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Richard Bach A ponte para o sempre.

Richard Bach A ponte para o sempre.

 

 

 

Se você um dia se viu só num mundo de estranhos, sentindo a falta de alguém que nunca conheceu, receba a mensagem de amor de A Ponte Para o Sempre

 

Em Fernão Capelo Gaivota Richard Bach escreveu sobre uma gaivota que se exercitou durante toda a sua vida para começar a compreender o significado da bondade e do amor. Em Ilusões escreveu sobre um homem cercado por milagres, mas intimamente obcecado pelo fantasma de uma sábia e mística mulher maravilhosa que vivia logo além de uma esquina no tempo.

 

A Ponte Para o Sempre é a busca de Bach para encontrá-la, para compreender o amor e a imortalidade, não na vida após a morte, mas aqui e agora. Contudo, surpreendido por tempestades de riqueza e sucesso, desastre e traição, ele abandona a busca, e as muralhas que constrói para proteger-se transformam-se em sua prisão.

Conhece então a mulher linda e inteligente que pode libertá-lo, e inicia com ela uma viagem de transformação, uma descoberta mágica do amor e da alegria.

Aqui estão aventuras e desastres aéreos, visitas em sonho ao futuro e ao passado, viagens fora do corpo, enquanto o casal planeja escapar para além da morte. Derivando de uma fé obstinada no perfeito amor, A Ponte Para o Sempre vibra com uma intensidade humana e finalmente cósmica.

Até agora, este escritor tranqüilo e misterioso contou suas histórias através da alegoria e da ficção. Com A Ponte Para o Sempre, ele aproxima os leitores de seu coração e revela uma visão íntima, divertida, triste e terrivelmente honesta de sua vida pessoal e de seu amor. A Ponte Para o Sempre emocionará milhões de leitores que amaram Fernão Capelo Gaivota e Ilusões. Atrairá também novos leitores para um mundo extraordinário em que, ainda que não estejamos prontos, ainda que não acreditemos, os sonhos se tornam realidade.

A Ponte Para o Sempre é o quinto livro de Richard Bach lançado no Brasil pela Record, que publicou ainda O Dom de Voar, Ilusões, Longe É um Lugar que não Existe (um livro para crianças e adultos) e o O Paraíso É uma Questão Pessoal. O autor reside numa ilha com a esposa, Leslie Parrish-Bach.

 

 

OBRAS DO AUTOR

FERNÃO CAPELO GAIVOTA

ILUSÕES

LONGE É UM LUGAR QUE NÃO EXISTE

A PONTE PARA O SEMPRE

UM

 

 

 

RICHARD BACH

 

Ponte Para o Sempre

Um romance de amor

 

Tradução de A. B. PINHEIRO DE LEMOS

 

Título original norte-americano THE BRIDGE ACROSS FOREVER

 

 

— como você e eu somos afortunados, num lar que é intemporal: nós, que descemos das fragrantes montanhas de neve eterna agora para brincar com mistérios como o nascimento e a morte um dia (ou talvez ainda menos)

e. e. cumminis

 

 

Para Leslie que me ensinou a voar

 

Este livro é autobiográfico. Contudo, alguns nomes e outros detalhes que podem levar a uma identificação foram trocados, a fim de proteger a privacidade dos indivíduos envolvidos.

 

Pensamos às vezes que não restou um só dragão. Não há mais qualquer bravo cavaleiro, nem uma única princesa a planar por florestas secretas, encantando cervos e borboletas com seu sorriso.

Pensamos às vezes que a nossa era está além das fronteiras, além das aventuras. Que o destino já passou do horizonte, as sombras reluzentes já desfilaram há muito tempo e se foram para sempre.

É um prazer estar enganado. Princesas e cavaleiros, encantamentos e dragões, mistério e aventuras... não apenas existem aqui e agora, mas também continuam a ser tudo o que já existiu neste mundo!

Em nosso século, mudaram de roupagem, como não podia deixar de ser. Os dragões ostentam hoje a vestimenta do governo, o terno do fracasso e a túnica do desastre. Os demônios da sociedade guincham, turbilhonam sobre nós, se nos atrevermos a virar à direita em esquinas em que nos mandaram virar à esquerda. As aparências se tornaram tão insidiosas que princesas e cavaleiros podem se esconder uns dos outros, podem se esconder até de si mesmos.

Contudo, os mestres da realidade ainda nos encontram em sonhos para dizer que nunca perdemos o escudo de que precisamos contra os dragões, que uma descarga de fogo azul nos envolve agora, a fim de que possamos mudar o mundo como desejarmos. A intuição sussurra a verdade: não somos poeira, somos magia!

Esta é uma história sobre um cavaleiro que estava morrendo e a princesa que salvou sua vida. É uma história sobre beleza, bestas, encantamentos e fortalezas, sobre as forças da morte que parecem e as forças da vida que são. É uma história sobre a aventura que, na minha opinião, mais importa, em qualquer era.

O que se encontra neste livro aconteceu de fato, quase da maneira como foi escrito. Tomei algumas liberdades com a cronologia, algumas pessoas no livro são compostas, a maioria dos nomes é fictícia. Mas eu não poderia inventar o resto, mesmo que tentasse; a verdade não seria bastante plausível se fosse ficção.

Assim como os leitores percebem o que está por trás das máscaras dos escritores, vocês compreenderão o que me levou a pôr estas palavras no papel. Mas, às vezes, quando a luz é favorável, os escritores também podem ver por trás das máscaras dos leitores. Sob essa luz, talvez eu encontre você e seu amor caminhando em algum lugar por estas páginas, junto comigo e meu amor.

 

 

 

 

 

 

 

um

 

Ela estará aqui hoje.

Olhei da carlinga para baixo, através do vento e da rajada da hélice, através de um quilômetro de outono, para o meu campo de feno alugado, para o cartaz de SHOW-AÉREO-A-3-DÓLARES no portão aberto.

Os dois lados do caminho, em torno do cartaz, estavam apinhados de carros. Devia haver pelo menos 60 e uma multidão comparável. Ela podia estar ali naquele momento, acabara de chegar. Sorri ao pensar nisso. Ela podia estar ali!

Pus o motor em marcha lenta, levantei ainda mais o nariz do biplano Fleet, deixei as asas estolarem. Depois, empurrei o leme de direção inteiramente para a esquerda e puxei o manche.

A terra verde, plantação de milho e soja, fazendas e campinas serenas ao meio-dia, o fundo caiu e tudo explodiu no turbilhão de um parafuso, o que parecia do solo uma velha máquina voadora que subitamente escapava ao controle.

O nariz virou para baixo, o mundo girando vertiginosamente num tornado colorido, envolvendo cada vez mais depressa os meus óculos de proteção.

Há quanto tempo venho sentindo a sua falta, minha querida companheira, pensei, minha amada dama, adorável e mística? E hoje, finalmente, a coincidência a trará a Russell, Iowa, pegando-a pela mão, levando-a ao campo lá embaixo. Você se aproximará da beira da multidão, sem entender direito o motivo, curiosa em observar uma página da história ainda viva, cores brilhantes girando no ar.

O aparelho continuou a descer, girando ruidosamente, os controles se virando contra mim, por 300 metros, o tornado mais intenso e mais barulhento a cada segundo.

Girar... até... Agora.

Empurrei o manche para a frente, saí para a direita e pisei firmemente no pedal do leme de direção da direita. A mancha indistinta passou a girar ainda mais depressa, uma, duas vezes, depois o parafuso cessou e o mergulho se tornou reto, o mais depressa possível.

Ela estará aqui hoje, pensei, porque também se sente solitária. Porque já aprendeu tudo o que deseja aprender sozinha. Porque há uma pessoa no mundo a quem ela está sendo levada a conhecer e essa pessoa pilota este avião agora.

Uma curva fechada, o motor desligado, a hélice parada... e planando para baixo, flutuando silenciosamente para a terra, deslizando para parar diante da multidão.

Eu a reconhecerei quando a avistar, pensei, numa expectativa intensa. Eu a reconhecerei imediatamente.

Havia homens e mulheres em torno do avião, famílias com cestos de piquenique, garotos em bicicleta, observando. E dois cachorros perto dos garotos.

Saí da carlinga e corri os olhos pelas pessoas. Gostei delas. E depois ouvi minha própria voz, estranhamente desligada, ao mesmo tempo em que a procurava pela multidão:

Russell do ar, pessoal! Vejam tudo flutuando lá em cima, sobre os campos de Iowa! A última oportunidade antes da neve! Subam pelo ar, onde apenas os pássaros e os anjos voam...

Umas poucas pessoas riram e aplaudiram, esperando que alguém fosse o primeiro. Alguns rostos desconfiados, transbordando de indagações; alguns rostos ansiosos e aventureiros; alguns rostos bonitos também, divertidos, intrigados. Mas não se encontrava em parte alguma o rosto que eu procurava.

— Tem certeza de que é seguro? — perguntou uma mulher. — Depois do que vi, não sei se você é um condutor de confiança.

Bronzeada, olhos castanhos claros, ela queria obviamente ser convencida.

— É o mais seguro possível, madame, tão suave quanto a penugem do cardo. O Fleet aqui está voando desde 24 de dezembro de 1928... e provavelmente dará para mais um vôo antes de cair aos pedaços.

Ela piscou os olhos, aturdida.

— Estou brincando, é claro — apressei-me em acrescentar. — Posso lhe garantir que ele continuará a voar por muito tempo depois que você e eu já tivermos desaparecido.

— Acho que já esperei por muito tempo — murmurou ela. — Sempre quis voar numa coisa dessas...

— Pois vai adorar.

Girei a hélice para acionar o motor, mostrei a ela como subir para a carlinga, ajudei-a a prender o cinto de segurança.

Impossível, pensei. Ela não está aqui. Mas isso não é possível.

A cada dia a certeza de que hoje-é-o-dia, a cada dia a constatação do engano!

O primeiro passeio foi sucedido por 30 outros, antes que o sol se pusesse. Voei e falei até que todos voltaram a suas casas para jantar, às suas noites uns com os outros, deixando-me sozinho.

Sozinho.

Ela é ficção?

Silêncio.

Um minuto antes da água ferver, tirei a chaleira da fogueira de acampamento, preparei o chocolate quente, mexi com uma haste de feno. Franzi o rosto, falando a mim mesmo:

— Sou um tolo ao procurá-la aqui.

Espetei o pão de canela da semana passada num graveto e tostei sobre as brasas da fogueira.

Que aventura, pensei, perambulando pela década de 1970 com um velho biplano! Houvera um tempo em que estava cheio de pontos de interrogação. Agora é tão conhecido e seguro que é como viver num livro de recortes. Depois do centésimo parafuso, posso repetir o ato de olhos fechados. Depois de procurar pela milésima multidão, começo a duvidar que a alma-irmã possa aparecer em plantações de feno.

Há bastante dinheiro em promover passeios aéreos, nunca passarei fome. Mas também não estou aprendendo nada de novo, apenas deixando o tempo passar.

A última coisa que aprendera de verdade fora há dois verões. Vira um biplano branco e dourado da Travei Air pousar num campo, outro espetáculo itinerante. E conhecera Donald Shimoda, Messias aposentado, ex-Salvador do Mundo. Ficáramos amigos e nos últimos meses de sua vida ele me revelara alguns dos segredos do seu estranho chamado.

O diário que escrevi durante aquela temporada transformara-se num livro, enviado a um editor e publicado há não muito tempo. Eu praticara muito bem a maioria de suas lições e por isso os novos testes eram realmente raros. Mas eu ainda não conseguira resolver o problema da alma-irmã.

Ouvi um estalido baixo perto da cauda do Fleet; passos furtivos sobre o feno. Pararam quando me virei para escutar, depois tornaram a se adiantar, lentamente, espreitando-me. Esquadrinhei a escuridão.

— Quem está aí?

Uma pantera? Um leopardo? Não em Iowa. Não havia leopardos em Iowa desde...

Outro lento passo noturno. Só pode ser... Um lobo Cinzento americano!

Mergulhei para a caixa de ferramentas, peguei uma faca, uma chave inglesa. Mas já era tarde demais. Naquele instante, contornando a roda do avião, surgiu uma máscara de bandido, preta e branca, olhos brilhantes me estudando, o focinho peludo farejando inquisitivamente o cesto de comida.

Não era um lobo.

— Ora, ora... como vai...

Ri do meu coração, disparado, fingi que estava apenas guardando a chave inglesa.

Filhotes de guaxinim, capturados e criados como bichinhos de estimação no Meio-Oeste, são libertados quando chegam a um ano de idade. Mas continuam a procurar a companhia humana.

Não há nada de errado em se esgueirar pelos campos, parando depois do anoitecer para indagar a alguém acampado se tem alguma coisa doce para mordiscar, enquanto a noite passa lentamente, não é mesmo!

— Não tenha medo... venha até aqui, meu pequeno companheiro. Está com fome?

Qualquer coisa doce serviria, uma barra de chocolate ou... marshmallow? O guaxinim ergueu-se sobre as patas traseiras por um momento, o focinho se contraindo, farejando o ar impregnado pelo cheiro de comida. Olhou para mim. O resto do marshmallow, se não vai comer, seria ótimo. Peguei o saco, despejei uma pilha das coisas brancas e macias sobre o meu saco de dormir.

— Aqui está... pode vir...

Acomodando-se ruidosamente para saborear a sobremesa, o miniurso enfiou os pedaços de marshmallow na boca, mastigando-os com evidente satisfação.

O bicho recusou meu pão de fabricação doméstica depois de meia mordida, terminou o marshmallow, comeu quase todo o pão de mel, bebeu a água que despejei numa panela. Depois, ficou sentado por algum tempo a observar o fogo, finalmente farejou, indicando que já era hora de seguir viagem.

— Obrigado pela visita, companheiro.

Os olhos pretos se fixaram solenemente nos meus.

Obrigado pela comida. Você não é um humano dos piores. Tornarei a vê-lo amanhã de noite. Aquele primeiro pão é horrível.

A criatura peluda se afastou, a cauda listrada desaparecendo nas sombras, os passos se tornando cada vez mais distantes através do campo, deixando-me sozinho com meus pensamentos e meu anseio por minha dama.

Tudo sempre acaba nela.

Ela não é impossível, pensei. Não é demais acalentar essa esperança!

O que me diria Donald Shimoda se estivesse sentado aqui esta noite, sob a asa, ao saber que ainda não a encontrei?

Diria alguma coisa simples, com toda certeza. O mais estranho em seus segredos era o fato de todos serem simples.

E se eu lhe contasse que fracassara na busca? Ele estudaria o seu pão de canela à procura de inspiração, passaria os dedos pelos cabelos pretos e diria:

— Voando com o vento, Richard, de cidade em cidade. já lhe ocorreu que isso não é uma maneira de encontrá-la, mas sim de perdê-la?

Muito simples. E depois ele esperaria em silêncio pela minha resposta. Ao que eu responderia, se ele estivesse aqui:

— Muito bem, voar sobre os horizontes não é a maneira. Desisto. Mas então me diga: como posso encontrá-la?

Ele estreitaria os olhos, contrariado por eu fazer-lhe a pergunta, ao invés de a mim mesmo.

— Sente-se feliz? Está fazendo neste momento o que mais deseja no mundo?

O hábito me levaria a responder claro que estou, claro que levo a minha vida da maneira como me apraz.

Mas, no frio da noite, a mesma pergunta me levaria a perceber que alguma coisa mudara. Estou fazendo neste momento o que mais quero?

— Não!

— Mas que surpresa! — diria Shimoda. — O que acha que isso pode significar?

Pisquei os olhos, soltei a imaginação e falei em voz alta:

— Ora, significa que tenho apenas perambulado! E neste momento estou olhando para a minha última fogueira de acampamento; o garoto de Russell, ao crepúsculo, foi o último passageiro que levei pelo ar!

Tentei dizer de novo:

— Tenho apenas perambulado.

Um choque lento e suave. Uma profusão de indagações.

Saboreei por um momento a minha nova ignorância, mexi-a com a língua. O que farei? O que acontecerá comigo?

Depois da segurança da ocupação de perambular com meu avião de cidade em cidade, um prazer novo e surpreendente aflorou, envolvendo-me como uma onda fria das profundezas. Eu não sabia o que fazer!

Quando uma porta se fecha, costumam dizer, outra se abre. Posso ver a porta que acaba de fechar. Tem escrita a palavra PERAMBULACÃO e por trás se encontram os caixotes de aventuras que me mudaram de quem eu era para quem sou. E agora é tempo de seguir em frente. Onde está a porta que acaba de se abrir?

Se eu fosse uma alma avançada naquele momento, pensei, não Shimoda, mas um eu avançado, o que diria a mim mesmo? Um momento transcorreu e compreendi o que diria:

— Olhe para tudo que se encontra ao seu redor neste momento e indague, Richard: “O que há de errado com essa imagem?”

Olhei ao redor na escuridão. O céu não estava errado. O que pode haver de errado com estrelas explodindo em diamantes a mil anos-luz de distância, enquanto eu observava os fogos de artifício de um lugar seguro? O que há de errado com um avião tão forte e fiel como o Fleet, sempre pronto para decolar e seguir para qualquer lugar que eu quisesse? Nada de errado.

O que está errado é apenas uma coisa: Ela não se encontra comigo! E tomarei agora uma providência para mudar isso!

Devagar, Richard, pensei. Seja diferente desta vez: por favor, nada de pressa! Por favor. Pense, primeiro. Com todo cuidado.

E tenha certeza. Havia outra indagação na escuridão, que eu não formulara a Donald Shimoda, que ele não respondera.

Por que as pessoas mais adiantadas, cujos ensinamentos, distorcidos em religiões, perduram por séculos, por que essas pessoas têm sempre de ser sozinhas?

Por que jamais encontramos maridos e mulheres radiantes, milagrosamente iguais, partilhando suas aventuras e seu amor? Esses poucos que tanto admiramos são cercados por discípulos e curiosos, são pressionados pelos que buscam cura e orientação. Mas com que freqüência encontramos suas almas-irmãs, amantes gloriosos e deslumbrantes, sempre ao lado? Algumas vezes? Raramente?

Engoli em seco, a garganta subitamente ressequida.

Nunca.

As pessoas mais avançadas, refleti, são justamente as mais solitárias!

O céu desfilava lentamente lá por cima, indiferente.

Esses homens perfeitos não têm almas-irmãs por terem se projetado além das necessidades humanas?

Não houve resposta da azul Vega, cintilando em sua coroa de estrelas.

A conquista da perfeição não seria um problema meu por muitas vidas, mas tais pessoas supostamente nos indicam o caminho. Eles teriam dito que devemos esquecer as almas-irmãs porque elas não existem?

Os grilos responderam suavemente: E possível, é possível.

E contra esse muro de pedra minha noite se chocou em seu final. Se é o que eles dizem, resmunguei para mim mesmo, então estão enganados.

E me perguntei se ela concordaria, onde quer que se encontrasse naquele momento. Eles estão enganados, minha querida desconhecida?

Onde quer que estivesse, ela não respondeu.

Quando a geada se derreteu das asas, na manhã seguinte, eu já estava preparado, a caixa de ferramentas, o cesto de comida e o fogareiro arrumados impecavelmente no banco da frente, a coberta abaixada e o cinto de segurança apertado. Deixara para o guaxinim o que sobrara do cereal do desjejum.

O sono me proporcionara a resposta: Os perfeitos e avançados podem sugerir, podem insinuar qualquer coisa que quiserem, mas sou eu quem decide o que fazer. E decidi que não levarei o resto de minha vida sozinho.

Pus as luvas, girei a hélice, liguei o motor pela última vez, acomodei-me na carlinga.

O que eu faria se a visse agora, caminhando pelo campo? Num tolo impulso, sentindo um estranho calafrio na nuca, virei-me para olhar.

O campo estava vazio.

O Fleet alçou vôo, virou para leste, foi pousar no Aeroporto de Kan-kakee, em Illinois. Vendi o avião no mesmo dia, por 11 mil dólares à vista, guardei o dinheiro no saco de dormir.

Sozinho, pus a mão na hélice por um longo minuto, agradeci ao biplano e despedi-me, depois deixei rapidamente o hangar, sem olhar para trás.

Em terra, rico e sem lar. Saí pelas ruas de um planeta de quatro bilhões e 500 milhões de habitantes, começando a procurar em tempo integral, a partir daquele momento, a mulher que, segundo as melhores pessoas que já viveram, não existia.

 

 

 

dois

 

Tudo o que encanta, também guia e protege. Intensamente obcecados por qualquer coisa que amamos barcos, aviões, idéias uma avalanche de magia aplana o caminho pela frente, nivela regras, razões, divergências, permite-nos transpor abismos, medos, dúvidas. Sem a força desse amor...

— O que está escrevendo?

Ela me fitou com uma expressão de perplexidade, como se nunca tivesse visto alguém usar uma caneta e um bloco de anotações, viajando para o sul de ônibus, a caminho da Flórida. Se alguém interrompe minha privacidade com perguntas, respondo às vezes sem explicar, querendo intimidar a pessoa ao silêncio:

— Estou escrevendo uma carta ao homem que fui há 20 anos: Coisas que Eu Gostaria de Saber Quando Era Você.

Apesar da minha contrariedade, não havia como negar que o rosto dela era agradável de se contemplar, iluminado pela curiosidade e a bravura para satisfazê-la. Olhos castanhos profundos, os cabelos bem escovados parecendo uma cascata escura.

— Leia para mim — disse ela, sem se deixar intimidar.

Foi o que fiz, o último parágrafo, até o ponto em que fora interrompido.

— Isso é verdade?

— Pense numa coisa que tenha amado. Gostar não conta. O que uma paixão obsessiva e incontrolável...

— Cavalos — respondeu ela prontamente. — Eu adorava cavalos.

— E quando estava com os cavalos o mundo não tinha uma cor diferente das outras ocasiões?

Ela sorriu.

— Tem razão. Fui a rainha do sul do Ohio. Mamãe tinha de me laçar e arrancar da sela para que eu fosse para casa. Medo? Não eu! Tinha aquele cavalo enorme por baixo de mim... Sandy... que era meu amigo. Ninguém me faria mal enquanto ele estivesse ali. Eu amava cavalos. Amava Sandy.

Pensei que ela tivesse parado de falar, mas logo acrescentou, depois de uma breve pausa:

— Não me sinto assim agora em relação a qualquer coisa.

Não respondi. Ela mergulhou em seu tempo particular, em companhia de Sandy. Concentrei-me na carta.

Sem a força desse amor, somos barcos parados nos mares do tédio e são mortíferos...

— Como vai despachar uma carta para 20 anos atrás?

— Não sei — respondi, terminando a frase na página. Mas não seria terrível se aprendêssemos como enviar alguma coisa de volta ao passado e nada tivéssemos para remeter? Por isso, achei que era melhor aprontar primeiro a remessa. E depois me preocuparei com a maneira de despachar.

Quantas vezes eu dissera a mim mesmo: é uma pena não ter sabido disso aos 10 anos... e se aprendesse aos 12 anos, que desperdício compreender 20 anos depois!

— Para onde está indo? — perguntou ela.

— Geograficamente?

— Isso mesmo.

— Para longe do inverno. Para o sul. Para o coração da Flórida.

— O que tem na Flórida?

— Não sei. Vou encontrar com uma amiga e não sei direito aonde ela está.

— Pois vai encontrá-la.

Não pude conter uma risada e fitei-a.

— Sabe exatamente o que está dizendo?

— Claro.

— Então explique, por favor.

— Não.

Ela sorriu misteriosamente. Os olhos brilhavam tão escuros que quase se tornaram pretos. A pele era lisa, ligeiramente bronzeada, sem vincos, sem qualquer marca que insinuasse quem era; tão jovem que ainda não terminara de construir seu rosto.

— Então é não — respondi, retribuindo o sorriso.

O ônibus avançava velozmente pela rodovia interestadual, as fazendas desfilando pela janela, aquarelas em cores de outono. O biplano poderia pousar nesse campo, pensei. Havia fios telefônicos altos na beira da estrada, mas o Fleet passaria por baixo.

Quem era aquela desconhecida ao meu lado? Seria um sorriso cósmico dos meus temores, uma coincidência enviada para derreter minha dúvida? Era possível. Qualquer coisa era possível. Ela podia ser Shimoda disfarçado.

— Você gosta de voar? — indaguei, casualmente.

— Eu estaria neste ônibus se gostasse? Só de pensar me sinto nervosa. Aviões! — Ela estremeceu, sacudiu a cabeça. — Detesto voar.

Abrindo a bolsa, ela meteu a mão no interior.

— Importa-se que eu fume? Encolhi-me todo, por reflexo.

— Se eu me importo? Um cigarro?Por favor! — Tentei explicar, para não ferir seus sentimentos. — Vai soprar fumaça em nosso pequeno setor de ar? E obrigar a mim, que não lhe fiz mal algum, a respirar a fumaça?

Se ela fosse Shimoda, saberia o que eu pensava do fumo. As palavras deixaram-na paralisada por um longo momento, até que finalmente murmurou:

— Desculpe...

Pegando a bolsa, transferiu-se para um banco distante. Estava magoada e furiosa.

Era uma pena. Aqueles olhos escuros...

Tornei a levantar a caneta, a fim de escrever para aquele garoto perdido no passado. O que poderia dizer-lhe a respeito da descoberta de uma alma-irmã? A caneta ficou esperando, por cima do papel.

Eu fora criado numa casa com uma cerca ao redor, um pequeno portão branco, dois buracos redondos e baixos, a fim de que o cachorro pudesse olhar a rua. Uma noite, a lua alta, voltando tarde da escola de dança, parei de repente, com a mão no portão, falei tão baixo, para mim mesmo e a mulher que amaria, que nem mesmo o cachorro poderia ouvir:

— Não sei onde você se encontra, mas neste momento está vivendo em algum lugar deste mundo. E um dia nós dois tocaremos neste portão em que ponho a mão agora. Sua mão pousará sobre esta mesma madeira! E depois entraremos, com um futuro e um passado, seremos um para o outro como ninguém jamais foi. Não sei explicar, mas não podemos nos encontrar agora. Algum dia, porém, nossas perguntas serão respostas, estaremos envolvidos em algo tão maravilhoso... e cada passo que dou é um passo a mais na ponte que devemos atravessar para nos encontrar. Sem esperar muito tempo? Por favor?

Uma grande parte da minha infância está esquecida, mas aquele momento no portão permaneceu, palavra por palavra.

O que posso dizer a respeito dela? Caro Dick: Quer saber de uma coisa? Vinte anos passaram e ainda estou sozinho.

Baixei o bloco de anotações e olhei pela janela, mas sem ver. A esta altura, certamente, meu subconsciente incansável já tem respostas para ele. Para mim.

Eram muitas as desculpas. É difícil encontrar a mulher certa, Richard. Você não é mais tão flexível como antes, já passou do estágio da mente aberta. As coisas em que preferiu acreditar, as coisas pelas quais morreria, são apenas engraçadas para a maioria das pessoas. Ou completamente doidas.

Minha dama, pensei, precisará ter descoberto por conta própria as mesmas respostas que encontrei, que este mundo não é sequer remotamente o que parece, que tudo o que mantemos em nossos pensamentos se torna verdade em nossas vidas que os milagres não são milagrosos. Ela e eu nunca nos daremos bem se não... Pisquei os olhos, aturdido. Ela terá de ser exatamente como eu!

Muito mais bonita fisicamente do que eu, é claro, pois amo a beleza. Mas terá de partilhar meus preconceitos, assim como minhas paixões. Eu não poderia me imaginar vivendo com uma mulher que deixa uma esteira de fumaça e cinzas por toda parte. Se precisa de festas e coquetéis para ser feliz, se necessita de tóxicos, se tem medo de aviões ou de qualquer outra coisa, se não for extremamente autoconfiante, se carecer de gosto pela aventura, se não rir das coisas bobas a que chamo de humor, não daria certo. Se ela não quisesse partilhar o dinheiro quando tivermos e as fantasias quando não o tivermos... se não gostar de guaxinins... Ora, ora, Richard, não será fácil. Sem todas as coisas indicadas e muito mais, é melhor você continuar sozinho!

No final do bloco, enquanto rodávamos em alta velocidade pela Interestadual 65, entre Louisville e Birmingham, por 500 quilômetros, fiz uma lista: A Mulher Perfeita. Já estava desanimado na nona página. Cada linha que eu descrevia era importante, cada linha era indispensável. Contudo, ninguém poderia atender... eu próprio não seria capaz de atender àqueles padrões!

Um arroubo de objetividade se insinuou cruelmente em minha cabeça: estou arruinado como um companheiro, antes mesmo de atingir um estágio avançado da alma... e quanto mais avanço, pior fica.

Quanto mais esclarecidos nos tornamos, mais se torna impossível sermos correspondidos por qualquer outra pessoa, em qualquer lucrar. Quanto mais aprendemos, mais devemos concluir que é melhor vivermos sozinhos.

Escrevi isso tão depressa quanto podia. No espaço em branco, ao final da última página, acrescentei, quase sem perceber: Até mesmo eu.

Mas mudar minha lista? Posso dizer que está errada? Não tem problema se ela fuma, detesta aviões ou gosta de tomar uma dose de cocaína de vez em quando?

Não, isso não está certo.

O pôr-do-sol estava no meu lado do ônibus, agora há sombra por toda parte. Eu sabia que lá fora, na escuridão, havia pequenas fazendas triangulares, campos poligonais em que nem mesmo o Fleet poderia aterrissar.

Você nunca recebe um desejo sem também receber a capacidade de torná-lo realidade.

Onde estaria agora O Manual do Messias? Provavelmente ainda escondido na moita em que eu o jogara no dia da morte de Shimoda. Com suas páginas que se abriam justamente para aquilo que o leitor mais precisava saber. Eu o chamara certa ocasião de livro mágico e Shimoda se irritara. E dissera que se pode obter as respostas em qualquer lugar, até mesmo num jornal do ano passado. Feche os olhos, mantenha a pergunta na mente, toque em qualquer coisa escrita e lá estará a resposta.

A coisa impressa mais próxima no ônibus era a minha cópia desconjuntada do livro que eu escrevera sobre Shimoda, a prova de página que constitui a última oportunidade que os editores concedem aos escritores de lembrar que diesel se escreve com um e depois do i. Eu queria garantir que fosse o único livro na história da língua inglesa a terminar com uma vírgula.

Pus o livro no colo, fechei os olhos e indaguei: Como encontrarei a mulher mais querida e mais perfeita para mim? Mantive a indagação brilhando firme na mente, abri o livro, baixei um dedo e depois olhei.

Página 114. Meu dedo pousara na palavra “trazer”, Para trazer qualquer coisa à sua vida, imagine que já está lá.

Uma pedra de gelo me escorreu pelas costas. Era algo que não praticava há muito tempo. Esquecera como funciona bem.

Olhei para a janela, que se transformara em espelho noturno pela luz no interior do ônibus, procurando por um reflexo do que ela poderia ser. O vidro estava vazio. Eu nunca vira uma alma-irmã. Não podia imaginar como imaginá-la. Eu deveria ter no pensamento uma imagem física, como se ela fosse um objeto? Tanto de altura, cabelos pretos e compridos, olhos cor do mar, cor do céu, encantamento, uma beleza a mudar a cada hora?

Ou imaginar qualidades? Imaginação exuberante, intuição de uma centena de vidas lembradas, honestidade cristalina e uma determinação firme e intrépida? Como visualizar essas coisas?

Hoje é fácil visualizá-las; naquela ocasião não era. Imagens faiscaram e desapareceram, embora eu soubesse que tinha de manter as imagens nítidas, a fim de fazê-las aparecer vivas ao meu redor.

Tentei e tentei divisá-la, mas só havia sombras, fantasmas aflorando lentamente em minha zona de pensamento. Eu, que era capaz de visualizar os menores detalhes de qualquer coisa que me atrevesse a imaginar, não podia agora imaginar sequer vagamente a pessoa que eu queria que fosse a mais importante em minha vida,

Tentei vê-la mais uma vez, imaginá-la ali.

Nada. Luzes de um espelho quebrado, sombras em movimento. Absolutamente nada.

Não posso ver quem é ela!

Acabei desistindo.

Pode-se apostar numa coisa em relação aos poderes psíquicos: quando se precisa, eles saíram para jantar.

Mal eu adormecera no ônibus, exausto da viagem e do esforço para vê-la, quando uma voz mental me despertou com um sobressalto:

— EI, RICHARD! Se isso o fará sentir-se melhor, então preste atenção. Sua mulher específica no mundo inteiro? Sua alma-irmã? Você já a conhece!

 

 

 

 

 

três

 

Saltei do ônibus às 8:40 da manhã, no meio da Flórida, faminto.

Dinheiro não era problema para alguém que levava tanto em seu saco de dormir. O que me perturbava era outra coisa: o que acontece agora? Aqui está a aprazível e quente Flórida. E não apenas não há qualquer alma-irmã a esperar no ponto de ônibus, como não há amigo, não há lar, não há absolutamente nada.

O aviso no café em que entrei dizia que se reservava o direito de recusar servir qualquer pessoa.

Qualquer um se reserva o direito de fazer absolutamente qualquer coisa que desejar, pensei. Por que avisos para informar isso?

Faz com que você pareça assustado. Por que está assustado? Desordeiros aparecem por aqui, quebram tudo? Pistoleiros do crime organizado? Neste pequeno café?

O garçom olhou para mim e depois para o meu saco de dormir. Meu casaco de brim tinha um pequeno rasgão na manga e a linha do remendo que eu fizera estava se soltando; o saco de dormir tinha algumas manchas de graxa e óleo do motor do Fleet. Compreendi que ele pensava se não seria um momento de se recusar a servir. Sorri em cumprimento, murmurando:

— Como estão as coisas por aqui?

— Tudo bem. — O lugar estava quase vazio. Ele concluiu que eu era aceitável. — Café?

Café como desjejum? Essa não! Uma porcaria amarga... moem de casca de árvore ou algo parecido.

— Não, obrigado. Que tal um pedaço daquela torta de limão, esquentada por meio minuto no microondas? E um copo de leite.

— Está bem.

Houvera um tempo em que eu pediria bacon ou salsicha para a refeição, mas não ultimamente. Quanto mais eu acreditava na indestrutibilidade da vida, menos queria ser cúmplice até mesmo de mortes ilusórias. Se um porco em um milhão podia ter a oportunidade para uma vida contemplativa, ao invés de ser abatido para o meu café da manhã, valia a pena me abster de carne. E por isso eu ficava na torta de limão quente.

Saboreei a torta e olhei através da janela para a cidade. Era provável que encontrasse o meu amor naquele lugar? Não, não era provável. Nenhum lugar é provável, uma chance em bilhões,

Como era possível que eu já a conhecesse?

Segundo as almas mais sábias, conhecemos a todos em toda parte, sem termos encontrado pessoalmente... o que não serve de conforto quando se está tentando limitar a busca.

— Oi, moça. Lembra-se de mim? Como a percepção não é limitada pelo espaço ou tempo, deve recordar que somos velhos amigos...

Não era uma apresentação aceitável, pensei. A maioria das mulheres sabe que existem algumas pessoas estranhas no mundo com as quais se deve ter cautela e essa seria inequivocamente uma apresentação estranha.

Relembrei todas as mulheres que conhecera, voltando por alguns anos no passado. Eram casadas com suas carreiras ou com homens, com processos de pensamento diferentes dos meus.

Mulheres casadas às vezes descasam, pensei, as pessoas mudam. Podia ser qualquer mulher que eu conhecera..,

— Olá — diria ela.

— Olá.

— Quem é você?

— Richard Bach.

— Quem?

— Não se lembra de que nos conhecemos no shopping center? Você estava lendo um livro, eu disse que era formidável, você perguntou como eu sabia e respondi que o escrevera.

— Ah, sim...

— Ainda está casada?

— Claro.

— Foi um prazer tornar a vê-la. Divirta-se.

— Obrigada.

— Adeus.

Há uma orientação melhor, tem de haver, do que passar por essa conversa com cada mulher... Quando chegar o momento certo, pensei, eu a encontrarei, não um segundo antes...

O café da manhã custou 75 cents. Paguei e saí para o sol. Seria um dia quente. Provavelmente com muitos mosquitos esta noite. Mas que me importa? Esta noite dormirei num quarto!

E foi então que me lembrei de ter deixado o saco de dormir no banco do reservado no restaurante.

Era diferente a vida em terra. Não se recolhe as coisas pela manhã e se põe na carlinga, decolando para um novo dia. Leva-se as coisas na mão de um lado para outro ou se encontra um teto e se fica por baixo. Sem o Fleet, sem o meu Alfafa Hilton, eu não era mais bem acolhido nos campos.

Havia uma freguesa nova no café, sentada no reservado que eu acabara de deixar. Ela levantou os olhos, surpresa, quando me aproximei de sua mesa.

— Com licença — murmurei, ao pegar o saco de dormir no outro banco. — Esqueci isto quando saí, há poucos minutos. Esqueceria a própria alma, se não estivesse amarrada por um barbante.

Ela sorriu e retornou à leitura do cardápio.

— Cuidado com a torta de limão — acrescentei. — A menos que prefira com o gosto muito forte de limão. Então vai adorar.

Tornei a sair para o sol, balançando o saco de dormir ao meu lado, até que me lembrei que a Força Aérea dos Estados Unidos me ensinara a não balançar a mão que estivesse carregando alguma coisa. Mesmo quando carregamos uma moeda, na vida militar não devemos balançar a mão.

Num súbito impulso, apenas por ver o telefone em sua pequena guarita envidraçada, resolvi fazer uma ligação de negócios, chamando alguém com quem não falava há bastante tempo. A empresa que lançara meu livro ficava em Nova York, mas que me importava a ligação interurbana? Não seria problema. Há privilégios em todos os ofícios... alguém que perambula com um avião é pago por oferecer passeios aéreos, ao invés de ter de pagar por isso; os escritores telefonam para seus editores a cobrar.

Fiz a ligação.

— Oi, Eleonor.

— Richard! Onde você esteve?

— Vamos ver... Desde que falamos pela última vez? Wisconsin, Iowa, Nebraska, Kansas, Missouri; depois segui para Indiana, Ohio, de volta a Iowa e Illinois. Vendi o biplano. Estou neste momento na Flórida. Deixe-me adivinhar o tempo aí na cidade... camada de estratos a dois mil metros, tempo nublado, visibilidade de cinco quilômetros, com nevoeiro e fumaça.

— Tentamos encontrá-lo em toda parte! Sabe o que está acontecendo?

— Três quilômetros pelo nevoeiro e fumaça?

— O seu livro! Está vendendo bem! Muito bem!

— Sei que parece uma tolice, mas estou com um problema aqui. Pode ver pela janela?

— Claro que posso, Richard.

— Até que ponto?

— Tem um pouco de nevoeiro. Por uns 10 ou 15 quarteirões. Ouviu o que eu disse? Seu livro é um bestseller! Estão querendo a sua presença em vários programas de televisão transmitidos em rede. Os jornais querem entrevistas, assim como as emissoras de rádio. Estamos vendendo centenas de milhares de exemplares! No mundo inteiro! Já assinamos contratos com o Japão, Alemanha, França. E hoje mesmo chegou um contrato da Espanha...

O que se diz quando se ouve essas coisas pelo telefone?

— Que boas notícias! Meus parabéns!

— Os parabéns são seus. Como foi possível que não tenha tomado conhecimento? Sei que anda vivendo no mato, mas você está na lista de bestsellersdo PW, do New York Times, de todas as listas. Estamos mandando seus cheques para o banco. Tem verificado seu saldo?

— Não.

— Pois deveria fazê-lo. Você parece terrivelmente longe. Está me ouvindo direito?

— Estou, sim. E não me encontro no mato. Nem tudo a oeste de Manhattan é mato, Eleonor.

— Posso avistar até Jersey do refeitório executivo e além do rio me parece um mato horrível.

O refeitório executivo... como era diferente o mundo em que ela vivia!

— Vendeu o biplano? — disse Eleonor, como se tivesse acabado de ouvir. — Vai desistir de voar?

— Claro que não.

— Isso é ótimo. Não posso imaginá-lo sem os seus aviões. Que pensamento assustador: nunca mais voar!

— Muito bem, quando você pode comparecer aos programas de televisão, Richard?

— Não sei... Será que eu quero mesmo aparecer?

— Pense bem, Richard. Seria ótimo para o livro. Poderia contar a muitas pessoas o que aconteceu, falar sobre a história.

Os estúdios de televisão ficam nas cidades grandes, que eu sempre prefiro evitar.

— Deixe-me pensar um pouco a respeito, Eleonor. Eu lhe telefonarei de novo quando tomar uma decisão.

— Por favor, não deixe de me telefonar. Você é um fenômeno, como dizem. Todo mundo quer saber como você é. Seja simpático e me informe o mais depressa possível.

— Está bem.

— E parabéns, Richard!

— Obrigado.

— Não está feliz?

— Estou, sim. Apenas não sei o que dizer.

— Pense bem sobre os programas de televisão. Espero que decida fazer pelo menos alguns. Os maiores.

— Está certo. Eu lhe telefonarei.

Desliguei e olhei pelo vidro. A cidadezinha continuava como antes, mas tudo mudara.

Que coisa incrível, pensei. O diário, aquelas páginas enviadas para Nova York quase que por um capricho, se transformando em bestseller! Hurra!

Mas as cidades grandes? Entrevistas? Televisão? Não sei...

Eu me sentia como uma mariposa num lustre... de repente há uma porção de opções sedutoras, mas não sabia direito para onde voar.

Tive outro impulso, tirei o fone do gancho, passei pelo labirinto de números para alcançar o banco em Nova York, convenci uma funcionária de que era eu mesmo quem telefonava e queria saber o saldo na minha conta corrente.

— Um momento, por favor — disse ela. — Tenho de consultar o computador.

O que poderia ser? Vinte mil dólares? Cinqüenta mil? Cem mil? Vinte mil. Mais 11 mil dólares no saco de dormir eu podia me considerar muito rico!

— Sr. Bach?

— Pode falar.

— O saldo em sua conta é de um milhão, 397 mil, 355 dólares e 68 cents. Houve um silêncio prolongado.

— Tem certeza?

— Tenho, sim, senhor. — Um breve silêncio agora. — Isso é tudo, senhor?

Silêncio.

— Hã... É, sim, obrigado...

Nos filmes, quando telefonamos para alguém e desligam no outro lado, ouvimos um zumbido longo na linha. Mas, na vida real, quando a outra pessoa desliga, o telefone simplesmente fica mudo em nossa mão. Terrivelmente mudo. Por tanto tempo quanto permanecemos imóveis a segurá-lo.

 

 

 

quatro

 

Depois de algum tempo, repus o fone no gancho, peguei o saco de dormir e comecei a andar.

Já lhe aconteceu alguma vez assistir a um filme espetacular, impecavelmente escrito, representado e fotografado, a tal ponto que sai do cinema contente por ser uma criatura humana e diz a si mesmo que gostaria que todos ganhassem muito dinheiro? Espero que os atores e o diretor ganhem um milhão de dólares pelo que fizeram, pelo que me proporcionaram esta noite? E você volta e assiste ao filme de novo, sente-se feliz por ser uma pequena parte do sistema que recompensa aquelas pessoas com cada ingresso... os atores que vejo na tela receberão 20 cents para cada dólar que estou pagando agora; poderão comprar um sorvete de qualquer sabor que quiserem somente com o meu ingresso!

Momentos gloriosos na arte, livros, cinema e dança são maravilhosos, porque vemos a nós mesmos no espelho da glória. A compra de um livro ou de um ingresso é um meio de aplaudir, um meio de agradecer por um bom trabalho. Gostamos quando um filme ou um livro que adoramos alcança o sucesso.

Mas um milhão de dólares para mim? Subitamente, eu descobria o que era estar no outro lado da dádiva que tantos escritores me haviam conferido, lendo seus livros desde o dia em que soletrara sozinho:

— Bam-bi. De Fe-lixSal-ten.

Eu me sentia como um surfista descansando em sua prancha e de repente surge uma onda monstruosa, agarrando-o sem indagar se está pronto, os borrifos se elevando na frente, depois no meio e finalmente atrás, uma força enorme a impeli-lo, o vento criando um sorriso em sua boca.

Há emoções profundas em saber que o livro que se escreveu foi lido por muitas pessoas, Mas pode-se esquecer, deslizando numa onda gigantesca de um quilômetro por minuto, que o surfista precisa ser excepcionalmente hábil ou a próxima surpresa talvez seja um final terrível.

 

 

cinco

 

Atravessei a rua e obtive uma orientação na drugstore para um lugar em que poderia encontrar o que precisava; segui as indicações, é-impossível-errar, desci pela Lake Roberts Road, passando sob os galhos com a barba-de-velho, cheguei à Biblioteca Memorial Gladys Hutchinson.

Qualquer coisa que precisamos saber pode-se aprender de um livro. A leitura, um estudo cuidadoso, um pouco de prática e estamos arremessando facas com a maior habilidade, retificando motores, falando esperanto como nativos.

Pegue todos os livros de Nevil Shute, são hologramas codificados de um homem decente: Trustee from the Toolroom (Síndico de uma oficina), The Rainbow and the Rose (O Arco-íris e a Rosa). O escritor apresentou a pessoa que ele é em cada página de seus livros e podemos lê-lo em nossas próprias vidas, se assim quisermos, na privacidade das bibliotecas.

O silêncio frio da sala enorme, os livros pelas paredes... dava para sentir que se encontrava ansiosa em me ensinar. Mal podia aguardar agora o momento de mergulhar na leitura de Então Você Tem um Milhão de Dólares!

Estranhamente, porém, o título não estava relacionado. Procurei no catálogo sob Então,sob Milhão. Nada. Podia ser O Que Fazer Quando se Torna Subitamente Rico. Verifiquei O que, Rico e Subitamente.

Tentei uma referência diferente. O problema não é que o livro que você procura não exista nesta biblioteca, explicou Books in Print, mas sim o fato de que ainda não foi editado.

Não é possível, pensei. Se eu enriqueci de repente, a mesma coisa já aconteceu com outras pessoas e alguém deve ter escrito o livro. Nada de ações, investimentos ou bancos... não eram essas as coisas que eu precisava saber, mas sim o que se deve sentir, quais as oportunidades que se apresentam, que pequenos desastres afloram ao redor dos meus tornozelos, que ameaças maiores como abutres podem estar mergulhando em minha direção neste momento. Alguém me indique o que fazer, por favor.

Não havia resposta no catálogo.

— Com licença, madame...

— Pois não, senhor?

Sorri, pedindo a sua ajuda. Desde o primário que eu não via um carimbo de data preso na ponta de um lápis. Mas era o que ali estava, naquele momento, com a data de hoje, na mão da bibliotecária.

— Preciso de um livro que explique como ser uma pessoa rica. Não como ganhar dinheiro. Algo sobre o que a pessoa deve fazer quando tem muito dinheiro. Pode sugerir...

Era evidente que ela estava acostumada a pedidos insólitos. E talvez o meu pedido não fosse tão insólito assim... os reis da laranja, as baronesas da terra, os milionários súbitos abundam na Flórida.

Malares salientes, olhos cor de avelã, cabelos caindo até os ombros em ondas de chocolate escuro. Atitude formal, reservada com aqueles que não conhecia há bastante tempo.

Ela me fitou enquanto eu falava, depois levantou os olhos e desviou-os para a esquerda, o lugar em que procuramos quando tentamos nos recordar de um conhecimento antigo. Para o alto e para a direita (aprendi num livro) é para onde olhamos quando procuramos por alguma coisa nova.

— Não consigo me lembrar... Que tal biografias de pessoas ricas? Temos vários livros sobre os Kennedys, um livro sobre Rockefeller. E temos Os Ricos e os Super-Ricos.

— Acho que não é exatamente o que estou precisando. Não tem, por acaso, algo intitulado mais ou menos Como Lidar com a Riqueza Súbita?

Ela sacudiu a cabeça, solenemente, Pensativamente. Todas as pessoas pensativas são bonitas?

Ela apertou um botão no interfone em sua mesa e disse baixinho:

— Sara Jean? Como Lidar com a Riqueza Súbita. Temos um exemplar deste livro?

— Nunca ouvi falar. Há Como Ganhei Milhões no Negócio Imobiliário e temos três exemplares...

Eu não estava obtendo resultados.

— Ficarei sentado aqui por algum tempo e pensarei a respeito. É difícil acreditar. Tem de haver este livro em algum lugar.

Ela olhou para o meu saco de dormir, que naquele momento se encontrava virado num lado mais sujo, depois tornou a me fitar. E disse, suavemente:

— Se não se importa, poderia deixar o seu saco de roupa suja no chão? Temos estofamento novo por toda parte...

— Pois não, madame.

Certamente, pensei, deve haver nestas prateleiras um livro escrito sobre o que devo saber agora. O único conselho imediato que me ocorria, sem um livro, era que os tolos e seu dinheiro se separam num instante.

Quando se tratava de descer com um biplano Fleet numa pequena plantação de feno não havia muitos que me superassem. Mas, naquele momento, na Biblioteca Gladys Hutchinson, eu pensava que, em termos de amealhar uma fortuna, eu não perdia para ninguém e podia me tornar um desastre sem precedentes. Sempre fora horrível com cifras e duvidava que o dinheiro pudesse alterar isso.

Ótimo, pensei. Conheço a mim mesmo e sei com certeza... minhas fraquezas não mudarão. Nem minhas forças. Uma coisa de menor importância como uma conta bancária não pode me afastar do aviador tranqüilo e despreocupado que sempre gostei de ser.

Depois de mais 10 minutos absorvido no catálogo, compelido a procurar em Sorte — Boa e até Sorte — Má, acabei desistindo. Era incrível! Não existia o livro que eu precisava!

Imerso em dúvidas, saí para o sol, sentindo os fótons, partículas beta e raios cósmicos baterem e ricochetearem à velocidade da luz, disparando silenciosamente pela manhã e através de mim.

Já estava quase de volta à parte da cidade em que ficava o café quando percebi que esquecera o saco de dormir. Deixando escapar um suspiro, virei-me e percorri todo o caminho de volta à biblioteca, sentindo cada vez mais calor ao sol. Entrei para pegar o saco de dormir, murmurando para a bibliotecária:

— Desculpe...

— Eu estava esperando que se lembrasse.

Ela falou com tanto alívio, por não ter que guardar a roupa suja em Achados e Perdidos, que compreendi que dizia a verdade. E repeti:

— Desculpe.

Com todos os livros que temos, ainda há tantos para serem escritos! Como as ameixas no alto das árvores. Não é muito divertido subir por uma escada balançando, esgueirar-se pelos galhos para colhê-las. Mas como são deliciosas depois que o trabalho está concluído.

E a televisão também é tão deliciosa? Ou a promoção do livro agravaria minha massafobia? Como escapar se não tenho um biplano esperando para alçar vôo sobre as árvores e me levar para longe?

Encaminhei-me para o aeroporto, o único lugar em qualquer cidade estranha onde um piloto de avião se sente à vontade. Descobri-o pela observação do padrão de pouso, as trilhas invisíveis dos pequenos aviões ao subirem e baixarem para o solo. Eu me encontrava praticamente sob a curva para o acesso final. Assim, o aeroporto não ficava longe e poderia alcançá-lo a pé.

Dinheiro é uma coisa, mas multidões e ser reconhecido, quando se quer ficar quieto e isolado, são outras muito diferentes. Isso não é celebridade, não é fama? Um pouco pode ser divertido, mas o que acontece quando não se consegue desligar? Depois de aparecer em programas de televisão, em todo lugar que eu vá poderei encontrar alguém para me dizer:

— Eu o conheço! Não me diga... você é o cara que escreveu aquele livro!

As pessoas passavam de carro ou a pé sem olhar, na claridade intensa de quase meio-dia. Era por pouco que eu me encontrava neste lado do invisível. Não me conheciam além do fato de eu ser alguém a caminhar para o aeroporto, carregando um saco de dormir impecavelmente amarrado, alguém com a liberdade para fazer isso sem atrair qualquer atenção.

Quando alguém decide conquistar a fama renuncia a tais privilégios. Mas um escritor não precisa fazer isso. Os escritores podem ter seus livros lidos por muitas pessoas, podem ter seus nomes conhecidos, mas ainda assim não serem reconhecidos por toda parte. O que já não acontece com os atores. Nem com os apresentadores de televisão. Mas os escritores podem.

Eu me arrependeria se algum dia me tornasse uma Personalidade?

Soube a resposta prontamente: Sim. Talvez em alguma outra vida eu tentara ser famoso. Não é emocionante, não é atraente, advertia essa vida; apareça na televisão e se arrependerá.

Lá estava o farol. O refletor verde e branco que gira à noite para indicar o aeroporto. Voando no acesso final havia um Aeronca Champion, um aparelho de treinamento de dois lugares, datando de 1946. Gostei do aeroporto sem tê-lo visto ainda, só pelo padrão de aproximação do Champ.

E como o fato de me tornar ligeiramente famoso afetaria a busca por meu amor? A primeira resposta aflorou tão depressa que nem deu para perceber o movimento: vai liquidá-la. Nunca saberá se ela ama a você ou a seu dinheiro, Richard. Preste atenção. Se quer mesmo encontrá-la, não se torne jamais uma celebridade de qualquer tipo.

Tudo isso em menos tempo que uma respiração e ainda menos lembrado.

A segunda resposta fazia tanto sentido que foi a única que ouvi. Minha adorável alma-irmã não estava perambulando de cidade em cidade à procura de um homem no meio de um pasto, oferecendo passeios aéreos. Minhas chances de encontrá-la não melhorarão quando ela souber que eu existo? Esta é uma oportunidade especial, que se apresenta por coincidência no momento em que preciso conhecê-la!

E certamente a coincidência levará minha alma-irmã a assistir o programa de televisão certo, na hora certa, providenciará o nosso encontro. E depois o reconhecimento público se desvanecerá. Basta se esconder por uma semana em Red Oak, Iowa. Ou Estrella Sailport, no deserto ao sul de Phoenix. Recuperarei então a minha privacidade e a terei descoberto ainda por cima! Será tão ruim assim?

Abri a porta do escritório do aeroporto.

— Oi — disse ela. — Em que posso servi-lo?

Ela estava verificando faturas no balcão e tinha um sorriso deslumbrante. Entre o sorriso e a pergunta, ela suspendeu meu cumprimento; eu não sabia o que dizer.

Como poderia explicar que estava por dentro, que o aeroporto, o refletor, o hangar, o Aeronca e até mesmo o costume aeronáutico de um “Oi” amistoso depois do pouso são partes da minha vida, há muito tempo, embora estivessem se desligando agora, mudando em decorrência do que eu fizera, mas não tinha certeza se queria a mudança, porque conhecia tais coisas e constituíam meu único lar na Terra?

O que ela poderia fazer? Lembrar-me que lar é qualquer coisa que conhecemos e amamos, que o lar nos acompanha onde quer que desejemos estar? Dizer-me que conhece a mulher que estou procurando? Ou que um cara num uniforme branco e dourado pousou há cerca de uma hora e deixou para mim o nome e endereço de uma mulher? Sugerir planos sábios para a administração de um milhão e 400 mil dólares? O que ela podia fazer por mim?

— Não sei direito o que pode fazer por mim — respondi. — Acho que estou um pouco perdido. Há aviões antigos no hangar?

— O Porterfield de Jill Handley está lá fora e é bastante velho. Assim como o Tiger Moth de Chet Davidson. Morris Jackson tem um Waco, mas o guarda trancado num hangar... — Ela riu. — Os Champs estão ficando muito velhos. Está procurando por um Aeronca Champ?

— É um dos melhores aviões na história do mundo — comentei. Os olhos dela se arregalaram.

— Eu estava apenas brincando. Acho que a Srta. Reed nunca venderia os Champs.

Eu devia ter dado a impressão de ser um comprador. As pessoas podem sentir quando um estranho possui um milhão de dólares?

Ela continuou a cuidar das faturas e notei a sua aliança de casada, de ouro trançado.

— Tem problema se eu der uma olhada no hangar por um minuto?

— Claro que não. — Ela sorriu. — Chet é o mecânico e deve estar por lá, se ainda não atravessou a rua para almoçar.

— Obrigado.

Atravessei o corredor e abri a porta para o hangar. Era mesmo o lar. Um Cessna 172, com o vermelho e creme de fábrica, ali estava para a inspeção anual, a tampa do motor removida, o óleo no meio de uma mudança. Um Beech Bonanza, prateado com uma listra azul no lado, empoleirava-se delicadamente sobre macacos amarelos para o teste de retração do trem de aterrissagem. Pequenos aviões sortidos... eu conhecia a todos. Tinham histórias para contar, eu também poderia oferecer outras. Um hangar tranqüilo possui a mesma tensão suave que uma clareira no meio da floresta... um estranho sente olhos observando, ação suspensa, a vida prendendo a respiração.

Havia ali um enorme anfíbio Grumman Widgeon, com dois motores radiais de 300 cavalos, o novo pára-brisas inteiriço, espelhos nas pontas dos flutuadores, a fim de que o piloto possa certificar-se de que as rodas se acham levantadas antes de pousar na água. Quando se pousava na baía com as rodas abaixadas, a pancada na água contribuía para que muitos pilotos anfíbios se apressassem em comprar os pequenos espelhos.

Parei ao lado do Widge e olhei para a carlinga, as mãos cruzadas respeitosamente nas costas. Ninguém na aviação gosta que estranhos toquem em seus aviões sem permissão... não tanto porque os aviões possam ser danificados, mas porque se trata de uma familiaridade injustificada, como se um estranho curioso pudesse passar e tocar em sua esposa, só para saber qual é a sensação.

Junto à porta do hangar estava o Tiger Moth, as asas altas pairando acima dos outros aviões, como o lenço de um amigo a acenar sobre as cabeças da multidão. E a asa estava pintada com as mesmas cores do avião de Shimoda, branco e dourado! Quanto mais perto eu chegava, serpenteando por um labirinto de asas, caudas e equipamentos mecânicos, mais ficava aturdido com a cor do aparelho.

Quanta história já vivera em De Havilland Moths! Homens e mulheres que haviam sido heróis para mim tinham voado da Inglaterra para todo o mundo em Tiger Moths, Gipsy Moths e Fox Moths. Amy Lawrence, David Gamett, Francis Chichester, Constantine Shak Lin, o próprio Nevil Shute... esses nomes e as aventuras que viveram me arrastaram para junto do Moth. Que lindo biplano! Todo branco, asnas douradas de um palmo de largura, vv apontando para a frente como pontas de flechas virando para listras douradas, até a extremidade das asas e do estabilizador horizontal.

Lá estavam os controles de ignição no lado de fora do avião. Se houvesse uma restauração fiel... Ei, ali, no chão da carlinga, uma monstruosa bússola militar britânica! Tive de fazer o maior esforço para manter as mãos nas costas, de tão bonito que era o aparelho. Agora, os pedais do leme deviam ser ajustados...

— Gosta do avião, não é mesmo?

Quase gritei, de tanto que ele me surpreendeu. O homem estava parado ali há meio minuto, limpando o óleo das mãos e me observando a inspecionar seu Moth.

— Se gosto? — murmurei. — É lindo!

— Obrigado. Já está pronto há um ano. Reconstruí tudo, das rodas para cima.

Olhei atentamente para o material... havia um pouco da textura aparecendo através da tinta.

— Parece Ceconite — comentei. — Um bom trabalho.

Isso seria a apresentação que precisávamos. Ninguém aprende em um dia a distinguir a diferença entre algodão de primeira e dácron Ceconite nos velhos aviões.

— E onde foi que conseguiu a bússola? Ele sorriu, feliz por eu ter notado.

— Acreditaria se eu lhe dissesse que encontrei numa loja de coisas velhas em Dothan, Alabama? Uma genuína bússola da RAF, de 1942. Sete dólares e meio. Você me conta como chegou lá, mas eu direi como saiu!

Contornamos o Moth, eu escutando enquanto ele falava. Compreendi que me apegava ao meu passado, à vida conhecida e portanto simples da aviação. Eu teria sido impulsivo demais ao vender o Fleet e romper os laços com os meus ontens, a fim de partir em busca de um amor desconhecido? Ali, no hangar, era como se meu mundo tivesse se tornado um museu ou uma fotografia antiga, uma balsa à deriva, flutuando suavemente para longe, lentamente, passando para a história...

Sacudi a cabeça, franzi o rosto, interrompi o mecânico:

— O Moth está à venda, Chet?

Ele não me levou muito a sério.

— Todo avião está à venda. Como se diz, é uma questão de preço. Sou mais um construtor do que um aviador, mas haveria de querer um bocado de dinheiro para vender o Moth.

Abaixei-me e olhei por baixo do avião. Não havia uma única mancha de óleo na tampa do motor.

Reconstruído um ano antes por um mecânico aeronáutico, pensei, no hangar desde então. O Moth era de fato uma descoberta especial. Eu não tencionara deixar de voar por um minuto sequer. E no Moth poderia voar através de todo o país. Poderia voar para as entrevistas de televisão e, pelo caminho, encontrar a minha alma-irmã!

Pus o saco de dormir no chão, para servir como almofada. Estalou quando me sentei.

— Quanto dinheiro é bastante se for à vista?

Chet Davidson saiu para almoçar com uma hora e meia de atraso. Levei os diários e manuais do Moth para o escritório.

— Com licença, madame. Tem um telefone aqui, não é mesmo?

— Claro. Ligação local?

— Não.

— O telefone público fica logo no outro lado da porta, senhor.

— Obrigado. Você tem mesmo um sorriso meigo.

— Obrigada, senhor!

Um bom costume as alianças de casamento. Liguei para Eleonor, em Nova York, comunicando que compareceria aos programas de televisão.

 

 

 

seis

 

Há uma serenidade repassada de saber que provém de dormir sob as asas de um avião no campo: as estrelas, a chuva e o vento tingem os sonhos de realidade. Acho que os hotéis não são instrutivos nem serenos.

Há uma nutrição devidamente balanceada, misturando-se pão de fabricação doméstica e água de regatos, nos ermos civilizados da América rural. Devorar amendoins em táxis, correndo para estúdios de televisão, não é tão balanceado.

Há um hurra orgulhoso quando os passageiros desembarcam ilesos de um velho avião, o medo das alturas convertido em vitória. A entrevista na televisão, espremida entre comerciais pagos e o tique-taque de um ponteiro de segundos, carece da mesma aura de triunfo partilhado.

Mas ela vale hotéis e amendoins, entrevistas de olho-no-tempo, a minha esquiva alma-irmã. Eu haveria de conhecê-la se continuasse em movimento, atento, procurando pelos estúdios em muitas cidades.

Não me ocorreu duvidar de sua existência, porque encontrava mulheres quase como ela ao meu redor. De tanto perambular, sabia que a América fora colonizada por mulheres extraordinariamente atraentes, pois suas filhas se elevam a milhões atualmente. Um cigano de passagem, eu as conhecia apenas como fascinantes freguesas, adoráveis de se contemplar pelo espaço de um passeio aéreo.

Minhas palavras com elas eram de caráter prático: O avião é mais seguro do que parece. Se prender os cabelos com uma fita, antes de decolarmos, será mais fácil escová-los depois que pousarmos. Isso mesmo, venta muito... afinal, são 10 minutos numa carlinga aberta, a 130 quilômetros horários. Obrigado. São três dólares, por favor. O prazer foi meu. Também gostei do passeio.

Seria por causa das entrevistas na televisão, o sucesso do livro, minha nova conta bancária ou simplesmente porque não estava mais voando incessantemente? O fato é que, de súbito, eu estava me encontrando com incontáveis mulheres atraentes, como nunca antes me acontecera. Concentrado na busca, encarava a todas através de um prisma de esperança: era aquela, até provar que eu me enganava.

Charlene, uma modelo de televisão, podia ser minha alma-irmã, se não fosse tão bonita. Defeitos invisíveis em sua imagem no espelho lembravam-na que a vida de modelo é cruel, que só lhe restavam poucos anos antes da aposentadoria, que precisava se preparar para adotar outra profissão. Podíamos conversar sobre qualquer outro assunto, mas não por muito tempo. Ela sempre voltava ao mesmo tema. Contratos, viagens, dinheiro, agentes. Era a sua maneira de dizer que estava assustada, não podia imaginar uma saída para a mortífera gaiola prateada.

Jaynie não tinha medo. Jaynie adorava festas, adorava beber. Encantadora como o sol nascente, ficava nublada e suspirava quando descobria que não sabia onde estava a ação.

Jacqueline não bebia nem era fascinada por festas. Esperta e inteligente por natureza, não podia aceitar a inteligência como algo real. E dizia:

— Larguei os estudos na escola secundária, sem ter obtido um diploma.

Sem um diploma, uma pessoa não pode ser instruída, não é mesmo? E sem diplomas, uma pessoa tem de aceitar o que aparecer, agarrando-se à segurança de servir coquetéis, por mais que isso lhe insulte a inteligência. É bom dinheiro, dizia ela. Afinal, não tenho instrução. Lembre-se de que abandonei os estudos.

Lianne não se importava absolutamente com diplomas ou com empregos. Queria casar e a melhor maneira de consegui-lo era ser vista em minha companhia, causando ciúme no ex-marido e levando-o a desejá-la de volta. É do ciúme que surge a felicidade.

Tamara adorava dinheiro e era tão deslumbrante, à sua maneira, que valia o preço. Um rosto de modelo de artista, uma mente que calculava mesmo quando ria. Muito lida, muito viajada, falando várias línguas. O ex-marido era um corretor de investimentos e Tamara queria agora iniciar o seu próprio escritório de corretagem. Cem mil dólares seriam suficientes para começar. Apenas cem mil dólares, Richard. Não pode me ajudar?

Se ao menos, eu pensava... se ao menos eu pudesse encontrar uma mulher com o rosto de Charlene, mas com o corpo de Lianne, o talento de Jacqueline, o charme de Jaynie e o equilíbrio de Tamara... então estaria olhando para a alma-irmã, não é mesmo?

O problema era que o rosto de Charlene tinha os medos de Charlene, o corpo de Lianne enfrentava as dificuldades de Lianne. Cada novo encontro era intrigante, mas depois de um dia as cores se tornavam opacas, a intriga se desvanecia na floresta de idéias que não partilhávamos. Éramos fatias de torta um para o outro, incompletos.

Não existe uma mulher, concluí finalmente, que não possa provar num dia que não é aquela que estou procurando? A maioria das que eu encontrava tinha passados difíceis, a maioria estava sobrecarregada de problemas e precisando de ajuda, a maioria necessitava de mais dinheiro do que dispunha. Dávamos vazão a nossas evasivas e defeitos; mal nos encontrávamos, ainda sem nos testarmos, e já estávamos nos chamando de amigos. Era um caleidoscópio descolorido, cada fragmento tão instável e cinzento quanto parecia.

Quando a televisão se cansou de mim, eu já comprara um biplano de asas curtas, motor grande, para fazer companhia ao Moth. Praticava incessantemente e mais tarde comecei a fazer acrobacias aéreas a dinheiro.

Milhares de pessoas comparecem aos shows aéreos no verão, pensei; se não pude encontrá-la na televisão, talvez o consiga nesses espetáculos.

Conheci Katherine em minha terceira apresentação, em Lake Wales, na Flórida. Ela emergiu da multidão em torno do biplano como se fosse uma velha amiga. Sorriu, um sorriso sutil e íntimo, frio e próximo, de um jeito que antes parecia impossível.

Os olhos se mantinham firmes e calmos, mesmo ao clarão do meio-dia. Cabelos escuros compridos, olhos verde-escuros. Quanto mais escuros os nossos olhos, como se diz, menos somos afetados pelo brilho do sol.

— Parece divertido — disse ela, acenando com a cabeça para o biplano, indiferente ao barulho e à multidão.

— É melhor do que ser sufocado até a morte pelo tédio — comentei. — Com o avião certo, pode-se escapar a uma porção de tédio.

— Qual é a sensação de ficar rodopiando de cabeça para baixo? Você também oferece passeios aéreos ou apenas se exibe?

— Principalmente exibições. Não muitos passeios. Só às vezes. E depois que se tem certeza de que não vai cair, é divertido rodopiar de cabeça para baixo.

— Não gostaria de me convidar para um passeio, se eu lhe pedisse da maneira certa?

— Para você eu poderia, depois que o espetáculo terminar. — Eu nunca tinha visto olhos tão verdes. — Qual é a maneira certa de pedir?

Ela sorriu inocentemente.

— Por favor?

Ela não se manteve muito distante durante o resto da tarde, desaparecendo de vez em quando na multidão, mas logo tornando a surgir, com o sorriso e um aceno secreto. Quando o sol estava quase se pondo, ela era a última que ainda se encontrava próxima do avião. Ajudei-a a subir na carlinga.

— Temos dois cintos de segurança — expliquei. — Um já é suficiente para segurá-la no avião, não importa que acrobacia façamos. Mas mesmo assim preferimos ter dois.

Eu disse a ela como usar o pára-quedas, se tivéssemos de saltar. Ajeitei as correias em seus ombros, inclinei-me para prender o segundo cinto de segurança. Você tem lindos seios, quase falei, à guisa de cumprimento. Em vez disso, porém:

— É preciso ter certeza de que as correias se encontram tão esticadas quanto possível. Assim que o avião virar para baixo, vai parecer muito mais frouxo do que agora.

Ela sorriu-me, como se eu tivesse escolhido o cumprimento com todo cuidado.

Do barulho do motor ao sol em fogo na beira do mundo, de pairar ao contrário por cima das nuvens a flutuar sem peso nos loops, ela se mostrou uma aviadora natural, adorou o passeio.

Pousando ao crepúsculo, ela saiu da carlinga antes mesmo que eu parasse o motor. E antes que eu percebesse o queestava acontecendo, enlaçou-me pelo pescoço e beijou-me.

— ADOREI!

— Puxa... não me incomodo absolutamente com isso.

— Você é um grande piloto. Amarrei o avião a cabos na relva.

— A lisonja pode certamente levá-la a qualquer lugar que quiser ir. Ela insistiu em me levar para jantar, a fim de pagar pelo passeio.

Conversamos durante uma hora. Ela me contou que era divorciada, trabalhava como anfitriã num restaurante não muito longe da casa que eu comprara no lago. Entre o salário e a pensão, tinha dinheiro bastante para viver bem. Estava pensando agora em voltar à escola, a fim de estudar física.

— Física? Conte-me o que aconteceu para levá-la à física... Uma mulher fascinante, positiva, direta, motivada. Ela pegou a bolsa.

— Importa-se que eu fume?

Se a pergunta me surpreendeu, a resposta me deixou completamente aturdido.

— Claro que não.

Ela acendeu o cigarro e começou a falar de física, sem perceber o caos que provocara em minha mente. MAS O QUE É ISSO. RICHARD? QUE HISTORIA É ESSA DE RESPONDER QUE É CLARO QUE NÃO SE IMPORTA? A mulher está acendendo um CIGARRO! Sabe o que isso representa em termos dos valores e do futuro dela em sua vida? Diz Estrada Fechada, diz...

Calem-se, ordenei a meus princípios. Ela é inteligente e diferente, esperta como um raio com seus olhos verdes, divertida de se escutar, afetuosa, excitante... e estou cansado de pensar sozinho, de dormir com lindas estranhas. Mais tarde, eu lhe falarei sobre o fumo. Mas não esta noite.

Meus princípios desapareceram tão depressa que me senti assustado.

— ...é claro que não serei rica, mas creio que poderei dar um jeito — dizia ela. — Terei o meu próprio avião, mesmo que seja velho e usado! Acha que me arrependerei?

A fumaça se enroscava, como qualquer fumaça de tabaco, diretamente para cima de mim. Arriei telas mentais para me defender, envolvi-me em vidro no pensamento, consegui manter o controle.

— Vai comprar o avião primeiro e depois aprender a voar? — indaguei, observando os seus olhos.

— Isso mesmo. Só precisarei então pagar pelo instrutor e não pelo aluguel do avião. A longo prazo, não sai mais barato? Não lhe parece sensato?

Discutimos o assunto e, depois de algum tempo, sugeri que ela podia voar comigo de vez em quando, num dos meus aviões. O novo Lake anfíbio pensei, tão suave que parecia construído para se deslocar por passados e futuros, tanto quanto pelo ar e água; era um avião que ela gostaria.

Duas horas depois, eu estava estendido na cama, imaginando como ela pareceria quando a visse pela próxima vez.

Não precisei esperar muito tempo. Ela pareceria deliciosa, um corpo bronzeado e cheio de curvas, coberto por um momento por uma toalha felpuda.

E depois a toalha caiu, ela se meteu sob as cobertas, inclinou-se para me beijar. Aquele beijo não dizia eu-sei-quem-você-é-e-o-amo, mas sim vamos ser amantes esta noite e depois ver o que acontece.

Que prazer era apenas desfrutar e não desejar por alguém que não podia encontrar!

 

 

 

sete

 

— Eu preferia que você não fumasse na casa, Kathy.

Ela levantou os olhos, surpresa, o isqueiro suspenso a um centímetro do cigarro.

— Não se importou ontem ã noite.

Pus nossos pratos na máquina, passei a esponja pela pia. Já estava quente lá fora, apenas umas poucas nuvens brancas na manhã, dispersas, a quase dois mil metros de altitude, visibilidade de 25 quilômetros, com um nevoeiro claro. E não havia vento.

Ela era tão atraente quanto me parecera no dia anterior; eu queria conhecê-la melhor. Os cigarros afastariam aquela mulher a quem eu podia tocar e com quem podia conversar por mais de um minuto?

— Deixe-me dizer o que penso sobre o cigarro. — Fiz uma longa pausa e depois falei, arrematando: — ... é a mesma coisa que dizer a todo mundo ao seu redor: “Você é tão insignificante para mim que não me importo se não é capaz de respirar. Morra se quiser, mas eu acenderei meu cigarro!” Fumar não é um hábito cortês. Não é uma coisa que se deva fazer com as pessoas de quem se gosta.

Ao invés de se mostrar abespinhada e sair furiosa pela porta, ela assentiu e respondeu:

— Sei que é um hábito terrível. E tenho pensado em largar. Ela fechou a bolsa sobre os cigarros e o isqueiro.

Com o tempo, a física foi esquecida... ser modelo era o que ela queria tentar. E depois o canto. Tinha uma voz bonita, obsedante como uma sereia num mar nevoento. Mas, de alguma forma, quando passava do desejo para o trabalho por uma carreira, ela perdia a dedicação e iniciava outro sonho. E, finalmente, tudo recaiu em mim... por que não a ajudava a abrir uma pequena butique?

Kathy era jovial, inteligente; adorava o anfíbio, aprendeu a voar imediatamente e era uma estranha irremediável. Tornou-se um corpo estranho em meu organismo. Por mais adorável que fosse, o organismo entrou em ação para rejeitá-la, o mais gentilmente possível.

Nunca seríamos almas-irmãs. Éramos dois barcos que se encontravam no meio do oceano, cada um mudando de curso para velejar por algum tempo na mesma direção sobre um mar vazio. Barcos diferentes a caminho de portos diferentes... e sabíamos disso.

Eu tinha a curiosa sensação de que estava deixando o tempo passar, esperando que alguma coisa acontecesse, antes que minha vida pudesse retomar seu estranho curso encantado, seu propósito e direção.

Eu era uma alma-irmã separada do meu amor, pensava, esperando que ela se saísse o melhor possível sem mim, até o momento de nos encontrarmos de alguma forma. Enquanto isso, minha querida gêmea ainda não descoberta, você espera a mesma coisa de mim? Até que ponto podemos aceitar estranhos afetuosos?

Uma amizade com Kathy é agradável por um momento, mas não deve dificultar e interferir com meu amor, no momento em que aparecer.

Era sensual, sempre nova, minha busca pela mulher perfeita. Por que essa sensação opressiva de inverno a chegar prematuramente? Não importava quão depressa o rio do tempo corresse pelos rochedos e profundezas, minha balsa se encontrava detida em corredeiras nevadas. Não é tão terrível ser detido por algum tempo, eu esperava por cima do rugido, não creio que seja mortal. Mas escolhi este planeta e este tempo para aprender alguma lição transcendental que não conheço, para encontrar uma mulher diferente de todas as outras.

Apesar dessa esperança, uma voz interior advertia que o inverno podia me transformar em gelo, a menos que eu me desvencilhasse e a encontrasse.

 

 

 

oito

 

Eu me sentia como se estivesse num avião a três mil metros de altitude e de repente fosse empurrado pela porta. Num instante o avião ainda tinha o seu tamanho normal, a poucos centímetros dos meus dedos... estava caindo, mas podia me agarrar e voltar a bordo, se assim precisasse desesperadamente.

Mas no instante seguinte já era tarde demais, a coisa mais próxima para agarrar se encontrava 15 metros acima, afastando-se a 30 metros por segundo. Eu caía sozinho, em linha reta. E cada vez mais depressa.

Oh, não!, eu pensava. Tenho certeza de que é isso mesmo o que estou querendo fazer?

Quando se vive para o momento, o mergulho livre pelo céu pode ser muito divertido. É quando a pessoa começa a se preocupar com o momento seguinte que o prazer se torna empanado.

Eu caía pelo vórtice inexorável, observando o solo, como era enorme, duro e plano, sentindo-me terrivelmente pequeno. Não havia carlinga, não havia nada em que me segurar.

Não há motivo para se preocupar, Richard, eu pensava. Aqui no seu peito está a corda de abertura, pode puxá-la a qualquer momento que quiser e surge o pára-quedas. Há outra corda de reserva, se o pára-quedas principal falhar. Pode puxar agora, se assim vai sentir-se melhor, mas perderá então toda a diversão da queda livre.

Olhei para o altímetro no meu pulso: 2.500 metros, 2.300...

Lá embaixo, no solo, havia um alvo branco pintado, no qual eu tencionava cair, dentro de alguns segundos que não eram tantos assim. Mas pense em todo o espaço vazio entre agora e esse momento! Oh, não...

Parte de nós é sempre a observadora; não importa o que aconteça, invariavelmente observa. Observa a nós. Não se importa se somos felizes ou infelizes, se estamos doentes ou bem de saúde, se vivemos ou morremos. Sua única função é permanecer sentada em nosso ombro e julgar se somos seres humanos meritórios.

Agora, o observador está empoleirado em meu equipamento de reserva, com seu próprio macacão e pára-quedas, tomando anotações sobre o meu comportamento.

Muito mais nervoso do que deveria ficar a esta altura. Olhos muito arregalados; pulsação cardíaca muito rápida. Misturada com a exultação há uma parcela exagerada de medo. Classificação até agora para o Salto 29: C-menos.

Meu observador se torna mais rigoroso.

Altitude de 2.100 metros... 2.000.

Empurrando as mãos para a frente, na ventania, eu cairia com os pés para baixo; as mãos para trás e eu mergulharia de cabeça para o solo. É assim que eu pensava que poderia ser voar sem um avião, exceto pelo desejo impossível de poder subir tão depressa quanto estou caindo. Até mesmo um terço tão depressa já serviria.

Devaneio durante a queda livre. A mente vagueia a esmo. Classificação revisada: D-mais.

Altitude de 1.200 metros. Ainda alto, mas minha mão se estendeu para o cordão de abertura, prendeu-o no polegar direito, puxou firmemente. O cabo se soltou. Ouvi um barulho nas minhas costas, o que seria a abertura do pára-quedas principal.

Puxou cedo demais. Muito ansioso em se colocar sob a proteção do pára-quedas. D.

O chocalhar continuou. A esta altura, eu já deveria ter sentido o choque da abertura do pára-quedas principal. Em vez disso, sentia que continuava a cair livremente. Sem qualquer motivo, meu corpo começou a girar.

Alguma coisa..., pensei, alguma coisa está errada?

Olhei para trás. O pára-quedas se sacudia, preso numa correia. Onde a copa deveria se encontrar aberta, havia apenas uma enorme massa de nylon emaranhado, manchas vermelhas, azuis e amarelas tremulando ruidosamente no vórtice.

Dezesseis segundos — quinze — para dar um jeito antes de bater no solo. Pareceu-me, girando como estava, que cairia pouco antes do laranjal. Talvez nas árvores, mais provavelmente próximo.

Livre-se, eu aprendera na prática. Deveria me livrar agora do pára-quedas principal e abrir o de reserva, na mochila no peito. Isso é justo, uma falha do pára-quedas no meu 29? salto? Não creio que seja justo!

Mente descontrolada. Sem disciplina. D-menos.

Foi apenas por sorte minha que, nesse momento, o tempo tornou-se mais lento. Um segundo levou um minuto para passar.

Mas por que é tão difícil levantar as mãos para soltar as correias do pára-quedas inútil?

Minhas mãos pesavam toneladas e movimentei-as em câmara lenta para os fechos nos ombros, um enorme esforço.

Será que o esforço vale a pena? Não me disseram que seria tão difícil alcançar os fechos! Em fúria selvagem contra os meus instrutores, agarrei as pontas dos cordões e puxei.

Devagar, devagar. Muito vagaroso.

Parei de girar, virei de costas para abrir o pára-quedas de reserva. E, para minha surpresa atordoada, descobri que o nylon emaranhado ainda me acompanhava! Eu era um pistolão invertido, preso a uma chama brilhante a cair, um foguete disparado do céu.

— Prestem muita atenção, estudantes — dissera o instrutor. — Isto provavelmente nunca lhes acontecerá, mas mesmo assim não se esqueçam: Jamais abram o pára-quedas de reserva para o principal enredado, porque o reserva também falhará. Vai se emaranhar no outro e não reduzirá o ritmo de sua queda. SEMPRE SE LIVREM DO OUTRO!

Mas eu não o fizera e lá estava o principal enredado, ainda preso nos arneses!

Meu observador fungou em desdém, por cima de sua prancheta.

Perde a racionalidade sob pressão: F é para Fracassado.

Podia sentir o solo subindo por trás de mim. A relva me atingiria a nuca a cerca de 200 quilômetros horários. Certamente um meio rápido de morrer. Por que não estava vendo a minha vida passar de relance diante dos olhos, como dizem os livros? Por que não estava deixando o corpo antes de bater no solo? PUXE O RESERVA!

Age com muito atraso. Formula questões irrelevantes. Um ser humano basicamente medíocre.

Puxei bruscamente o cordão de abertura de emergência. No mesmo instante, o pára-quedas de reserva explodiu em meu rosto, projetando-se para o alto como uma bola de seda, disparando para o céu. Flutuou ao lado do amontoado amorfo do principal. Eu estava preso agora a dois pistolões, virados para baixo.

E de repente um estampido e a coisa se abriu por completo. Parei no ar com um solavanco, 120 metros acima do laranjal, uma marionete quebrada a pender, resgatada em seus cordões no último instante.

O tempo readquiriu seu ritmo normal, as árvores passaram velozmente, bati no solo com as botas, rolei pela relva, não morto, mas respirando com dificuldade.

Eu já me projetara de cabeça para baixo a fim de morrer esmagado, pensei, depois emergia a dois segundos do final por um pára-quedas se abrindo misericordiosamente e me salvando?

Projetar-me para a morte era um futuro alternativo que eu dificilmente poderia deixar de escolher. Mas, enquanto se afastava de mim, senti vontade de acenar em despedida. Acenar tristemente. Naquele futuro, já um passado alternativo, eu encontrava subitamente as respostas para a minha longa curiosidade sobre a morte.

Sobreviveu ao salto. Recorreu à sorte e à ação brilhante dos anjos da guarda. Anjos da guarda: A. Richard: F.

Reuni o pára-quedas de reserva, ajeitei-o com todo cuidado numa pilha de nylon, ao lado do principal falhado. Depois, sentei no chão, junto às árvores, vivi de novo os últimos três minutos, escrevi no caderninho de anotações o que acontecera, o que vira e pensara, o que dissera o mesquinho observador, a triste despedida da morte, tudo o que podia me lembrar. Minha mão não tremia ao escrever. Também não sentia qualquer choque do salto ou então o reprimia com uma vingança.

Em casa naquele dia, de volta à minha casa, não havia ninguém para partilhar a aventura, ninguém para formular as perguntas que poderiam revelar os valores que eu ignorara. Kathy saíra com alguém, em sua noite de folga. Os filhos de Brigitte tinham uma peça escolar. Jill estava cansada do trabalho.

O melhor que eu podia fazer era uma ligação interurbana para Rachel, na Carolina do Sul. Um prazer falar comigo, eu era sempre bem-vindo, disse ela, podia aparecer sempre que desejasse. Não mencionei o salto, o pára-quedas falhado e o outro futuro, minha morte no laranjal.

Preparei um Kartoffelkuchen para celebrar naquela noite, direto da receita de minha avó: batatas, leitelho, ovos, noz-moscada e baunilha, gelado com glacê e chocolate amargo derretido. Comi um terço ainda quente e sozinho.

Pensei no salto e concluí finalmente que não teria mesmo lhes contado, não relataria a ninguém o que acontecera. Não pareceria alguém a me exibir, gabando-se de ter escapado à morte por um triz? E o que poderiam me dizer?

— Puxa, deve ter sido horrível!

— Você deve ter mais cuidado!

O observador tornou a se empoleirar em meu ombro e escreveu. Observei-o pelo canto dos olhos.

Ele está mudando. A cada dia se torna mais remoto, protegido, distante. Projeta testes agora para a alma-irmã que ainda não encontrou, erguendo muros, labirintos e fortalezas na montanha, desafia-a a descobri-lo no centro oculto de tudo isso. Eis um A em autodefesa da única pessoa no mundo que pode amar e que pode algum dia amá-lo. Ele se acha agora empenhado numa corrida... ela o encontrará antes que se mate?

Matar-me? Suicídio? Nem mesmo os nossos observadores sabem quem somos. Não foi minha culpa. Um fracasso anômalo, não tornará a acontecer!

Não me dei ao trabalho de lembrar que fora eu quem preparara o pára-quedas.

Uma semana depois, aterrissei para reabastecimento, ao final de um dia em que tudo saíra errado com o meu enorme e veloz P-51 Mustang. Rádios falhando, freio esquerdo fraco, gerador pifando, temperaturas refrigerantes alcançando inexplicavelmente o vermelho e se recuperando também sem explicação. Decididamente não era o melhor dia, decididamente era o pior avião em que eu já voara.

Ama-se a maioria dos aviões, mas há alguns com os quais é impossível se dar bem.

Pouso e abastecimento, o freio apertado e lá vamos nós outra vez, tão depressa quanto possível. Um vôo longo, observando os instrumentos a indicarem que as coisas não estão lá muito certas por trás da enorme hélice. Não há uma só peça do avião que custe menos de 100 dólares e as que se partem como gravetos custam milhares.

As rodas do enorme caça flutuaram por meio metro acima da pista, em Midland, Texas, depois tocaram no solo. O pneu esquerdo estourou no mesmo instante e o avião deslizou para a esquerda, na direção da beira da pista, saindo numa fração de segundo do pavimento para a terra.

Não havia tempo. Ainda me deslocando bastante depressa para alçar vôo, acelerei e forcei o avião a se elevar pelo ar novamente.

Uma péssima opção. Não estava me deslocando bastante depressa para alçar vôo.

O avião ergueu o nariz por cerca de um segundo, mas foi a última coisa que faria. As moitas passavam velozmente por baixo, as rodas tornaram a encostar no solo, o trem de pouso esquerdo se partiu. A hélice monstruosa bateu no solo, quando o avião se inclinou, o motor roncou forte, uivando, explodindo internamente.

Era quase familiar, o tempo voltando atrás em câmara lenta. E olhe só quem está aqui! Meu observador, com a prancheta e o lápis! Como vai, companheiro, há dias que não o vejo!

Conversa com o observador enquanto o avião se arrebenta nas moitas. Pode ser o pior piloto que já existiu.

Os desastres com os Mustangs, eu sabia perfeitamente, não eram os acidentes comuns do tipo uma-coisa-sem-importância-que- pode-acontecer-com-qualquer-um. Os aparelhos são grandes, velozes e letais, destroem tudo que surge pela frente e acabam explodindo em enormes bolas de fogo, em lindas chamas amarelas, laranja e fumaça negra, disparando parafusos e peças por um quilômetro em torno do centro de impacto. O piloto jamais chega a sentir qualquer coisa.

Avançando em minha direção, a 130 quilômetros horários, o impacto se aproximava... um gerador diesel surgindo no meio do deserto, uma construção pequena, em quadrados brancos e laranja, que julgava estar a salvo de ser atropelada por enormes e velozes aviões acidentados. Pois estava enganada.

Mais uns poucos solavancos pelo caminho e o outro trem de pouso também desapareceu, metade da asa direita se foi, o tabuleiro de xadrez se avolumou no pára-brisas.

Por que será que ainda não deixei o meu corpo? Todos os livros dizem...

Fui projetado para a frente no cinto de segurança, quando colidimos e o mundo escureceu.

Não pude ver nada por alguns segundos. E não sentia dor.

É muito tranqüilo, aqui no paraíso, pensei, empertigando-me, sacudindo a cabeça.

Completamente indolor. Um silvo calmo, suave... O que pode estar sibilando no paraíso, Richard?

Abri os olhos para descobrir que o paraíso parece um prédio demolido de gerador diesel pertencente ao governo dos Estados Unidos, sob os destroços de um enorme avião.

Lento como um sapo a compreender o que está acontecendo.

Espere um pouco! Será possível... que isto não seja o paraíso? Não estou morto! Encontro-me sentado dentro do que restou da carlinga e o avião ainda não explodiu! Mas explodirá dentro de dois segundos e eu me acho preso aqui dentro... não serei explodido para a morte, não serei queimado para a morte!

Dez segundos depois, eu corria a 200 metros dos destroços fumegantes do que fora outrora um belo avião, embora não de confiança, barato ou agradável. Tropecei e caí de cara na terra, como acontece com os pilotos nos filmes, um momento antes da tela inteira explodir. O rosto virado para baixo, cobri a nuca, esperando pela explosão.

Capaz de se movimentar com uma velocidade extraordinária quando finalmente percebe o que está acontecendo.

Trinta segundos. Nada aconteceu. Mais 30 segundos.

Levantei a cabeça e olhei.

Depois fiquei de pé, espanando a terra e as folhas das minhas roupas. Sem qualquer motivo aparente, uma melodia antiga de rock começou a ressoar em minha mente. Não dei qualquer atenção. Tentando parecer indiferente?

Filho da puta. Nunca ouvi falar de um 51 que não explodisse como um barril de pólvora. A única exceção é o desastre ali espalhado, do qual ultimamente eu era o piloto. Haverá agora uma porção de relatórios a preencher... horas se passarão antes que eu possa pegar um avião de carreira para oeste. A melodia continuava a ressoar em meu cérebro.

Não sofre muito de choque. B-mais pelo controle depois que tudo está acabado.

Lisonjeado, assoviando a melodia, encaminhei-me para o que restava do Mustang, encontrei o meu saco com as roupas e aparelho de barba, levei para um lado a salvo.

Carlinga forte... pelo menos isso não se podia deixar de reconhecer.

Mas é claro! O avião não explodira porque estávamos sem gasolina, aterrissando.

A esta altura, o observador desapareceu, sacudindo a cabeça, enquanto os carros de bombeiros apareciam. Não pareciam particularmente interessados no que eu tinha a dizer sobre a falta de combustível. A fim de prevenir qualquer possibilidade, cobriram os destroços com espuma.

Eu estava preocupado com os rádios, alguns dos quais se achavam intactos na carlinga, cada um custando mais do que ouro.

— Podem fazer o favor de não jogar espuma dentro da carlinga? Os rádios...

Tarde demais. Como uma precaução contra o fogo, eles encheram a carlinga de espuma.

E daí? pensei, desolado. E daí? E daí? E daí?

Percorri a pé o quilômetro e meio até o terminal do aeroporto, comprei uma passagem no próximo avião, preenchi um relatório de acidente com o mínimo possível, informei o que podiam fazer com as peças do obstinado aparelho.

Naquele momento, escrevendo meu endereço numa mesa no hangar, lembrei a letra da melodia que ressoava em minha cabeça desde o momento seguinte ao acidente.

Xi-bum, xi-bum... e uma porção de ta-ta-tás.

Por que eu estaria cantarolando essa canção? Depois de 20 anos, por que agora?

A canção não estava preocupada com uma explicação e continuou a ressoar: A vida pode ser um sonho! Xi-bum! Se eu puder levar você ao paraíso! Xi-bum...

A canção! Era o fantasma do Mustang cantando, inclusive com efeitos sonoros!

A vida pode ser um sonho, querida...

É claro que a vida pode ser um sonho, seu feiticeiro de lata! E você quase me levou para o paraíso! Xi-bum, seu casco despedaçado!

Não passa nada por nossa mente que não tenha um significado? Aquele avião nunca poderia me levar a sério.

O jato taxiou perto das moitas, a caminho da decolagem, Fiquei observando pela janela.

O corpo coberto de espuma do Mustang já estava quase todo no caminhão; um guindaste levantava seções partidas de asa.

Quer brincar, avião? Gostaria de ter alguma coisa quebrando em cada vôo? Gostaria de ter um conflito de vontades comigo?

Pois você perdeu! Que encontre alguém que esquecerá o seu passado e torne a montá-lo algum dia, daqui a 100 anos. Talvez então você se lembre desta hora e seja simpático com quem o recuperar! Eu juro, avião... não guardo ressentimentos.

Primeiro a falha do pára-quedas, agora um desastre de avião. Fiquei pensando nessas coisas, enquanto voava para oeste. Depois de algum tempo, concluí que fora divinamente orientado, protegido sem um arranhão sequer, através de momentos que se tornaram um pouco mais aventurosos do que planejara.

Qualquer outra pessoa teria visto justamente o oposto. O desastre não era a minha proteção em ação, mas sim a minha proteção se esgotando.

 

 

nove

 

Eu estava me afogando em dinheiro. Pessoas no mundo inteiro liam o livro, compravam exemplares de outros livros que eu escrevera. E o dinheiro da venda de cada livro chegava às minhas mãos através do editor.

Posso lidar com aviões, pensei, mas dinheiro me deixa nervoso. Dinheiro pode sofrer um desastre?

Palmeiras balançando além da janela do escritório, o sol esquentando os papéis em sua mesa.

— Posso cuidar disso para você, Richard. Não há qualquer problema. Se quiser, resolverei tudo.

Ele não tinha muito mais de metro e meio de altura, os cabelos e a barba haviam passado de vermelho para branco ao longo dos anos, transformando-o de elfo talentoso em Papai Noel onisciente.

Era um amigo dos tempos em que eu escrevia para revistas, um editor que se convertera em assessor de investimentos. Eu simpatizara com ele desde a primeira matéria que me entregara, admirara o seu sereno senso profissional desde o primeiro dia em que nos conhecêramos. Confiava inteiramente nele e nada do que ele dissera durante toda a tarde abalara essa confiança.

— Não tenho palavras para lhe dizer como estou contente, Stan... Deve ser feito direito, mas não tenho a menor idéia do que fazer com dinheiro. E não conheço e não gosto dessas coisas burocráticas e de impostos. A partir de agora, o problema é seu, meu gerente financeiro, em termos totais. Eu caio fora disso.

— Nem mesmo quer ser informado, Richard?

Tornei a olhar para os gráficos de seu desempenho de investimentos. Todas as linhas subiam retas.

— Não... isto é, quero saber se perguntar ou se você estiver prestes a tomar uma decisão de grande importância sobre os meus investimentos. Mas a maior parte do que você fará está tão longe dos meus pensamentos...

— Eu gostaria que não dissesse isso, Richard. Não há nada de magia, mas apenas uma análise técnica dos mercados. A maioria das pessoas fracassa nos mercados de produtos porque não dispõe de capital para cobrir uma margem de risco quando o mercado vem contra. Você... isto é, nós... não temos esse problema. Começamos a investir cautelosamente, com um grande capital de reserva. À medida que ganhamos dinheiro com as nossas estratégias, vamos nos tornando mais especulativos. Quando entrarmos numa operação segura, poderemos aplicar muito dinheiro. E nem sempre iremos até o fim, uma coisa importante, mas que muitas pessoas esquecem. Já se pode ganhar bastante dinheiro saindo antes do máximo.

Ele sorriu, notando que eu já estava perdido. E acrescentou, tocando num gráfico:

— Veja este gráfico, que mostra os preços da madeira compensada na Bolsa de Mercadorias de Chicago. Dá para perceber aqui a mudança, o aviso de que o fundo se encontra prestes a cair, ao final de abril. A esta altura, venderíamos a madeira compensada, toda a nossa madeira compensada. E depois, quando os preços caíssem até o fundo, compraríamos uma porção. Vender na alta e comprar na baixa é a mesma coisa que comprar na baixa e vender na alta. Está entendendo?

Mas como poderíamos vender...

— Como podemos vender antes de comprar? Não precisamos comprar antes de vender?

— Não. — Ele se mantinha calmo como um reitor universitário, explicando: — Tratam-se de mercadorias futuras. Prometemos vender depois, a esse preço, sabendo que antes do futuro chegar, quando tivermos de efetuar a venda, teremos comprado a madeira compensada... ou açúcar, cobre, milho... a um preço muito inferior.

— Ah...

— E depois reinvestimos. E diversificamos. Investimentos no exterior. Uma corporação no exterior pode ser uma boa idéia. Mas a Bolsa de Mercadorias de Chicago será o lugar para começar, talvez também um lugar na Bolsa de Mercadorias da Costa Oeste. Veremos o que é melhor. Mas compre um lugar na bolsa de Chicago e os honorários de corretagem se tornarão insignificantes. Posteriormente, a diversificação. O controle de uma pequena companhia em expansão pode ser um bom negócio. Farei uma pesquisa. Mas com o dinheiro de que dispomos para trabalhar e uma estratégia cautelosa para o mercado, será muito difícil alguma coisa sair errada.

Saí de lá convencido. Mas que alívio! Não havia a menor possibilidade de meu futuro financeiro ficar emaranhado e enredado, falhando como um pára-quedas.

— Nunca fui capaz de lidar com dinheiro como Stan fazia. Também nunca fui bastante paciente ou bastante sábio, nunca tive gráficos que disparam para a lua.

Mas sou bastante sábio para conhecer minhas fraquezas, para descobrir um velho amigo de confiança e lhe entregar o controle do meu dinheiro.

 

 

dez

 

Estamos deitados ao sol, no convés, Donna e eu, no veleiro em calmaria, à deriva na correnteza, 50 quilômetros ao norte de Key West.

— Nenhuma mulher em minha vida me possui — eu disse a ela, calma e pacientemente. — E também não possuo nenhuma delas. Isso é extremamente importante para mim. Faço a promessa: nunca serei possessivo em relação a você, nunca serei ciumento.

— Eis aí uma agradável variação.

Os cabelos de Donna eram curtos e pretos, os olhos castanhos estavam fechados contra o sol. O corpo era bronzeado, da cor da teca envernizada, por anos de verão, desde um divórcio no norte. E ela acrescentou:

— A maioria dos homens não pode compreender. Estou vivendo da maneira como quero. Estarei com eles se assim quiser, irei embora se preferir não continuar. Isso não o assusta?

Ela deslocou as tiras do biquíni, a fim de manter o bronzeado uniforme.

— Se me assusta? Ao contrário, me dá a maior satisfação! Não há correntes, cordas ou nós. Não há discussões nem tédios. Um presente do coração: estou aqui não porque deveria ou porque me encontro presa, mas porque prefiro estar em sua companhia do que em qualquer outro lugar do mundo.

A água sussurrava suavemente. Em vez de sombras, luzes intensas faiscavam sobre a vela.

— Vai me descobrir o amigo mais seguro que possui — murmurei.

— Mais seguro?

— Porque prezo a minha própria liberdade e também prezo a sua. Sou muito sensível. Se algum dia eu a tocar, se fizer qualquer coisa que não lhe agrade, basta me sussurrar o mais gentil “Não”. Desprezo os intrometidos, os que querem se impor na privacidade alheia. Basta me insinuar que estou me comportando assim e irei embora antes mesmo que termine a insinuação.

Ela virou para o lado, a cabeça no braço, abrindo os olhos.

— Isso não parece um pedido de casamento, Richard.

— E não é.

— Obrigada.

— Costuma receber muitos?

— Uns poucos já são demais. Um casamento foi suficiente. No meu caso, um casamento a mais do que deveria ter. Algumas pessoas ficam melhor quando casadas. Não é o que acontece comigo.

Falei um pouco sobre o casamento que eu encerrara, anos felizes que se tornaram difíceis e desagradáveis. Aprendera exatamente as mesmas lições que ela.

Observei a superfície espelhada do Golfo em busca de ondulações. O mar estava liso como gelo morno.

— É uma pena que não possamos discordar em alguma coisa, Donna. Continuamos à deriva por outra hora, antes que o vento enfunasse as velas e lançasse o barco para a frente. Quando tornamos a pisar em terra, éramos bons conhecidos, abraçando-nos em despedida, prometendo que voltaríamos a nos encontrar algum dia.

Assim como fora com Donna, também acontecia com qualquer outra mulher em minha vida. Respeito pela soberania, privacidade, independência total. Eram alianças amenas contra a solidão, ligações amorosas frias e racionais, em que o amor não entrava.

Algumas das minhas amigas nunca haviam casado, mas a maioria era divorciada. Umas poucas eram sobreviventes de ligações infelizes, espancadas por homens violentos, apavoradas, tangidas por tensões enormes a depressões intermináveis. Para elas, o amor era um trágica incompreensão; o amor era uma palavra vazia que restava depois que o significado fora destruído pelo cônjuge-como- proprietário, amante-se-convertendo-em-carcereiro.

Se eu procurasse para trás em meu pensamento, poderia encontrar um enigma: o amor entre homem e mulher é uma palavra que não mais funciona. Mas há sentido nisso, Richard?

Eu não teria uma resposta.

Os meses foram passando, enquanto eu perdia o interesse no amor, o que era e o que não era. Perdi a motivação para procurar por minha alma-irmã oculta. Gradativamente, seu lugar foi sendo ocupado por uma idéia diferente, uma idéia tão racional e rematada quanto aquelas em que meus negócios agora se transformaram.

Se a companheira perfeita, pensei, é a que atende a todas as nossas necessidades, em todos os momentos, se uma dessas necessidades é a própria variedade, então não há nenhuma mulher em qualquer lugar que possa ser a companheira perfeita!

A única alma-irmã autêntica só pode ser encontrada em muitas pessoas diferentes. Minha mulher perfeita é em parte o brilho e a inteligência desta amiga, em parte a beleza deslumbrante da outra, em parte a aventura despreocupada de uma terceira. Se nenhuma dessas mulheres se acha disponível para o dia, então minha alma-irmã cintila em outros corpos, em outros corpos; ser perfeita não inclui ser indisponível.

— Richard, toda a idéia é bizarra! Nunca dará certo!

Se o eu interior me gritasse isso, como aconteceu, seria prontamente amordaçado. E eu diria:

— Explique por que a idéia está errada, mostre onde não dará certo. E faça isso sem usar as palavras amor, casamento, compromisso. Faça isso amarrado e amordaçado, enquanto eu grito mais alto do que você pode sobre a maneira como tenciona controlar minha vida!

O que se pode saber? O projeto da mulher-perfeita-em-muitas- mulheres ganhou a competição facilmente.

Um suprimento infinito de dinheiro. Tantos aviões quantos eu quisesse. A mulher perfeita de minha exclusiva criação. Eis a felicidade!

 

 

 

onze

 

Não há como se enganar. Os eventos que atraímos para nós mesmos, não importa quão desagradáveis, são necessários, a fim de aprendermos o que precisamos saber; quaisquer passos que venhamos a dar são necessários para alcançar os lugares para os quais resolvemos seguir.

— Deitei-me no chão, afundando num espesso tapete cor de cravo. E fiquei pensando a respeito. Os últimos três anos não foram equívocos. Construí ano a ano cuidadosamente, um milhão de decisões em cada, aviões e entrevistas para revistas, barcos, viagens, filmes, reuniões de negócios, conferências, programas de televisão, manuscritos, contas bancárias. Exibições aéreas durante o dia no jato pequeno e novo, conversas e contatos noturnos com muitas mulheres, todas solitárias, mas nenhuma ela.

Eu estava convencido de que ela não existia, o que não evitava que continuasse a me obcecar.

Ela teria tanta certeza de que eu não existia? Meu fantasma perturbava as suas convicções? Havia uma mulher em algum lugar naquele momento deitada num tapete macio, numa casa construída por cima de um hangar, com cinco aviões lá dentro, mais três no gramado e um hidroavião amarrado à beira d'água?

Eu duvidava. Mas podia haver uma mulher só no meio de reportagens e programas de televisão, solitária enquanto cercada por amantes e dinheiro, amigos-que-se-tornavam-empregados contratados, agentes, advogados, gerentes e contadores? Era possível.

Seu tapete podia ser de uma cor diferente, mas o resto... ela podia estar no outro lado do espelho daqui, encontrando o seu homem perfeito em 50 homens, mas ainda assim caminhando sozinha.

Ri de mim mesmo. Como reluta em morrer o mito de um só amor!

Um motor de avião começou a ressoar no gramado lá embaixo. Era Slim, ligando o Twin Cessna. Um supercompressor no lado direito estava vazando. Supercompressores de retroajuste são problemas de retroajuste, pensei, presos no que é um bom motor afora isso.

O Rapide e o planador a motor estão acumulando poeira lá embaixo. Não demora muito tempo e o Rapide precisará de uma reforma total, o que será um trabalho monstruoso, num biplano de cabine daquele tamanho. É melhor vendê-lo. Não o piloto o suficiente. Não piloto qualquer coisa o suficiente. São estranhos para mim, como tudo o mais em minha vida. O que estou tentando aprender? Que depois de algum tempo e em excesso as máquinas começam a nos possuir?

Não, pensei, a lição é a seguinte: receber uma porção de dinheiro é como receber uma espada de vidro, com a lâmina virada. É melhor manusear com todo cuidado, senhor, enquanto especula para que serve.

O outro motor no aparelho também entrou em funcionamento. A verificação em solo devia estar correta e ele resolveu alçar vôo para uma inspeção no ar. Uma explosão de força ventosa, enquanto ele põe a máquina em movimento. Depois, o ronco suave dos motores se desvanecendo, enquanto ele taxiava para a pista.

O que mais eu aprendera? Que não sobrevivera à publicidade tão inalterado quanto pensara. Nunca teria acreditado, antes, que alguém pudesse permanecer curioso sobre o que penso e digo, como pareço, onde vivo, o que faço com meu tempo e dinheiro. Ou que isso me afetaria da maneira como fez, levando-me de volta às cavernas.

Qualquer um que cai diante da câmara ou na página impressa, pensei, não tropeçou por acaso. Consciente ou não, optaram por ser exemplos para o resto da humanidade observar, ofereceram-se como modelos. Este tem maravilhas para uma vida; outro é um destroço ambulante, solto pelo convés. Esta enfrenta a sua adversidade ou seu talento com uma serena sabedoria, aquela esperneia, a outra pula para a morte, e tem também a que ri.

Todos os dias, o mundo submete celebridades a testes e assistimos fascinados, incapazes de desviar os olhos. Incapazes porque os testes que nossos exemplos enfrentam são os mesmos que todos devemos enfrentar. Eles amam, casam, aprendem, desistem e recomeçam, se arruínam; eles nos arrebatam e são arrebatados, à plena vista da câmara e da tinta.

O único teste que eles enfrentam e ao qual os outros estão imunes é o da própria celebridade. E mesmo assim observamos. Algum dia seremos nós sob o refletor e os exemplos são sempre bem acolhidos.

O que aconteceu, pensei, com o piloto de avião dos campos do Meio-Oeste? Terá se transformado tão depressa de um simples aviador num playboy sofisticado?

Levantei-me e atravessei a casa vazia até a cozinha, encontrei uma tigela de flocos de milho que já começavam a ficar velhos, voltei à poltrona Eames junto à janela panorâmica, olhei para o lago.

Eu, um playboy! Ridículo. Não mudara, por dentro, praticamente não mudara.

Todos os playboys dizem isso, Richard?

Um Piper Club da escola de hidroaviões ao lado praticava pouso na água espelhada... a descida longa e lenta, com o motor ligado, o contato com o reluzente Lago Theresa, depois uma curva brusca, taxiar para decolar outra vez.

O refletor indicava como me esconder, onde erguer os muros. Todos possuem placas de ferro e fileiras de espigões em algum lugar no seu interior, indicando que os outros só podem acompanhá-lo até ali.

Para o extrovertido, o reconhecimento é diversão. Não se importam com as câmaras; as câmaras vêm com o território e há algumas pessoas maravilhosas por trás daquelas lentes. Posso ser simpático enquanto eles forem e por dois minutos a mais.

Era essa a altura do meu muro naquele dia na Flórida. A maioria das pessoas que me conhecia de uma conferência aqui, uma capa de revista ali ou uma reportagem mais adiante não podia saber como eu me sentia grato por sua cortesia, por seu respeito à privacidade.

Eu me surpreendia com a correspondência, sentia-me satisfeito pela família de leitores para a qual fazia sentido as idéias estranhas que eu amava. Havia muitas pessoas por lá, homens e mulheres inquisitivos e sábios, de cada raça, idade e nação, com todos os tipos de experiência.

A família era muito maior do que eu imaginara!

Junto com as cartas maravilhosas, apareciam de vez em quando umas poucas estranhas: escreva a minha idéia; obtenha-me publicação; dê-me dinheiro ou queimará no inferno.

Pela família, eu me sentia feliz e aconchegado, enviava cartões-postais em resposta; contra os outros, tinha mais uma tonelada de ferro protegendo o meu muro, com adagas soldadas no alto, o frangalho de um capacho de boas-vindas retirado às pressas.

Eu era uma pessoa mais isolada do que jamais imaginara. Não me conhecia antes ou estava mudando? Mais e mais, preferia ficar sozinho em casa, naquele dia, naquele mês, naqueles anos. Metido na minha casa enorme, com meus nove aviões e decisões antigas que nunca mais tornaria a tomar.

Levantei os olhos do chão para as fotografias na parede. Havia imagens de aviões que importavam para mim. Não havia nenhum ser humano, nem uma única pessoa. O que acontecera comigo? Eu costumava gostar de quem era. Ainda gostava de mim?

Desci a escada para o hangar, fui para o biplano de exibição, subi para a carlinga. Conheci Kathy neste avião, pensei.

Arneses nos ombros, cintos de segurança, bomba de óleo ligada, ignição ligada. Tanta promessa irrealizada e ela me pressiona agora sobre casamento. Como se eu nunca tivesse lhe falado dos males que o casamento acarreta nem lhe demonstrado que sou apenas parte do homem perfeito para ela.

— Larguem a hélice! — gritei por hábito para o lugar vazio, comprimindo o arranque.

Meio minuto depois da decolagem eu estava rolando invertido, subindo 600 metros por minuto, o vento explodindo sobre o meu capacete e óculos de proteção. Adoro. Primeiro um rolamento superlento. O céu está limpo? Tudo pronto? Agora!

A terra verde e plana da Flórida; lagos e pântanos se erguendo imponentemente, imensamente, à direita, tomando-se enormes e largos sobre a minha cabeça, virando para a esquerda.

Nivelar. E depois VAM! VAM! VAM! VAM!, a terra girando em bruscos arrancos, por 16 vezes. Suba para um estol, comprima o leme de direção da esquerda, mergulhe direto, o vento uivando entre as asas atarracadas, empurre o manche para a frente para se recuperar de cabeça para baixo a 260 quilômetros horários. Empurrei a cabeça para trás e levantei os olhos para a terra. O manche subitamente puxado para trás pressão no leme de direção da direita, o biplano empinou, soltou a asa direita e girou duas vezes, um duplo giro céuverde terraazul — manche para a frente, leme de direção da esquerda e o avião parou o movimento, as asas niveladas, mas invertidas.

A gravidade para me comprimir contra o assento, afunilando minha visão para um buraco mínimo de claridade cercado por cinzento, um mergulho a 30 metros acima da minha área de prática e depois a rotina outra vez, em baixa altitude, no nível de show aéreo.

Desanuvia a mente, barba-de-velho subindo vertiginosamente na direção do pára-brisa, um pântano cheio de ciprestes e aligátores rolando 300 graus por segundo em torno do capacete.

O coração permanece solitário.

 

 

doze

 

Nenhuma palavra fora trocada entre nós por minutos.

Leslie Parrish sentava-se em silêncio no seu lado do tabuleiro de xadrez de nogueira e pinho, enquanto eu estava sentado no meu. Durante nove movimentos, num jogo emocionante, a sala permaneceu em silêncio, salvo pelo arrastar suave de um cavalo ou rainha, saindo ou entrando numa casa, pelo zunido ocasional quando as linhas de força se estendiam pelo tabuleiro.

Os enxadristas exibem sua personalidade no movimento das peças. Leslie Parrish não blefava nem enganava. Ela jogava de olhos abertos, francamente, um xadrez de forças em confronto direto.

Observei-a através dos meus dedos entrelaçados e sorri, muito embora ela tivesse acabado de tomar meu bispo e ameaçasse tomar um cavalo no movimento seguinte, uma peça da maior importância que eu não podia perder.

Eu vira aquele rosto pela primeira vez anos antes, entráramos em contato pelo mais importante dos meios. Por coincidência.

— Vai subir? — gritou ela, correndo pelo saguão para o elevador.

— Vai, sim. — Mantive aberta a porta do elevador até que ela entrasse. — Qual é o seu andar?

— Terceiro, por favor.

Era também o meu. A porta ficou imóvel por um segundo e depois fechou suavemente.

Olhos azuis-cinzas se viraram para mim em agradecimento. Sustentei o olhar por menos de um quarto de segundo, a fim de lhe comunicar que o prazer fora meu em esperar, depois desviei os olhos polidamente. Maldita polidez, pensei. Que rosto adorável! Eu já a vira no cinema? Na televisão? Não me atrevi a perguntar.

Subimos em silêncio. Ela batia no meu ombro, cabelos dourados turbilhonando sob um gorro escuro. Não estava vestida como uma estrela de cinema: blusa desbotada sob uma japona excedente da Marinha, jeans, botas de couro. Que rosto lindo!

Ela está aqui em locação para o filme, pensei. Será uma técnica da equipe?

Seria um enorme prazer conhecê-la. Mas ela é tão distante... Não é interessante, Richard, como ela está infinitamente distante? Estão separados por menos de um metro, mas não há meio de transpor o abismo e dizer olá.

Se ao menos pudéssemos inventar um meio, pensei, se ao menos este fosse um mundo em que pessoas desconhecidas pudessem dizer você me atrai e gostaria de saber quem é. Com um código, “Não, obrigado”, se a atração não for mútua.

Mas esse mundo ainda não fora inventado. A viagem de meio minuto terminou sem qualquer palavra. A porta se abriu suavemente.

— Obrigada — murmurou ela.

Quase correndo, ela se afastou apressadamente pelo corredor rumo a seu quarto, abriu a porta, entrou e fechou-a. Fiquei sozinho no corredor.

Eu gostaria que você não precisasse deixar-me, pensei, entrando em meu quarto, a duas portas do dela. Gostaria que não precisasse fugir.

Deslocando o meu cavalo, pude alterar as pressões no tabuleiro, neutralizando o seu ataque. Ela possuía uma vantagem, mas ainda não vencera. Mas é claro!, pensei. C-5CD! Ameace CxP, CxT!

Desloquei a peça e voltei a observar seus olhos, encontrando prazer na beleza estranhamente imune a meu contra-ataque.

Um ano depois do encontro no elevador, processei o diretor daquele filme por causa das mudanças que fizera no roteiro sem a minha aprovação. O tribunal obrigou-o a retirar meu nome dos créditos e a reverter algumas das piores mudanças, mas tive de fazer um esforço para não quebrar todos os móveis em fúria quando discuti o assunto diretamente com ele. Era necessário encontrar um mediador com quem ambos pudéssemos falar.

A pessoa escolhida foi a atriz Leslie Parrish, a mulher que partilhara comigo a viagem de elevador do saguão ao terceiro andar.

A raiva se desvaneceu, ao falar com ela. Leslie Parrish se mostrou calma e objetiva — confiei nela imediatamente.

Hollywood queria agora converter o último livro em filme. Jurei que veria a história queimada antes de permitir que fosse estragada na tela. Se o filme tinha de ser feito, não seria melhor que fosse produzido por minha própria companhia? Leslie era a única pessoa de Hollywood em quem eu confiava. Voei para Los Angeles a fim de conversar com ela mais uma vez.

Havia um tabuleiro de xadrez numa mesinha em seu escritório.

Os tabuleiros de xadrez em escritórios são quase sempre um capricho do decorador, fantasias com as rainhas parecendo bispos e os bispos parecendo peões, as peças espalhadas ao acaso, sempre nos lugares errados. Aquele jogo era um Staunton de madeira para torneio, o rei com nove centímetros de altura, num tabuleiro de 35 centímetros, o quadrado branco do canto virado para a direita do jogador, os cavalos virados para a frente.

— Tem tempo para uma partida rápida? — eu perguntara. Eu não era o melhor enxadrista do mundo, mas também não era o pior. Jogava xadrez desde os sete anos de idade e tinha uma certa confiança arrogante no tabuleiro. Ela olhara para o relógio e respondera:

— Tenho, sim.

O fato de ela ganhar a partida deixara-me frio. A maneira como ganhara, o padrão de seu pensamento no xadrez, encantara-me e tornara a me aquecer.

No encontro seguinte, jogamos uma melhor de três.

E no mês seguinte formamos uma empresa. Ela se pôs a trabalhar, a fim de encontrar um meio de produzir o filme com a menor probabilidade de desastre, e jogamos uma melhor de onze.

Depois disso, não houve mais necessidade de reuniões. Eu embarcava em meu avião mais novo, oito toneladas de um antigo jato de treinamento da Força Aérea, subia a 14 mil metros de altitude e voava da Flórida para Los Angeles, passando um dia a jogar xadrez com Leslie.

Nossas partidas tornaram-se menos oficiais, permitindo-se palavras, bolo e leite ã mesa.

— Richard, sua besta — disse ela, franzindo o rosto sobre as peças.

— Tem razão — declarei, presunçoso. — Sou uma besta esperta...

— Mas... xeque com o cavalo, xeque com o bispo e lá se vai sua rainha! Não é um lance sensacional?

O sangue se esvaiu do meu rosto. O xeque eu esperava, lá se vai sua rainha era uma surpresa.

— É, sim — respondi, anos de treinamento de emergência me forçando a parecer despreocupado. — Por Deus... Hum... Há um lance para me cercar, muito bonito. Mas eu escaparei como uma sombra. Isso mesmo, a besta escapará como uma sombra...

A besta conseguia às vezes se desvencilhar, mas em outras era levada ao curral e recebia o xeque-mate, somente para renascer meio bolinho depois, tentando mais uma vez encurralá-la.

Que estranha alquimia entre nós! Eu presumia que ela dispunha de uma variedade de homens para seus romances, como eu tinha mulheres para os meus. Presumir era suficiente; nenhum dos dois bisbilhotava, cada um se mostrava infinitamente respeitoso da privacidade do outro. E uma noite, no meio de uma partida de xadrez, ela disse:

— Vai passar um filme esta noite que preciso assistir. O diretor pode nos ser útil. Quer ir também?

— Adoraria — murmurei, distraidamente, concentrado na defesa contra o seu ataque lateral ao rei.

Eu nunca estivera no interior do cinema da Academia de Artes e Ciências Cinematográficas; sentia-me fascinado ao passar pelo prédio. Mas lá estava eu agora, assistindo a um filme novo, junto com um bando de pessoas famosas do cinema. Que coisa estranha, pensei. Minha vida simples de aviador se associa de repente ao círculo interior de Hollywood através de um livro e uma amiga que me derrota com mais freqüência do que eu gostaria no meu jogo predileto.

Depois do filme, quando seguíamos para o leste, pelo Santa Monica Boulevard, através do crepúsculo, fui invadido por súbita inspiração:

— Leslie, você gostaria...

O silêncio era tão palpitante que ela disse:

— Gostaria o quê?

— Leslie, você gostaria de tomar um sundae de chocolate?

Ela se encolheu toda.

— Um o quê?

Sundae... de... chocolate. E uma partida de xadrez?

— Mas que pensamento depravado! Estou falando do sundae, é claro. Ainda não percebeu que vivo de sementes, vegetais crus e iogurte, só raramente como um bolinho do xadrez?

— Notei, sim. E é justamente por isso que está precisando de um sundae de chocolate. Quanto tempo já passou? Seja sincera. Se foi na semana passada, tem de dizer na semana passada.

— Semana passada? No ano passado! Pareço alguém que tem tomado sundaes! Olhe bem para mim!

Foi o que fiz. Pela primeira vez. Recostei-me e pisquei os olhos aturdido, ao descobrir o que o macho mais obtuso perceberia imediatamente: que ali estava uma mulher extraordinariamente atraente, que o pensamento que construíra um rosto tão adorável também projetara um corpo equivalente.

Ela fora uma fada sem corpo nos meses em que eu a conhecera, uma mente que era um desafio dançante, um livro de referências de produção cinematográfica, música clássica, política, balé.

— E então? Diria que venho vivendo de sundaes!

Lindo! Isto é, não! Isto é, definitivamente NÃO um corpo de chocolate! Isso se pode dizer com certeza...

Eu estava corando. Que coisa estúpida, pensei, para um homem crescido... Richard, mude de assunto depressa!

— Um pequeno sundae não faria mal algum, seria a felicidade — acrescentei rapidamente. — Se puder fazer a volta ali, através do tráfego, podemos nos deliciar imediatamente com dois sundaes de chocolate... pequenos...

Ela me fitou, ofereceu um sorriso para assegurar que nossa amizade estava a salvo; sabia que eu notara seu corpo pela primeira vez e não se importava. Mas, pensei, seus amigos-homens se importariam, o que poderia acarretar problemas.

Sem discussão, sem uma só palavra para ela, apaguei do pensamento a idéia de seu corpo. Para o romance, eu tinha a minha mulher perfeita; para amiga e associada nos negócios, eu precisava manter Leslie Parrish exatamente como era.

 

 

 

treze

 

— Não é o fim do mundo — disse Stan, suavemente, antes mesmo de eu me instalar na cadeira no outro lado de sua mesa. — É o que podemos chamar de um pequeno contratempo. A Bolsa de Mercadorias da Costa Oeste ruiu ontem. Pediu a falência. Você perdeu algum dinheiro.

Meu gerente financeiro sempre atenuava a gravidade de tudo e foi por isso que cerrei os maxilares ao ouvir suas palavras.

— Quanto é esse algum que perdemos, Stan?

— Em torno de 600 mil dólares... talvez 590 mil...

— Irrecuperáveis?

— Talvez algum dia consiga recuperar uns poucos cents por dólar. Mas eu consideraria o dinheiro perdido.

Engoli em seco.

— Ainda bem que diversificamos. Como estão as coisas na Bolsa de Mercadorias de Chicago?

— Também teve alguns contratempos por lá. Mas temporários, tenho certeza. Você está sofrendo a mais longa sucessão de perdas que já levantei. Não pode continuar assim para sempre. Mas, por enquanto, a situação não é a melhor possível. Você está reduzido em cerca de 800 mil dólares.

Ele estava falando sobre mais dinheiro do que eu possuía! Como podia perder mais dinheiro do que tinha? Mas devia estar se referindo auma perda no papel. As pessoas não podem perder mais dinheiro do que possuem.

Se eu pudesse aprender alguma coisa sobre dinheiro, talvez devesse prestar mais atenção aos negócios. Mas teria de estudar por meses c lidar com dinheiro não é a mesma coisa que voar, mas sim algo insípido e sufocante; é difícil até mesmo entender os gráficos.

— Não é tão ruim quanto parece, Richard. Um prejuízo de um milhão de dólares reduzirá seu imposto a zero. Como perdeu mais do que isso, não terá de pagar nada de imposto de renda este ano. Mas se eu tivesse uma opção, preferia não ter perdido.

Não senti raiva, não senti desespero. Era como se tivesse tropeçado numa situação cômica, como se virando bastante depressa na cadeira pudesse descobrir câmaras de televisão e uma audiência de estúdio, ao invés da parede do escritório de Stan.

Escritor desconhecido ganha milhões, perde tudo da noite para o dia. Não é um clichê antigo? É essa realmente a minha vida? Eu especulava enquanto Stan explicava os desastres.

Pessoas com receita de um milhão de dólares sempre foram as outras. Mas eu sempre fui eu. Sou um piloto de avião, alguém que perambula de cidade em cidade, vendendo passeios aéreos nos campos de feno. Sou um escritor tão raramente quanto possível, quando forçado por uma idéia deslumbrante demais para que se deixe morrer sem escrevê-la... o que alguém como eu pode fazer com uma conta bancária de mais de cem dólares, que é tudo o que precisa em qualquer momento determinado?

— É melhor eu contar logo de uma vez, já que está aqui — continuou Stan, imperturbável. — O investimento que você fez por intermédio de Tamara, aquele empréstimo externo, de juros altos, avalizado pelo governo... está lembrado? Pois o cliente dela desapareceu com o dinheiro. Foram apenas 50 mil dólares, mas você deve saber.

Eu não podia acreditar.

— Mas ele é amigo de Tamara, Stan! Ela confiou nele! E o homem desapareceu?

— Não deixou o novo endereço, como costumam dizer. — Stan me observou atentamente. — Você confia em Tamara?

Oh, não! Por favor, não esse clichê! Mulher bonita arranca 50 mil de tolo rico?

— Stan, está querendo insinuar que Tamara teve alguma coisa a ver...

— É possível. Tenho a impressão de que é a letra dela no verso do cheque. Nome diferente, mas a mesma letra.

— Você não pode estar falando sério.

Ele abriu uma gaveta de arquivo, tirou um envelope e me entregou. Era um cheque cancelado. Estava endossado para Seakey Limited, por Wendy Smythe. Letras maiúsculas altas e imponentes, os ipsilones descaindo graciosamente. Se eu visse num envelope, teria jurado que era um bilhete de Tamara.

— Pode ser a letra de qualquer um — murmurei, devolvendo por cima da mesa.

Stan não fez qualquer comentário. Estava convencido de que ela ficara com o dinheiro. Mas Tamara era meu departamento; não haveria investigação, a menos que eu solicitasse. E eu nunca o faria, nunca diria qualquer palavra a respeito para ela. E nunca mais tornaria a confiar nela.

— Ainda lhe resta algum dinheiro, Richard. E é claro que há a receita nova, entrando a cada mês. Pode aplicar em moeda estrangeira. Tenho o pressentimento de que o dólar pode cair em relação ao marco alemão a qualquer momento. Assim, você pode recuperar seus prejuízos, da noite para o dia.

— Está além da minha compreensão, Stan. Faça o que achar melhor.

Por todas as luzes de advertência piscando e as campainhas de perigo ressoando, meu império podia ser uma usina nuclear com três minutos para a explosão total.

Levantei-me finalmente, peguei o blusão de vôo no braço da poltrona e disse.

— Algum dia lembraremos este momento como o nosso ponto mais baixo. Daqui por diante, as coisas só podem melhorar, não é mesmo?

Como se não tivesse ouvido, Stan declarou:

— Há mais uma coisa que estou querendo lhe dizer. Não é fácil. Sabe o que se diz: “O poder corrompe e o poder absoluto corrompe absolutamente.” Pois é verdade. E acho que isso pode se aplicar a mim também.

Não entendi o que ele estava querendo dizer e fiquei com medo de perguntar. Seu rosto se mantinha impassível. Stan... corrompido? Não era possível. Eu o acompanhara por anos, não podia duvidar de sua honestidade. “Isso pode se aplicar a mim também” só podia significar que uma conta de despesa, em alguma ocasião, fora cobrada com algum exagero, por equívoco. E corrigida, é claro. Mas o sentimento de culpa persistia mesmo assim e ele sentira-se na obrigação de me contar. E, obviamente, se estava me falando agora, não haveria mais tais equívocos.

— Não há problema, Stan. O que importa é para onde vamos a partir deste momento.

— Certo.

Afastei o incidente dos meus pensamentos. O dinheiro que restava seria manipulado por Stan e pelas pessoas que ele conhecia e confiava, as pessoas a que pagávamos bem por seus serviços. Pessoas assim deixariam na mão todas essas complicadas coisas de dinheiro? Claro que não, especialmente agora com tanta coisa saindo errada. Os contratempos acontecem com todo mundo, mas os administradores do meu dinheiro são pessoas de mente ágil, encontrarão muitas soluções e bem depressa.

 

 

 

quatorze

 

— Jato um-cinco-cinco-Xis está saindo do nível de vôo três-cinco-zero para dois-sete-zero, solicitamos um nível inferior — falei, comprimindo o botão do microfone.

Olhei peia máscara de oxigênio por 11 quilômetros para o deserto ao sul da Califórnia, à tarde, contemplando depois o céu azul por baixo com um rolamento longo e lento.

Tecnicamente, eu voava para oeste a fim de fazer uma conferência durante o dia inteiro numa universidade de Los Angeles. Sentia-me contente, porém, por chegar com uns poucos dias de antecedência.

— Roger, Cinco-Cinco-Xis — respondeu o controle de vôo de Los Angeles. — Está autorizado a dois-cinco-zero, altitude inferior em breve.

Descer a 650 quilômetros horários não era bastante depressa. Eu queria levar logo o aparelho para o solo e encontrar Leslie mais depressa do que qualquer avião podia voar.

— Cinco-Cinco-Xis, está autorizado para um seis mil.

Acusei o recebimento, baixei ainda mais o nariz do avião, ainda mais depressa. A agulha do altímetro deu um salto brusco para baixo.

— Jato Cinco-Cinco-Xis passa por nível de vôo um-oito-zero, cancelando Item Fox — falei ao microfone.

— Roger, Cinco-Xis, está cancelado em zero-cinco. Comunique-se em VFR e bom dia.

As linhas da máscara de oxigênio permaneciam marcadas em meu rosto quando bati na porta de sua casa, à beira de Beverly Hills. Uma orquestra sinfônica trovejava no sistema de som lá dentro; a pesada porta tremia. Toquei a campainha e a música silenciou. E lá estava ela, olhos de mar e sol, uma saudação exuberante. Não houve contato, nem mesmo um aperto de mão, mas nenhum dos dois julgou isso estranho.

— Tenho uma surpresa para você — disse ela, sorrindo para si mesma ao pensar a respeito.

— Leslie, detesto surpresas. Desculpe nunca ter-lhe falado antes, mas detesto total e completamente as surpresas, odeio os presentes. Qualquer coisa que esteja querendo, eu mesmo compro. Se não tenho, então não quero. Assim, por definição, quando me entrega um presente está me dando uma coisa que não quero. Não se incomoda se eu devolver, não é mesmo?

Ela se encaminhou para a cozinha, os cabelos faiscando luzes pelos ombros, pelas costas. Sua velha gata adiantou-se para interceptá-la, convencida de que estava na hora do jantar,

— Ainda não — disse-lhe Leslie. — Ainda não é a hora do jantar da fofinha.

Virando a cabeça para trás, Leslie acrescentou para mim, com um sorriso que indicava que eu não magoara seus sentimentos:

— Estou surpresa que não tenha comprado um para você. Certamente deveria ter um. Mas se não quiser, pode jogar fora. Aqui está.

O presente não estava embrulhado. Era uma tigela grande e simples, de uma loja ordinária de produtos vulgares e baratos, com o desenho de um porco por dentro.

— Leslie! Se eu tivesse visto isto, é claro que teria comprado! É sensacional! O que é esta linda... coisa?

— Eu tinha certeza de que você gostaria. É uma tigela-de-porco. E aqui está... uma colher-de-porco!

E lá estava uma colher em minha mão, uma colher de aço ordinária, com a figura de algum porco anônimo estampada no cabo.

— E se você olhar na geladeira...

Abri a porta e lá estava uma lata enorme de sorvete, assim como um recipiente rotulado CALDA PARA ESQUENTAR, as duas coisas com uma fita vermelha e um laço. Uma neblina fria se elevava gentilmente da lata congelada e depois baixava para o chão, silenciosamente, em câmara lenta.

— Leslie!

— Pois não, Porco?

— Você... eu... acha que podíamos...

Ela riu, tanto de si mesma pelo louco capricho do que fizera, como pelos sons que minha mente emitia, enquanto suas engrenagens derrapavam no gelo.

Não era o presente que confundia as minhas palavras e sim a imprevisibilidade de Leslie, que só comia sementes e saladas frugais, em encomendar coisas doces extravagantes e armazená-las em sua geladeira, só para me ver desnorteado.

Fiz o maior esforço para arrancar a coisa do refrigerador e levar para a pia. Tirei a tampa. A lata estava cheia até a beira. Sorvete de creme com pedaços de chocolate.

— Espero que tenha comprado também a sua própria colher — comentei severamente, enfiando a minha no sorvete. — Cometeu um ato inconcebível, mas agora está feito e não há nada que possamos fazer além de nos livrarmos da prova. Vamos, coma.

Ela pegou uma miniatura de colher numa gaveta da cozinha.

— Não vai querer a calda de chocolate? Não gosta mais de calda?

— Sou louco por isso. Mas, depois de hoje, nem você nem eu vamos querer ver outra vez as palavras “calda de chocolate” enquanto vivermos.

Ninguém faz nada ao contrário do que é, pensei, enquanto punha Colheres da calda numa panela para esquentar. Seria possível que ela fosse tipicamente imprevisível? Como eu fora tolo ao começar a pensar que a conhecia! Virei-me e descobri que ela me fitava, a colher na mão, sorrindo. E me perguntou:

— Você pode mesmo andar sobre a água? Como fez no livro com Donald Shimoda?

— Claro. E você também pode. Ainda não o fiz neste espaço-tempo. Nesta minha convicção atual de espaço-tempo. A coisa é complicada. Mas estou trabalhando para isso.

Remexi a calda, presa na colher numa massa de 250 gramas.

— Já esteve alguma vez fora do seu corpo?

Ela não se mostrou surpresa com a pergunta nem me pediu para explicar.

— Duas vezes. Uma no México, outra no Vale da Morte, no alto de uma colina, à noite, sob as estrelas. Recostei-me para contemplar e fui projetada para as estrelas...

Havia lágrimas repentinas em seus olhos. Falei suavemente:

— Quando estava nas estrelas, lembra-se como foi fácil, natural, simples, certo, como voltar para casa, estar livre de seu corpo?

— Lembro.

— Andar sobre a água é a mesma coisa. É um poder que nos pertence... um subproduto de um poder que é nosso. Fácil, natural. Temos de estudar muito c lembrar para não usar esse poder, caso contrário as limitações da vida na Terra se tornarão alteradas, não haverá mais qualquer confiança, seremos distraídos de nossas lições. O problema é que nos tornamos tão eficazes em nos dizer para não usar nossos poderes reais que, depois de algum tempo, pensamos que não podemos usá-los. Com Shimoda, lá fora, não se formulava questões. E quando ele não estava mais presente, parei de praticar. Acho que o gosto não dura muito.

— Como calda de chocolate.

Virei a cabeça bruscamente para fitá-la. Ela estava escarnecendo de mim?

O chocolate começava a borbulhar na panela.

— Não. Calda de chocolate vai muito além de recordar as realidades espirituais básicas. Calda de chocolate está AQUI! Calda de chocolate não ameaça a nossa confortável perspectiva do mundo. Calda de chocolate é AGORA! Está pronta para um pouco de calda de chocolate?

— Só um pouquinho de nada.

Quando a sobremesa acabou já estávamos atrasados e tivemos de entrar numa fila de dois quarteirões para comprar as entradas do cinema. O vento soprava do mar, esfriando a noite. Não querendo que ela sentisse um calafrio, passei o braço em torno de seus ombros.

— Obrigada — disse ela. — Não pensei que ficaríamos na rua tanto tempo. Está com frio?

— Não, não estou absolutamente com frio.

Conversamos sobre o filme que estávamos esperando para assistir. Ou melhor, ela falou durante a maior parte do tempo, enquanto eu escutava; o que observar, como notar como o dinheiro é desperdiçado num filme, onde é poupado. Ela detestava desperdiçar dinheiro. Ainda na fila, começamos a falar também de outras coisas.

— Como é ser uma atriz, Leslie? Eu nunca soube, mas sempre especulei.

— Ah, a grande estrela do cinema! — disse ela, rindo de si mesma. — Está mesmo interessado?

— Claro. É um mistério para mim... que tipo de vida se leva.

— Depende. Às vezes é maravilhoso, quando se tem um bom roteiro, boas pessoas que querem realmente fazer um filme meritório. Isso é raro. O resto é apenas trabalho. A maior parte não chega a ser grande coisa como contribuição à raça humana, infelizmente. — Ela me fitou com uma expressão inquisitiva. — Mas você não sabe como é? Nunca esteve num cenário?

— Somente em locações externas. Nunca num estúdio.

— Não gostaria de aparecer para ver, na próxima vez em que eu estiver filmando?

— Mas claro que sim! Obrigado!

Há muito o que saber dela, pensei. O que aprendeu com a celebridade... mudou-a, magoou-a, levou-a a erguer também os seus muros? Havia em Leslie uma certa percepção confiante e positiva da vida que era magnética, deliciosamente atraente. Ela se elevou ao cume das montanhas que eu só avistei a distância, viu luzes e conhece segredos que nunca encontrei.

— Mas não me respondeu, Leslie. Além de fazer filmes... como é a vida, qual a sensação de ser uma grande estrela do cinema?

Ela fitou-me, cautelosa por um momento, depois confiante.

— É emocionante, a princípio. Você pensa inicialmente que é diferente, que tem algo especial a oferecer. Isso até que pode ser verdade. Depois se lembra que é a mesma pessoa que sempre foi. A única coisa que muda é que de repente a sua fotografia aparece por toda parte, escrevem-se colunas sobre quem você é e o que disse, para onde vai, as pessoas param na rua para olhar. E você é uma celebridade. Mais acuradamente, é uma curiosidade. E diz a si mesma: Não mereço toda essa atenção! — Ela pensou por um momento, antes de acrescentar: — Não é você que importa para as pessoas quando a transformam numa celebridade. É algo mais... o que representa para elas.

Há uma ondulação emotiva quando uma conversa se torna valiosa para nós, a sensação de novas forças crescendo depressa. Preste toda atenção, Richard, ela está certa!

— Outras pessoas pensam que sabem o que é: charme, sexo, dinheiro, poder, amor. Pode ser o sonho de um agente de relações públicas que nada tem a ver com você, talvez seja algo que nem mesmo lhe agrade, mas é isso o que pensam que você é. As pessoas correm para você de todos os lados. Estão convencidas de que obterão essas coisas se tocarem em você. É assustador e por isso você ergue muros ao seu redor, largos muros de vidro, enquanto tenta pensar, enquanto tenta recuperar o fôlego. Sabe quem é por dentro, mas as pessoas do lado de fora vêem algo diferente. Pode optar entre assumir a imagem e renunciar a quem é ou continuar a ser você e sentir-se falsa quando representa a imagem, — Leslie fez uma pausa, antes de arrematar: — Ou pode-se largar tudo. Eu pensei: se ser estrela de cinema é tão maravilhoso, por que há tantas pessoas bêbadas e viciadas em tóxicos, tantos divórcios e suicídios, no mundo das celebridades? — Ela olhou para mim, indefesa, desprotegida, — Concluí que não valia a pena. E larguei quase tudo. Senti vontade de agarrá-la, abraçá-la impetuosamente, por ser tão franca comigo.

— Você é o Escritor Famoso, Richard. Também se sente assim... isso faz algum sentido para você?

— E muito sentido. Tem uma porção de coisas sobre isso que preciso conhecer. Fizeram a mesma coisa com você nos jornais... publicaram coisas que nunca disse?

Ela riu.

— Não apenas coisas que nunca disse, mas também que nunca pensei, nunca acreditei, nunca pensaria em fazer. Uma história publicada a meu respeito, com citações, aparentemente textuais, mas completamente inventada, Ficção. Nunca vi o repórter.,, nem mesmo recebi um telefonema... e subitamente me descubro no jornal! A gente chega a rezar para que os leitores não acreditem no que encontram em alguns desses jornais.

— Sou novo nisso, mas tenho uma teoria.

— Qual é a teoria?

Falei das celebridades como sendo um exemplo que as demais pessoas observam, enquanto o mundo as submete a testes. Não parecia tão lúcido como o que ela dissera.

Leslie inclinou a cabeça para mim e sorriu. Quando o sol se punha, seus olhos mudavam de cor, para mar-e-luar.

— É uma boa teoria... essas dos exemplos. Mas todo mundo constitui um exemplo, não é mesmo? Todos não são uma imagem do que pensam de todas as decisões que tomaram até agora?

— Tem razão. Mas acontece que não conheço todo mundo. Não importam para mim, a menos que conheça pessoalmente, leia a respeito ou veja em alguma tela. Não faz muito tempo, a televisão apresentou a história de um cientista que pesquisava por que um violino soa da maneira como o faz. E pensei: para que o mundo precisa disso? Com milhões de pessoas passando fome, quem precisa de pesquisa sobre o violino? Mas depois concluí que não era bem assim. O mundo precisa de modelos, pessoas levando vidas interessantes, aprendendo coisas, mudando a música do nosso tempo. O que as pessoas fazem com suas vidas que não estão assoladas pela pobreza, crime, guerra? Precisamos conhecer pessoas que tenham feito opções que nós também podemos fazer, convertendo-nos em seres humanos. Se não for assim, podemos ter toda a comida do mundo... e daí? Modelos! Nós os amamos! Não concorda?

— Acho que sim. Mas não me agrada a palavra modelo.

— Por que não? — Compreendi a resposta no mesmo instante. — Você foi modelo?

— Em Nova York — respondeu Leslie, como se fosse um segredo vergonhoso.

— E o que há de errado com isso? Uma modelo é um exemplo público de beleza especial!

— É justamente isso que está errado. Torna-se muito difícil corresponder. E assusta a grande estrela do cinema.

— Por quê? De que ela tem medo?

— Ela teve de ser uma atriz porque o estúdio julgou-a tão bonita. Mas desde então sente medo de que o mundo venha a descobrir que não é tão bonita assim e nunca foi. Ser uma modelo já era bastante terrível. E fica ainda pior para ela quando a chamam de um exemplo público de beleza.

— Mas você é mesmo linda, Leslie! — Eu corei. — Isto é... não pode haver a menor dúvida de que você é... que você é... extremamente atraente...

— Obrigada, mas não importa o que você diga. Ela acha que a beleza é uma imagem que alguém mais lhe criou. E é uma prisioneira da imagem. Mesmo quando vai à mercearia da esquina, tem de estar toda arrumada, por assim dizer. Se não estiver, alguém por certo a reconhecerá e comentará com os amigos: “Deviam vê-la pessoalmente! Ela não é nem a metade tão bonita como se supõe!” Ela desapontou-os. — Leslie tornou a sorrir, um sorriso triste, antes de acrescentar: — Cada atriz de Hollywood, cada mulher bonita que conheço, está fingindo que é bonita e receia que o mundo descubra a verdade a seu respeito, mais cedo ou mais tarde. Eu também. Sacudi a cabeça.

— Uma loucura. Todas vocês são loucas.

— O mundo é louco, quando se trata de beleza.

— Eu acho que você é bonita.

— E eu acho que você é louco.

Ambos rimos, mas ela não estava brincando. Perguntei:

— É verdade que as mulheres bonitas levam vidas trágicas?

Era o que eu concluíra da minha Mulher Perfeita, com seus muitos corpos. Talvez não inteiramente trágicas, mas difíceis. Que não se podia invejar. Penosas. Leslie pensou a respeito por um momento. E respondeu:

— Se pensam que sua beleza é representada por elas próprias, nesse caso estão pedindo por uma vida vazia. Quando tudo depende da aparência, a mulher se perde a contemplar espelhos e nunca descobre a si mesma.

— Você parece ter descoberto a si mesma.

— O que quer que eu tenha descoberto, não foi por ser bonita.

— Conte-me.

Ela o fez e fiquei ouvindo, surpreso a princípio e depois espantado. A Leslie que ela encontrara não estava no cinema, mas no movimento pacifista, no centro de oradores que ela formara e dirigia. A verdadeira Leslie Parrish fazia discursos, lutava em campanhas políticas, protestava contra um governo americano propenso à guerra do Vietnam.

Enquanto eu pilotava caças da Força Aérea, ela coordenava manifestações pela paz na Costa do Pacífico.

Por se atrever a se opor à instituição da guerra, ela fora atacada com gás lacrimogêneo pelas chamadas forças da lei, ameaçada por quadrilhas de extrema direita. Mas continuou assim mesmo, organizando manifestações cada vez maiores, promovendo gigantescas campanhas de levantamento de fundos.

Ajudara a eleger congressistas, senadores e o novo prefeito de Los Angeles. Fora delegada em convenções presidenciais.

Co-fundadora da KVST-TV, uma emissora de televisão de Los Angeles dirigida às minorias oprimidas da cidade, ela assumira a presidência quando a empresa se encontrava em crise, mergulhada em dívidas e não restando um só dia de paciência entre os credores. Vez por outra pagara contas da emissora com dinheiro do seu trabalho no cinema. A estação sobrevivera, estava prosperando. Pessoas assistiam, escreviam-se críticas divulgadas em todo o país sobre a nobre experiência. Com o sucesso, veio a luta pelo poder. Ela foi chamada de rica racista; e foi expulsa pelos oprimidos. A KVST saiu do ar no dia em que ela a deixou e nunca mais voltou. Até hoje, Leslie me contou, ela não pôde ver a tela em branco do Canal 68 sem sentir uma pontada de angústia.

A grande estrela do cinema pagou o caminho para Leslie Parrish. Devota justiceira e reformadora do mundo, Leslie entrava sozinha em reuniões políticas, tarde da noite, em lugares da cidade que eu não tinha coragem de sobrevoar ao meio-dia. Participou de piquetes pelos trabalhadores rurais, marchou para eles, levantou dinheiro para eles. E lançou-se, uma manifestante não-violenta, em algumas das mais violentas batalhas da América moderna.

Contudo, recusava-se a aceitar cenas de nudismo no cinema.

— Eu não me sentaria nua com os amigos na minha sala de estar numa tarde de domingo. Por que deveria então ficar nua com um bando de estranhos num estúdio de cinema? Para mim, fazer algo tão antinatural por dinheiro seria prostituição.

Quando todos os papéis nos filmes tinham cenas de nudismo, ela renunciou à carreira no cinema, passando para a televisão.

Eu a escutava como se a corça inocente que tocara numa campina tivesse se transformado nas tempestades de fogo do inferno.

— Houve uma marcha de paz em Torrance — contou ela. — O planejamento estava pronto, tínhamos a devida autorização. Poucos dias antes, fomos avisados de que os fanáticos de extrema direita tencionavam atirar em um dos nossos líderes se nos atrevêssemos a marchar lá. Era tarde demais para cancelar...

— Não é tarde demais para cancelar! — protestei. — Não faça isso!

— Muitas pessoas já estavam chegando, o prazo era muito curto para o aviso. Não seria possível entrar em contato com todos no último momento. E se aparecessem somente uns poucos, contra os fanáticos, seria um crime, não é mesmo? Convocamos então os jornais e as redes de televisão e dissemos: Venham ver nossa matança em Torrance! E marchamos, de braços dados com o homem que eles disseram que matariam. Nós o cercamos e marchamos. Eles teriam de matar a todos para alcançá-lo.

— Você... eles atiraram?

— Não. Acho que matar-nos diante das câmaras não fazia parte dos planos deles. — Leslie suspirou, recordando. — Foram dias terríveis, não é mesmo?

Eu não podia pensar em algo para dizer. Naquele momento, na fila do cinema, eu passava o braço pelos ombros de uma pessoa rara em minha vida: um ser humano a quem admirava totalmente.

Eu, o apartado, estava impressionado com o contraste entre nós. Se outros desejavam lutar e morrer em guerras ou manifestações contra a guerra, eu concluíra, a liberdade era deles. O único mundo que importa para mim é o mundo do indivíduo, o mundo que cada um cria para ser o seu. Eu tentaria mudar a história, ao invés de me tornar uma criatura política, ao invés de tentar convencer outros a escrever cartas, votar, marchar ou fazer qualquer coisa que já não sentissem vontade.

Ela é tão diferente de mim... por que então esse respeito cheio de admiração que eu sentia?

— Você está pensando em alguma coisa importante — comentou Leslie, franzindo o rosto.

— Tem razão. Você está absolutamente certa. — Eu a conhecia tão bem naquele momento e gostava tanto dela que lhe contei o que era. — Estava pensando que é a própria diferença entre nós que faz de você a minha melhor amiga.

— Como assim?

— Temos um pouco em comum... xadrez, calda de chocolate, queremos fazer o filme... mas somos tão diferentes em todas as outras coisas que você não me ameaça como as demais mulheres. Com elas, às vezes, em suas mentes, existe a esperança de casamento. Um casamento foi suficiente para mim. Nunca mais.

A fila avançava lentamente. Estaríamos dentro do cinema em menos de 20 minutos.

— O mesmo acontece comigo — comentou ela, rindo. — Não tenho a menor intenção de ameaçá-lo, mas isso é outra coisa que temos em comum. Eu me divorciei há muito tempo. Praticamente não saía com homens antes do casamento. Assim, depois do divórcio, passei a sair em todos os programas possíveis. Mas não concorda que é impossível vir a conhecer alguém desse jeito?

Podemos passar a nos conhecer um pouco, pensei; mas é melhor ouvir o que ela pensa.

— Já saí com alguns dos homens mais inteligentes, mais charmosos e mais ricos do mundo. Mas eles não me fizeram feliz. A maioria pára diante de sua porta num carro maior do que a sua casa, usando as roupas certas. Levam a gente para o restaurante certo, onde se encontram todas as pessoas certas. Tiram nossa fotografia, tudo parece charmoso, divertido e certo. Mas eu não podia deixar de pensar: preferia ir a um bom restaurante do que ao certo, usar roupas que me agradem do que os modelos que os grandes costureiros consideram elegantes para aquele ano. Acima de tudo, eu preferia uma conversa sossegada ou um passeio por um bosque. Acho que tinha valores diferentes.

“Temos de viver com uma moeda que seja importante para nós, caso contrário todo o sucesso do mundo não será agradável, não trará a felicidade. Se alguém prometesse que lhe pagaria um milhão de bulufas para atravessar a rua e bulufas nada representassem para você, mesmo assim atravessaria a rua? E daí que lhe prometessem cem milhões de bulufas? Eu me sentia assim em relação à maioria das coisas altamente prezadas em Hollywood... como se estivesse lidando com bulufas. Tinha todas as coisas certas, mas ainda assim me sentia vazia, não conseguia apreciar. Quanto vale isso?, eu me perguntava. E durante todo o tempo eu tinha medo que, se continuasse a sair assim, mais cedo ou mais tarde acertaria a sorte grande no valor de milhões de bulufas.

— E o que era isso?

— Casaria com o Mister Certo. Usaria as roupas certas pelo resto da vida, seria a anfitriã para todas as pessoas certas, nas festas certas... as festas dele. Ele seria o meu troféu e eu o dele. Estaríamos nos queixando em breve que o nosso casamento perdera o sentido, que não éramos mais tão ligados quanto deveríamos... e na verdade nunca houvera sentido ou intimidade, desde o início. Duas coisas a que eu atribuo o maior valor, intimidade e a capacidade para alegria, pareciam não constar da lista de mais ninguém. Eu me sentia como a estranha na terra estranha. E concluí que era melhor não casar com os nativos. É outra coisa que larguei. Os programas. E agora... quer saber de um segredo?

— Conte.

— Prefiro estar agora com meu amigo Richard do que saindo num programa com qualquer outro!

— Ah...

Abracei-a por isso, um tímido abraço, com um só braço. Leslie era uma presença singular em minha vida, uma linda irmã em quem eu confiava e admirava, com quem passava noite após noite, sobre um tabuleiro de xadrez, mas nunca um momento na cama.

Falei a ela sobre a minha mulher perfeita, como a idéia me proporcionara bons resultados. Senti que ela não concordava, mas escutou com interesse. Antes que ela pudesse responder, a fila entrou no cinema.

No saguão, fora do frio, tirei o braço de seus ombros e não tornei a tocá-la.

O filme que vimos naquela noite seria visto mais 11 vezes antes do ano terminar. Havia uma criatura peluda, olhos azuis, de outro planeta, que era o co-piloto de uma espaçonave toda amassada. A criatura era chamada um wookie. Nós adoramos a personagem, como se fôssemos dois wookies, contemplando nosso ídolo na tela.

Leslie foi me receber no aeroporto na próxima vez em que voei a Los Angeles. Assim que desci da carlinga, ela me entregou uma caixa, com uma fita e um laço.

— Sei que você detesta presentes e por isso lhe trouxe um — disse ela.

— Eu nunca lhe dou presentes — resmunguei, jovialmente. — É o meu presente para você: nunca lhe dou presentes. Por que...

— Abra.

— Está certo, abrirei desta vez. Mas...

— Abra — repetiu ela, impaciente.

O presente era uma máscara de wookie, de borracha, peluda, envolvendo toda a cabeça, com buracos para os olhos e dentes parcialmente expostos... uma semelhança perfeita com o nosso herói do cinema.

— Leslie!

Eu tinha adorado.

— Agora você pode fazer cócegas em todas as suas namoradas com seu rosto peludo. Ponha a máscara.

— Aqui mesmo, em pleno aeroporto, diante do público, você está querendo que eu...

— Ora, ponha logo! Para mim.

Ela me persuadiu. Pus a máscara, para agradá-la, soltei um ou dois rugidos de wookie. Leslie riu até chorar. Ri também, por trás da máscara, pensei o quanto gostava dela.

— Vamos, wookie disse ela, limpando as lágrimas e impulsivamente me pegando a mão. — Estamos atrasados.

Cumprindo a palavra, ela levou-me do aeroporto diretamente para a MGM, onde estava terminando um filme para a televisão. Pelo caminho, notei que as pessoas me olhavam assustadas no carro e tirei a máscara.

Para quem nunca estivera num estúdio de cinema, foi a mesma coisa que ser convidado para a lua Complexidade, girando em torno do planeta Prazo Final. Cabos e suportes e câmaras e plataformas móveis e escadas e passadiços e luzes... um teto tão apinhado de enormes refletores que jurei que a vigas se partiriam a qualquer momento. Havia homens por toda parte, empurrando equipamentos para suas posições, ajustando, se empoleirando, à espera da próxima campainha ou sinal de lanterna.

Leslie emergiu de seu camarim num vestido de lamê dourado, ou a maior parte dele, deslizando em minha direção por cima dos cabos e armadilhas no chão, como se fossem parte dos desenhos num tapete.

— Pode ver bem daqui?

— Claro.

Senti-me contrafeito pelos olhares que os técnicos e ajudantes lançavam a Leslie; ela os ignorava. Eu estava nervoso, inibido, um cavalo das pradarias numa selva tropical; ela sentia-se em casa. Eu tinha a sensação de que a temperatura era tórrida; ela estava fresca, viçosa e jovial.

— Como consegue? Como pode representar com toda essa movimentação, com todos nós assistindo? Pensei que representar fosse uma coisa meio particular, de alguma forma,..

— ESTAMOS PASSANDO! ATENÇÃO!

Os dois homens levavam apressadamente uma árvore para o cenário. Se Leslie não me tocasse no ombro, fazendo-me dar um passo para o lado, eu seria derrubado por um galho na rua pintada. Ela olhou para mim e para o que eu julgava ser o caos ao nosso redor.

— Haverá uma espera grande enquanto armam os efeitos especiais, Richard. Espero que não se sinta entediado.

— Entediado? É fascinante! E você permanece tão calma... não fica nem um pouco nervosa?

Um eletricista na passarela por cima de nós olhou para baixo e gritou pelo teto:

— Posso ver aquelas montanhas bem nítidas hoje, George! Lindas! Oi, Srta. Parrish, como estão as coisas aí por baixo?

Ela levantou os olhos e comprimiu a parte superior do lamê dourado contra o peito.

— Continuem, rapazes — disse ela, rindo. — Isso é tudo o que vocês têm a fazer?

O eletricista piscou um olho para mim, sacudiu a cabeça.

— A compensação do trabalhador! Leslie nem franziu o rosto. E me disse:

— O produtor está nervoso. Estamos com um dia e meio de atraso. Podemos trabalhar até tarde esta noite, a fim de compensar o tempo perdido. Se ficar cansado e eu estiver no meio de alguma coisa, vá para o hotel e eu lhe telefono depois, se não for tarde demais.

— Duvido muito que eu possa ficar cansado. Não me deixe conversar se não for oportuno, se quiser estudar as suas falas...

Leslie sorriu.

— Não se preocupe. — Ela olhou para o cenário. — Tenho que ir para lá agora. Divirta-se.

Ao lado da câmara, um homem berrou:

Primeira equipe! Em seus lugares, por favor!

Por que ela não estava nem um pouco tensa com a perspectiva de lembrar suas falas? Tenho sorte quando me lembro das palavras que eu próprio escrevi sem relê-las interminavelmente. Por que ela não se sentia nervosa, com tanta coisa a lembrar?

A filmagem começou, uma cena, depois outra, logo em seguida uma terceira. Leslie não consultou seu script uma única vez. Eu me sentia como um espírito amigo, assistindo ao papel que ela representava no cenário. Leslie não errou uma só fala. Observá-la em ação era como observar uma amiga que era ao mesmo tempo uma estranha. Eu experimentava uma curiosa apreensão afetuosa... minha própria irmã, sob o alvo dos refletores e das câmaras!

E pensei: O fato de vê-la ali muda o que sinto em relação a Leslie?

Claro. Algo de mágico está acontecendo. Ela possui talentos e poderes que eu nunca aprendera e nunca aprenderia. Não gostaria menos dela se não fosse uma atriz, mas gostava mais porque era. Sempre houve emoção para mim, um enorme prazer, em conhecer pessoas que podem fazer coisas de que não sou capaz. E Leslie era uma das pessoas que mais prazer me proporcionavam.

No dia seguinte, em seu escritório, pedi um favor:

— Posso usar seu telefone? Quero ligar para a Associação dos Escritores...

— Cinco-cinco-zero-mil — disse ela, distraidamente, empurrando o aparelho em minha direção, enquanto lia uma proposta de financiamento de Nova York.

— O que é isso?

Ela levantou os olhos.

— O telefone da Associação dos Escritores.

— Sabe o número de cor?

— Sei.

— Mas como?

— Sei uma porção de números.

Ela voltou a se concentrar na proposta.

— O que significa “sei uma porção de números”?

— Apenas que sei uma porção de números — respondeu ela, suavemente.

— E se eu quisesse ligar... para a Paramount? — perguntei, desconfiado.

— Quatro-seis-três, zero-cem.

Fitei-a, aturdido.

— Um bom restaurante?

— O Magic Pan é bom. Possui uma parte reservada a não-fumantes. Dois-sete-quatro, cinco-dois-dois-dois.

Peguei uma lista telefônica.

— Associação dos Atores de Cinema.

— Oito-sete-meia, três-zero-três-zero.

Ela estava certa. E comecei a compreender.

— Você não tem... Leslie, o script ontem... você possui uma memória fotográfica, não é mesmo? Por acaso não memorizou... toda a lista telefônica?

— Não se trata de memória fotográfica. Eu não vejo, apenas me lembro. Minhas mãos se lembram de números. Pergunte-me um número e observe as minhas mãos.

Abri a enorme lista telefônica, virei algumas páginas.

— Gabinete do prefeito da cidade de Los Angeles?

— Dois-três-três, um-quatro-cinco-cinco.

Os dedos de sua mão direita se mexeram como se estivesse operando um telefone de teclas ao contrário, tirando os números ao invés de apertá-los.

— Dennis Weaver, o ator.

— Um dos seres humanos mais doces de Hollywood. O telefone de sua casa?

— Isso mesmo.

— Prometi que nunca o daria. Que tal o número de The Good Life a loja de alimentos naturais da mulher dele?

— Está bem.

— Nove-oito-seis, oito-sete-cinco-zero.

Verifiquei na lista; é claro que ela estava certa outra vez.

— Leslie, você me assusta!

— Pois não fique assustado, wookie. É apenas uma coisa insólita que acontece comigo. Memorizava música quando era pequena e as placas de todos os automóveis em nossa pequena cidade. Quando vim para Hollywood, memorizava scripts, rotinas de dança, números de telefones, programações, conversas, qualquer coisa. O número de seu lindo jato amarelo é N Um-Cinco-Cinco X. O telefone de seu hotel é dois-sete-oito, três-três-quatro-quatro. Você está no quarto 218. Quando deixamos o estúdio, ontem à noite, você disse: “Lembre-me de lhe falar sobre minha irmã no show business.”E eu disse: “Posso lembrá-lo agora?” Você respondeu: “Acho que pode, pois quero realmente lhe falar a respeito dela,” Eu falei: “Eu conheço...”

Leslie parou de se lembrar e riu do meu espanto.

— Está me olhando como se eu fosse uma aberração, Richard.

— E é mesmo. Mas gosto de você assim mesmo.

— Eu também gosto de você.

Ao final daquela tarde, eu trabalhava num roteiro de televisão, reescrevendo as últimas páginas e batendo na máquina de Leslie, enquanto ela circulava pelo jardim, cuidando de suas flores. Mesmo nisso, éramos muito diferentes. As flores são realmente coisinhas lindas, mas dispensar-lhes tanto tempo, deixar que dependam de você para regá-las, alimentá-las, banhá-las e qualquer outra coisa que as flores precisem... a dependência não é para mim. Eu nunca seria um jardineiro, Leslie nunca seria outra coisa.

Ali, em sua sala, entre as plantas, havia prateleiras de livros refletindo as neblinas do arco-íris que ela era. Por cima da mesa se achavam as citações e idéias que lhe eram mais importantes:

NOSSO país, certo ou errado. QUANDO CERTO, A SER MANTIDO CERTO; QUANDO ERRADO, A SER CORRIGIDO.

Carl Sáurz

Proibido fumar, aqui ou em qualquer outro lugar.

O hedonismo não é divertido.

Tremo de apreensão por meu país quando reflito que Deus é justo.

T. Jefferson

Suponhamos que eles promovessem uma guerra, mas ninguém se apresentasse!

A última era uma citação de si mesma. Ela a fizera como um plástico de pára-choque, fora adotada pelo movimento pacifista e espalhada pelo mundo tão depressa quanto a televisão era capaz de divulgá-la.

Eu estudava aquelas coisas de vez em quando, entre os parágrafos do meu roteiro, conhecendo-a melhor a cada estalido da tesoura de poda, a cada grunhido do ancinho em seu jardim, a cada silvo abafado da água através de cano e mangueira, acabando gentilmente com a sede de sua família de flores. Ela conhecia e amava cada botão em separado.

Diferentes diferentes diferentes, pensei, terminando o último parágrafo. Mas como eu admiro essa mulher! Apesar de todas as nossas diferenças, algum dia tive uma pessoa amiga como ela?

Levantei-me e espreguicei-me, atravessei a cozinha e saí pela porta lateral para o jardim. Ela estava de costas para mim, enquanto regava os canteiros de flores, os cabelos compridos presos num rabo-de-cavalo para o trabalho. Avancei silenciosamente e parei um pouco atrás dela. Leslie cantava baixinho para sua gata:

— Você é uma gatinha, uma gatinha linda/ minha fofinha, minha estrelinha/ e se me deixar, não vá muito longe...

A gata estava obviamente gostando da canção, mas era um momento íntimo demais para que eu continuasse despercebido. Por isso, falei como se tivesse acabado de chegar:

— Como estão indo as suas flores?

Ela virou-se, a mangueira na mão, os olhos azuis assustados pela descoberta de que não se encontrava sozinha em seu jardim particular. O bico da mangueira estava apontado para a altura do meu peito, ajustado para molhar um cone de bom diâmetro. Nenhum dos dois disse nada nem se mexeu, enquanto a mangueira esguichava água em cima de mim, como se eu fosse um incêndio inesperado,

Leslie estava dominada pelo susto, primeiro das minhas palavras repentinas, depois do que a água fazia com meu casaco e camisa. E permaneci imóvel, porque pensei que seria impróprio gritar e correr, porque esperava que não demorasse muito tempo para que ela apontasse a mangueira em outra direção, ao invés de continuar a acertar à queima-roupa meus trajes de cidade.

Como se ela manipulasse um jato de areia, a cena está hoje gravada nitidamente... o sol, o jardim ao nosso redor, seus olhos exprimindo espanto por aquele urso polar que irrompia entre as suas flores, uma mangueira como a sua única defesa. Se regar um urso polar por bastante tempo, ela devia estar pensando, o bicho acaba se virando e se afasta correndo!

Eu não me sentia como um urso polar, exceto pelo jato de água gelada a me atingir, encharcando-me. Percebi finalmente o seu horror pelo que estava fazendo, não a um urso polar, mas a um associado nos negócios, amigo e hóspede em sua casa. Embora continuasse paralisada pela consternação, recuperou o controle da mão o suficiente para desviar lentamente o jato de água.

— Leslie! — falei, no silêncio molhado. — Era apenas eu...

E depois ela estava chorando de tanto rir, os olhos desamparados alegres toldados de choque, implorando perdão. Ela se lançou, rindo, soluçando, contra meu casaco, que esguichou água dos bolsos.

 

 

 

quinze

 

— Kathy telefonou hoje da Flórida — informou Leslie, ajeitando as suas peças nos lugares, para outra partida de xadrez. — Ela está com ciúme?

— Não é possível. O ciúme não faz parte do meu acordo com qualquer mulher.

Franzi o rosto para mim mesmo. Depois de tantos anos, ainda tenho de murmurar “Rainha-na-sua-cor” para ajeitar as minhas peças da maneira certa.

— Ela queria saber se você tem alguma namorada especial por aqui, de tanto que vem a Los Angeles ultimamente.

— Ora, deixe disso, Leslie. Não está falando sério.

— Juro que estou.

— E o que disse a ela?

— Disse que não precisava se preocupar. Que você, quando está aqui, não sai com ninguém, passa o tempo todo comigo. Creio que ela se sentiu melhor. Mas talvez você devesse revisar o seu acordo de ausência de ciúme com ela, só para ter certeza.

Leslie deixou a mesa por um momento a fim de examinar a sua coleção de gravações.

— Tenho a Primeira de Brahms por Ozawa, Ormandy e Mehta. Alguma preferência?

— Qualquer uma que mais desvie a sua atenção do xadrez.

Ela pensou por um momento, escolheu uma fita e injetou-a na eletrônica intrincada de seu sistema de som.

— Inspiração — corrigiu ela. — Para distração, tenho outras' gravações.

Jogamos durante meia hora, uma partida difícil, desde o primeiro lance. Leslie acabara de reler Idéias Modernas na Abertura de Xadrez, o que teria me arrasado se eu não tivesse concluído dois dias antes a leitura de Armadilhas, Ciladas e Ardis no Xadrez. Jogamos quase para um empate; depois, veio um movimento brilhante da minha parte e a partida pendeu no equilíbrio.

Até onde eu podia perceber, qualquer movimento de Leslie seria desastroso, menos um. Sua única escapatória era um obscuro avanço de peão, a fim de controlar a casa oculta em torno da qual eu desenvolvera uma delicada estratégia. Sem essa casa, todo o meu esforço desmoronaria em ruínas.

A parte de mim que leva o xadrez a sério esperava que ela percebesse o movimento, demolisse a minha posição e me forçasse a lutar por minha vida esculpida em madeira (jogo melhor quando estou acuado). Contudo, não conseguia imaginar como poderia me recuperar se ela bloqueasse a estratégia.

A parte de mim que sabia se tratar apenas de um jogo esperava que ele não percebesse, pois era uma estratégia linda e elegante a que eu elaborara. O sacrifício de uma Rainha e depois cinco lances até o xeque-mate.

Fechei os olhos por um momento, enquanto ela analisava o tabuleiro. Abri-os subitamente, acometido por um pensamento extraordinário.

Ali, na minha frente, estava uma mesa e uma janela cheia de cor; mais além, as luzes cintilantes do crepúsculo de Los Angeles, o final de junho se desvanecendo no mar. Delineada contra as luzes cintilantes e as cores estava Leslie, imersa em pensamento, tão imóvel quanto uma corça alerta sobre um tabuleiro de xadrez, mel e creme nas sombras de uma noite ainda por chegar. Uma visão suave e aprazível, pensei. De onde vem, quem é o responsável?

Uma pequena armadilha de palavras, uma rede de tinta no caderninho de anotações sobre a idéia, antes que desaparecesse.

De vez em quando, escrevi, é divertido fechar os olhos e, nessa escuridão, dizer a nós mesmos: “Eu sou o feiticeiro e quando abrir os olhos verei um mundo que criei e pelo qual sou o único e total responsável.” E depois, lentamente, as pálpebras se abrem, como cortinas st levantando sobre o palco, lá está o nosso mundo, com toda certeza, exatamente como o criamos.

Escrevi isso em alta velocidade, na pouca claridade. Depois, tornei a fechar os olhos, testando novamente: Eu sou o feiticeiro... Abri os olhos devagar.

Os cotovelos na mesa, o rosto entre as mãos, vi Leslie Parrish, olhos grandes e escuros, fixados nos meus.

— O que o wookie escreveu? Li para ela e expliquei:

— A pequena cerimônia é uma maneira de lembrar a nós mesmos quem está comandando o espetáculo.

Ela tentou.

— Eu sou a feiticeira... — Sorriu quando abriu os olhos. — Isso só lhe ocorreu agora?

Assenti.

— Eu criei você? — disse Leslie. — Sou responsável por levá-lo ao palco? Aos filmes? Sundaes? Partidas de xadrez e conversas?

Tornei a assentir.

— Não pensa assim? Você é a causa de eu-como-me-conhece. Ninguém mais no mundo conhece o Richard que existe em sua vida. Ninguém conhece a Leslie que existe na minha.

— É uma boa anotação. Poderia me dizer outras... ou estou me intrometendo?

Acendi uma luz.

— Fico contente pelo fato de você compreender que são anotações muito particulares...

Falei jovialmente, mas era verdade. Ela compreenderia que era outro vínculo de confiança entre nós, primeiro que me pedisse para ler as anotações, uma pessoa que sempre respeitara a minha privacidade, depois o fato de eu concordar em ler? Tive a noção de que ela sabia perfeitamente.

— Temos alguns títulos de livros — falei. — Penas Eriçadas: Uma Denúncia de um Escândalo Nacional por um Observador de Pássaros. Eis outro que pode dar um livro em cinco volumes.,. O Que Faz os Fatos Andarem Devagar?

Virei a página para trás, saltei uma lista de compras, virei outra página.

Olhe-se num espelho e uma coisa í certa: o que vemos não é quem somos. Isso foi depois da sua conversa sobre espelhos. Está lembrada?

“Quando recordamos os nossos dias, eles passaram num relance. O tempo não dura e ninguém tem muito para viver! ALGUMA COISA transpõe o tempo... O quê? O quê? O quê?

“Pode ver que todas essas anotações ainda não estão arrematadas...

“A melhor maneira de pagar por um momento maravilhoso é desfrutá-lo.

“A única coisa que destrói os sonhos é a concessão.

“Por que não praticar viver como se fôssemos extremamente inteligentes? Como viveríamos se fôssemos espiritualmente avançados?”

Cheguei à primeira página das anotações do mês e li:

Como salvarmos as baleias? BASTA COMPRÁ-LAS/ Sc as baleias fossem compradas e depois convertidas em cidadãs americanas, francesas, australianas ou japonesas, não haveria país no mundo que ousasse lhes pôr as mãos!

Levantei os olhos para fitá-la por cima do caderninho de anotações.

— Isso é tudo este mês, até agora.

— Basta comprá-las?

— Ainda não elaborei os detalhes da operação. Cada baleia levaria a bandeira do país a que pertence, uma espécie de passaporte gigantesco. O dinheiro da venda de cidadanias vai para um Fundo da Baleia ou algo parecido. E o passaporte seria impermeável, é claro. Pode dar certo.

— O que faz com elas?

— Deixaria que fossem para onde bem quisessem. Cuidariam de suas crias...

Leslie riu.

— Estou me referindo às suas anotações.

— Ah... Leio tudo ao fim de cada mês, tento descobrir o que estão querendo me dizer. Talvez algumas terminem num conto ou num outro livro, talvez não. Ser uma anotação é levar uma vida muito incerta.

— As anotações desta noite lhe dizem alguma coisa?

— Ainda não sei. Algumas dizem que eu não estou muito certo se este planeta é o lar. Já teve alguma vez a sensação de ser turista na Terra? Vai andando pela rua e subitamente tudo ao seu redor é como um cartão-postal em movimento? É assim que as pessoas vivem aqui, em caixas grandes no formato de casas, como proteção contra a “chuva” e a “neve”, buracos cortados nos lados para que possam ver lá fora. As pessoas circulam em caixas menores, pintadas em cores diferentes, com rodas nos cantos. Precisam dessa cultura de caixa porque cada pessoa pensa em si mesma como trancada numa caixa chamada “corpo”, com braços e pernas, dedos para movimentar lápis e ferramentas, línguas porque esqueceram como se comunicar, olhos porque esqueceram como ver. Um planeta pequeno e estranho. Gostaria que você estivesse aqui. Estarei em casa em breve. Isso já lhe aconteceu?

— De vez em quando... mas não exatamente assim.

— Posso ir buscar alguma coisa para você em sua cozinha... um bolinho ou algo mais?

— Não, obrigada.

Levantei-me, encontrei o vidro com os bolinhos, servi uma pilha num prato para nós dois.

— Leite?

— Não, obrigada.

Levantei os bolinhos e os copos de leite para a mesa.

— As anotações sempre lembram. Servem para me recordar que sou um turista na Terra, lembram os costumes insólitos que existem aqui. Quando faço isso, posso quase recordar como é o lugar de onde vim. Há um ímã que está nos atraindo, puxando-nos contra a cerca dos limites deste mundo. Tenho esse estranho pressentimento de que viemos do outro lado da cerca.

Leslie tinha perguntas a respeito e também respostas que eu não imaginara. Conhecia um mundo-como-deveria-ser, que aposto que era um mundo sem guerras, um mundo-como-é em alguma dimensão paralela. A idéia confundiu-nos, fazendo o tempo passar.

Peguei um bolinho de chocolate, imaginei-o quente, ataquei-o gentilmente. Leslie recostou-se com um sorriso curioso, como se gostasse das minhas anotações, como se apreciasse os pensamentos que eu achava tão interessantes.

— Já conversamos antes sobre escrever?

— Não. — Leslie finalmente estendeu a mão para um bolinho, sua resistência finalmente rompida pela proximidade paciente e implacável de seu petisco predileto. — Adoraria ouvir. Aposto como você começou cedo.

Que coisa estranha, pensei. Quero que ela saiba quem eu sou!

— É verdade. Por toda parte em casa, quando eu era garoto, livros, Aprendi a engatinhar, havia livros ao nível dos olhos. Quando pude ficar de pé, havia livros a perder de vista, mais alto do que eu podia alcançar. Livros em alemão, latim, hebraico, grego, inglês, espanhol.

“Meu pai era um ministro. Foi criado em Winsconsin, falando alemão. Aprendeu inglês quando tinha seis anos, estudou as línguas bíblicas, ainda as fala. Minha mãe trabalhou em Porto Rico por vários anos.

“Papai lia contos em alemão e os traduzia para mim enquanto lia; mamãe conversava comigo em espanhol mesmo quando eu não podia entender. Cresci assim numa abundância de palavras. Sensacional!

“Eu adorava abrir livros para saber como começavam. Os escritores criam livros da maneira como escrevemos vidas. Um escritor pode: levar qualquer personagem a qualquer evento, para qualquer propósito, para expor qualquer argumento. Eu queria saber: o que faz este ou aquele escritor com a página um em branco? O que fazem com a minha mente e espírito quando leio suas palavras? Amam-me, desprezam-me ou não se importam? Descobri que alguns escritores são clorofórmio, mas outros são cravo e gengibre.

“Fui para a escola secundária, onde aprendi a detestar a gramática inglesa. Sentia-me tão entediado que bocejava 70 vezes numa aula de 50 minutos, saía ao final batendo no rosto para acordar. Cheguei ao último ano na Escola Secundária Woodrow Wilson, em Long Beach, Califórnia. Escolhi Redação Criativa para me esquivar do tormento de Literatura Inglesa. Era a sala 410. Sexta aula, a de Redação Criativa.

Ela afastou a cadeira da mesa de xadrez, escutando atentamente.

— O professor era John Gartner, treinador do time de futebol americano. Mas John Gartner, Leslie, era também um escritor! Em carne e osso, um escritor de verdade! Escrevia reportagens e artigos para as revistas esportivas, livros para adolescentes... Rock Taylor Treinador de Futebol Americano, Rock Taylor Treinador de Beisebol. Era enorme, muito mais de 1,90m de altura, duro, justo, engraçado e às vezes furioso. Sabíamos que amava seu trabalho e nos amava também.

Surgiu de repente uma lágrima em meu olho e limpei-a rapidamente, pensando que era muito estranho. Não pensava no grande John Gartner... ele está morto há 10 anos e agora esse estranho sentimento em minha garganta. Continuei apressadamente, confiando que Leslie não percebera coisa alguma.

— “Muito bem, rapazes”, disse ele no primeiro dia, “sei que estão aqui para se livrar do curso de Literatura Inglesa.” Houve um murmúrio culpado e a turma virou os olhos para o outro lado, por assim dizer. E Gartner acrescentou: “Pois saibam de uma coisa: a única maneira de alguém nesta turma receber um A, a nota máxima, será me mostrar o cheque de alguma coisa que escreveu e vendeu neste semestre.” Um coro de resmungos, ganidos e uivos... “Isso não é justo, Professor Gartner, somos pobres garotos de escola secundária, como pode esperar... não é

JUSTO, Professor Gartner!” Ele nos silenciou com uma palavra que parecia um rosnado. “Não há nada de errado com um B. O B é acima da média. Vocês podem ser acima da média sem vender o que escreveram, não é mesmo? Mas A é superior. Não concordam que se venderem alguma coisa que escreveram seria superior e mereceria um A?” Peguei o penúltimo bolinho no prato.

— Estou lhe contando mais do que deseja saber, Leslie? Seja sincera agora.

— Eu lhe direi quando parar, A menos que eu peça que pare, pode continuar, está bem?

— Está certo. Eu era orientado para as notas naquele tempo. Ela sorriu, recordando o tempo dos boletins.

— Escrevi muito, enviando artigos e contos para jornais e revistas. Pouco antes do final do semestre mandei uma história para o suplemento dominical do Long Beach Press-Telegraph. Era sobre um clube de astrônomos amadores. Eles Conhecem o Homem na Lua.

“Imagine o choque! Voltei da escola, peguei a lata de lixo na rua, dei comida ao cachorro... e mamãe me entrega um telegrama do Press-Tekaraph! Gelo instantâneo em todas as veias! Abri tremendo, devorei as palavras, recomecei a ler desde o início. Eles compraram o meu conto! Havia em anexo um cheque de 25 dólares!

“Não consigo dormir, mal posso esperar que a escola abra pela manhã. E finalmente abre, finalmente chega a sexta aula. Eu avanço dramaticamente para a mesa do professor. 'Aí está seu cheque, Professor Gartner!'

“O rosto dele... o rosto dele se iluminou. Apertou-me a mão tão vigorosamente que não pude mexê-la por uma hora. Anunciou à turma que Dick Bach vendera um artigo, para me fazer sentir meio centímetro mais alto. Deu-me um A em redação criativa, sem necessidade de mais nenhum esforço. E imaginei que era o fim da história.

Pensei naquele dia... há 20 anos ou ontem? O que acontece ao tempo, em nossas mentes?

— Mas não foi — disse Leslie.

— Não foi o quê?

— Não foi o fim da história.

— Não, não foi, John Gartner mostrou-nos o que era ser um escritor. Estava trabalhando num romance sobre professores. O Chamado de Setembro, a volta às aulas. Não sei se ele terminou, antes de morrer...

Senti novamente um estranho aperto na garganta; achei que era melhor seguir adiante rapidamente, terminar aquela história e mudar de assunto.

— Ele levava a cada semana um capítulo de seu livro, lia em voz alta e indagava como escreveríamos melhor. Era o seu primeiro romance para adultos. Tinha uma história de amor e seu rosto ficava vermelho quando lia alguns trechos. Ria e sacudia a cabeça no meio de uma frase que achava um pouco sincera e terna demais para um treinador de futebol americano partilhar com sua turma de redação. Ele tinha a maior dificuldade para escrever sobre mulheres. Sempre que se afastava dos esportes e da vida esportiva podíamos perceber em seus escritos; falar sobre mulheres era como andar sobre gelo fino. Por isso, criticávamos jovialmente. E dizíamos: “Professor Gartner, a mulher não parece tão autêntica para nós quanto Rock Taylor. Há algum meio de mostrá-la, ao invés de falar sobre ela?”

“Ele desatava a rir, passava o lenço pela testa e concordava. Invariavelmente concordava. Sempre concordava. Porque Big John sempre insistia, batendo com o punho na mesa: 'Não me DIGAM, MOSTREM! INCIDENTE! E EXEMPLO!'

— Você o amava, não é mesmo? Removi outra lágrima,

— Hum... ele era um bom professor.

— Se o amava, o que há de errado em dizer isso?

— Nunca pensei desse jeito. Mas é claro que o amava. E ainda amo. E depois, antes que eu percebesse o que fazia, estava ajoelhado diante de Leslie, os braços enlaçando suas pernas, a cabeça em seu colo, chorando por um professor cuja morte eu soubera em quinta mão, sem pestanejar, anos antes. Ela afagou-me a cabeça, murmurando:

— Está tudo bem... está tudo bem... Ele deve sentir muito orgulho de você e das coisas que escreve. Deve amá-lo também.

Que estranho sentimento, pensei. Então chorar era assim! Já se passara muito tempo desde que eu fizera mais do que cerrar as mandíbulas e levantar o aço contra a dor. A última vez que em que eu chorara? Não podia lembrar. O dia em que minha mãe morreu, um mês antes de eu me tornar cadete de aviação, partindo para tirar o meu breve como piloto de treinamento da Força Aérea. Desde o dia em que ingressei na vida militar, uma prática intensiva de controle emocional: Sr. Bach, daqui por diante baterá continência para todas as mariposas e moscas. Por que vai bater continência para todas as mariposas e moscas? Baterá continência para todas as mariposas e moscas porque elas têm asas e você não tem. Há uma mariposa agora naquela janela. Sr. Bach, SENTIDO! ORDINÁRIO, MARCHE! ALTO! Olhe para a mariposa. OLHE! Bater... CONTINÊNCIA! Tire esse sorriso da boca, Sr. Bach. Jogue esse sorriso no chão, pise em cima, mate esse sorriso. MATE! Agora pegue-o, leve lá para fora e enterre. Pensa que este programa é uma piada? É ele quem está no controle de suas emoções, Sr. Bach!

Essa foi a base do meu treinamento, era isso o que importava: quem está no controle?

Quem está no controle? Eu estou! Eu o racional, eu o lógico, analisando, avaliando, julgando e escolhendo o caminho para agir, a maneira de ser. Nunca eu-o-racional considerou eu-o-emocional, aquela minoria desprezada, jamais lhe permiti que assumisse o comando.

Até aquela noite, partilhando um fragmento do meu passado com uma irmã melhor-amiga.

— Perdoe-me, Leslie — murmurei, empertigando-me e limpando o rosto. — Não posso explicar o que aconteceu. Nunca fiz isso antes. Lamento muito.

— Nunca fez antes o quê? Nunca se importou que alguém morresse ou nunca chorou?

— Nunca chorei. Pelo menos por um longo tempo.

— Pobre Richard... talvez devesse chorar com mais freqüência.

— Não, obrigado. Não creio que me aprovaria se chorasse demais,

— Acha que é errado um homem chorar? Voltei à minha cadeira.

— Outros homens podem chorar, se quiserem. Não creio que seja certo para mim.

— Ah...

Senti que ela pensava sobre isso, julgando-me. Que tipo de pessoa julgaria contra outra por não desejar controlar suas emoções? Uma mulher amorosa pode, uma mulher que conhecesse muito mais sobre emoções e como exprimi-las do que eu. Depois de um minuto, sem qualquer veredicto apresentado, ela disse:

— E o que aconteceu depois?

— Tive então o meu primeiro e único desperdício-de-um-ano no curso pré-universitário. Não, não foi um desperdício total. Tomei aulas de arco-e-flecha e ali conheci Bob Keech, meu instrutor de vôo. O curso foi um desperdício, mas as lições de vôo mudaram minha vida. Parei de escrever, depois da escola secundária, até que tinha saído da Força Aérea, estava casado e descobri que não conseguia manter um emprego. Qualquer emprego. Eu ficava desesperado com o tédio e largava. Era melhor passar fome do que viver para um momento no relógio, duas vezes por dia.

“E foi então que, finalmente, compreendi o que John Gartner nos ensinara: É essa a sensação de vender uma História! Anos depois que ele morreu recebi o seu recado. Se o garoto da escola secundária pode vender uma história, por que o adulto não pode vender outras?

Observei a mim mesmo, curioso. Nunca antes falara assim, a qualquer pessoa.

— Comecei a colecionar bilhetes de rejeição. Vendi uma ou duas histórias, ganhei um monte de rejeições, até que o barco do escritor afundou e me descobri passando fome. Arrumei um emprego de estafeta, joalheiro, desenhista, resistia até não poder mais agüentar. Voltava a escrever, vendia uma ou duas histórias, rejeições, o barco afundava outra vez. E arrumava um novo emprego... Interminavelmente. A cada vez, o barco do escritor afundava mais devagar, até que finalmente dava para sobreviver, com algum custo. E nunca olhei muito para trás. Foi assim que me tornei um escritor.

Ainda restava uma pilha de bolinhos no prato de Leslie, no meu só havia migalhas. Lambi a ponta do dedo e toquei nas migalhas, comendo-as em ordem impecável, uma depois de outra. Sem comentários, escutando, ela transferiu seus bolinhos para o meu prato, guardando apenas um para si mesma.

— Eu sempre desejara levar uma vida de aventuras — continuei. — Levei muito tempo para compreender que somente eu poderia fazer com que isso me acontecesse. Assim, fiz as coisas que sentia vontade de fazer, escrevi a respeito, livros e histórias para revistas.

Ela me estudou atentamente, como se eu fosse um homem que conhecera mil anos antes. Senti-me culpado.

— Não consigo mais parar — murmurei. — O que tez comigo? Eu lhe disse que sou um ouvinte e não um falador. Agora, não vai mais acreditar.

— Ambos somos ouvintes — disse ela. — Ambos somos faladores.

— É melhor terminarmos nossa partida de xadrez, Leslie. O lance é seu.

Eu esquecera a minha elegante armadilha, levei tanto tempo para lembrar quanto ela precisou para analisar a situação e fazer o seu lance.

Só que Leslie não adiantou o peão que era essencial para a sua sobrevivência. Fiquei triste e deliciado. Mas pelo menos ela veria minha maravilhosa armadilha de cetim ser fechada. Aprender é isso, afinal de contas, pensei, não se perdemos a partida, mas como perdemos e como mudamos por causa disso, o proveito que levamos e que não tínhamos antes, a fim de aplicar a outras partidas. Perder, de uma maneira curiosa, é vencer.

Mesmo assim, parte de mim ficou triste por Leslie. Minha rainha entrou em ação e expulsou o seu cavalo do tabuleiro, apesar do cavalo estar defendido. Agora, o seu peão tomaria a minha rainha, para o sacrifício. Vá em frente e tome a rainha, sua diabinha, divirta-se enquanto pode...

O peão não tomou a minha rainha. Em vez disso, depois de um momento, o bispo de Leslie voou de um lado a outro do tabuleiro, seus olhos azuis-noturnos observando os meus à espera de uma reação.

— Xeque-mate — murmurou ela,

Fiquei pálido, incrédulo. Depois, estudei o que ela fizera, peguei o caderninho de anotações e escrevi meia página.

— O que você escreveu?

— Um ótimo pensamento novo. Aprender é isso, no final das contas: não se perdemos a partida, mas como perdemos e como mudamos por causa disso, o proveito que levamos e que não tínhamos antes, a fim de aplicar a outras partidas. Perder, de uma maneira curiosa, é vencer.

Ela sentou-se no sofá, sem sapatos, os pés ajeitados por baixo do corpo. Sentei-me na cadeira oposta e coloquei os pés cuidadosamente sobre a mesinha, para não deixar marcas no vidro.

Ensinar a língua do pê a Leslie foi como observar uma pessoa aprendendo a esquiar na água, em seu primeiro passeio. Depois que entendeu o princípio, ela falou sem maiores dificuldades. Quando eu era garoto, levei dias para aprender, negligenciando a álgebra.

Lespelipiepe, vopocepe popodepe compomrepeenpedepeerpe opo quepe espetopoupu dipizenpedopo?

Depeipixepe eupe vtrpe... popossopo simpim! Copomopo vopocepe dipiripiapa “Paparicar” napa limpiauapa dopo pepel

Oporapa, epe simpilespe... papapaparipicapar.

Como ela aprendeu depressa, que prazer para a mente ela era! A única maneira de acompanhá-la era ter estudado alguma coisa que ela nunca vira, inventar novas regras de comunicação ou se basear na pura intuição. Recorri à última coisa, naquela noite.

— Só de olhar, posso dizer que você tocou piano por um longo tempo, Madame Parrish. Só de ver a música ali, as sonatas de Beethoven no papel amarelado, com velhas anotações a lápis entre as notas. Deixe-me adivinhar... desde que estava na escola secundária?

Leslie sacudiu acabeça.

— Antes disso. Quando eu era pequena, fiz um teclado de papel para praticar, já que não tínhamos dinheiro para um piano. Antes disso, antes mesmo que eu pudesse andar, minha mãe conta que engatinhava para qualquer piano que avistava e tentava tocar. Desde então, a música era tudo o que eu queria. Mas não pude tê-la por um longo tempo. Meus pais se divorciaram. Mamãe ficou doente e meu irmão e eu passamos a pular de um lar adotivo para outro, durante algum tempo.

Cerrei os maxilares. Há uma infância sombria, pensei. O que teria feito com ela?

— Mamãe saiu do hospital quando eu tinha 11 anos e fomos morar no que você chamaria as ruínas de uma casa anterior à Guerra Revolucionária, enormes e grossas paredes de pedras, ratos, buracos no assoalho. Alugamos a casa a 12 dólares por mês e mamãe tentou consertá-la. Ela ouviu falar um dia de um piano velho à venda e comprou-o para mim! Custou-lhe uma fortuna, 40 dólares. Mas mudou o meu mundo. Nunca mais voltei a ser como antes.

Resolvi avançar por outro rumo.

— Lembra-se da vida anterior em que tocava piano?

— Não... e não tenho certeza se acredito em outras vidas. Mas há uma coisa curiosa. A música que não é posterior a Beethoven, ao início do século XIX, é fácil, como se eu estivesse reaprendendo. Tenho a sensação de que sei à primeira vista. Beethoven, Schubert, Mozart... é como encontrar velhos amigos. Mas não Chopin, Liszt... isso é música nova para mim.

— E Johann Sebastian? Ele foi um compositor antigo, do início do século XVIII...

— Não. Também tenho de estudá-lo.

— Se alguém tocasse piano no início do século XIX, teria conhecido Bach, não é mesmo?

Leslie sacudiu a cabeça.

— Não. Sua música estava perdida, ficou esquecida até meados do século XIX, quando seus manuscritos foram descobertos e reeditados. Por volta de 1810 e 1820 ninguém sabia de coisa alguma a respeito de Bach.

Os cabelos se arrepiaram na minha nuca.

— Gostaria de saber se viveu nessa época? Li num livro um meio de recordar vidas anteriores. Quer tentar?

— Talvez algum dia...

Por que ela se mostra relutante? Como pode uma pessoa tão inteligente não ter certeza se há mais de nós do que um mero cintilar na eternidade?

Não muito tempo depois disso, que foi pouco depois das 11 horas da noite, resolvi consultar o relógio. Eram quatro horas da madrugada.

— Leslie! Sabe que horas são?

Ela mordeu o lábio, olhou para o teto por um momento.

— Nove?

 

 

 

dezesseis

 

Acordar às sete horas para voar até a Flórida não será agradável, pensei, depois que Leslie me deixou no hotel e foi embora pela escuridão. Permanecer desperto depois das 10 horas da noite era algo excepcional para mim, um resquício do homem que perambulava de cidade em cidade, dormindo sob a asa do avião uma hora depois do pôr-do-sol. Deitar às cinco horas da manhã para acordar às sete e voar cinco mil quilômetros será um desafio.

Mas houvera tanta coisa a ouvir de Leslie, tanta coisa a dizer!

Não morrerei se me privar de um pouco de sono, pensei. Com quantas pessoas no mundo posso escutar e falar até quatro horas da madrugada, até muito depois que o último bolinho desapareceu, sem me sentir absolutamente cansado? Com Leslie e com quem mais?

Adormeci sem uma resposta.

 

 

 

dezessete

 

— Leslie, perdoe-me por telefonar tão cedo. Está acordada?

Era o mesmo dia, passando um pouco das oito horas da manhã, pelo meu relógio.

— Estou agora. Como se sente esta manhã, wookie?

— Dispõe de tempo hoje? Não conversamos por tempo suficiente ontem à noite. Se o seu horário permitir, pensei que poderíamos almoçar juntos. E quem sabe jantar também?

Houve silêncio no outro lado da linha. Compreendi no mesmo instante que estava me impondo a ela e estremeci. Não deveria ter telefonado.

— Você disse que voaria de volta à Flórida hoje.

— Mudei de idéia. Irei amanhã.

— Sinto muito, Richard, mas tenho um almoço marcado com Ida e depois uma reunião à tarde. E também um compromisso para o jantar. Lamento muito. Adoraria estar com você, mas pensei que não estaria aqui hoje.

Isso me ensinará a não fazer mais suposições, pensei. O que me levou a pensar que ela não tem outra coisa a fazer que não sentar e conversar comigo? Senti-me imediatamente sozinho.

— Não há problema, Leslie. De qualquer forma, é melhor eu partir. Mas posso lhe dizer o quanto gostei da nossa última noite? Eu poderia escutá-la e falar com você até que o último bolinho do mundo desaparecesse. Sabia disso? Se não sabia, fique sabendo agora!

— Eu também. Mas por todos aqueles bolinhos que Porco me dá terei de passar fome por uma semana, até que você possa me reconhecer outra vez. Estou imensa de gorda. Por que você não pode gostar de sementes e aipo?

— Levarei sementes de aipo na próxima vez.

— Não esqueça.

— Volte a dormir agora. Desculpe tê-la acordado. E obrigado pela noite passada.

— Eu é que agradeço. Até a próxima.

Desliguei e comecei a meter as roupas no meu saco de vôo. Já é tarde demais para deixar Los Angeles e voar tão longe para leste antes do escurecer?

Eu não gostava do vôo noturno no T-33. Uma falha no motor, um pouso forçado num avião pesado e veloz já é bastante difícil durante o dia; com a noite fechada lá fora se tornaria completamente desagradável.

Se eu decolar ao meio-dia, pensei, estarei em Austin, no Texas, por volta das cinco horas da tarde, pelo horário de lá; partindo às seis, estarei na Flórida pelas nove e meia ou dez horas, também no horário local. Restaria alguma claridade às dez horas da noite? Absolutamente nenhuma.

E daí? O T fora um avião de total confiança até agora... exceto por um pequeno vazamento hidráulico misterioso, o único problema que ainda não acertara. Mas podia perder todo o fluido hidráulico e mesmo assim não seria um desastre. O freio hidráulico não funcionaria, seria difícil movimentar os ailerons, os freios das rodas ficariam mais fracos. Mas ainda seria controlável,

Havia o presságio mais tênue, enquanto eu terminava de arrumar minhas coisas e imaginava o percurso do vôo. Não podia me ver a pousar na Flórida. O que podia sair errado? O tempo? Prometera nunca mais voar através de tempestades e provavelmente não faria isso. Uma falha no sistema elétrico?

Isso podia ser um problema. Perdendo a força elétrica no T, eu perderia as bombas de combustível dos tanques principais, restando apenas o combustível da fuselagem para continuar a voar. A maioria dos instrumentos deixaria de funcionar. Todo o equipamento de rádio e navegação sofreria um colapso. Não contaria com os freios hidráulicos e os flapes das asas. Uma falha elétrica implica um pouso em alta velocidade, exige uma pista maior. Com todas as luzes apagadas, é claro.

O gerador, o sistema elétrico., nunca falhou nem deu o aviso de que planeja falhar. Este avião não é o Mustang. Com que estou preocupado?

Sentei-me na beira da cama, fechei os olhos, relaxei e visualizei o avião, imaginei-o a flutuar na minha frente. Esquadrinhei-o meticulosamente de um lado a outro, atento a qualquer coisa que pudesse estar errada. Apenas uns poucos problemas menores afloraram... um pneu estava quase liso, uma tranca muito gasta na porta da câmara de ventilação, o pequeno vazamento hidráulico no meio do compartimento do motor que ainda não descobríramos o que era. Indiscutivelmente, não havia qualquer aviso telepático de que o sistema elétrico ou qualquer outro pudesse rebentar. E, no entanto, quando tentei visualizar a minha chegada na Flórida, naquela noite, não consegui.

Mas é claro! Eu não iria até a Flórida. Pousaria antes do escurecer em outro lugar.

Mesmo assim. Não fui capaz de me imaginar a me afastar do T-33 naquela tarde, em qualquer lugar. Devia ser muito fácil observar isso em minha mente. Lá estou eu, o motor desligado; não pode ver isso, Richard? Está desligando o motor em algum aeroporto onde pousou...

Eu não podia ver.

Que tal a aproximação final? Claro que pode ver a volta, a pista se erguendo imponente da terra, o trem de aterrissagem abaixado, três imagens para mostrar que está firmemente no lugar?

Nada.

Mas que diabo!, pensei. Não é minha força elétrica que está falhando hoje, mas sim a psíquica.

Peguei o telefone e liguei para a estação de meteorologia. O tempo estaria bom até o Novo México, informou a mulher, depois eu alcançaria uma frente fria, tempestades até 12 mil metros. Passaria sobre as tempestades a 13 mil metros, se o T pudesse subir tão alto. Por que não podia me visualizar a pousar são e salvo?

Mais um telefonema, para o hangar.

— Ted? Aqui é Richard. Estarei aí dentro de uma hora... pode tirar o T para mim e providenciar o abastecimento total? O oxigênio está bom, o óleo também. Pode precisar de um pouco de fluido hidráulico.

Abri os mapas sobre a cama, tomei anotações das freqüências de navegações, cursos e altitudes que eu precisaria em vôo. Calculei os tempos de curso, combustível consumido. Podíamos subir a 13 mil metros, se necessário, mas seria por um triz.

Peguei os mapas e a bagagem, paguei a conta do hotel, tomei um táxi para o aeroporto. Será agradável rever as minhas mulheres da Flórida. Ou pelo menos assim suponho.

A bagagem guardada no avião, as portas do compartimento inferior devidamente trancadas, subi a escada para a carlinga, tirei o capacete da bolsa e pendurei na capota. Era difícil acreditar. Dentro de 20 minutos aquele avião e eu estaríamos subindo por seis quilômetros, aproximando-nos da fronteira do Arizona.

— Richard! — gritou Ted da porta do escritório. — TELEFONE! VAI ATENDER?

— NÃO! DIGA QUE JÁ PARTI! — E depois, por curiosidade, indaguei: — QUEM É?

Ele perguntou ao telefone e depois me informou:

— LESLIE PARRISH!

— DIGA A ELA QUE JÁ VOU ATENDER!

Deixei o capacete e a máscara de oxigênio pendurados, corri para atender.

Quando ela veio me buscar no aeroporto, as trancas de segurança em solo do avião já estavam baixadas, as cobertas no lugar, a capota fechada e trancada, o enorme aparelho de volta ao hangar, para passar outra noite.

Era por isso que eu não pudera me visualizar pousando, pensei. Seria impossível visualizar esse futuro porque não aconteceria! A bagagem na mala do carro, ocupei o banco ao lado de Leslie e disse:

— Oi, pequena wookie, igualzinha a todos os wookies, só que muito menor. Não sabe como estou feliz em vê-la! Como conseguiu se livrar de todos os seus compromissos?

Leslie tinha um carro de luxo, cor de areia. Depois que assistíramos ao filme com o wookie, o carro fora rebatizado de Bantha, por causa de uma enorme criatura de areia no mesmo filme. Afastou-se suavemente do meio-fio, levando-nos para um rio de Banthas de cores diferentes, todos migrando para todos os lugares ao mesmo tempo.

— Pelo pouco tempo que temos juntos, achei que poderia dar um jeito. Tenho de pegar algumas coisas na Academia e depois estou livre.

Aonde gostaria de me levar para almoçar?

— A qualquer lugar. O Magic Pan, se não estiver muito cheio. Disse que tinha uma área reservada aos não-fumantes, não é mesmo?

— Teremos de esperar pelo menos uma hora, no almoço.

— De quanto tempo dispomos?

— Quanto tempo você quer, Richard? Jantar? Cinema? Xadrez? Conversa?

— Ora essa, você é maravilhosa! Cancelou todo o seu dia para mim? Não imagina o quanto isso significa!

— Significa que prefiro estar com um wookie visitante do que com qualquer outra pessoa. Mas nada de calda de chocolate, nada mais de bolinhos, nada mais de pernicioso! Você pode comer as coisas perniciosas, se quiser, mas estou de volta à dieta para pagar meus pecados!

Enquanto viajávamos, falei sobre a minha insólita experiência da manhã, sobre as minhas conferências extra-sensoriais do avião e do vôo, sobre momentos estranhos no passado, quando tais coisas haviam sido extraordinariamente acuradas, Leslie escutou cortesmente, cuidadosamente, como fazia sempre que eu falava sobre experiências paranormais. Mas senti que, por trás da cortesia, ela prestava atenção para encontrar explicações sobre eventos e interesses que não se atrevera a considerar antes. Ouvia como se eu fosse algum Leif Ericson afável, voltando com fotografias de uma terra cuja existência conhecia, mas nunca explorara.

Estacionando o carro perto do escritório da Academia de Cinema, Leslie disse:

— Não vou demorar nem um minuto. Quer me esperar aqui ou entrar também?

— Ficarei esperando. E não precisa se apressar.

Observei-a de longe, no meio da multidão que desfilava pela calçada ao sol do meio-dia. Leslie estava modestamente vestida, uma blusa branca leve, uma saia branca... mas quantas cabeças se viraram para contemplá-la! Cada homem num círculo em movimento de 30 metros ao seu redor diminuía os passos para admirá-la. Os cabelos cor de mel-trigo esvoaçavam soltos e brilhantes, enquanto ela se apressava para aproveitar os últimos segundos do sinal verde e atravessar a rua. Ela acenou em agradecimento para um motorista que esperou sua passagem e ele acenou em resposta, bem recompensado.

Que mulher cativante, pensei. Era uma pena que não fôssemos mais parecidos.

Ela desapareceu no prédio e eu me estiquei pelo banco, bocejando. Para aproveitar este tempo, pensei, por que não ter uma noite inteira de sono? Isso exigirá um repouso auto-hipnótico de cerca de cinco minutos.

Fechei os olhos, respirei fundo. Meu corpo está completamente relaxado: agora. Respirei fundo outra vez. Minha mente está completamente relaxada: agora. Estou num sono profundo: agora, Despertarei no instante em que Leslie voltar; tão revigorado como se saísse de oito horas de sono normal e profundo.

A auto-hipnose para o repouso é particularmente eficaz quando não se dormiu mais que duas horas na noite anterior. Minha mente mergulhou na escuridão; o som nas ruas se desvaneceu. Imerso em breu total, o tempo parou. E depois, no meio das trevas de carvão.

LUZ!!!

Como se uma estrela caísse em cima de mim, 10 vezes mais brilhante do que o sol, a explosão de luz me deixando inteiramente surdo.

Nem sombra nem cor nem calor nem claridade nem corpo nem céu nem terra nem espaço nem tempo nem coisas nem pessoas nem palavras apenas

LUZ!

Flutuei atordoado na glória. Sabia que não era luz, aquele brilho imenso e incessante, irrompendo pelo que outrora fora eu. Não é luz. A luz, meramente representa, projeta outra coisa mais brilhante do que a luz, simboliza o Amor!, tão intenso que a idéia de intensidade é um pensamento cômico em comparação com a imensidão de amor que me engolfava.

EU SOU! VOCÊ É!

E AMOR: É TUDO: QUE IMPORTA!

A alegria explodiu através de meu corpo e me dilacerei, átomo por átomo, no amor, palito de fósforo caído no sol. Alegria intensa demais para suportar, por mais um instante que fosse! Sufoquei. Por favor, não!

No momento em que pedi, o Amor recuou, desvaneceu-se na noite de sol a pino em Beverly Hills, hemisfério norte, terceiro planeta estrela menor galáxia menor universo menor uma fração de convicção em espaço-tempo imaginado. Eu era uma forma de vida microscópica, infinitamente grande, caindo fora de seu palco, surpreendendo um olhar de microssegundo de sua própria realidade e quase se vaporizando no choque. Despertei no Bantha, o coração disparado, o rosto encharcado de lágrimas.

— Ai.'.'.' — berrei.— Ai-ai-ai!

Amor! Tão intenso! Se ficasse verde, seria um verde tão transcendentalmente verde que até o Príncipe do Verde não seria capaz de imaginar... como estar numa bola enorme, como estar no sol mas não no sol, não havia extremidades, não havia horizontes, tão brilhante e SEM CLARÃO, levantei os olhos abertos para o mais brilhante... e, no entanto, eu não tinha olhos. NÃO PODIA SUPORTAR A ALEGRIA daquele Amor... Era como se largasse a minha última vela numa caverna negra e depois de algum tempo um amigo, para me ajudar a ver, acendesse uma bomba de hidrogênio.

Junto da luz, este mundo...; junto daquela luz, a idéia de viver e morrer, é simplesmente... irrelevante.

Sentei-me piscando no carro, ofegando por ar. Santo Deus! Foram necessários 10 minutos de prática para aprender a respirar outra vez. O que... Por que... Aí!

Havia um brilho louro-e-sorriso por cima da calçada, cabeças se virando na multidão para observar. Um momento depois, Leslie abriu a porta, empilhou envelopes no banco, sentou-se ao volante.

— Desculpe ter demorado tanto, wookie. Tinha muita gente lá dentro. Derreteu até a morte aqui fora?

— Leslie, preciso lhe dizer uma coisa. Aconteceu... acaba de acontecer... uma coisa...

Ela virou-se para mim, alarmada.

— Você está bem, Richard?

— Estou ótimo! Ótimo ótimo ótimo ótimo.

Balbuciei ao falar, falei em fragmentos e depois caí em silêncio.

— Eu estava sentado aqui, depois que você saiu, fechei os olhos... Luz, mas não era luz. Mais brilhante do que a luz, mas sem clarão, sem machucar. AMOR, não as sílabas fáceis, mas Amor que É! Como nenhum amor que já pude imaginar. E AMOR! É TUDO: QUE IMPORTA! Palavras, mas não eram palavras nem mesmo idéias. Isso já... aconteceu com você?

— Já, sim. — Depois de um longo momento de recordação, ela continuou: — Lá no alto, nas estrelas, quando deixei meu corpo. Uma unidade com a vida, com um universo tão lindo, um amor tão poderoso que a alegria me fez chorar!

— Mas por que aconteceu? Eu ia tirar apenas um rápido cochilo hipnótico, já fiz isso uma centena de vezes! Mas desta vez... PAM! Pode imaginar uma alegria tão intensa que não dá para suportar e suplica para ser desligada?

— Claro — murmurou Leslie. — Eu conheço... Ficamos sentados em silêncio por um momento. Depois, ela ligou o Bantha e nos perdemos no tráfego, já celebrando o nosso tempo juntos.

 

 

 

dezoito

 

Exceto pelo xadrez entre nós, não há ação. Não escalamos montanhas juntos, não descemos por rios caudalosos, não lutamos revoluções, não arriscamos as nossas vidas. Nem mesmo voamos em aviões. A coisa mais aventureira que partilhamos é um mergulho pelo tráfego no La Cienega Boulevard, depois do almoço. Por que ela me atrai tanto?

— Já notou que nossa amizade é completamente... desprovida de ação? — perguntei, quando ela virou a oeste na Melrose, voltando para casa.

— Desprovida de ação? — Ela me fitou tão surpresa como se eu a tivesse tocado. — Ah, você... Às vezes é difícil perceber quando está brincando. Desprovida de ação!

— Estou falando sério. Não deveríamos estar esquiando pelo país, surfando no Havaí ou qualquer outra coisa igualmente dinâmica? Exercício puxado para nós é levar uma rainha no xadrez e dizer “Xeque” ao mesmo tempo. Só uma observação. Nunca tive antes uma amiga como você. Não somos horrivelmente cerebrais... não falamos demais?

— Richard, xadrez e conversa, por favor! Não desperdiçando festas e dinheiro, que é o exercício predileto nesta cidade.

Ela entrou com o carro numa rua transversal, virou na sua casa, foi parar na entrada da garagem, desligou o motor.

— Com licença por um minuto, Leslie. Vou correr para casa e queimar até o último dólar que tenho. Levará só um momento...

Ela sorriu.

— Não precisa queimá-lo. Não é problema se você tem dinheiro. O que importa para uma mulher é se usa o dinheiro para tentar comprá-la. Tome cuidado para nunca tentar isso.

— Tarde demais. Já o fiz. E mais de uma vez.

Leslie virou-se para mim, recostando-se na porta do carro. Não fez menção de abri-la.

— Você? Por que acho isso tão surpreendente? De certa forma, não posso imaginá-lo a fazer... Diga-me uma coisa: comprou algumas mulheres boas de fato?

— O dinheiro faz estranhas coisas. Assusta-me observar, testemunhar pessoalmente acontecendo comigo, não um filme, mas não-ficção direta, vida real. É como se eu fosse o homem a mais num triângulo amoroso, tentando intrometer-me entre uma mulher e meu dinheiro. Muito dinheiro ainda é uma coisa nova para mim. Aparece uma mulher muito simpática, que não tem muito com que viver, que está quebrada, o aluguel atrasado. E eu digo: “Por que não gastar um pouco para ajudá-la?”

Eu precisava de uma resposta para isso. Parte da minha mulher perfeita no momento incluía três graciosas amigas que lutavam para sobreviver.

— Faça o que julgar que está certo, Richard. Mas não se engane pensando que alguém vai amá-lo porque é você quem paga o aluguel ou faz as compras. Uma maneira de ter certeza de não ser amado é deixar que as mulheres dependam de você por seu dinheiro. E sei muito bem do que estou falando!

Acenei com a cabeça. Como ela sabe? Existem homens querendo arrancar o seu dinheiro?

— Não é amor — declarei. — Nenhuma delas me ama. Desfrutamos uns aos outros. Somos felizes parasitas mútuos.

— Argh.

— Como?

— Argh: expressão de repulsa. “Felizes parasitas mútuos” me faz ver percevejos.

— Desculpe. Ainda não resolvi o problema.

— Na próxima vez, não diga a elas que tem dinheiro.

— Não dá certo. Sou um péssimo enganador. Pego o caderninho de anotações e as notas de 100 dólares caem pela mesa. E ela diz: “Mas você falou que estava vivendo do seguro-desemprego!” O que posso fazer?

— Talvez seja um caso perdido. Tome cuidado. Não há cidade como esta para ensinar as muitas maneiras pelas quais se arrebentam as pessoas que não são capazes de lidar com dinheiro. — Ela finalmente abriu a porta. — Quer uma salada... alguma coisa saudável? Ou será calda de chocolate para o Porco?

— O Porco não quer mais saber de calda de chocolate. Podemos dividir uma salada?

Entrando na casa, Leslie pôs para tocar, baixinho, uma sonata de Beethoven, preparou uma enorme salada de vegetais e queijo. Voltamos a conversar. Perdemos o pôr-do-sol, perdemos um filme de pesquisa, jogamos xadrez e nosso tempo juntos se foi.

— Devo estar muito preocupado com a decolagem amanhã cedo — murmurei. — Acha que o meu jogo está em forma, perdendo desse jeito três em cada quatro partidas? Não sei o que aconteceu com o meu jogo...

— Seu jogo continua tão bom quanto antes — respondeu ela, piscando para mim. — Mas o meu está melhorando. Vai lembrar 11 de julho como o dia em que venceu a sua última partida de xadrez de Leslie Parrish!

— Ria enquanto pode, malvada. Na próxima vez em que nos encontrarmos, esta mente terá memorizado Armadilhas Perversas no Xadrez e todas estarão à sua espera no tabuleiro. — Suspirei sem perceber. — É melhor eu ir agora. A motorista de Bantha me dará uma carona até o hotel?

— Dará sim.

Mas Leslie não saiu da mesa. Para agradecer pelo dia, inclinei-me e peguei-lhe a mão, de leve, afetuosamente. Ficamos nos olhando por um longo tempo e ninguém falou, ninguém notou que o tempo havia parado. O próprio silêncio dizia o que nunca consideráramos em palavras.

Depois, de alguma forma, estávamos nos abraçando e beijando, suavemente, suavemente.

Não me ocorreu então que, ao me apaixonar por Leslie Parrish, estava destruindo a única irmã que já tivera.

 

 

 

dezenove

 

Despertei pela manhã para a luz do sol filtrada e dourada pelos cabelos de Leslie, espalhados sobre os nossos travesseiros. Despertei para o seu sorriso.

— Bom dia, wookie — disse ela, tão próxima e afetuosa que mal entendi as palavras. — Dormiu bem?

— Hem? Mas claro! Sim, obrigado... dormi muito bem! Tive um sonho glorioso ontem à noite... você não ia me levar ao hotel? Não pude evitar de lhe dar um pequeno beijo e depois... que sonho lindo!

Por uma vez, por uma vez abençoada, a mulher ao meu lado na cama não era uma estranha. Por uma vez em minha vida, aquela pessoa pertencia exatamente ao lugar em que estava... e eu também. Estendi a mão para o seu rosto.

— Será só um minuto e depois você desaparecerá no ar, não é mesmo? Ou o despertador vai tocar, o telefone soar e será você a me perguntar se dormi bem. Não chame ainda. Quero sonhar mais um pouco, por favor.

— Rimmm... — fez Leslie, numa vozinha fina.

Ela empurrou as cobertas para o lado, suspendendo um nada-telefone ao ouvido. O sol em seu sorriso, nos ombros e seios expostos deixou-me ainda mais desperto.

— Rimmm... Alô? Richard? Como dormiu a noite passada? Hem?

Ela mudou naquele instante para a sedutora inocente, pura e saudável — uma mente brilhante como uma estrela num corpo de deusa sexual. Fiquei impressionado com a intimidade do que ela fazia com um movimento, uma frase, um lampejo dos olhos.

A vida com uma atriz! Eu não imaginara... quantas Leslies diferentes podem estar se agitando naquela, quantas podem haver para entrar em contato, para conhecer, surgindo em súbitos refletores no palco desta única pessoa?

— Você é... tão... linda! — balbuciei, perseguindo as palavras. — Por que não me disse antes que é assim... deslumbrante?

O telefone desapareceu de sua mão, a inocente virou-se para mim com um sorriso irônico.

— Você nunca pareceu interessado.

— Isto será uma surpresa para você, mas é melhor se acostumar, porque sou um artesão da palavra e não posso deixar de proferir uma poesia de vez em quando. É a minha natureza e não posso ser diferente: Eu acho que vocêé formidável!

Ela balançou a cabeça devagar, solenemente.

— Isso é muito bom... artesão da palavra. Obrigado. Também acho que você é formidável. — Fração de segundo, uma idéia diferente e ardente aflorou em sua mente. — Agora, na prática, vamos dizer a mesma coisa sem palavras.

Morrerei de felicidade agora, pensei, ou esperarei por mais algum tempo?

Esperar parecia a melhor coisa. Flutuei à beira da morte-por-alegria, quase sem palavras, mas não totalmente.

Eu não poderia ter inventado uma mulher tão perfeita para mim, pensei; contudo, aqui está ela, real, viva, escondida na pessoa de Leslie Parrish, conhecida há anos, mascarada dentro da minha associada nos negócios, minha melhor amiga. Somente esse fragmento de maravilha aflorou, logo varrido pela visão dela ao sol.

Luz e contato, sombras suaves e sussurros, aquela-manhã- virando-tarde-virando-noite, com o nosso caminho descoberto a se encontrar outra vez, depois de uma vida de separação. Cereal para o jantar. E, finalmente, pudemos voltar a conversar em palavras.

Quantas palavras, quanto tempo se leva para dizer Quem É Você? Quanto tempo para dizer por quê? Mais tempo do que tínhamos antes das três horas da madrugada, antes do sol nascer. O cenário de tempo desapareceu. Era luz fora da casa ou era não-luz, chovia ou estava seco, relógios marcavam 10 e não sabíamos que 10 de que dia de que semana podia ser. Acordávamos em nossas manhãs para as estrelas sobre a cidade escura e silenciosa; nas meias-noites nos abraçávamos e sonhávamos onde estavam as horas do rushe do almoço em Los Angeles.

Uma alma-irmã não pode ser possível, como eu aprendera nos anos desde que renunciara ao Fleet por dinheiro, construindo meu império murado. Não é possível para pessoas que correm ao mesmo tempo em 10 direções e 10 velocidades, não é possível para ©s porcos da vida. Eu teria aprendido errado?

Voltei ao quarto, numa de nossas manhãs por volta de meia-noite, balançando uma bandeja com fatias de maçã, queijo e bolachas.

— Oh! — exclamou ela, sentando-se na cama, piscando os olhos para despertar, alisando os cabelos para que caíssem só um pouco desgrenhados pelos ombros nus. — Você é adorável! Que homem atencioso!

— Poderia ser ainda mais, se houvesse na sua cozinha leitelho ou batatas para o kartoffelkuckn.

Kartoffelkuckn! — repetiu Leslie, atônita. — Minha mãe fazia kartoffelkuckn quando eu era pequena! Pensei que eu fosse a única pessoa no mundo que lembrasse disso. Pode fazê-lo?

— A receita está trancada em absoluta segurança nesta mente extraordinária, transmitida diretamente por Vovó Bach. E você é o único ser humano que me disse essa palavra em resposta durante mais de 15 anos! Devemos relacionar todas as coisas que temos em...

Afofei alguns travesseiros e recostei-me de maneira a poder contemplá-la claramente. Puxa, pensei, como adoro a beleza dela! Ela me percebeu a olhar para seu corpo e deliberadamente sentou-se muito empertigada na cama por um momento, observando-me prender a respiração. Depois, levantou o lençol até o queixo.

— Você responderia a meu anúncio? — perguntou ela, subitamente tímida.

— Claro. Que anúncio é?

— Um anúncio classificado. — Ela pôs uma fatia transparente de queijo na metade de uma bolacha. — Sabe o que diz?

— Conte-me.

Minha própria bolacha rangeu sob o peso do seu queijo, mas calculei que se mantinha estruturalmente sólida.

Procura-se: um homem cem por cento. Deve ser brilhante, criativo, divertido, capaz de intensa intimidade e alegria. Deve querer partilhar música, natureza, uma vida pacífica, serena e alegre. Não deve fumar, beber ou ser adepto de tóxicos. Deve amar aprender e querer crescer para sempre. Bonito, alto, esbelto, lindas mãos, sensível, gentil, amoroso. Tão afetuoso t sensual quanto possível.

Que anúncio! Claro que eu respondo!

— Ainda não terminei. Deve ser emocionalmente estável, honesto e digno de confiança, uma pessoa positiva e construtiva. Altamente espiritual, mas não de religião organizada. Deve amar gatos.

— Mas sou eu exatamente, ao pé da letra! Amo até mesmo o seu gato, embora desconfie que o sentimento não seja mútuo.

— Dê-lhe tempo. Ele passará um período com ciúme.

— Ah, você revelou!

— Revelei o quê? — indagou Leslie, deixando o lençol cair, inclinando-se para a frente e ajustando os travesseiros.

O efeito desse ato simples, o efeito de sua inclinação para a frente, foi para mim um empurrão para o gelo e fogo. Enquanto ela permanecia imóvel, era tão sensual quanto eu podia agüentar. Quando ela se mexia, as curvas e luzes mudando, cada palavra em minha mente se embaralhava, na mais total e feliz confusão.

— Hã...? — balbuciei, observando.

— Seu animal. Eu disse: “Revelei o quê?”

— Se você ficar imóvel, por favor, podemos ter uma boa conversa. Mas devo lhe avisar que se você não está vestida, qualquer movimento no travesseiro tende a me deixar inteiramente descarrilado.

Arrependi-me no mesmo instante. Ela levantou o lençol para cobrir os seios, manteve-o ali com os braços e fitou-me afetadamente por cima de sua bolacha.

— Está bem, está bem... O que você revelou, ao dizer que seu gato ficaria com ciúme por algum tempo, foi que acha que atendo às exigências de seu anúncio.

— Eu queria mesmo revelar isso. E estou contente que você tenha percebido.

— Não receia que eu, sabendo disso, tente agora me aproveitar de você?

Com um enorme esforço mental, estendi a mão e levantei o lençol branco.

— Notei que estava caindo, madame. E no interesse de uma conversa meticulosa, achei que talvez fosse melhor providenciar para que não descesse demais.

— Quanta gentileza...

— Acredita em anjos da guarda?

— Para proteger e velar, ajudar a guiar-nos? Acredito, sim, às vezes.

— Então me diga: por que um anjo da guarda deveria cuidar de nossa vida amorosa? Por que deveria guiar nossos romances?

— É fácil. Para um anjo da guarda, amar é mais importante do que qualquer outra coisa. Para eles, nossa vida amorosa é mais importante do que qualquer outra espécie de vida que tenhamos! Com o que mais os anjos deveriam se importar?

É claro que ela está certa!, pensei.

— Acha que é possível os anjos da guarda assumirem forma humana uns para os outros, tornarem-se amantes a intervalos de algumas vidas?

Ela deu uma mordida na bolacha, pensando a respeito.

— Acho, sim. — Uma pausa. — Um anjo da guarda responderia a meu anúncio?

— Com toda certeza. Todo anjo da guarda do país responderia a esse anúncio, se soubesse que era você quem estava anunciando.

— Eu só queria um. — Uma pausa. — Você tem um anúncio? Assenti, surpreendendo a mim mesmo.

— Estou escrevendo há anos. Procura-se: um anjo da guarda fêmea cem por cento em corpo humano, por favor. Independente, aventureira, exige-se profunda sabedoria. De preferência capacidade para iniciar e reagir criativamente em muitas formas de comunicação. Deve falar a língua do p!

— Isso é tudo?

— Não. Só devem se apresentar anjos de olhos gloriosos, corpos deslumbrantes e longos cabelos dourados. Exige-se curiosidade brilhante, capacidade voraz para aprender. Preferência para profissional em diversos campos criativos e empresariais, experiência em cargos de alta administração. Intrépida, disposta a assumir todos os riscos. Felicidade garantida a longo prazo.

Leslie escutou atentamente.

— A parte “de corpo deslumbrante e longos cabelos dourados” não é muito humana para um anjo?

— Por que não um anjo da guarda de corpo deslumbrante e cabelos compridos? Isso significa que ela é menos angelical, menos perfeita para o seu mortal, menos competente em sua função?

Por que os anjos da guarda não podem ser assim?, pensei, desejando o meu caderninho de anotações. Por que não um planeta de anjos, iluminando as vidas uns dos outros com aventura e mistério? Por que não pelo menos uns poucos que podem se encontrar de vez em quando?

— Quer dizer então que criamos qualquer corpo que nosso mortal considerar mais delicioso? Quando o mestre é bonito, prestamos atenção?

— Exatamente! Espere um instante...

Encontrei o caderninho de anotações no chão, ao lado da cama, escrevi o que ela disse, pus um traço e depois o L para Leslie.

— Já notou, depois que conhece uma pessoa por algum tempo, como sua aparência muda?

— Ele pode ser o homem mais lindo do mundo, mas se torna feio como pipoca quando nada tem a dizer. E o homem mais feio diz o que lhe importa e por que se importa, em dois minutos é tão bonito que você sente vontade de abraçá-lo!

Fiquei curioso.

— Já saiu com muitos homens feios?

— Não muitos.

— Se eles ficavam bonitos para você, por que não?

— Porque eles vêem a grande estrela do cinema toda elegante e bonita, pronta para as câmaras, calculam que ela só tem olhos para o homem mais bonito. Raramente me convidam para sair, Richard.

Os pobres tolos, pensei. Raramente pedem. Porque acreditamos na superfície, esquecemos que as superfícies não são quem são. Quando encontramos um anjo de mente fascinante, seu rosto se torna ainda mais adorável. E, depois, ela nos diz: “Diga-se de passagem, tenho este corpo...”

Escrevi no caderninho.

— Algum dia vou lhe pedir para ler mais das suas anotações — disse Leslie, transferindo a bandeja para a mesinha-de-cabeceira.

No movimento, o lençol tornou a cair. Ela levantou os braços, espreguiçando-se sensualmente.

— Mas não vou pedir agora — acrescentou ela, chegando-se mais perto. — Nada mais de perguntas por hoje.

Como eu não tinha mais condições de pensar, estava ótimo assim.

 

 

 

 

 

vinte

 

Não era música, mas uma discordância metálica, um barulho de serra. Mal ela se virou dos controles do stereo, depois de sintonizar o volume tão alto quanto possível, eu era um caldeirão de queixas.

— Isso não é música!

— COMO? — disse ela, perdida na música.

— EU DISSE QUE ISSO NÃO É MÚSICA!

— BARTÓK!

— O QUÊ?

— BÉLA BARTÓK!

— PODE ABAIXAR, LESLIE?

— CONCERTO PARA ORQUESTRA!

— PODE ABAIXAR O VOLUME SÓ UM POUQUINHO OU MESMO MUITO? PODE ABAIXAR O VOLUME MUITO?

Ela não ouviu as palavras, mas percebeu a sugestão e abaixou o volume.

— Obrigado, Leslie. Wookie, é isso... que você considera sinceramente... ser música?

Se eu tivesse observado atentamente, além do corpo delicioso no roupão florido, cabelos presos e cobertos por uma toalha convertida em turbante para secar, teria percebido o desapontamento em seus olhos.

— Você não gosta?

— Você adora música, estudou música durante toda a sua vida. Como pode dizer que essa desarmonia que estamos ouvindo, que essa discordância total... como pode chamar isso de música?

— Pobre Richard — disse ela. — Afortunado Richard! Você tem muito o que aprender sobre música. Tantas lindas sinfonias, sonatas e concertos que poderá ouvir pela primeira vez!

Ela parou o tape, rebobinou e tirou da máquina.

— Talvez seja um pouco cedo para Bartók. Mas lhe prometo que chegará o dia em que escutará o que acabou de ouvir e chamará de glorioso.

Ela examinou a sua coleção de fitas, escolheu uma e pôs no aparelho em que antes estivera o Bartók.

— Gostaria de ouvir um pouco de Bach... gostaria de ouvir a música do seu bisavô?

— Provavelmente me expulsará de sua casa invertida por dizer isso, mas só posso ouvi-lo por meia hora, depois me sinto perdido e um pouco entediado.

— Entediado? Escutando Bach? Então não sabe escutar! Nunca aprendeu a escutá-lo! — Ela apertou um botão e a fita começou a tocar; vovô em algum órgão monstruoso, era óbvio. — Primeiro, você tem de sentar direito. Venha sentar aqui, entre os alto-falantes. Este é o lugar em que sentamos quando queremos ouvir toda a música.

Eu me sentia como no jardim de infância musical, mas adorava estar com ela, sentado bem perto.

— Basta a complexidade para tornar a música irresistível. A maioria das pessoas escuta música horizontalmente, acompanhando a melodia. Mas pode-se escutar também estruturalmente. Já fez isso alguma vez?

— Estruturalmente? Não.

— A música antiga era toda linear — disse ela, sobre uma enxurrada de notas de órgão — melodias simples desenvolvidas uma de cada vez, temas primitivos. Mas seu avô criou temas complexos, com pequenos ritmos difíceis, reunindo-os a intervalos irregulares. Projetou assim estruturas intrincadas e também um sentido vertical... harmonia! Algumas harmonias de Bach são tão dissonantes quanto as de Bartók. E lembre-se que Bach as criou um século antes de alguém sequer pensar em dissonância.

Ela parou a fita, sentou-se no banco do piano e, sem qualquer hesitação, tocou no teclado o último acorde que saiu pelos alto-falantes.

— Pronto. — Parecia mais evidente no piano do que pelos alto-falantes. — Está vendo? Aqui está um tema... — Leslie tocou por um instante e depois acrescentou: — E aqui está outro... e mais outro. Observe agora como ele desenvolve. Começamos com o tema A na mão direita. O A torna a entrar quatro compassos depois na mão esquerda. Está ouvindo? Eles continuam juntos até... aqui vai o B. E o A lhe está subordinado agora. Aqui está o A entrando de novo na mão direita. E agora... o C!

Ela destacou os temas, um a um, depois reuni-os. Lentamente, a princípio, depois mais depressa. Eu mal conseguia acompanhar. O que era Adição Simples para ela constituía Cálculo Avançado para mim; fechando os olhos e comprimindo a testa com as mãos, eu podia quase compreender.

Ela recomeçou, explicando cada etapa. Enquanto tocava, uma luz começou a brilhar através de um salão sinfônico interior que permanecera escuro durante toda a minha vida.

Leslie estava certa! Havia temas entre os temas, dançando juntos, como se Johann Sebastian tivesse encerrado segredos em sua música para o prazer particular daqueles que aprendiam a ver abaixo da superfície.

— Mas que alegria! — exclamei, excitado por compreender o que ela estava dizendo. — Estou ouvindo! Está mesmo aí!

Ela sentiu-se tão contente quanto eu, esqueceu de vestir-se ou escovar os cabelos. Deslocou a pauta musical do fundo da estante de música do piano para a frente, Johann Sebastian Bach era o que dizia. Houve então uma tempestade de notas, ritmos, pontos, sustenidos, bemóis, ligaduras, trinados e súbitos comandos em italiano. Logo no início, antes que a pianista pudesse recolher o trem de aterrissagem e voar para aquela tempestade, era atingida por um con brio, que calculei estar destinado a ser tocado com exuberância, moderação ou maestria.

Impressionante. Minha amiga, com quem só recentemente eu emergira de lençóis quentes e sombras voluptuosas, com quem eu falava inglês à vontade, espanhol com riso, alemão e francês com muita perplexidade e experiência criativa, minha amiga desatara subitamente a cantar em uma língua nova e extremamente complicada, cujo aprendizado começava para mim naquele dia ao ouvir.

A música rompeu do piano como água fresca e cristalina de uma rocha tocada pelo profeta, despejando-se ao nosso redor, quando seus dedos saltavam e se estendiam, se enroscavam e enrijeciam, derretiam-se e faiscavam em passes de mágica, lançavam relâmpagos sobre o teclado.

Nunca antes ela tocara para mim, alegando que estava sem prática, inibida demais até para descobrir as teclas do instrumento enquanto eu me encontrava na sala. Alguma coisa, porém, acontecera entre nós... porque éramos amantes, agora, ela sentia-se livre para tocar ou era a mestra tão ansiosa em ajudar o discípulo surdo que nada podia mantê-la afastada da música?

Seus olhos acompanhavam cada gota de chuva daquele furacão no papel; esquecera que possuía um corpo, em que só as mãos permaneciam, os dedos toldados, um espírito que encontrava a sua canção no coração de um homem morto há 200 anos, erguendo-se triunfante do túmulo pelo desejo dela de música viva.

— Leslie! Santo Deus! Quem é você?

Ela virou ligeiramente a cabeça para mim e meio que sorriu, os olhos, a mente e as mãos ainda na música, trovejando para as alturas.

Depois, ela olhou para mim; a música parou no mesmo instante, a não ser pelos acordes ainda tremulando dentro do piano.

— E assim por diante, interminavelmente. — A música faiscava nos olhos de Leslie, em seu sorriso. — Percebe agora o que ele está fazendo aí? Percebe o que ele fez?

— Um pouquinho — murmurei. — E eu pensava que conhecia você! Deixou-me completamente tonto. Essa música é... é... você é...

— Estou um pouco sem prática, Richard. As mãos não funcionam como deveriam...

— Não, Leslie. Pare com isso. E escute. O que acabei de ouvir é pura... escute!... pura radiância, que você tirou das nuvens iluminadas e do nascer do sol, destilando nessa luz que posso ouvir! Sabe como é bom e maravilhoso o que faz com seu piano?

— Sabia que o piano foi a minha carreira escolhida?

— Uma coisa é saber disso em palavras, mas você nunca havia tocado antes! E agora acaba de me proporcionar mais um e totalmente diferente... paraíso!

Leslie franziu o rosto.

— ENTÃO NÃO SE SINTA ENTEDIADO COM A MÚSICA DO SEU AVÔ!

— Nunca mais isso acontecerá — murmurei, humildemente.

— E claro que nunca mais. Sua mente é muito parecida com a dele para não compreender. Cada linguagem possui a sua chave e o mesmo acontece com a de seu avô. Entediado... Essa não!

Ela aceitou a minha promessa de melhorar, depois de me arrasar a respeito, e foi escovar os cabelos.

 

 

 

vinte e um

 

Ela virou-se da máquina de escrever, sorriu para mim, sentado com uma xícara de chocolate e o esboço de um roteiro de cinema.

— Não precisa engolir tudo de uma vez, Richard. Pode tomar em goles, devagar. Pode assim fazer com que dure mais.

Ri de mim, junto com ela. Para Leslie, pensei, devo parecer um mero boneco de palha no sofá do seu escritório.

A mesa organizada, os arquivos em perfeita ordem, nem um único clipe fora do lugar. Ela própria parecia igualmente impecável, com uma calça bege confortável, blusa transparente metida para dentro, um sutiã tão transparente quanto a blusa, delineado por flores brancas. Os cabelos estavam escovados em ouro. Aqui está, pensei, como o esmero deve parecer!

— Nossos drinques não são pesos de papel — comentei. — A maioria das pessoas toma o chocolate quente. Mas você faz amizade com o seu. Posso tomar chocolate quente em quantidade suficiente para detestar o gosto pelo resto dos meus dias no tempo que você leva para travar conhecimento com uma única xícara!

— Não prefere beber uma coisa amiga a algo que mal conheceu? — Íntima com seu chocolate, com sua música, com seu jardim, com seu carro, com sua casa, com seu trabalho. Eu estava ligado às coisas que conhecia por uma rede de fios de seda; ela se prendia às suas por cabos de prata trançada. Para Leslie, nada próximo era desprovido de valor.

Trajes profissionais e vestidos pendurados em seus armários, separados por cor e tonalidade de cor, cada um coberto por capas de plástico. Sapatos que combinavam no chão por baixo, chapéus que combinavam na prateleira por cima.

Livros nas estantes por assunto; discos e fitas por compositor, maestro e solista.

Uma desafortunada e desajeitada aranha tropeçou e caiu na pia? Tudo pára. Lá vem uma toalha de papel servindo como escada de socorro; depois que a criatura embarca, é levada para fora e largada gentilmente no jardim, com palavras suaves e advertências brandas de que pias não são lugares seguros para aranhas se divertirem.

Eu era completamente o oposto. O esmero, por exemplo, tinha uma prioridade inferior. As aranhas devem ser salvas das pias, é claro, mas não precisam ser mimadas. Levadas para fora e largadas na varanda, devem agradecer às suas estrelas-guia.

As coisas desaparecem num piscar de olhos; um vento bate e lá se vão para sempre. Os cabos de prata de Leslie... não se ligam tão fortemente às coisas e pessoas que, quando se vão, uma parte de nós não se perde também?

— É melhor nos ligarmos a pensamentos de eternidade do que a coisas do aqui e agora, desaparecidas no momento seguinte — comentei, quando seguíamos para o Music Center, Leslie ao volante. — Não concorda? Ela assentiu, guiando 10 quilômetros acima do limite de velocidade, sempre alcançando os sinais verdes.

— A música é uma coisa eterna, Richard.

Como um gato salvo, eu era alimentado com a nata da música clássica, para a qual ela insistia que eu tinha ouvido e aptidão.

Leslie tocou no rádio e imediatamente violinos fluíram, no meio de uma peça alegre. Outro teste chegando, pensei. Eu gostava dos testes.

— Barroca, clássica ou moderna? — indagou Leslie, entrando numa faixa vazia, a caminho do centro da cidade.

Escutei a música com intuição, assim como com uma nova instrução. Uma estrutura muito profunda para ser barroca, não era bastante formal para ser clássica, não era ondulada o suficiente para ser moderna. Romântica, lírica, ligeira...

— Neoclássíca — sugeri. — Parece música de um grande compositor, só que ele está se divertindo com esta peça. Eu diria que foi composta... em 1923?

Eu estava convencido de que Leslie conhecia a época, data, compositor, obra, movimento, orquestra, maestro, primeiro violino. Bastava-lhe ouvir uma música para conhecê-la; cantarolava em acompanhamento de cada uma das mil peças que acumulara. Cantarolava Stravinski, tão imprevisível quanto um cavalo xucro de rodeio, sem quase perceber que o fazia.

Bom palpite! — disse ela. — Muito perto! Compositor?

— Decididamente, não é alemão.

Não era bastante pesado; não tinha força impetuosa suficiente para ser alemão. Também não tinha o sabor de um francês, não sentia como um italiano e não parecia com um britânico. Não possuía o colorido da Áustria, não exibia ouro suficiente. Simples. Eu próprio podia cantarolar. Mas não era a simplicidade americana. Era dançante.

— Polonês? Dá-me a impressão de que foi composta nos campos a leste de Varsóvia.

— Bom palpite! Mas ele não é polonês. Um pouco mais ao leste. É russo.

Ela estava visivelmente satisfeita comigo. O Bantha não diminuiu a velocidade; os sinais verdes eram servos de Leslie.

— Russo? E onde está o anseio? Onde está o patético? Russo! Mas que coisa!

— Não se precipite com as generalizações, wookie. Nunca ouviu até agora qualquer música russa feliz. Mas tem razão numa coisa. Este é divertido.

— Quem é?

— Prokofiev.

— Mas quem diria! Ru...

— MALDITO IDIOTA! — Os freios rangeram, o Bantha derrapou furiosamente, desviou-se por um metro do caminhão que surgiu como um relâmpago negro. — Viu aquele filho da puta? Avançou direto o sinal! Quase nos matou... que porra ele pensa...

Leslie demonstrara reflexos como os de um piloto de corrida para se desviar da coisa que agora já sumia, descendo o Crenshaw Boulevard a meio quilômetro. O que me espantava não era o caminhão, mas a sua linguagem.

Ela olhou para mim, o rosto ainda franzido, percebeu a minha expressão, tornou a olhar, surpresa, empenhou-se para reprimir um sorriso, não conseguiu.

— Richard! Eu o choquei! Foi por causa do porra! — Ela sufocou o riso com imenso esforço. — Oh, meu pobre menino! Falei palavrão na sua frente! Desculpe!

Meio que senti raiva, meio que ri de mim mesmo.

— Muito bem, Leslie Parrish, então é isso! Desfrute ao máximo este momento, porque é a última vez que me verá chocado por causa de um porra!

Mesmo enquanto eu falava, a última palavra soava estranha em minha boca, sílabas contrafeitas. Como um abstêmio dizendo martini, um não-consumidor falando cigarro, baseado ou qualquer coisa do jargão tão fácil para os viciados. Não importa qual seja a palavra, se não a usamos nunca parece sair desajeitada. Até mesmo fuselagem parece esquisito ao sair de quem não gosta de aviões. Mas uma palavra é uma palavra, é um som no ar e não há motivo para que eu não seja capaz de dizer qualquer palavra que queira sem me sentir contrafeito.

Não falei por alguns segundos, enquanto Leslie faiscava para mim.

Como se pratica o palavrão? À melodia de Prokofiev, ainda saindo pelo rádio, pratiquei baixinho:

— Oh.., porra porra porra/ porra porra porra/ PORRA PORRA PORRA/ Oh, po-rra po-rra po-rra/ Oh porraaaaa PORRA!

Ao perceber o que eu cantava e a determinação ansiosa com que o fazia, Leslie dissolveu-se em alegria ao volante.

— Pode rir quanto quiser, porra, wookie! Aprenderei essa porra direitinho! Mas que porra! Qual é o nome da porra dessa música?

— Oh, Richard — balbuciou ela, limpando as lágrimas. — É Romeu e Julieta...

Continuei com a minha canção e depois de umas poucas estrofes a palavra perdeu inteiramente o seu significado. Mais alguns versos e eu estaria porrando como o pior deles! E, além, havia outras palavras a conquistar! Por que eu não pensara em fazer exercícios de palavrão 30 anos antes?

Leslie teve de conter os meus palavrões quando entramos no salão de concerto.

Foi somente quando voltamos ao carro, depois de uma noitada em primeira fila de Tchaikovski e Samuel Barber, com Zubin Mehta conduzindo Itzhak Perlman e a Filarmônica de Los Angeles, que pude expressar meus sentimentos.

— Foi uma porra de uma música sensacional! Não acha que foi uma boa... isto é, uma porra maravilhosa?

Ela levantou os olhos para o céu, suplicante.

— Que mal eu fiz? O que estou criando?

— Qualquer que seja a porra que está criando, está fazendo uma porra de um trabalho sensacional!

Ainda associados nos negócios, insistimos que algum trabalho fosse feito naquelas semanas juntos. Assim, escolhemos um filme para pesquisar e saímos cedo para entrar na fila da sessão da tarde. O tráfego suspirava e sussurrava na rua enquanto esperávamos; contudo, o tráfego não estava ali, como se uma névoa encantada, começando na extensão de um braço ao nosso redor, transformasse tudo além em fantasmagórico, enquanto conversávamos em nosso planeta particular.

Eu não notara a mulher que nos observava, não muito longe na névoa. Mas, subitamente, ela tomou uma decisão que me assustou. Aproximou-se de Leslie, tocou em seu ombro, demoliu nosso mundo.

— Você é Leslie Parrish!

O sorriso deslumbrante de minha amiga se desvaneceu no mesmo instante. Ainda era um sorriso, mas subitamente congelado; ela se refugiara por dentro, cautelosa.

— Com licença, mas eu a vi na TV no filme The Big Valley e no cinema em jornada nas Estrelas... Adoro o seu trabalho e acho que você é linda...

A mulher estava se mostrando sincera e um tanto tímida, fazendo com que os muros se afinassem.

— Hã... obrigada.

A mulher abriu a bolsa.

— Poderia... se não for muito incômodo... importa-se de dar um autógrafo para minha filha Corrie? Ela me mataria se soubesse que estive tão perto de você e não... — A mulher não estava tendo muita sorte em encontrar papel. — Tem de haver alguma coisa aqui...

Ofereci meu caderninho de anotações e Leslie acenou com a cabeça, aceitando-o.

— Tem aqui— disse ela à mulher, acrescentando depois para mim: — Obrigada, senhor.

Ela escreveu uma saudação para Corrie e depois assinou, arrancou a folha e entregou à mulher.

— Você foi também Violeta em As Aventuras de Ferdinando — disse a mulher, como se Leslie pudesse ter esquecido. — E trabalhou também em Sob o Domínio do Mal. Adorei.

— Ainda se lembra, depois de todo esse tempo? É muita gentileza...

— Muito obrigada. Corrie ficará tão feliz!

— Dê-lhe um abraço por mim.

Houve silêncio, depois que a mulher voltou a seu lugar na fila.

— Não diga uma só palavra! — resmungou Leslie.

— Foi comovente! E não estou brincando. Juro que achei.

Leslie se abrandou.

— Ela é doce e sincera. Há quem diga: “Você não é alguém?” Respondo que não e tento me esquivar. “Não, você é alguém, sei que é. O que já fez?” E querem que você enumere seus créditos... — Leslie sacudiu a cabeça, perplexa. — Não há meio sensível de lidar com as pessoas insensíveis. Ou será que há?

— Muito interessante. Eu não tenho esse problema.

— Não tem, wookie! Está querendo dizer que nunca teve uma pessoa grosseira se intrometendo em sua privacidade?

— Não em pessoa. Aos escritores, as pessoas insensíveis enviam cartas, mandam originais. Cerca de um por cento é assim, talvez nem tanto. O resto da correspondência é bastante agradável.

Fiquei ressentido com a velocidade da fila de ingresso. Em menos de uma hora tivemos de interromper nossas descobertas para entrar no cinema a negócios, sentar e assistir a um filme. Há tanto a ganhar de Leslie, pensei, segurando a sua mão no escuro, meu ombro encostando no seu, mais a dizer do que jamais houve! E agora havia entre nós a gentileza desvairada do sexo, mudando-nos, completando-nos.

Aqui está uma mulher incomparável em minha história, pensei, fitando-a no escuro. Não posso imaginar o que seria preciso para abalar e ameaçar o calor de sua proximidade. Aqui está a única mulher, entre todas as mulheres que conheço, com quem não pode haver qualquer dúvida do vínculo entre nós, por tanto tempo quanto vivermos.

Não é estranho como a certeza sempre surge antes do estilhaçar?

 

 

 

vinte e dois

 

Lá estava o lago mais uma vez, a Flórida cintilando sob as minhas janelas. Hidroaviões como libélulas faiscando ao sol deslizavam pela água e pelo ar. Nada mudou por aqui, pensei, largando a bolsa de vôo no sofá.

Um movimento na beira do meu campo de visão e pulei, vendo-a na porta, outro eu que esquecera: blindado, defendido e, no momento, enojado. Como voltar para casa de um passeio pela campina, margaridas nos cabelos, bolsos vazios de pedaços de maçã e cubos de açúcar para as corças, encontrando um guerreiro de armadura a aguardar friamente na casa.

— Você está sete semanas atrasado! — disse ele. — E não me falou onde estava. Será magoado pelo que devo dizer e eu poderia poupar-lhe essa dor. Richard, já viu Leslie Parrish em demasia. Esqueceu tudo o que aprendeu? Será que não percebe o perigo? A mulher ameaça toda a sua maneira de viver!

O manto de aço se mexeu, a armadura rangeu.

— Ela é uma mulher bonita.

Compreendi no mesmo instante que ele não perceberia o significa do, lembrando-me das muitas mulheres bonitas que conhecia. Silêncio Outro rangido.

— Onde está o seu escudo? Suponho que perdeu. É muita sorte que tenha voltado vivo.

— Precisamos conversar...

— Seu tolo. Acha que usamos armadura por diversão? — Olhos luziram, dentro do capacete. Um dedo em cota de malha percorreu os amassados e golpes no metal. — Cada marca foi feita por algum desígnio de mulher. Você foi quase destruído pelo casamento, escapou por milagre. Se não fosse pela armadura, teria sido cortado 10 vezes por amizades que se converteram em obrigação que se converteram em opressão. Um milagre que você merece. Há dezenas e é melhor você não contar.

— Tenho usado minha armadura — resmunguei para ele. — Mas você quer que eu a mantenha... durante todo o tempo? A cada momento? Há um tempo para flores também. E Leslie é especial.

— Leslie era especial. Cada mulher é especial por um dia, Richard. Mas o especial se transforma em lugar-comum, o tédio predomina, o respeito se desvanece, a liberdade se perde. Perca a sua liberdade... o que mais tem a perder?

O vulto era maciço, só que mais rápido e ágil do que um gato no combate, imensamente forte.

— Você me criou para ser o seu amigo mais íntimo, Richard. Não me projetou para ser belo, risonho, afetuoso ou dócil. Construiu-me para protegê-lo das ligações que se tornam ameaçadoras; construiu-me para garantir sua sobrevivência como uma alma livre. Só posso salvá-lo se fizer o que eu mandar. Pode me mostrar um casamento feliz? Um único que seja? Entre todos os homens que você conhece, há um único cujo casamento não tenha se tornado mais feliz através do divórcio e de uma amizade a substituí-lo?

Eu tinha de admitir:

— Não conheço ninguém.

— O segredo da minha força é que não minto. Até que você possa me apresentar uma argumentação melhor, mudar meu fato para ficção, eu estarei com você, para guiá-lo e protegê-lo. Outras mulheres foram bonitas para você ontem. Cada uma delas o teria destruído no casamento. Há uma mulher perfeita para você, mas habita em muitos corpos diferentes...

— Eu sei, eu sei...

— Você sabe. Quando encontrar uma mulher no mundo que possa lhe dar mais do que muitas mulheres, então desaparecerei.

Eu não gostava dele, mas não podia negar que estava certo. Ele me salvara de ataques que teriam matado quem eu era no momento. Não gostava de sua arrogância, mas a arrogância provinha da certeza. Era assustador ficar na mesma sala que ele, mas pedir-lhe para degelar era me tornar a baixa de cada descoberta que esta ou aquela mulher não era, no final das contas, a minha alma-irmã.

Desde quando eu podia lembrar, a liberdade igualava a felicidade. Um pouco de proteção... é um preço pequeno a se pagar pela felicidade.

Naturalmente, pensei, Leslie possui a sua própria pessoa de aço para protegê-la... muito mais homens haviam planejado a sua captura e casamento do que mulheres planejaram o mesmo em relação a mim. Se ela vivesse sem a armadura, estaria casada hoje, sem o momento de amor alegre que desfrutáramos. Sua alegria se baseava também na liberdade.

Como desaprovávamos as pessoas casadas que às vezes nos procuravam para ligações extraconjugais! Aja como acreditar, não importa o que seja — se acredita no casamento, viva-o honestamente. Se não acredita, descase o mais depressa possível.

Eu estaria casando com Leslie ao gastar tanto da minha liberdade com ela?

— Desculpe — murmurei para o meu amigo blindado. — Não tornarei a esquecer.

Ele me lançou um olhar longo e sombrio antes de se retirar.

Respondi à correspondência por uma hora, trabalhei num artigo de revista que não tinha um prazo determinado. Depois, irrequieto, desci para o hangar.

Sobre a enorme depressão pairava o mais tênue véu de algo errado... um vapor tão ligeiro que nada havia para se ver.

O pequeno jato BD-5 precisava voar, a fim de remover as teias de aranha das superfícies de controle.

Há teias de aranha também em mim, pensei. Nunca é sensato se perder a eficiência em qualquer avião, permanecer longe por tempo demais. O pequeno jato estava pedindo, o único avião que eu voara mais perigoso na decolagem do que no pouso.

Três metros e 60 centímetros do nariz à extremidade, tirado do hangar como uma carrocinha de cachorro-quente, sem o guarda-sol e igualmente sem vida. Não inteiramente sem vida, pensei. Era soturno. E eu também ficaria, se deixado sozinho por semanas, com aranhas no meu trem de pouso.

A cobertura removida, o combustível verificado, inspeção antes do vôo. Havia poeira nas asas.

Eu deveria contratar alguém para tirar a poeira dos aviões, pensei, resfolegando em desgosto. Mas que preguiçoso eu me tornara — contratar alguém para tirar a poeira dos meus aviões!

Eu costumava ter toda intimidade com um só avião, agora tenho um harém de lata; sou o xeque que aparece de vez em quando para uma visita. O Twin Cessna, o Widgeon, o Meyers, o Moth, o Rapide, o Lake anfíbio, o Pitts Special... uma vez por mês, se tanto, eu ligo seus motores. Somente o T-33 tem tempo recente em seu diário de vôo, voltando da Califórnia.

Tome cuidado, Richard, pensei. Estar distante do avião em que se voa é não criar condições propícias à longevidade.

Entrei na carlinga do pequeno jato, olhei para um painel de instrumentos que o tempo me tornara desconhecido.

Costumava ser, eu passava todos os dias com o Fleet, virava de cabeça para baixo na carlinga, tirava feno do chão, manchava as mangas de óleo ao limpar o motor, ajustar as válvulas, apertar cada parafuso. Hoje, sou tão íntimo dos meus muitos aviões quanto sou das minhas muitas mulheres.

O que Leslie pensaria a respeito, ela que tanto preza a tudo? Não éramos íntimos, ela e eu? Eu gostaria que ela estivesse aqui.

— Tudo checado! — gritei em advertência, por força do hábito, apertando o botão de partida.

A ignição disparou e finalmente um rumor de combustível de jato entrando no motor chegou a meus ouvidos. A temperatura aumentou, os mostradores adquiriram vida.

Assim é o hábito. A partir do momento em que aprendemos um avião, as mãos e os olhos sabem como fazê-lo funcionar, muito depois que nossas mentes esqueceram. Se mais alguém estivesse na carlinga e perguntasse como ligar o motor, eu não saberia responder... só depois que minhas mãos terminassem a seqüência é que poderia explicar o que haviam feito.

O perfume forte do combustível queimando penetrou na carlinga... recordações de mil outros vôos surgiram junto. Continuidade. Este dia é parte de uma vida passada a voar durante a maior parte do tempo.

Conhece outro significado para voar, Richard? Escapar. Fugir. Mas do que estou escapando e o que estou encontrando atualmente?

Taxiei para a pista, avistei uns poucos carros pararem na cerca do aeroporto para observar. Não havia muito para ser visto. O jato era tão pequeno que, sem o sistema de fumaça de show aéreo ligado, estaria fora de vista antes de chegar à extremidade da pista.

Não se esqueça de que a decolagem é crítica. Acione de leve o manche, Richard, bem de leve. Acelere para 85 nós, depois levante o nariz ligeiramente e deixe o avião alçar vôo por si mesmo. Tente forçar e estará morto.

Apontado pela linha branca no centro da pista, a capota fechada e trancada, comprimi o acelerador até o fundo e o pequeno aparelho se projetou para a frente. Com seu pequeno motor, o jato adquiria velocidade tão depressa quanto um carro de boi. Na metade da pista estava em movimento, mas ainda adormecido... 60 nós era devagar demais para se voar. Um longo tempo depois estávamos avançado a 85 nós, com a maior parte da pista para trás.

Levantei a roda dianteira do concreto e em poucos segundos estávamos no ar, mas com o aparelho ainda baixo e vagaroso, na extremidade da pista, fazendo o maior esforço para passar por cima das árvores.

Rodas recolhidas.

Galhos passaram faiscando três metros abaixo. A velocidade no ar aumentou para 100 nós, 120 nós, 150 nós, finalmente o aparelho despertou e comecei a relaxar na carlinga. A180, a coisinha faria qualquer coisa que eu quisesse. Tudo o que precisava era de velocidade aerodinâmica e céu livre para se transformar num enorme prazer.

Como voar era importante para mim! Representava tudo o que eu amava. O vôo parece magia, mas é uma habilidade que se aprende e se pratica com uma companhia aprendizável e adorável. Princípios a conhecer, leis a seguir, disciplinas que orientam e conduzem, por mais estranho que possa parecer, à liberdade. Voar é tão parecido com música! Tenho certeza de que Leslie adoraria.

Ao norte, uma linha de cúmulos se acumula em tempestades. Dez minutos e estamos deslizando sobre os domos lisos, no ar rarefeito, mais de três quilômetros acima do ermo.

Quando eu era garoto, costumava me esconder no mato e observava as nuvens, vendo outro eu empoleirado lá em cima, na beira da nuvem como estou agora, acenando uma bandeira para o menino lá embaixo e gritando OI, DICKIE! Só que nunca dava para ouvir, por causa da altura. Com lágrimas nos olhos, ele queria tanto viver numa nuvem, nem que fosse por um minuto!

O jato virou à idéia, subiu e disparou para o topo da nuvem, uma rampa de esqui austríaca. Mergulhamos as asas por um instante pela neblina, levantamos e rolamos. E com toda certeza, diminuindo por trás de nós, lá estava uma bandeira branca se enrascando, uma bandeira de nuvem para assinalar o salto. Oi, Dickie!, pensei, mais alto do que um grito. Oi, Dickie fazendo um cruzamento para o garoto no solo 30 anos antes. Controle a sua paixão pelo céu e eu lhe prometo uma coisa, garoto: o que você ama encontrará um meio de arrebatá-lo da terra, projetando-0 bem alto para as respostas alegres e assustadoras a cada pergunta que puder formular.

Éramos um foguete nivelado, a paisagem de nuvem mudando em alta velocidade ao nosso redor.

Ele ouviu?

Eu me lembro de ter ouvido então a promessa que apresentei neste momento ao garoto observando do mato de um ano diferente? Talvez. Não as palavras, mas o conhecimento absoluto de que eu algum dia voaria.

Reduzimos a velocidade, entramos em rolamento, invertemos, mergulhamos direto por um longo percurso. Que pensamento! Se pudéssemos conversar entre nós, de um tempo para outro, Richard — agora estimulando Dickie — então, encorajando não em palavras, mas em recordações profundas de aventuras ainda a serem vividas. Como rádio psíquico, transmitindo desejos, ouvindo intuições.

Quanto a aprender se pudéssemos passar uma hora, passar 20 minutos ao menos, com o nós-que-nos-tornaremos! Quanto poderíamos dizer ao nós-que-fomos!

Suave suave, com o mais gentil toque de um dedo no manche, o pequeno avião saiu de seu mergulho. Em velocidade aerodinâmica não se faz nada súbito com um avião, a fim de que não se torne uma ex