ou feios ou mal vestidos, na realidade enviamos a
nossa energia a essas pessoas e eles começam muitas vezes a
ter maus pensamentos acerca deles mesmos. Estamos envolvidos
naquilo a que só podemos chamar a energia do mal. É o contágio
da oração negativa.
- Mas o que é suposto nós fazermos? - protestei. - Não
devemos ver as coisas como elas são?
- É claro que temos de ver as coisas como elas são, mas
depois disso devemos mudar imediatamente as nossas
expectativas daquilo que é para aquilo que podia ser. No caso
do coronel, devia ter compreendido que embora ele aja de forma
maligna, desligado de qualquer espiritualidade, o eu superior
dele é capaz de ver a luz num instante. É essa a expectativa
que interessa reter, porque então está realmente a enviar o
seu campo de oração nessa direcção, para aumentar a energia e
consciência dele. Deve voltar sempre a essa postura mental,
não importa aquilo que tiver visto.
Fez outra pausa dramática, sorrindo, o que me pareceu
estranho devido à nossa situação e ao seu rosto magoado e
cortado.
- Eles bateram-te? - perguntei.
- Não é nada que eu não tenha desejado - disse ele,
sublinhando mais uma vez a sua posição.
- Está a ver a importância de tudo isto? - perguntou Yin. -
Não pode ir mais longe nas extensões enquanto não compreender
isto. A ira será sempre uma tentação. Sabe bem. Faz os nossos
egos acreditarem que estamos a ficar mais fortes. Tem de ser
mais esperto do que isso. Não pode chegar aos níveis mais
fortes da energia criativa até conseguir evitar todos os
tipos de orações negativas. Já existe suficiente mal, sem que
nós o aumentemos inconscientemente. Esta é a grande verdade
por detrás do código tibetano de compaixão.
Afastei o olhar, sabendo que tudo o que Yin estava a dizer
era verdade. Tinha caído novamente neste padrão de raiva.
Porque estava sempre a fazer o mesmo?
Yin fixou os meus olhos.
- Aqui está o corolário desta ideia. Ao corrigirmos um
padrão contraproducente em nós mesmos - neste caso, raiva e
condenação - é imperioso que não criemos uma oração negativa
acerca das nossas possibilidades. Está a ver o que eu quero
dizer? Se fizermos comentários derrotistas como Eu não consigo
superar este problema ou Eu serei sempre assim, então estamos
a rezar para nos mantermos assim. Temos de formular uma visão
em como encontraremos uma energia mais elevada e superaremos
os nossos padrões. Temos de nos elevar com a nossa própria
energia de oração.
Ele recostou-se na cama.
- Foi esta a lição que eu próprio tive de aprender. Nunca
consegui compreender a atitude compassiva do Lama Rigden para
com o governo chinês. Eles estavam a destruir o nosso país e
eu queria-os derrotados. Nunca tinha estado suficientemente
perto de um soldado para olhá-los nos olhos, para vê-los como
pessoas apanhadas por um sistema tirânico.
- Mas quando vi para lá dos egos deles, da sua socialização,
consegui finalmente aprender a não aumentar a energia do mal
com as minhas ideias negativas. Consegui finalmente formar uma
visão mais elevada com eles e comigo mesmo. Talvez porque
aprendi isto, eu consiga também formar uma visão mais elevada
de que você também há-de aprendê-lo.
A cordei com o primeiro barulho no campo. Alguém estava a
bater com barris ou latas grandes. Levantei-me num salto,
vesti-me e olhei na direcção da porta. Os guardas tinham sido
substituídos por dois outros soldados, que olharam para mim
sonolentos. Fui até à janela e olhei para fora. O dia estava
escuro e encoberto e o vento uivava.
196 - 197
Havia movimento numa das tendas; uma das portas estava a
abrir-se. Era o coronel, que caminhou na direcção da nossa
tenda.
Recuei até à cama de campanha de Yin e ele virou-se, lutando
para despertar. Tinha a cara inchada e piscou os olhos para me
conseguir ver.
- O coronel vem aí - disse eu.
- Ajudarei no que puder - disse ele. - Mas você deverá ter
um campo de oração diferente para com ele. É a sua única
hipótese.
A porta da tenda abriu-se de rompante e os soldados
puseram-se em sentido. O coronel entrou e fez-lhes sinal para
esperarem no exterior. Olhou uma vez para Yin, antes de
avançar para mim.
Eu estava a respirar fundo e a tentar aumentar o meu campo o
mais possível. Visualizei a energia a transbordar de mim e
concentrei-me em vê-lo não como torturador, mas apenas como
uma alma receosa.
- Quero saber onde ficam estes templos - disse ele com uma
voz baixa e ameaçadora, tirando o casaco.
- A única forma de conseguir vê-los é aumentar a sua energia
o bastante - respondi, dizendo a primeira coisa que me
ocorreu.
Ele pareceu ter sido apanhado desprevenido.
- Do que é que você está a falar?
- Você disse-me que acredita nos poderes da mente. E se um
desses poderes for a capacidade de aumentar o seu nível de
energia?
- Que energia?
- Você disse que as ondas cerebrais eram reais e que podiam
ser manipuladas por uma máquina. E se elas pudessem ser
manipuladas internamente pela nossa intenção e reforçadas,
aumentando o nosso nível de energia?
- Como é isso possível? - disse ele. - Isso nunca foi
demonstrado pela ciência.
Eu não conseguia acreditar, ele parecia estar a abrir a sua
mente. Concentrei-me na expressão no rosto dele, que parecia
estar a avaliar honestamente aquilo que eu estava a dizer.
- Mas é mesmo possível - continuei. - As ondas cerebrais, ou
talvez umas ondas diferentes que têm mais alcance, podem ser
aumentadas até ao ponto em que influenciam aquilo que
acontece.
198
Ele ergueu a cabeça.
- Está a dizer-me que sabe como usar as ondas cerebrais para
fazer determinadas coisas acontecerem?
Enquanto ele falava, vi novamente um brilho por detrás dele,
junto à parede da tenda.
- Sim - continuei. - Mas só aquelas coisas que levam as
nossas vidas na direcção que é suposto elas seguirem. De
outra forma, a energia acaba por ceder.
- Suposto elas seguirem? - perguntou ele, piscando um olho.
A área da tenda atrás dele continuava a parecer mais
luminosa e eu não conseguia deixar de olhar para lá. Ele
voltou-se e olhou também nessa direcção.
- Para onde está a olhar? - perguntou. - Diga-me o que
significa suposto elas seguirem. Eu considero-me livre. Posso
levar a minha vida na direcção que eu quiser.
- Sim, claro. Isso é verdade. Mas há uma direcção que parece
ser a melhor, mais inspirada, e que nos dá mais satisfação do
que as outras, não há?
Eu não conseguia acreditar na força do brilho atrás dele,
mas não me atrevia a olhar directamente para lá.
- Não sei do que é que você está a falar - disse ele.
Ele parecia confuso, mas eu continuei concentrado na parte
da sua expressão que estava a escutar-me.
- Nós somos livres - disse eu. - Mas também pertencemos a um
desígnio, que vem de uma parte mais elevada de nós mesmos e à
qual nos podemos ligar. O nosso verdadeiro eu é muito maior do
que pensamos.
Ele limitou-se a olhar. Algures, no fundo da sua
consciência, ele parecia estar a compreender.
Fomos interrompidos quando os guardas lá fora bateram na
porta. Quando o fizeram, apercebi-me que o vento se tinha
transformado num temporal. Ouvíamos coisas a serem atiradas e
viradas em todo o campo.
Um guarda tinha aberto a porta e estava a gritar com força
em chinês. O coronel correu para ele. Ao fazê-lo, vimos tendas
a voarem por todo o lado. Ele virou-se e olhou para Yin e para
mim; nesse momento uma tremenda rajada de vento atingiu o lado
199
esquerdo da nossa tenda, arrancando-a às suas fundações e
rasgando-a, cobrindo o coronel e os guardas com a lona,
atirando-os ao chão.
Yin e eu fomos atingidos pelo vento e a neve que soprava
pelo buraco aberto.
- Yin - gritei. - Os dakini.
Yin tentou pôr-se de pé.
- Esta é a sua hipótese! - disse ele. - Fuja!
- Vem - disse eu, agarrando-o pelo braço. - Podemos ir
juntos.
Ele afastou-me. - Não posso. Eu só iria atrasá-lo.
- Nós conseguimos - insisti.
Ele gritou por cima do uivo do vento - Eu já fiz o que tinha
a fazer. Agora você deve fazer o mesmo. Ainda não conhecemos o
resto da Quarta Extensão.
Acenei e abracei-o rapidamente, depois agarrei no pesado
casaco do coronel e corri pelo buraco da tenda, para a
tempestade.
200
10.
RECONHECER A LUZ
Corri para norte durante uns trinta metros e parei para
olhar para o campo. Ainda ouvia o barulho de gritos e de
detritos a serem atirados por toda a instalação.
À minha frente estava um sólido manto branco e ia a
arrastar-me na direcção das montanhas quando ouvi o coronel a
gritar.
- Hei-de encontrar-te - gritou ele, furioso, acima do ruído
do vento. - Não vais escapar.
Continuei a caminhar, o mais depressa que pude na neve
profunda. Demorei quinze minutos para avançar cem metros.
Felizmente o vento continuava a soprar furiosamente e eu sabia
que só daí a algum tempo os chineses poderiam pôr os
helicópteros no ar.
Ouvi um som fraco. A princípio pensei que fosse o vento, mas
gradualmente ficou mais forte. Agachei-me. Alguém estava a
chamar-me pelo nome. Finalmente vi alguém a avançar através da
neve soprada pelo vento. Era Wil.
Abracei-o.
- Meu Deus, estou feliz por ver-te. Como é que me
encontraste?
- Vi em que direcção o heli voou - disse ele - e continuei a
andar até ver o campo. Estive aqui toda a noite. Se não
tivesse comigo o meu fogão de campo, teria morrido gelado.
Estava a tentar arranjar maneira de te tirar de lá. Mas o
nevão resolveu esse problema. Anda, temos de tentar novamente
chegar aos templos.
Eu hesitei.
- O que se passa? - perguntou Wil.
201
- O Yin está lá - respondi. - Está ferido.
Wil pensou durante um momento, enquanto olhávamos para o
campo. - Eles vão organizar um grupo de busca - disse ele. -
Não podemos voltar. Teremos de tentar ajudá-lo mais tarde. Se
não sairmos daqui e encontrarmos os templos antes do coronel,
tudo estará perdido.
- O que aconteceu ao Tashi? - perguntei.
- Ficámos separados quando a avalanche começou - respondeu
Wil - mas, mais tarde, vi-o a subir a montanha sozinho.
Caminhámos durante mais de duas horas e estranhamente, logo
que saímos da área em redor do acampamento chinês, o vento
começou a amainar, embora ainda estivesse a nevar pesadamente.
Durante a nossa caminhada, contei a Wil tudo o que Yin tinha
dito na tenda e o que tinha acontecido com o coronel.
Finalmente chegámos à área da montanha onde ocorrera a
avalanche. Passámos por ela e seguimos para oeste, subindo a
encosta.
Sem falar mais, Wil seguiu à frente durante mais duas horas.
Finalmente parou e sentou-se para descansar atrás de um grande
banco de neve.
Olhámos um para o outro durante um longo momento, ambos
respirando com dificuldade. Wil sorriu e perguntou:
- Compreendes agora o que o Yin te estava a dizer?
Fiquei silencioso. Apesar de ter visto tudo a desenrolar-se
com o coronel, continuava a ser difícil de acreditar.
- Eu estava a formar orações negativas - disse finalmente.
- Foi por isso que o coronel conseguiu seguir-me.
- Não podemos continuar até que ambos consigamos evitar isso
- disse Wil. - A nossa energia deve manter-se alta de forma
consistente, antes de podermos progredir o resto da Quarta
Extensão. Temos de ter muito cuidado para não visualizarmos a
maldade daqueles que têm medo. Temos de olhar para eles de
forma realista e tomar precauções, mas se nos detivermos no
seu comportamento ou guardarmos imagens deles prestes a
magoarem-nos, isso envia energia à paranóia deles e pode mesmo
dar-lhes a ideia de fazer aquilo que esperamos. É por isso que
é tão importante não deixar as nossas mentes visualizarem as
coisas más que poderiam acontecer-nos. É uma oração que cria
exactamente esse acontecimento.
Abanei a cabeça, sabendo que estava ainda a resistir a esta
ideia. Se era verdade, isso parecia colocar um pesado fardo
em cada um de nós, exigir que vigiássemos cada um dos nossos
pensamentos. Referi a minha preocupação a Wil. Ele quase riu.
- É claro que temos de vigiar os nossos pensamentos. Temos
de fazê-lo, de qualquer maneira, para não perdermos uma
intuição importante. Para além disso, basta voltar ao alerta
consciência e visualizar sempre a consciência de todas as
pessoas a aumentar. As lendas são muito claras. Para manter o
alargamento mais poderoso da nossa energia de oração, não
podemos nunca usá-la negativamente. Não podemos prosseguir
enquanto não conseguirmos evitar completamente este problema.
- Quantas lendas ouviste descrever? - perguntei.
Em resposta à minha pergunta, Wil começou a falar acerca das
suas experiências durante esta aventura, com muito mais
pormenor do que tinha sido possível antes.
- Quando fui a tua casa - começou - estava perplexo porque a
minha energia tinha caído em relação ao seu estado quando
estávamos a explorar a Décima Revelação. Depois comecei a
pensar no Tibete e dei comigo no mosteiro do Lama Rigden, onde
conheci o Yin e ouvi falar dos sonhos. Não compreendi tudo,
mas eu próprio tinha tido sonhos semelhantes. Sabia que, de
alguma forma, tu estavas envolvido e tinhas algo a fazer aqui.
Foi então que comecei a estudar as lendas em pormenor e a
aprender as extensões da oração. Estava preparado para me
encontrar contigo em Katmandu, mas vi os chineses a
seguirem-me e pedi ao Yin para ir em meu lugar. Tive de
acreditar que acabaríamos por nos encontrarmos.
Wil fez uma pausa, tirou uma camisola interior branca e
começou a colocar uma nova ligadura no joelho. Olhei para a
extensão infinita de montanhas brancas atrás de nós. As nuvens
afastaram-se por um instante e o sol matinal criou um efeito
de cumes montanhosos iluminados e vales mais escuros,
sombrios. A vista encheu-me de admiração e, de uma forma
estranha, comecei a sentir-me em casa aqui, como se uma parte
de mim finalmente compreendesse este país.
Quando voltei a olhar para Wil, ele estava a observar-me
fixamente.
202 - 203
- Talvez - disse Wil - devêssemos ver tudo o que as lendas
dizem acerca do campo de oração. Temos de compreender agora de
que modo tudo isto se relaciona.
Eu acenei.
- Tudo começa - continuou ele - quando nos apercebemos de
que a nossa energia de oração é real, que flui a partir de nós
e afecta o mundo. Assim que tivermos essa percepção, podemos
compreender que este campo, este efeito que temos sobre o
mundo, pode ser expandido, mas temos de começar com a Primeira
Extensão. Temos primeiro de melhorar a qualidade da energia
que absorvemos fisicamente. Comidas pesadas e tratadas
mecanicamente geram sólidos ácidos nas nossas estruturas
moleculares, baixando a nossa vibração e acabando por provocar
doenças. Os alimentos vivos têm um efeito alcalino e aumentam
a nossa vibração. Quanto mais pura é a nossa vibração, tanto
mais fácil é ligarmo-nos às energias mais subtis dentro de
nós. As lendas dizem que nós aprenderemos a respirar de forma
consistente neste nível superior de energia, usando a nossa
percepção acrescida da beleza como medida. Quanto maior é o
nosso nível de energia, mais beleza vemos. Podemos aprender a
visualizar este nível superior de energia a fluir a partir de
nós para o mundo, usando igualmente o estado emocional de amor
como medida para essa ocorrência.
Assim ficamos ligados interiormente, tal como aprendemos no
Peru. Só que agora aprendemos que, ao visualizarmos a energia
como campo que se estende a partir de nós para onde quer que
vamos, podemos manter-nos sempre mais fortes.
A Segunda Extensão começa quando preparamos este campo de
oração alargado para aumentar o fluxo da sincronicidade nas
nossas vidas. Fazemos isso mantendo-nos num estado de alerta
consciente e de expectativa em relação à próxima intuição ou
coincidência que fará as nossas vidas avançarem. Esta
expectativa leva a nossa energia ainda mais longe e torna-a
mais forte, porque agora estamos a alinhar as nossas intenções
com o processo ideal de crescimento e evolução estruturado no
próprio universo.
A Terceira Extensão envolve outra expectativa: que o nosso
campo de oração se estenda e aumente o nível de energia dos
outros, elevando-os à sua própria ligação com o divino dentro
deles e com a intuição do seu eu superior. Isto, é claro,
aumenta a probabilidade deles nos darem informações intuitivas
que podem aumentar ainda mais o nosso nível de sincronicidade.
É a ética interpessoal que aprendemos no Peru, só que agora
sabemos como usar o campo de oração para torná-la mais forte.
A Quarta Extensão começa quando aprendemos a importância de
ancorarmos e mantermos o fluxo da nossa energia, apesar das
situações de medo ou raiva. Fazemos isso mantendo sempre uma
postura particular de distanciamento em relação aos
acontecimentos que surgem, mesmo enquanto esperamos que o
processo se desenrole. Devemos procurar sempre um significado
positivo e esperar sempre, sempre, que o processo nos salve,
não importa o que esteja a acontecer. Uma tal postura mental
ajuda-nos a manter a concentração no fluxo e impede-nos de nos
determos em imagens negativas daquilo que poderia acontecer se
falhássemos. Em geral, se sentirmos uma imagem negativa a
surgir na nossa mente devemos avaliar se é um aviso intuitivo
e, se assim for, devemos agir em conformidade, mas devemos
voltar sempre à expectativa de uma sincronicidade mais elevada
que nos guiará para longe desse problema. Isto ancora o nosso
campo, o nosso fluxo de energia, com uma expectativa poderosa
a que sempre chamámos fé.
Em suma, a primeira parte da Quarta Extensão trata de manter
a nossa energia forte em qualquer altura. Quando tivermos
dominado isso, podemos avançar e expandir a nossa energia
ainda mais. O passo seguinte na Quarta Extensão começa quando
esperamos completamente que o mundo humano possa progredir em
direcção ao ideal expresso na Décima Revelação e modelado por
Shambhala. Levar a nossa energia mais longe e com mais força
deste modo exige uma crença genuína. É por isso que
compreender Shambhala é tão importante. Saber que Shambhala já
o fez aumenta a nossa expectativa de que o resto da humanidade
também o possa fazer. Podemos ver imediatamente como os
humanos conseguem dominar a nossa tecnologia e usá-la ao
serviço do nosso desenvolvimento espiritual e depois começar a
concentrarmo-nos no próprio processo vital, a verdadeira razão
para estarmos neste planeta: para criar uma cultura terrestre
204 - 205
que tenha consciência do nosso papel na evolução espiritual e
para ensinar esse entendimento aos nossos filhos.
Ele parou e olhou para mim durante um momento.
- Agora vem a parte mais difícil - disse ele. - Para
expandir ainda mais, temos de fazer mais do que simplesmente
mantermo-nos positivos de forma geral e evitar imagens de
acontecimentos negativos. Temos também de manter fora das
nossas cabeças todos os pensamentos negativos em relação aos
outros. Tal como acabas de ver, se o nosso medo alguma vez se
transforma em ira e nós caímos no erro de pensar o pior dos
outros, surge uma oração negativa que cria neles exactamente o
comportamento que esperamos. É por isso que os professores que
esperam grandes coisas dos seus alunos geralmente
conseguem-nas, enquanto que, se esperam o negativo, também o
conseguem. A maioria das pessoas acredita que é mau dizer algo
negativo acerca dos outros, mas que não há problema em
pensá-lo. Sabemos agora que há problema; os pensamentos são
importantes.
Enquanto Wil dizia isto, pensei na recente vaga de tiroteios
nas escolas dos Estados Unidos e referi o que me ocorrera.
- Os miúdos em toda a parte - disse ele - estão mais
poderosos do que alguma vez foram e até os grupos e pressões
ocasionais que sempre aconteceram nas escolas já não podem ser
ignorados pelos professores. Quando certos miúdos são
desprezados, gozados e usados como bodes expiatórios são
afectados por esta oração negativa mais do que alguma vez
aconteceu. Agora, por vezes eles reagem de forma explosiva. E
isto não está a acontecer apenas com os miúdos; está a
acontecer em toda a cultura humana. Só a compreensão do efeito
dos campos de oração nos permitirá compreender o que está a
acontecer. Estamos todos a ficar gradualmente mais poderosos
e, se não tomarmos total consciência das nossas expectativas,
podemos inadvertidamente causar grandes danos aos outros.
Wil parou de falar e arqueou a sobrancelha.
- Isso leva-nos ao ponto onde estamos agora, segundo creio.
Concordei com um aceno, apercebendo-me de quanto tinha
sentido a falta dele.
- As lendas dizem para onde vamos a partir daqui? -
perguntei.
- Para o assunto que mais me tem interessado - respondeu
ele. - As lendas dizem que não podemos alargar mais os nossos
campos até reconhecermos completamente os dakini.
Contei-lhe rapidamente as minhas muitas experiências com as
estranhas figuras e zonas iluminadas desde que chegara ao
Tibete.
- Já tinhas tido essas experiências antes do Tibete -
declarou Wil.
Ele tinha razão. Houve momentos, quando procurávamos a
Décima Revelação, em que parecia ser ajudado por estranhas
centelhas de luz.
- É verdade - disse eu. - Quando estivemos juntos nos
Apalaches.
- E no Peru também - acrescentou ele.
Tentei recordar, mas não me ocorreu nada.
- Tu contaste-me daquela vez que estavas num cruzamento e
não sabias por onde ir - disse ele. - E uma estrada parecia
mais iluminada, mais luminosa, e tu escolheste essa direcção.
- Sim - disse eu, recordando claramente a ocorrência. -
Achas que foi um dakini?
Wil estava de pé, a colocar a mochila às costas.
- Sim - declarou. - Eles são as luminosidades que vemos e
que guiam os nossos passos.
Fiquei perplexo: Isso significava que sempre que víamos um
objecto luminoso ou um percurso que parecia mais claro e mais
atraente, ou um livro que nos saltava à vista e nos chamava a
atenção eram estes seres em acção.
- Que mais dizem as lendas acerca dos dakini? - perguntei.
- Que eles são o mesmo em todas as culturas, todas as
religiões, independentemente daquilo que lhes chamarmos.
Lancei-lhe um olhar interrogador.
- Podemos chamar-lhes anjos - continuou Wil - mas não
importa se lhes chamamos dakini ou anjos, são sempre os mesmos
seres... e agem da mesma maneira.
Tinha outra pergunta a fazer, mas Wil ia a subir
apressadamente a encosta, evitando as áreas de neve mais
pesada. Segui-o, com dúzias de perguntas a acorrerem-me à
cabeça. Não queria deixar morrer a conversa.
A dada altura Wil olhou para trás, para mim.
206 - 207
- As lendas dizem que estes seres ajudam os humanos desde o
início dos tempos e que são referidos na literatura mística de
todas as religiões. Segundo as lendas, cada um de nós começará
a percepcioná-los mais facilmente. Se realmente os
reconhecermos, os dakini dar-se-ão a conhecer mais facilmente.
A forma como ele sublinhava a palavra reconhecer fez-me
pensar que esta tinha um significado especial.
- Mas como fazemos isso? - perguntei, trepando a uma pedra
que se destacava do carreiro.
Wil parou à minha frente, deixou-me apanhá-lo e depois
disse:
- Segundo as lendas, devemos reconhecer realmente que eles
estão aqui. Isso é muito difícil para as nossas mentes
modernas. Uma coisa é pensar que os dakini ou anjos são uma
matéria fascinante. Outra coisa completamente diferente é
esperar que eles sejam perceptíveis nas nossas vidas.
- O que achas que devemos fazer?
- Observar atentamente todas as variações da luminosidade.
- Portanto, se mantivermos a nossa energia em alta e os
reconhecermos - disse eu - poderemos começar a ver mais
luminosidades dessas?
- Exactamente - disse ele. - A parte difícil é treinarmo-nos
para procurar as mudanças subtis na luz à nossa volta. Mas se
o fizermos, poderemos detectá-la melhor.
Pensei no que ele estava a dizer e compreendi, tanto quanto
me parecia, mas ainda tinha uma pergunta. - E os casos -
perguntei - em que os dakini ou anjos intervêm directamente
nas nossas vidas, quando nós não os esperamos ou reconhecemos?
Isso já me aconteceu.
Tratei de falar a Wil acerca da figura alta que tinha
avistado quando Yin me empurrou do jipe, a norte de Ali, e que
tinha aparecido novamente quando a fogueira surgiu no mosteiro
em ruínas, antes de entrar em Shambhala.
Wil acenou com a cabeça.
- Parece que o teu anjo da guarda se revelou. As lendas
dizem que todos temos um.
A minha mente corria a cento e cinquenta quilómetros por
hora. A realidade destes seres nunca fora tão evidente.
208
- Mas o que os faz ajudarem-nos em certas alturas - inquiri
- e não em outras?
Wil arqueou a sobrancelha. - Isso - disse -, é o segredo que
viemos tentar descobrir.
Estávamos a chegar ao cume da montanha. Atrás de nós, o sol
começava a romper as densas nuvens e a temperatura parecia
estar a subir.
- Disseram-me - disse Wil, parando um pouco antes do cimo da
montanha -, que os templos ficam do outro lado desta serra.
Parou e olhou para mim.
- Esta pode ser a parte mais difícil.
As palavras dele pareceram-me ameaçadoras.
- Porquê? - perguntei. - O que queres dizer?
- Temos de juntar todas as extensões e manter a nossa
energia tão forte quanto possível. As lendas dizem que só
conseguiremos ver os templos se conseguirmos manter a nossa
energia suficientemente alta.
Exactamente nesse momento, ouvimos helicópteros algures à
distância.
- E não te esqueças daquilo que aprendeste - disse Wil. - Se
começares a pensar na maldade do exército chinês, se sentires
raiva ou desdém, deves deslocar imediatamente a tua atenção
para a alma que pode emergir dentro de cada soldado. Visualiza
a tua energia a fluir e a entrar nos campos deles, elevando-os
a uma ligação com a luz interior, de modo a conseguirem
descobrir as suas intuições mais elevadas. Fazer outra coisa é
enviar uma oração que lhes dá mais energia para serem maus.
Acenei e baixei os olhos. Estava determinado a manter este
campo positivo.
- Agora vai além disso, reconhece os dakini e espera as
luminosidades.
Olhei para o pico à minha frente, Wil acenou e seguiu
adiante.
Quando chegámos ao cume, não vimos nada no outro lado a não
ser uma série de picos e vales cobertos de neve.
Inspeccionámos cuidadosamente a paisagem.
209
- Além - gritou Wil, apontando para a nossa esquerda.
Esforcei-me para ver. Qualquer coisa no limite do pico
parecia brilhar ligeiramente. Quando tentei concentrar-me
directamente nela, vi apenas que a área parecia luminosa. Mas
quando olhei para ela pelo canto do olho, vi que o próprio ar
estava a brilhar.
- Vamos - disse Wil.
Puxou-me o braço enquanto avançávamos pela neve funda e
subíamos em direcção ao ponto que tínhamos avistado. Quando
nos aproximámos, a área pareceu ficar ainda mais brilhante.
Para lá dela ficava uma série de enormes pináculos rochosos
que, à distância, pareciam alinhados uns ao lado dos outros.
Olhando melhor, contudo, vimos que um deles estava recuado em
relação aos outros, deixando uma passagem estreita que curvava
mais para a esquerda e descia a encosta da montanha. Quando
chegámos à passagem, descobrimos que na realidade eram degraus
de pedra, cravados nas rochas, que marcavam o caminho
descendente. Os degraus também pareciam luminosos e estavam
limpos de neve.
- Os dakini estão a mostrar-nos o caminho - disse Wil,
continuando a puxar-me.
Passámos agachados pela abertura e seguimos o percurso para
baixo. De ambos os lados, uma parede de rocha lisa erguia-se a
seis ou sete metros e bloqueava a maior parte da luz. Durante
mais de uma hora seguimos os degraus, descendo continuamente
até que finalmente os penhascos se alargaram por cima das
nossas cabeças.
Vários metros mais à frente o chão ficou direito e os
degraus terminaram. Estávamos de frente para um precipício
liso que envolvia a parede rochosa à esquerda.
- Além - disse Wil, apontando.
Duzentos metros à nossa frente parecia estar um velho
mosteiro, totalmente em ruínas, como se tivesse milhares de
anos. Enquanto caminhávamos na sua direcção, a temperatura
subiu ainda mais e uma neblina fina ergueu-se das rochas. À
frente do mosteiro, o precipício transformava-se numa larga
plataforma que penetrava na encosta da montanha. Quando
chegámos às ruínas, passámos cautelosamente pelas paredes
derruídas e grandes pedras até chegarmos ao outro lado.
210
Ali, parámos abruptamente. A superfície rochosa que
pisávamos tinha-se transformado num chão de pedras lisas, de
cor ligeiramente amarelada, distribuídas de forma regular sob
os nossos pés. Olhei para Wil, que estava a olhar adiante. À
nossa frente estava um templo intacto, com quinze metros de
altura e o dobro de largura. Era de um castanho ferruginoso,
com listas cinzentas ao longo dos pontos de união das paredes
de pedras sobrepostas. Na frente estavam duas portas
gigantescas, com cinco ou seis metros de altura.
Qualquer coisa moveu-se na neblina perto do templo. Olhei
para Wil e ele acenou, fazendo-me sinal para o seguir.
Aproximámo-nos até vinte metros da estrutura.
- Que movimento foi aquele? - perguntei a Wil.
Ele fez-me sinal com a cabeça na direcção da área à nossa
frente. A menos de três metros estava uma forma qualquer.
Tentei concentrar-me nela e, finalmente, consegui discernir
os contornos mínimos de uma figura humana.
- Deve ser um dos crentes que habitam nos templos - disse
Wil - A pessoa tem uma vibração mais alta do que nós. É por
isso que a vemos apenas como uma forma indistinta.
Enquanto olhávamos, a figura avançou para a porta do templo
e desapareceu. Wil seguiu à frente. A porta parecia ser feita
de uma espécie de pedra mas, quando Wil a puxou pelo puxador
esculpido na rocha, deslizou como se não tivesse peso.
Lá dentro estava uma grande sala circular, que descia numa
série de degraus em direcção a uma área central semelhante a
um palco. Enquanto estudava a estrutura, avistei outra figura
a meio caminho do palco, só que esta pessoa era bem visível.
Ela voltou-se, de modo a podermos ver o seu rosto. Era Tashi.
Wil estava já a mover-se na direcção dele.
Antes de chegarmos junto de Tashi, uma janela espacial
abriu-se por cima do centro da sala. A imagem ficou lentamente
mais focada, captando a nossa atenção e ficando tão brilhante
que deixámos de ver Tashi. Era uma imagem da Terra, vista do
espaço.
A cena deslocou-se em sucessão rápida para uma cidade,
algures na Europa, depois para uma área metropolitana nos
Estados Unidos e, finalmente, para a Ásia.
211
Em cada caso víamos pessoas a andarem por ruas cheias de
movimento, bem como outras em escritórios ou diferentes locais
de trabalho. Quando a cena se deslocou novamente por
diferentes cidades em áreas diferentes do planeta, vimos que
esses indivíduos, enquanto trabalhavam e interagiam, estavam
lentamente a aumentar os seus níveis de energia.
Começámos a ver e a ouvir indivíduos envolvidos em
deslocações de um tipo de ocupação para outro, seguindo as
suas intuições e fIcando mais inspirados e criativos à medida
que o faziam, inventando novas tecnologias mais rápidas e
serviços mais eficientes. Ao mesmo tempo, começámos também a
ver imagens de pessoas que ainda tinham medo, resistiam à
mudança e tentavam assumir o controlo.
A seguir concentrámo-nos numa instalação de pesquisa, no
interior de uma sala de conferências. Um grupo de homens e
mulheres estavam envolvidos numa acalorada discussão. Enquanto
observávamos e escutávamos, ficou claro o conteúdo da
conversa. A maior parte das pessoas era a favor de uma nova
coligação entre as maiores companhias de comunicações e
computadores e um grupo internacional de serviços de
informações. Os representantes dos serviços de informações
argumentavam que a luta contra o terrorismo precisava de ter
acesso a todas as linhas telefónicas, incluindo comunicações
pela Internet, e aparelhos de identificação secretos em todos
os computadores, para que as autoridades pudessem entrar e
vigiar os ficheiros de toda a gente.
Mas isso não era tudo. Queriam mais sistemas de vigilância.
Várias pessoas estavam até a especular que, se o problema dos
vírus informáticos persistisse, a Internet poderia vir a ser
completamente dominada, juntamente com os computadores
comerciais ligados em todo o mundo. O acesso seria controlado
por um número especial de identificação, que seria necessário
para qualquer transacção electrónica.
Uma pessoa sugeriu que novos sistemas de identificação
poderiam ter de ser implementados para este objectivo, como
sondas da íris ou da palma da mão, ou talvez qualquer coisa
baseada nos próprios padrões das ondas cerebrais.
Duas outras pessoas, um homem e uma mulher, começaram a
argumentar com veemência contra estas medidas. Uma referiu o
livro do Apocalipse e o sinal da besta. Enquanto continuávamos
a ver e ouvir, apercebi-me que conseguia ver através da
janela da sala de conferências. Um carro passou por uma
estrada junto ao edifício. Lá atrás viam-se cactos e
quilómetros de deserto.
Olhei para Wil.
- Esta discussão está a acontecer neste momento - disse ele.
- Algures no presente. Parece o sudoeste dos Estados Unidos.
Directamente por detrás da mesa onde o grupo estava reunido
apercebi-me de outra coisa. O espaço à volta deles estava a
ficar maior. Não, estava a ficar mais luminoso.
- Os dakini! - disse eu para Wil.
Continuámos a observar a conversa, que começava a mudar.
As duas pessoas que estavam a argumentar contra a vigilância
extrema pareciam estar a receber mais atenção do grupo. Os
proponentes pareciam estar a reconsiderar.
Sem aviso, a nossa atenção foi desviada da imagem à nossa
frente por uma vibração aguda que pareceu abanar o chão e as
paredes do templo. Corremos para outra porta ao fundo do
edifício, tentando ver através da poeira. Ouvíamos pedras a
derrocarem e a caírem lá fora. Quando estávamos a dez metros
da porta, esta abriu-se e uma figura passou rapidamente
através dela.
- Deve ter sido o Tashi - disse Wil, rTendo para a porta e
abrindo-a.
Ao passarmos pela abertura a correr, outro estrondo encheu o
ar atrás de nós. A antiga ruína que tínhamos visto antes
estava a desabar, numa implosão de rochas e pó. Atrás dela,
algures, ouvia-se o rugido de helicópteros.
- O coronel parece estar novamente a seguir-nos - disse eu.
- Mas eu estou a manter somente imagens positivas na minha
mente, então como é que ele faz isso?
Wil deitou-me um olhar interrogador e recordei a observação
do coronel Chang acerca da tecnologia que eles agora tinham, a
que nunca conseguiria escapar. Ele tinha uma análise do meu
cérebro.
Contei rapidamente a Wil o que tinha acontecido e depois
disse:
- Talvez fosse melhor eu seguir noutra direcção, conduzir os
soldados para longe dos templos.
- Não - disse Wil. - Tens de estar aqui. Vais ser preciso.
Teremos de nos manter à frente deles até encontrarmos o Tashi.
212 - 213
Seguimos um carreiro de pedra que passava por outros templos
e apercebi-me dos meus olhos presos a uma porta à nossa
esquerda.
Wil voltou-se, notando isso.
- Porque estavas a olhar para aquela porta? - inquiriu.
- Não sei - respondi. - Ela chamou-me a atenção.
Ele deitou-me um olhar incrédulo.
- Sim, pois - disse ele rapidamente. - Vamos verificar.
Corremos para dentro e descobrimos outra sala circular, esta
muito maior, talvez com várias dezenas de metros de diâmetro.
Outra janela espacial pairava por cima do centro. Quando
entrámos, vi Tashi à nossa direita, a alguns metros de
distância, e fiz sinal a Wil.
- Estou a vê-lo - disse Wil, seguindo por entre a
semi-obscuridade na direcção do rapaz.
Tashi voltou-se e viu-nos, depois sorriu aliviado, antes de
se concentrar novamente na cena visível através da janela.
Desta vez víamos um quarto cheio de coisas de jovens:
fotografias, bolas, vários jogos, pilhas de roupa. Num canto
estava uma cama desfeita e uma caixa de pizza esquecida sobre
a ponta de uma mesa. Na outra ponta da mesa, um adolescente
com uns quinze anos estava a trabalhar em qualquer coisa, uma
espécie de aparelho cheio de fios. Vestia uns calções, sem
camisa, e o rosto parecia zangado e determinado.
Enquanto olhávamos, a cena na janela deslocou-se para outro
quarto, onde outro adolescente, vestido com calças de ganga e
uma camisola, estava sentado numa cama a olhar para o
telefone. Levantou-se, deu várias voltas ao quarto e depois
sentou-se novamente. Tive a impressão que ele estava a lutar
com uma decisão. Finalmente, pegou no telefone e marcou um
número.
Nessa altura ajanela alargou-se, de modo a podermos ver as
duas cenas. O rapaz sem camisa atendeu o telefone. O rapaz com
a camisola pareceu pedir-lhe algo e o outro rapaz ficou ainda
mais zangado. Finalmente o rapaz de tronco nu bateu com o
telefone, sentou-se e recomeçou a trabalhar à mesa.
O outro adolescente levantou-se, vestiu um casaco e saiu a
correr. Minutos depois o rapaz sentado à mesa ouviu bater à
porta, levantou-se, foi até à porta do quarto e abriu-a. Era o
jovem com quem ele estivera a falar ao telefone. Tentou fechar
a porta, mas o rapaz empurrou-o e entrou, continuando a falar
com gestos suplicantes, apontando para o aparelho em cima da
mesa.
O outro adolescente empurrou-o, tirou uma arma de uma gaveta
e apontou-a ao visitante. Este rapaz recuou, mas continuou a
suplicar. O jovem com a arma explodiu de raiva e empurrou a
sua vítima com força contra a parede, encostando o cano da
arma à cabeça dele.
Nesse momento, numa área atrás deles, começámos a detectar
uma mudança. Essa zona estava a ficar mais luminosa.
Olhei para Tashi, que respondeu ao meu olhar durante um
instante e depois se concentrou novamente na cena. Ambos
sabíamos que estávamos mais uma vez a testemunhar a acção dos
dakini.
Enquanto olhávamos, um dos rapazes continuava a suplicar e o
outro a segurá-lo com força contra a parede. Mas,
gradualmente, o rapaz da arma começou a descontrair.
Finalmente baixou a arma e foi sentar-se na beira da cama. O
outro jovem sentou-se numa cadeira em frente dele.
Agora conseguíamos ouvir os pormenores da conversa. Ficou
claro que o rapaz da arma queria ser aceite pelos outros na
escola, mas não conseguira. Muitos dos seus colegas
destacavam-se em actividades extracurriculares, expandindo os
seus talentos, e ele não tinha confiança para acompanhá-los.
Tinham gozado com ele, chamando-lhe falhado, e ele sentia-se
um zé-ninguém, prestes a desaparecer. A situação enchia-o de
raiva e uma falsa sensação de força, que o fez decidir
contra-atacar. O engenho em que ele estava a trabalhar era uma
bomba de fabrico caseiro.
Tal como antes, sentimos um solavanco debaixo dos nossos pés
e todo o edifício tremeu. Corremos para a porta e tínhamos
acabado de lá chegar quando metade do templo desabou atrás de
nós.
Tashi fez-nos sinal para o seguirmos; corremos várias
centenas de metros e parámos junto a uma parede.
- Conseguiram ver as pessoas no templo - perguntou ele -,
aquelas que enviaram energia de oração aos rapazes?
Ambos confessámos que não conseguíamos.
- Estavam centenas ali dentro - disse ele - a trabalharem no
problema da raiva juvenil.
- O que é que eles estavam a fazer, exactamente? -
perguntei.
214 - 215
Tashi avançou na minha direcção.
- Estavam a aumentar a sua energia de oração, visualizando
os rapazes daquela cena a serem elevados a uma vibração
superior, para conseguirem ultrapassar o medo e a raiva e
deixarem as suas intuições superiores resolverem o problema. A
energia deles ajudou um dos rapazes a encontrar as melhores e
mais convincentes ideias. No caso do outro jovem, a energia de
oração adicional elevou-o a uma identidade acima e para lá do
eu social que os colegas rejeitaram. Já não sentia que
precisava da aprovação deles para ser alguém. Isso aliviou a
sua ira.
- E era também isso que eles estavam a fazer no outro
templo? - perguntei - A ajudarem a enfrentar aqueles que
queriam controlar tudo?
Wil olhou para mim.
- As pessoas no templo estavam a enviar um campo de oração
para ajudar a aumentar o nível de energia de todos os
presentes, que teve o efeito de aliviar o medo daqueles que
exigiam mais vigilância e ajudou aqueles que lhes resistiam a
encontrarem a coragem para falarem, mesmo no interior daquelas
organizações.
Tashi acenava com a cabeça.
- Nós temos de ver isto. Estas são algumas das principais
situações que devem ser vencidas, se queremos que a evolução
espiritual continue, se queremos ultrapassar este ponto
crítico na história.
- E os dakini? - perguntei. - O que estavam eles a fazer?
- Estavam também a ajudar a aumentar o nível de energia -
replicou Tashi.
- Pois - insisti. - Mas ainda não sabemos o que os faz
entrar em acção. As pessoas dos templos estavam a fazer mais
qualquer coisa que nós ainda não conhecemos.
Nesse momento outro som forte encheu o ar, quando a outra
metade do templo atrás de nós ruiu.
Tashi saltou involuntariamente e depois correu pelo
carreiro.
- Venham - disse. - Temos de encontrar a minha avó.
216
11.
O SEGREDO DE SHAMBHALA
Durante horas, vagueámos por entre os templos, procurando
a avó de Tashi, correndo para nos mantermos à frente dos
soldados chineses e observando o trabalho dos habitantes dos
templos. Em cada templo encontrámos pessoas a observarem uma
situação aparentemente crítica nas culturas exteriores.
Um templo estava concentrado noutros problemas relacionados
com a alienação juvenil: - a proliferação de experiências
violentas induzidas por filmes e jogos de guerra para
computador, que criam a ilusão dos actos violentos poderem ser
levados a cabo através da raiva e depois apagados de alguma
forma, sem serem definitivos, uma falsa realidade que estava
no âmago dos tiroteios nas escolas.
Nestes casos, observámos os criadores destes jogos a
receberem energia que tinha o efeito, tal como antes, de os
elevar a uma perspectiva intuitiva superior, com a qual eles
podiam repensar os efeitos das suas criações sobre as
crianças. Ao mesmo tempo, alguns pais eram igualmente elevados
a estados de energia superior, onde podiam investigar os seus
palpites acerca do que os seus filhos faziam e conseguir mais
tempo para modelarem uma realidade diferente.
Um templo concentrou-se no debate corrente no campo da
medicina acerca de atitudes alternativas, preventivas,
atitudes que mostravam ser benéficas no combate à doença e no
aumento da longevidade. Os guardiões da medicina - as
organizações médicas de vários países, os responsáveis por
conhecidas clínicas de investigação, os institutos
governamentais da saúde que atribuíam grandes subsídios,
217
as companhias farmacêuticas - funcionavam segundo um paradigma
do século XVIII, lutando contra os sintomas das doenças sem
pensarem muito na prevenção. Os seus alvos eram vários
micróbios, genes defeituosos e células cancerígenas
descontroladas - e a maior parte pensava que tais problemas
eram o resultado inevitável do envelhecimento. Segundo este
ponto de vista, a enorme maioria dos subsídios era atribuída
às grandes instalações de pesquisa que procuravam soluções
milagrosas: fármacos que pudessem ser patenteados e vendidos
para matar os micróbios, destruir as células malignas ou de
alguma forma reprogramar os genes. Quase nenhum dinheiro era
destinado à pesquisa para descobrir formas de reforçar o
sistema imunitário e prevenir tais doenças.
Noutra cena que observámos, uma conferência envolvendo
representantes de vários campos médicos, alguns cientistas
argumentavam que todo o campo da medicina tinha de mudar o seu
ponto de vista, se queríamos resolver o enigma da doença
humana, incluindo as lesões arteriais nas doenças cardíacas,
os tumores cancerígenos e as doenças degenerativas como a
artrite, o lúpus e a esclerose múltipla.
Estes cientistas argumentavam - tal como Hanh já tinha feito
- que a verdadeira causa das doenças de todos os tipos era a
poluição do ambiente básico do corpo com os alimentos que
comemos e outras toxinas, deslocando o corpo de um estado
juvenil saudável, vibrante e alcalino, para um estado monótono
e ácido, sem energia; isso criava um clima onde os micróbios
podiam florescer e começar a decompor o corpo de forma
sistemática. Todos os problemas, diziam eles, eram o resultado
desta lenta decomposição das nossas células pelos micróbios,
mas estes não nos atacam sem causa. São os alimentos que
consumimos que nos predispõem a estes problemas.
Outras pessoas na sala tinham dificuldade em aceitar estas
descobertas. Qualquer coisa devia estar errada, pensavam. Como
poderia a doença humana ser tão simples? Estavam envolvidos
com indústrias da saúde que viam os consumidores a gastarem
biliões de dólares em drogas complexas e cirurgias
dispendiosas. Os responsáveis pela saúde presentes na sala
tinham de acreditar que tudo isso era necessário. Alguns
dedicavam-se à proposta, quase aceite em muitos países, de
serem colocados chips nas pessoas para registar informação
sobre saúde e drogas, um elemento de controlo e identificação
que os serviços de informações também queriam. Eram dedicados
a este programa. As suas posições de poder dependiam dele. O
seu próprio ganha-pão estava em risco.
Para além disso, adoravam pessoalmente os alimentos que
comiam. Como poderiam recomendar às pessoas que mudassem as
suas dietas de formas que eles não se imaginavam a fazer? Não,
não podiam aceitar isto.
Ainda assim, os médicos das novas pesquisas continuavam a
defender a sua posição, sabendo que o momento era o ideal para
uma mudança de paradigma. Vejam como as florestas húmidas
estavam a ser arrasadas e destruídas para criar gado para os
países ocidentais, argumentavam, um problema que cada vez mais
pessoas reconheciam.
Outra coisa que os ajudava era o facto dos baby boomers de
todos os países começarem a chegar à idade em que as doenças
atacam e terem já visto o sistema médico falhar no caso dos
seus pais. Estavam à procura de novas alternativas.
Lentamente, vimos o conflito começar a ficar mais moderado
na conferência a que estávamos a assistir. Aqueles que
defendiam abordagens alternativas estavam a ser escutados.
Noutro templo, testemunhámos o mesmo tipo de debate na
profissão jurídica. Um grupo de advogados instava a profissão
a começar a vigiar-se. Durante anos, advogados reputados
tinham ficado passivamente a ver colegas seus a fabricarem
processos, a instruírem testemunhas para ocultarem a verdade,
a inventarem defesas imaginárias e a hipnotizarem os juízes.
Agora havia um movimento para subir o nível de exigência.
Certos advogados sustentavam que deviam assumir uma visão mais
elevada daquilo que faziam, que deviam compreender o
verdadeiro papel dos advogados: reduzir os conflitos, não
promovê-los.
De forma semelhante, diversos templos daqueles que vimos
estavam a observar situações de corrupção política em vários
países. Vimos cenas de políticos eleitos em Washington a
debaterem à porta fechada a hipótese de apoiarem a reforma das
finanças de campanha.
218 - 219
Em questão, muito especialmente, estava a possibilidade dos
partidos políticos receberem quantias ilimitadas, doadas por
interesses especiais, e gastarem esse dinheiro em campanhas
televisivas que distorciam a verdade do modo que mais lhes
convinha. Esta dependência das grandes empresas para estes
fundos obviamente obrigava os políticos dos partidos a certos
favores. E toda a gente o sabia. Estes políticos resistiam aos
argumentos dos reformadores, que defendiam que a democracia só
chegaria ao seu ideal quando se baseasse não em anúncios
distorcidos na TV mas em debates públicos - onde os cidadãos
pudessem julgar mais prontamente a atitude, a expressão facial
e a verdade e assim usar a sua intuição para escolher o melhor
candidato.
À medida que avançávamos pelos templos, ficou claro que
todos eles estavam igualmente concentrados numa área
particular da vida humana. Vimos muitos líderes mundiais
receosos, incluindo os do governo chinês, a serem ajudados
para se juntarem à comunidade global e implementarem reformas
económicas e sociais.
E, em todos os casos, a área atrás das pessoas envolvidas
ficava mais luminosa e depois os mais receosos, aqueles que
agiam para controlar ou manipular, para assegurarem ganho ou
poder pessoal, começavam gradualmente a diminuir a rigidez das
suas posições.
Continuando a correr por entre o labirinto de templos, em
busca da avó de Tashi, ocorriam-me sempre as mesmas perguntas.
O que estava a acontecer aqui, exactamente? Qual era a relação
entre os dakini, ou anjos, e as extensões da oração que aqui
se faziam? O que sabiam os habitantes dos templos que nós não
soubéssemos? A dada altura ficámos de frente para quilómetros
de templos (literalmente), até onde a vista alcançava. Os
caminhos seguiam em todas as direcções. Lá atrás ainda
ouvíamos os helicópteros. Enquanto ali estávamos outro grande
templo, cento e cinquenta metros atrás de nós, ruiu
completamente.
- O que acontece às pessoas dentro daqueles templos? -
perguntei a Tashi.
220
Ele olhou fixamente para a coluna de poeira que se ergueu
dos escombros. - Não se preocupe, eles estão bem. Podem seguir
para outro local sem serem vistos. O problema é que o seu
papel de envio de energia está a ser perturbado.
Olhou para nós os dois.
- Se eles não puderem ajudar nestas situações, quem poderá?
Wil avançou para Tashi.
-Temos de decidir para onde ir. Já não temos muito tempo.
- A minha avó está aqui algures - disse ele. - O meu pai
disse-me que ela está num dos templos centrais.
Olhei para o labirinto de estruturas de pedra.
- Não há um centro físico, pelo menos que eu consiga ver.
- Não foi isso que o meu pai quis dizer - disse Tashi. - Ele
queria dizer que a Avó está num templo concentrado nas
questões centrais, finais, da evolução humana.
Tashi estava a inspeccionar os templos à distância, enquanto
falava.
- Tu consegues ver as pessoas daqui melhor do que nós -
disse-lhe eu. - Podes falar com eles e perguntar-lhes para
onde ir?
- Já tentei falar com eles - respondeu. - Mas a minha
energia não é suficientemente forte. Possivelmente seria
capaz, se conseguisse ficar aqui durante algum tempo.
Mal Tashi acabou a sua frase, outro templo ruiu, desta vez
muito mais perto.
- Temos de nos manter à frente da energia dos soldados -
disse Wil.
- Esperem um minuto - disse Tashi. - Pareceu-me ver qualquer
coisa.
Estava a olhar na direcção do labirinto de templos. Eu
também inspeccionei a paisagem, sem ver nada de diferente.
Quando olhei para Wil, ele encolheu os ombros.
- Onde? - perguntei a Tashi.
Ele estava já a descer um carreiro à direita, fazendo-nos
sinal para o seguirmos.
221
Depois de caminharmos apressados durante vinte minutos,
parámos em frente de um templo cuja arquitectura era muito
semelhante à dos outros, excepto que este era maior e a sua
rocha castanha escura tinha uma tonalidade ligeiramente mais
azul.
Tashi ficou imóvel, olhando directamente para a enorme porta
de pedra.
- O que é, Tashi? - perguntou Wil.
Atrás de nós ouviu-se outro estrondo, quando mais um templo
desabou.
Tashi olhou para mim.
- O templo no seu sonho, aquele onde você disse que nós
encontrávamos uma coisa, não era azul?
Olhei novamente para o templo.
- Sim - respondi - Era.
Wil avançou para a porta e olhou para nós.
Tashi acenou com a cabeça e Wil fez a enorme porta de pedra
girar sobre as dobradiças.
O templo estava cheio de gente. Tal como antes, eu via
apenas os mínimos contornos de muitos corpos. Pareciam estar
todos em movimento, juntando-se em redor de nós, e senti-me
mergulhado numa distinta sensação de alegria. Moviam-se de uma
forma que me dava a impressão de estarem a voltar-se para o
centro do templo. Virei-me também nessa direcção e vi uma
janela espacial a abrir-se. Começámos a ver várias cenas do
Médio Oriente, seguidas de imagens do Vaticano, depois a Ásia,
tudo aparentemente indicando um diálogo cada vez maior entre
as principais religiões instituídas.
Observámos imagens que mostravam o desenvolvimento de uma
tolerância cada vez maior. Na cristandade, tanto na tradição
católica como na protestante, começava a compreender-se que a
verdadeira experiência de conversão no interior do
cristianismo e as experiências realmente devotas e iluminadas
das religiões orientais, judaísmo e islamismo - a própria
experiência - eram exactamente a mesma. Cada religião apenas
destacava aspectos diferentes desta interacção mística com
Deus. As religiões orientais destacavam os efeitos sobre a
própria consciência, a experiência de leveza, um sentimento de
união com o universo, a libertação dos desejos do ego e um
certo distanciamento.
222
O islamismo destacava o sentimento de unidade que acompanhava
a partilha desta experiência com os outros e o poder inerente
à acção em grupo. O judaísmo destacava a importância de uma
tradição baseada nesta ligação, da experiência de se sentir
escolhido e de cada pessoa viva ser responsável por fazer
avançar a evolução da espiritualidade humana. O cristianismo
destacava a ideia do espírito se manifestar nos seres humanos
não apenas como um aumento da consciência de ser parte de
Deus, mas também como um eu superior - como se nos tornássemos
uma versão aumentada de quem nós somos, mais completa, capaz,
com uma orientação e sabedoria interior que nos levavam a
agir, como se a personalidade humana de Deus, o Cristo,
estivesse agora a ver através dos nossos olhos.
Na cena à nossa frente, víamos os efeitos desta nova
tolerância e unidade. Cada vez mais sublinhava-se a
importância da própria experiência de ligação, não as
diferenças. Parecia existir uma crescente disponibilidade para
resolver conflitos étnicos e religiosos, uma maior comunicação
entre os líderes religiosos e uma nova compreensão do poder
que a oração poderia ter, se todos alargassem os seus campos
na unidade religiosa.
Enquanto observava, compreendi totalmente aquilo que o Lama
Rigden e Ani tinham dito acerca da unificação da religião, que
isso seria um sinal de que os segredos de Shambhala estavam a
tornar-se conhecidos.
Neste ponto a cena através da janela à nossa frente mudou.
Vimos um grupo de pessoas a falarem e a celebrarem alegremente
o nascimento de uma criança. Toda a gente ria e passava o bebé
de uma pessoa para outra. As pessoas pareciam ser diferentes
umas das outras, representando várias nacionalidades. Enquanto
olhava, tive a nítida sensação que representavam também
diferentes formações religiosas. Olhando mais atentamente,
consegui ver os pais do bebé. Pareciam-me familiares. Sabia
que não eram eles, mas os traços faciais dos pais eram muito
parecidos com os de Pema e do seu marido.
Fiz um esforço para ver melhor, tendo a sensação que
estávamos agora a ver qualquer coisa com imensa importância. O
que seria?
A cena mudou novamente e mostrou-nos uma região tropical,
parecida com o Sudeste Asiático ou talvez a China.
223
Tal como antes, a cena mudou para dentro de uma casa onde um
grupo de pessoas, de aparências diversas, passavam um
recém-nascido de braço em braço e saudavam os pais.
- Não vêem aquilo que nos estão a mostrar? - disse Tashi. -
É para ali que vão as crianças concebidas que desapareceram.
Deslocaram-se para diferentes famílias em todo o mundo. Deve
ter sido um processo de mediação. De alguma forma, as crianças
receberam a superior energia genética de Shambhala antes de
prosseguirem.
Wil baixou os olhos, pensando, e depois voltou a olhar para
nós.
- É essa a deslocação - disse ele. - Era disso que as lendas
falavam. Shambhala não vai deslocar-se para um lugar; a sua
energia está a deslocar-se para muitos locais diferentes por
todo o globo.
- O quê? - perguntei.
Tashi olhou para mim.
- Você conhece a lenda que diz que os guerreiros de
Shambhala irão sair do leste, derrotar os poderes da escuridão
e criar uma sociedade ideal. Isso não está a acontecer com
cavalos e espadas. Está a acontecer com o efeito dos nossos
campos alargados, à medida que a sabedoria de Shambhala avança
para o mundo. Se todas as pessoas de todas as religiões, que
acreditam profundamente numa ligação com o divino, evitarem as
orações negativas e trabalharem em conjunto, poderemos usar as
extensões da oração para assumirmos o papel de Shambhala.
- Mas não conhecemos tudo aquilo que eles estão a fazer -
disse eu. - Não conhecemos o resto do segredo!
Assim que eu disse isto, a cena na janela espacial mudou
novamente. Agora víamos uma grande extensão de montanhas
cobertas de neve e um grupo de helicópteros militares chineses
a avançarem para nós. Vimos mais templos começarem a ruir
quando eles se aproximaram, assumindo a aparência de antigas
ruínas e depois desaparecendo completamente no pó. A cena
mudou para o exterior do edifício onde estávamos, e depois
para o interior.
Vimo-nos a nós mesmos de pé dentro do edifício e em toda a
volta não os contornos esbatidos de pessoas, mas a sua imagem
nítida. Muitas tinham o traje formal dos monges tibetanos, mas
muitas outras estavam vestidas de forma diferente.
224
Algumas surgiram com as roupas das religiões orientais, outras
usavam o traje tradicional dos judeus hasídicos, e outras
ainda vestiam as roupas e usavam os crucifixos do
cristianismo. Outras tantas estavam vestidas como mullahs
islâmicos.
Curiosamente, uma delas lembrava-me uma pessoa que vivia
perto da minha casa no vale e os meus olhos demoraram-se nela.
Comecei a sonhar com a minha casa. No olho da minha mente,
conseguia ver tudo muito claramente: as montanhas vistas da
minha janela da frente, depois a mesma vista a partir da
fonte. Pensei no gosto da água de lá. Imaginei-me a
inclinar-me para beber.
Mais uma vez ouvimos o rugido dos helicópteros, muito
próximos de nós, e o som de um dos outros templos a desabar.
Tashi tinha-se afastado para a nossa direita. Na cena
através da janela espacial, vimos o que ele estava a fazer.
Tashi estava de frente para um dos monges tibetanos.
- Quem é aquele? - perguntei a Wil.
- Deve ser a avó dele - respondeu Wil.
Estavam claramente a falar com um outro, mas eu não
conseguia compreender as palavras. Finalmente abraçaram-se e
Tashi correu para nós.
Estava ainda a observar Tashi através da janela, mas quando
ele chegou perto de mim a cena desapareceu. A janela ainda ali
estava, mas as imagens eram confusas, como uma televisão
sintonizada num canal que não existia.
Tashi estava esfuziante.
- Não vêem? - disse ele. - Este é o templo onde eles têm
estado a observá-lo e ao Wil desde que vocês começaram a
tentar chegar a Shambhala. Foram estas pessoas que usaram os
seus campos de oração para vos ajudar. Sem elas, nenhum de nós
estaria aqui.
Olhei em redor e apercebi-me que já não conseguia ver os
contornos de ninguém à nossa volta.
- Para onde foram eles? - gritei.
- Tiveram de partir - respondeu Tashi, agora a olhar para a
janela vazia que pairava no centro da sala. -Agora estamos por
nossa conta.
Nesse momento um enorme choque ecoou pelo templo e várias
pedras caíram sobre o solo lá fora.
225
- São os soldados - gritou Tashi. - Eles estão aqui. -
Estava a olhar na direcção do som dos helicópteros lá fora.
Sem aviso, a janela espacial ficou nítida e conseguimos ver
os chineses a saírem dos helicópteros no exterior. O coronel
Chang caminhou até à frente do templo, dando instruções às
tropas. Conseguíamos ver claramente o seu rosto.
- Temos de o elevar com os nossos campos - disse Wil.
Tashi acenou em concordância e rapidamente orientou-nos
através das extensões. Visualizámos os nossos campos de
energia a fluírem a partir de nós, para dentro dos campos dos
soldados chineses, especialmente Chang, elevando-os a uma nova
consciência das suas intuições superiores.
Enquanto eu observava o seu rosto, ele pareceu fazer uma
pausa e olhar para cima, como se sentisse a energia mais
elevada.
Procurei atentamente qualquer expressão do seu eu superior e
notei aquilo que parecia uma ligeira alteração nos seus olhos,
talvez até um quase-sorriso. Parecia estar a olhar para os
seus soldados.
- Concentrem-se no rosto dele - disse eu. - No rosto dele.
Quando o fizemos, ele pareceu parar novamente. Um dos
soldados, aparentemente o seu adjunto, avançou até ele e
começou a fazer-lhe perguntas. Durante um momento ou dois,
Chang ignorou o oficial mais novo. Mas, lentamente, o
subordinado captou a sua atenção, apontando para o templo onde
nós estávamos. Chang pareceu recuperar a concentração e uma
expressão zangada voltou ao seu rosto. Fez sinal a todos os
soldados para o seguirem, enquanto avançava na nossa direcção.
- Não está a resultar - disse eu.
Wil olhou para mim.
- Os dakini não estão aqui.
- Temos de partir - gritou Tashi.
- Como? - perguntou Wil.
Tashi voltou-se para nos encarar.
- Temos de passar pela janela. A minha avó disse-me que
podíamos sair pela janela para as culturas exteriores. Mas só
se tivéssemos ajuda desse local, para aumentar a energia no
outro lado.
- O que é que ela queria dizer com ajuda? - perguntei. -
Quem nos iria ajudar?
Tashi abanou a cabeça. - Não sei.
- Bem, temos que tentar - gritou Wil -, Depressa!
Tashi pareceu confuso.
- Como é que vocês passavam pelas janelas nos anéis
exteriores? - perguntei.
- Tínhamos lá os amplificadores - respondeu ele. - Não sei
se consigo fazê-lo sem eles.
Toquei no ombro de Tashi.
- Ani disse que toda a gente nos anéis estava prestes a
conseguir manifestar-se sem a tecnologia. Pensa. Como é que
vocês faziam isso?
Tashi continuava a encolher os ombros.
- Não sei, a sério. Era mais ou menos automático. - Fez uma
pausa.
- Suponho que nós esperávamos que isso acontecesse, e isso
acontecia instantaneamente.
- Faz isso, Tashi - disse Wil, indicando a janela com a
cabeça. - Faz isso já.
Conseguia ver que Tashi estava a concentrar-se totalmente, e
depois ele olhou para mim.
- Tenho de saber para onde quero ir, para poder
visualizá-lo. Para onde é suposto irmos?
- Espera um minuto - disse eu. - E o sonho que tu tiveste?
Não estavas a ver água?
Tashi pensou por um momento e depois disse:
- Era num lugar junto a um curso de água. Um poço, talvez,
ou uma...
- Uma fonte? - gritei. - Uma fonte com um lago murado feito
de pedra?
Ele olhou para mim durante um momento.
- Acho que sim.
Olhei para Wil.
- Sei onde é. É uma fonte na encosta norte do vale onde eu
vivo.
É para lá que temos de ir.
Nesse momento o templo abanou violentamente mais uma vez.
Imagens do templo a ruir ou de explosões a matarem-nos
encheram a minha mente e eu afastei-as, imaginando em vez
disso que conseguiríamos escapar.
226 - 227
Comecei a sentir-me como o meu pai, apanhado numa batalha que
não tinha pedido mas que, por causa do que estava em jogo, era
incapaz de evitar. Só que agora era uma batalha mental.
- Concentra-te - exclamei. - O que é que nós fazemos?
- Primeiro temos de visualizar para onde vamos - respondeu
Tashi. - Descreva-nos o sítio.
Contei-lhes apressadamente todos os pormenores: o carreiro
na montanha, as árvores, a forma como a água corria, a cor da
folhagem nesta época do ano. Depois tentámos ajudar Tashi a
concentrar-se na imagem. Enquanto olhávamos, a janela
deslocou-se para esse mesmo local. Conseguíamos ver claramente
a fonte.
- É isso! - gritei.
Wil voltou-se para Tashi.
- E agora? A tua avó disse que íamos precisar de ajuda.
Através da janela avistámos uma pessoa e todos nos
concentrámos na imagem distorcida. Esforcei-me por ver quem
era, notando que essa pessoa parecia jovem, na realidade mais
ou menos da idade de Tashi.
Finalmente a imagem ficou mais nítida e eu reconheci quem
era.
- É a Natalie, a filha do meu vizinho - gritei, recordando a
minha primeira intuição acerca dela. O cenário era este.
Tashi sorriu largamente.
- É a minha irmã!
Naquele momento outro enorme pedaço do templo caiu ao chão
lá fora.
- Ela está a ajudar-nos - gritou Wil, empurrando-nos a todos
para a janela. - Vamos!
Com um som de vácuo, Tashi encolheu-se através da passagem,
seguido por Wil. Quando eu me aproximei da janela, a parede
traseira do templo caiu e ali, do outro lado, estava o coronel
Chang.
Virei-me e olhei para ele e depois avancei para a janela.
O rosto dele continuava determinado, quando ele arrancou um
rádio de ondas curtas do cinto.
- Eu sei para onde vocês vão! - gritou ele, enquanto o resto
do templo começava a ruir. - Eu sei!
228
Quando passei pela janela, o meu pé aterrou em piso familiar
e eu senti o ar quente na cara. Estava em casa.
Ao olhar em redor, notei que Tashi e Natalie estavam juntos,
olhando para os olhos um do outro, falando rapidamente. Os
seus rostos estavam felicíssimos, como se tivessem acabado de
descobrir algo. Wil estava perto deles.
Atrás deles estava o pai de Natalie, Bill, e vários outros
vizinhos da comunidade, incluindo o padre Brannigan, Sri Devo
e Julie Carmichael, pastor protestante. Todos eles pareciam
ligeiramente confusos.
Bill caminhou até junto de mim.
- Não sei de onde vieste, mas graças a Deus que aqui estás.
Apontei para os clérigos.
- O que é que esta gente toda está a fazer aqui?
- A Natalie pediu-Lhes para virem. Esteve a falar de lendas
e mostrou-nos como criar campos de oração, esse tipo de
coisas. Aparentemente estas ideias surgiram-lhe de repente.
Ela disse que conseguia ver o que te estava a acontecer e nós
apercebemo-nos de alguém a vigiar a tua casa.
Olhei para o cimo da colina e ia dizer qualquer coisa quando
Bill me interrompeu.
- A Natalie também disse mais uma coisa estranha. Ela disse
que tinha um irmão. Quem é aquele miúdo com quem ela está a
falar?
- Explico mais tarde - disse eu.
- Quem tem estado a vigiar a minha casa?
Bill não respondeu. Estava a observar Wil e os outros a
caminharem até nós.
Nesse momento ouvimos veículos a aproximarem-se, na colina
por cima de nós. Uma carrinha azul parou junto à casa. Dois
homens saíram, viram-nos e seguiram para uma plataforma trinta
metros acima de nós.
- São agentes chineses - disse Wil. - O Chang deve tê-los
avisado. Temos de criar um campo.
Fiquei à espera que os clérigos perguntassem o que isso era
mas, em vez disso, eles concordaram com um aceno. Natalie
começou a orientar-nos através das extensões, com Tashi a seu
lado.
229
- Comecem com a energia do criador - disse ela. - Deixem-na
entrar no vosso corpo e encher-vos. Deixem-na fluir pela vossa
cabeça e pelos vossos olhos. Deixem-na fluir para o mundo num
campo de oração constante, até verem apenas beleza e sentirem
apenas amor. Com um estado de maior alerta, esperem que este
campo se desloque e aumente os campos espirituais dos homens
por cima de nós, elevando-os às suas intuições.
No alto da colina, os homens olharam-nos com ar ameaçador e
começaram a descer o carreiro na nossa direcção.
Tashi olhou para Natalie e acenou.
- Agora - começou Natalie - podemos dar poder aos anjos.
Olhei para Wil.
- O quê?
- Primeiro - prosseguiu Natalie -, temos de garantir que os
nossos campos estão completamente preparados para entrarem nos
campos daqueles homens. Vejam isso a acontecer. Eles não são
inimigos, são pessoas, almas receosas. E depois devemos
reconhecer completamente os anjos e visualizá-los, de forma
muito deliberada, a entrar nos homens. Depois, com toda a
vossa expectativa, visualizem-nos a amplificar os nossos
campos de oração. Dêem aos anjos todo o poder para levarem
energia ao eu mais elevado daqueles homens, para lá daquilo
que nós podemos fazer sozinhos, elevando-os a uma consciência
que é incapaz de fazer o mal.
Eu estava a olhar para os dois homens na colina, procurando
a área mais iluminada que indicaria a presença dos dakini,
lutando para me concentrar mas sem ver nada.
- Não está a resultar - disse eu a Wil.
- Olha! - exclamou ele. - Lá em cima, à direita.
Quando olhei, comecei a detectar uma luz que se aproximava,
depois notei que a luz rodeava uma pessoa que ia a caminhar na
direcção dos dois homens. O homem rodeado pela luz tinha a
farda de um ajudante do xerife.
- Quem é aquele polícia? - perguntei a Bill. - Ele parece-me
familiar.
- Espera - disse Wil. - Não é uma pessoa.
Olhei novamente e vi o ajudante começar a falar com os dois
homens. A luz rodeou-os e eles finalmente voltaram para o seu
veículo. Embora o ajudante tivesse ficado no mesmo lugar, a
luz estendeu-se para eles e rodeou a carrinha. Eles partiram
rapidamente.
- A extensão funcionou - disse Wil.
Eu não estava sequer a ouvi-lo. Os meus olhos estavam
concentrados no ajudante, que se tinha voltado para nós. Era
alto e tinha cabelo negro. Onde é que eu o tinha já visto?
A resposta ocorreu-me quando ele se voltou e se afastou. Era
o mesmo homem que eu tinha visto na piscina em Katmandu,
aquele que primeiro me tinha falado da investigação acerca da
oração, aquele que eu tinha avistado em várias outras
ocasiões, aquele a quem Wil chamara o meu anjo da guarda.
- Eles fazem-se sempre passar por seres humanos, quando
necessário - disse Tashi, caminhando até mim com Natalie.
- Completámos a última extensão - acrescentou Tashi. -
Finalmente conhecemos o segredo de Shambhala. Agora podemos
começar a agir como fizeram os habitantes de Shambhala. Eles
olharam para o mundo, descobriram situações essenciais que
estavam a acontecer e interferiram não apenas com a força do
seu campo de oração, mas também com a força dos reinos
angélicos. É este o papel dos anjos, o de amplificar.
- Não compreendo - disse eu. - Porque não resultou quando
tentámos deter o Chang, logo antes de passarmos pela janela?
- Eu não conhecia o último passo - disse Tashi. - Não
percebia o que os habitantes dos templos faziam até poder
falar com a Natalie. Tentámos elevar o Chang, algo que era
necessário, mas não sabíamos como dar às forças angélicas o
poder de entrarem na nossa energia e intervirem. Temos de
começar por reconhecer os anjos, mas depois, neste nível de
energia, temos de lhes dar o poder para agirem. Temos de fazer
isto de forma muito intencional. Temos de pedir-lhes para
virem.
Tashi parou e olhou pensativo para o horizonte, com um
sorriso a desenhar-se no seu rosto.
- O que é, Tashi? - perguntei.
- É a Ani e o resto de Shambhala - disse ele. - Eles estão a
ligar-se a nós. Posso senti-los.
Pediu a atenção de todos.
230 - 231
- Há mais uma coisa que podemos fazer. Podemos dar aos anjos
o poder geral para protegerem este vale.
Acompanhámos Natalie ao longo do processo de preparar um
campo especial para fluir em todas as direcções, por cima do
cume dos montes pejados de árvores, cobrindo o vale, e para
dar aos anjos o poder de nos protegerem.
- Visualizem um anjo posicionado em cada monte - disse
ela.Shambhala esteve sempre protegida. Nós também podemos ser
protegidos.
Continuámos a concentrarmo-nos nas montanhas durante vários
minutos, depois os dois jovens começaram outra conversa
intensa entre si, enquanto nós escutávamos.
Falavam acerca das outras crianças que tinham passado por
Shambhala, a necessidade delas despertarem, onde quer que
estivessem. Disseram-nos que as crianças que vêm agora são
mais poderosas do que alguma vez foram. São maiores, mais
fortes, mais inteligentes de uma forma completamente nova.
Estão mais envolvidas em actividades extracurriculares do que
alguma vez estiveram. Cantam, dançam, praticam uma grande
variedade de desportos, fazem música, escrevem. Desenvolvem os
seus talentos mais cedo do que qualquer outra geração o fez.
- Há apenas um problema. A força das suas expectativas é
muito maior, mas eles ainda não aprenderam a vigiar
completamente os efeitos dos seus pensamentos. Podem aprender
como funcionam os campos de oração. Nós podemos ajudá-los.
Observámos os clérigos começarem a caminhar na direcção da
casa de Bill, juntamente com Natalie e Tashi, ainda
profundamente embrenhados na sua conversa.
Um momento de cepticismo percorreu-me. Mesmo depois de tudo
o que tinha visto, ainda duvidava que os humanos pudessem
realmente dar poder aos anjos.
- Achas mesmo que podemos invocar os anjos para nos ajudarem
e ajudarem os outros? - perguntei a Wil -, Teremos nós um tal
poder?
- Não é assim tão fácil - disse ele. - Na realidade, é
impossível uma pessoa com intenções negativas tentar. Nada
disto funciona se não estivermos completamente ligados
interiormente à energia do criador e não enviarmos a nossa
energia de forma muito consciente à nossa frente, para tocar
os outros. Se estiver envolvido um mínimo de ego ou estiver
presente qualquer raiva, toda a energia cede e os anjos não
podem responder. Vês o que eu estou a dizer? Somos os agentes
de Deus neste planeta. Podemos afirmar e defender a visão da
vontade divina e, se nos alinharmos genuinamente com esse
futuro positivo, teremos suficiente energia de oração para
levarmos os anjos a agirem.
Acenei, sabendo que ele tinha razão.
- Estás a ver o que é isto tudo? - perguntou. - Toda esta
informação, é a Décima primeira Revelação. O conhecimento dos
campos de oração leva a cultura da humanidade um passo mais
longe. Quando compreendemos a Décima - que o propósito humano
neste planeta era criar uma cultura espiritual ideal através
da adesão à visão - ainda nos faltava qualquer coisa. Não
sabíamos exactamente como aderir a ela. Não conhecíamos os
pormenores acerca do uso energético a dar à nossa fé e
expectativa.
- Agora conhecemos. A realidade de Shambhala, o segredo dos
campos de oração, deu-nos isto. Agora podemos aderir à visão
de um mundo espiritual e agir através dos nossos poderes
criativos para torná-la realidade. A cultura humana não pode
progredir mais enquanto não usarmos conscientemente este poder
ao serviço da evolução espiritual. Temos de fazer como os
habitantes dos templos faziam: preparar metodicamente os
nossos campos de oração para todas aquelas situações
essenciais que poderão fazer a diferença. O verdadeiro papel
da comunicação social, especialmente da televisão, é
indicar-nos estas áreas problemáticas. Temos de nos aperceber
de todas as discussões, todos os debates científicos, todas as
lutas que alguém trava entre as trevas e a luz, e tratarmos de
usar os nossos campos.
Ele olhou em redor.
- Podemos fazer isto em pequenas comunidades, igrejas,
círculos de amigos em todo o mundo. Mas, e se o poder de todas
as religiões se combinasse num único, gigantesco campo de
oração? Neste momento o campo está fragmentado, até mesmo
anulado pela oração negativa e pelo ódio. Pessoas boas
permitem que os seus pensamentos aumentem o mal, pensando que
isso não importa.
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- Mas, e se isso mudasse? E se preparássemos um campo, maior
do que qualquer outro que o mundo já viu, que cobrisse todo o
planeta, para elevar essas forças insidiosas que querem
centralizar o poder e controlar toda a gente? E se todos os
grupos reformadores, de todas as profissões e ocupações,
soubessem como fazer isso? E se a consciência do campo se
espalhasse assim tão longe?
Wil fez um momento de pausa.
- E se todos acreditássemos realmente nos reinos angélicos -
continuou -, e soubéssemos que a nossa capacidade de lhes dar
poder é um direito de nascença? Não há situação que não
pudéssemos afectar imediatamente. O novo milénio poderia ser
muito diferente do que é agora. Seríamos verdadeiramente os
guerreiros de Shambhala, vencendo a batalha pelo futuro.
Ele parou de falar e olhou para mim com uma expressão muito
séria.
- É o verdadeiro desafio desta geração. Se não formos bem
sucedidos, todos os sacrifícios das gerações anteriores terão
sido em vão. Podemos não ultrapassar os danos ambientais que
estão a acontecer... ou os actos insidiosos dos controladores.
- O mais importante - prosseguiu Wil - é começar a construir
uma rede de pensamento consciente. Unir os guerreiros... Todas
as pessoas que sabem devem ligar-se a todas as pessoas nas
suas vidas que poderiam querer saber.
Fiquei silencioso. O que Wil estava a dizer fez-me pensar em
Yin e em todos os outros submetidos à tirania chinesa. O que
lhe teria acontecido? Eu não teria conseguido sem a ajuda
dele. Disse a Wil o que estava a pensar.
-Ainda podemos encontrá-lo - disse Wil. - Lembra-te que a
televisão é apenas o precursor do aperfeiçoamento do olho da
mente. Tenta descobrir uma imagem do sítio onde ele está.
Acenei e tentei deixar a minha mente em branco, pensando
apenas em Yin. Em vez dele, surgiu o rosto do coronel Chang e
eu recuei. Disse a Wil o que tinha acontecido.
- Lembra-te do olhar dele - disse Wil - quando parecia estar
a despertar e encontra essa expressão na imagem.
Descobri essa expressão no olho da minha mente, depois
subitamente a imagem deslocou-se para Yin numa cela da prisão,
cercado por guardas.
- Vi o Yin - disse eu, expandindo a minha energia de oração
e dando poder aos reinos superiores, até que a cena ficou mais
luminosa em redor dele. Depois visualizei a luz a espalhar-se
por todos os que o mantinham prisioneiro.
- Vê um anjo junto do Yin - disse Wil - ... e junto do
coronel.
Acenei, pensando no código tibetano de compaixão.
Wil arqueou a sobrancelha e sorriu enquanto me concentrava
novamente nas imagens. Yin ficaria em segurança. O Tibete
acabaria por ser livre.
Desta vez não tinha qualquer dúvida.
Colecção Milénio
Obras Publicadas Nesta Colecção
A Profecia Celestina - James Redfield
A Décima Revelação - James Redfield
A Profecia Celestina, um Guia Experimental - James Redfield e
Carol Adrienne
Siddhartha - Hermann Hesse
A Visão Celestina - James Redfield
A Profetisa - Barbara Wood
Enfrentar o milénio - Albert Clayton Gaulden
O Quinto Evangelho - Bernard-Marie
O Segredo de Shambhala - James Redfield
Conhecer Deus - Deepak Chopra
Visões do Futuro - Arthur C. Clark
Manuscrito do Santo Sepulcro - Jacques Neirynek
Chão Sagrado - Barbara Wood
Data da Digitalização
Amadora, Dezembro de 2002