Assim Falava Zaratustra
Frederico Nietzsche
Tradução base
José Mendes de Souza
Versão para eBook
eBooksBrasil.com
Fonte Digital
Digitalização de edição em papel
© 2002 - Frederico Nietzsche
ÍNDICE
PRIMEIRA PARTE
Preâmbulo de Zaratustra
OS DISCURSOS DE ZARATUSTRA
Das Três Transformações
Das Cátedras da Virtude
Dos Crentes em Além Mundos
Dos que Desprezam o Corpo
Das Alegrias e Paixões
Do Pálido Delinqüente
Ler e Escrever
Da Arvore da Montanha
Dos Pregadores da Morte
Da Guerra e dos Guerreiros
Do Novo Ídolo
Das Moscas da Praça Pública
Da Castidade
Do Amigo
Os Mil Objetos e o Único Objeto
Do Amor ao Próximo
Do Caminho do Criador
A Velha e a Nova
A Picada da Víbora
Do Filho do Matrimônio
Da Morte Livre
Da Virtude Dadivosa
SEGUNDA PARTE
A Criança do Espelho
Nas Ilhas Bem-Aventuradas
Dos Compassivos
Dos Sacerdotes
Dos Virtuosos
Da Canalha
Das Tarântulas
Dos Sábios Célebres
O Canto da Noite
O Canto do Baile
O Canto do Sepulcro
Da Vitória Sobre si Mesmo
Dos Homens Sublimes
Do País da Civilização
Do Imaculado Conhecimento
Dos Doutos
Dos Poetas
Dos Grandes Acontecimentos
O Adivinho
Da Redenção
Da Circunspecção Humana
A Hora Silenciosa
TERCEIRA PARTE
O Viajante
Da Visão e do Enigma
Da Beatitude Involuntária
Antes do Nascer do Sol
Da Virtude Amesquinhadora
No Monte das Oliveiras
De Passagem
Dos Trânsfugas
O Regresso
Dos Três Males
Do Espírito do Pesadume
Das Antigas e Das Novas Tábuas
O Convalescente
Do Grande Anelo
O Outro Canto do Baile
Os Sete Selos
QUARTA E ÚLTIMA PARTE
A Oferta do Mel
O Grito de Angústia
Conversação com os Reis
A Sanguessuga
O Encantador
Fora de Serviço
O Homem mais Feio
O Mendigo Voluntário
A Sombra
Ao Meio Dia
A Saudação
A Ceia
O Homem Superior
O Canto da Melancolia
Da Ciência
Entre as Filhas do Deserto
O Deserto Cresce, ai Daquele que Oculta Desertos!
O Despertar
A Festa do Burro
O Canto de Embriaguez
O Sinal
APÊNDICE I
Origem de ASSIM FALAVA ZARATUSTRA
APÊNDICE II
Histórico da Origem de ASSIM FALAVA ZARATUSTRA
ASSIM FALAVA
ZARATUSTRA
Um livro para todos e para ninguém
FREDERICO
NIETZSCHE
PRIMEIRA PARTE
PREÂMBULO DE ZARATUSTRA
I
Aos trinta anos apartou-se Zaratustra da sua pátria e do lago da sua
pátria, e foi-se até a montanha. Durante dez anos gozou por lá do seu espírito
e da sua soledade sem se cansar. Variaram, porém, os seus sentimentos, e
uma manhã, erguendo-se com a aurora, pôs-se em frente do sol e falou-lhe deste
modo:
"Grande astro! Que seria da tua felicidade se te faltassem aqueles a
quem iluminas? Faz dez anos que te abeiras da minha caverna, e, sem mim, sem
a
minha águia e a minha serpente, haver-te-ias cansado da tua luz e deste
caminho.
Nós, porém, esperávamos-te todas as manhãs, tomávamos-te o
supérfluo e bemdizíamos-te.
Pois bem: já estou tão enfastiado da minha sabedoria, como a abelha
que acumulasse demasiado mel. Necessito mãos que se estendam para mim.
Quisera dar e repartir até que os sábios tornassem a gozar da sua
loucura e os pobres da sua riqueza.
Por isso devo descer às profundidades, como tu pela noite, astro
exuberante de riqueza quando transpões o mar para levar a tua luz ao mundo
inferior.
Eu devo descer, como tu, segundo dizem os homens a quem me quero
dirigir.
Abençoa-me, pois, olho afável, que podes ver sem inveja até uma
felicidade demasiado grande!
Abençoa a taça que quer transbordar, para que dela manem as
douradas águas, levando a todos os lábios o reflexo da tua alegria!
Olha! Esta taça quer de novo esvaziar-se, e Zaratustra quer tornar a ser
homem".
Assim principiou o caso de Zaratustra.
II
Zaratustra desceu sozinho das montanhas sem encontrar ninguém. Ao
chegar aos bosques deparou-se-lhe de repente um velho de cabelos brancos que
saíra
da sua santa cabana para procurar raízes na selva. E o velho falou a
Zaratustra desta maneira:
"Este viandante não me é desconhecido: passou por aqui há anos.
Chamava-se Zaratustra, mas mudou.
Nesse tempo levava as suas cinzas para a montanha. Quererá levar
hoje o seu fogo para os vales? Não terá medo do castigo que se reserva aos
incendiários?
Sim; reconheço Zaratustra. O seu olhar, porém, e a sua boca não
revelam nenhum enfado. Parece que se dirige para aqui como um bailarino!
Zaratustra mudou, Zaratustra tornou-se menino, Zaratustra está
acordado. Que vais fazer agora entre os que dormem?
Como no mar vivias, no isolamento, e o mar te levava. Desgraçado!
Queres saltar em terra? Desgraçado! Queres tornar a arrastar tu mesmo o teu
corpo?"
Zaratustra respondeu: "Amo os homens".
"Pois por que - disse o santo - vim eu para a solidão? Não foi por amar
demasiadamente os homens?
Agora, amo a Deus; não amo os homens.
O homem é, para mim, coisa sobremaneira incompleta. O amor pelo
homem matar-me-ia".
Zaratustra respondeu: "Falei de amor! Trago uma dádiva aos homens".
"Nada lhes dês - disse o santo. - Pelo contrário, tira-lhes qualquer coisa
e eles logo te ajudarão a levá-la. Nada lhes convirá melhor, de que quanto
a ti te convenha.
E se queres dar não lhes dês mais do que uma esmola, e ainda assim
espera que tá peçam".
"Não - respondeu Zaratustra; - eu não dou esmolas. Não sou bastante
pobre para isso".
O santo pôs-se a rir de Zaratustra e falou assim: "Então vê lá como te
arranjas para te aceitarem os tesouros. Eles desconfiam dos solitários e não
acreditam que tenhamos força para dar.
As nossas passadas soam solitariamente demais nas ruas. E, ao ouvi-
las perguntam assim como de noite, quando, deitados nas suas camas, ouvem
passar
um homem muito antes do alvorecer: Aonde irá o ladrão?
Não vás para os homens! Fica no bosque!
Prefere à deles a companhia dos animais! Por que não queres ser como
eu, urso entre os ursos, ave entre as aves?".
"E que faz o santo no bosque?" - perguntou Zaratustra.
O santo respondeu: "Faço cânticos e canto-os, e quando faço cânticos
rio, choro e murmuro.
Assim louvo a Deus.
Com cânticos, lágrimas, risos e murmúrios louvo ao Deus que é meu
Deus. Mas, deixa ver: que presente nos trazes?".
Ao ouvir estas palavras, Zaratustra cumprimentou o santo e disse-lhe:
"Que teria eu para vos dar? O que tens a fazer é deixar-me caminhar, correndo,
para vos não tirar coisa nenhuma".
E assim se separaram um do outro, o velho e o homem, rindo como riem
duas criaturas.
Quando, porém, Zaratustra se viu só, falou assim, ao seu coração: "Será
possível que este santo ancião ainda não ouvisse no seu bosque que Deus já
morreu?"
III
Chegando à cidade mais próxima, enterrada nos bosques, Zaratustra
encontrou uma grande multidão na praça pública, porque estava anunciado o
espetáculo
de um bailarino de corda.
E Zaratustra falou assim ao povo:
"Eu vos anuncio o Super-homem".
(1)
"O homem é superável. Que fizestes para o superar?
Até agora todos os seres têm apresentado alguma coisa superior a si
mesmos; e vós, quereis o refluxo desse grande fluxo, preferís tornar ao animal,
em vez de superar o homem?
Que é o macaco para o homem? Uma irrisão ou uma dolorosa vergonha.
Pois é o mesmo que deve ser o homem para Super-homem: uma irrisão ou uma
dolorosa
vergonha.
Percorrestes o caminho que medeia do verme ao homem, e ainda em
vós resta muito do verme. Noutro tempo fostes macaco, e hoje o homem é ainda
mais macaco
do que todos os macacos.
Mesmo o mais sábio de todos vós não passa de uma mistura híbrida de
planta e de fantasma. Acaso vos disse eu que vos torneis planta ou fantasma?
Eu anuncio-vos o Super-homem!
O Super-homem é o sentido da terra. Diga a vossa vontade: seja o
Super-homem, o sentido da terra.
Exorto-vos, meus irmãos, a permanecer fiéis à terra e a não acreditar
naqueles que vos falam de esperanças supra-terrestres.
São envenenadores, quer o saibam ou não.
São menosprezadores da vida, moribundos que estão, por sua vez,
envenenados, seres de quem a terra se encontra fatigada; vão-se por uma vez!
Noutros tempos, blasfemar contra Deus era a maior das blasfêmias; mas